ENTREVISTA JOÃO ALMINO
Chega na próxima semana às livrarias do país mais uma obra do terceiro “joão literário” produzido pela diplomacia brasileira. Depois de João Guimarães Rosa e de João Cabral de Mello Neto, a vez é do diplomata João Almino, que lança seu romance “As cinco estações do amor” terça-feira, às 20h, na Argumento. Ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Londres, em julho Almino assume a direção do Instituto Rio Branco, em Brasília.
Cassia Maria Rodrigues
Correspondente • LONDRES
O GLOBO: Com “As cinco estações do amor”, você concluiu a trilogia de Brasília iniciada com “Idéias para onde passar o fim do mundo”. De que trata o livro? E por que este título?
JOÃO ALMINO: O livro é uma reflexão sobre as relações contemporâneas, sobretudo as amorosas. Vivemos um momento de crise e de revisão de comportamentos, que se remete à grande revolução de costumes de 1968. Mas não apenas isso. É algo que vem de mais longe. 0 amor é uma idéia; é uma construção moderna sobretudo a idéia de que o amor pode vir junto com o casamento. Houve épocas em que essas duas coisas não estavam ligadas. Então, pensar a questão da relação do ponto de vista afetivo, da convivência, neste momento de grandes transformações comportamentos, é o tema do livro. Sobre “As cinco estações do amor”, bom, é uma metáfora. Em português, pelo menos, elas têm um sentido ambíguo, porque podem ser como as estações do ano ou as estações da cruz. Mas estas são mais do que cinco. Então as cinco, de fato, lançam uma espécie de pergunta. Há o que vai além do que é previsível, algo como a terceira margem do rio.
Em suas narrativas, você amplia a importância dos personagens femininos. Despertam fascínio maior por serem mais ricos em emoções?
JOÃO ALMINO: Sim. 0 personagem feminino me permite como escritor abranger mais a vida. Se eu escrevesse este mesmo livro com um personagem masculino, talvez não pudesse me aprofundar tanto em aspectos humanos que eu gostaria de me aprofundar. Eu queria uma dimensão mais completa da vida. Acho que os homens se limitam mais em alguns aspectos. Preferi fazer um livro mais quente, e achei que poderia fazer isso melhor com um personagem feminino.
Por que Brasília é uma fonte de inspiração para você?
JOÃO ALMINO: Brasília, em primeiro lugar, é um vazio. Uma cidade sem história ainda, com mais futuro do que passado. É uma incógnita em muitos sentidos. Mas, sendo um vazio, é também uma cidade onde você pode mais facilmente põr o que você quiser. Tem um horizonte muito amplo para a ficção. E é uma mistura de brasis: tem muito do Nordeste brasileiro, tem algo do Centro do Brasil, do Planalto, um pouco da Amazônia, um pouco do Sul. E bastante do Sudeste, ao dar continuidade à administração federal que veio do Rio. Mas Brasília é também palco, teatro. Mesmo a sua arquitetura se presta aos grandes cenários. Pessoalmente, como fui um migrante em minha vida toda, e em todos os lugares em que eu vivi, vivi relativamente pouco tempo, eu diria que Brasília é daqueles lugares do mundo onde eu mais vivi. Mas nem sempre esta minha ligação com a cidade é de atração, pode ser de repulsa. Mas a atração é suficiente para que a cidade me instigue.
Mesmo a Brasília da falta de ética nas relações políticas é uma boa idéia para se passar o fim do mundo?
JOÃO ALMINO: Sim, Brasília é um bom lugar para se passar o fim do mundo, assim como outros. Acho que a idéia do fim do mundo, pelo menos na minha literatura, está presente desde o começo porque também está muito presente no imaginário moderno. A gente teve a impressão de que seria possível transformar o mundo de maneira radical. Faz parte do imaginário moderno essa idéia de uma mudança, e da possibilidade de uma mudança radical. Sobretudo através da idéia da revolução, que foi uma idéia histórica tão importante. Inclusive, gerou grandes transformações no século XX – a própria idéia da construção de um homem novo. Mas, ao mesmo tempo, há uma consciência crescente de que se trata de uma ilusão também. No fundo, as coisas mudam para melhor e para pior, mas há também, e sobretudo, uma grande continuidade, há algo subjacente que permanece, que tem a ver com a cultura. 0 fim do mundo, portanto, em vez de existir em algum ponto do futuro, em vez de haver um zero da história em algum momento, de alguma maneira, se ele existe, existe todos os dias. Temos que conviver com ele porque é parte do nosso imaginário. Depende de nós querer vivê-lo como ilusão ou ter consciência de que ele nada mais é do que uma idéia pela qual somos atraídos ou que nos assusta.
Em outras palavras, você passaria o fim do mundo em Brasília, mas trabalhando para livrá-la do purgatório…
JOÃO ALMINO: 0 papel do escritor é, sobretudo, o de tentar aumentar o universo. das percepções, da consciência para os problemas, e tentar reduzir o universo das ilusões. Se com isso ele conseguir fazer com que seus leitores se distanciem do inferno, talvez esse seja um bom efeito da sua literatura. Mas eu tenho uma certa dúvida dessa eficácia. Eu gostaria de poder acreditar nessa capacidade transformadora da palavra, mas infelizmente não estou certo dela.
Particularmente em relação a “As cinco estações do amor”, como se deu a concepção do livro?
JOAO ALMINO: Tudo começou com o primeiro livro, que abriu um leque de caminhos. No início, eu imaginei até que poderiam ser mais de três. Os personagens estão lá, eles vão. amadurecendo, alguns crescem um pouco mais, outros nem tanto. E, no final de cada livro, ficam as sementes do livro seguinte. Outros projetos de livros, dos quais escolho um. Então, essa personagem (Ana Kaufmann), que acaba sendo desenvolvida de maneira mais clara no terceiro livro, está presente tanto no primeiro como no segundo. Mas os três livros não precisam ser lidos em série. Eles são independentes.
Você costuma desenvolver a narrativa na primeira pessoa. É uma ferramenta literária mais fácil de ser usada?
JOÃO ALMIN0: A narrativa na primeira pessoa leva talvez a uma mais fácil identificação do leitor com o personagem. Tentei muito brincar com essa idéia da primeira e também da terceira pessoa nos meus romances. O meu primeiro livro (“Idéias para onde passar o fim do mundo”) é, em grande parte, em terceira pessoa. Mas é uma terceira pessoa não típica. A estrutura dele é a seguinte: um fantasma desce à terra para completar, digamos, uma história, um roteiro de cinema que ele tentara em vida realizar e não conseguira. Então ele baixa na terra em cada um dos seus personagens. Cada capítulo é narrado em terceira pessoa, mas é uma narrativa feita a partir de dentro do personagem, quer dizer, o fantasma está dentro do personagem. Portanto, é uma terceira pessoa que tem toda a dimensão da primeira pessoa. Esse foi o jogo do primeiro livro, do ponto de vista da técnica da narrativa No segundo (“Samba-enredo”), a narrativa é em primeira pessoa, mas é uma primeira pessoa atípica; porque quem está narrando é uma máquina, uma primeira pessoa que tem os limites e a objetividade da terceira pessoa.
Alguns autores brasileiros, como Ana Maria Machado e Ignácio de Loyola Brandão, identificaram o seu “humor literário corrosivo” com o de Machado. O que acha?
JOÃO ALMINO: Não sei se devo acreditar, mas obviamente me sentiria muito honrado com qualquer comparação que se fizesse com o grande mestre da ficção brasileira Por acaso, li Machado muito cedo, porque meu pai, mesmo sendo um autodidata que tinha apenas o curso primário, era dono de uma boa biblioteca. Era um grande leitor e, para felicidade minha, lá no interior do Rio Grande do Norte, em Mossoró, eu tinha em casa a obra de Machado e a de Graciliano, autores que eu comecei a ler muito cedo. Se algum dia eu tiver dúvida sobre a vontade de viver, pegar um livro do Machado, abrir e ler algumas páginas, sei que é algo que me fará renascer.
O que, no Brasil real o inspirou em sua ficção?
JOÃO ALMINO: Acho que, em primeiro lugar, o escritor reage à idéia do homem no mundo. Então, em primeiro lugar não é apenas o Brasil. É o seu estar no mundo que é uma fonte perene de inspiração para os escritores, desde os clássicos, desde os gregos, desde antes. Acho que matéria-prima para se trabalhar com a literatura não falta. E os grandes temas são os temas perenes, como o amor e a amizade. Agora, além disso, eu diria que o projeto moderno é um projeto ainda inacabado, e os grandes problemas que a Humanidade tem enfrentado para a construção desse mundo moderno são problemas ainda existentes. E, à medida que se tenta resolver alguns, outros tantos surgem. Então, a cada dia que passa enfrentamos novos problemas no Brasil e fora do Brasil. A literatura obviamente lida com aquilo que, quem escreve, conhece melhor, como a sua vivência, a sua existência. Certamente que um escritor brasileiro, mesmo que não fale do Brasil, estará refletindo a sua existência brasileira. Como por exemplo, Shakespeare, ao escrever sobre a Dinamarca, obviamente continua sendo um autor inglês. Nesse sentido, não há como fugir à realidade do país. A realidade do país é complexa, é brutal, e o escritor tem que enfrentá-la através da sua linguagem.
ENTREVISTA JOÃO ALMINO
Chega na próxima semana às livrarias do país mais uma obra do terceiro “joão literário” produzido pela diplomacia brasileira. Depois de João Guimarães Rosa e de João Cabral de Mello Neto, a vez é do diplomata João Almino, que lança seu romance “As cinco estações do amor” terça-feira, às 20h, na Argumento. Ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Londres, em julho Almino assume a direção do Instituto Rio Branco, em Brasília.
Cassia Maria Rodrigues
Correspondente • LONDRES
O GLOBO: Com “As cinco estações do amor”, você concluiu a trilogia de Brasília iniciada com “Idéias para onde passar o fim do mundo”. De que trata o livro? E por que este título?
JOÃO ALMINO: O livro é uma reflexão sobre as relações contemporâneas, sobretudo as amorosas. Vivemos um momento de crise e de revisão de comportamentos, que se remete à grande revolução de costumes de 1968. Mas não apenas isso. É algo que vem de mais longe. 0 amor é uma idéia; é uma construção moderna sobretudo a idéia de que o amor pode vir junto com o casamento. Houve épocas em que essas duas coisas não estavam ligadas. Então, pensar a questão da relação do ponto de vista afetivo, da convivência, neste momento de grandes transformações comportamentos, é o tema do livro. Sobre “As cinco estações do amor”, bom, é uma metáfora. Em português, pelo menos, elas têm um sentido ambíguo, porque podem ser como as estações do ano ou as estações da cruz. Mas estas são mais do que cinco. Então as cinco, de fato, lançam uma espécie de pergunta. Há o que vai além do que é previsível, algo como a terceira margem do rio.
Em suas narrativas, você amplia a importância dos personagens femininos. Despertam fascínio maior por serem mais ricos em emoções?
JOÃO ALMINO: Sim. 0 personagem feminino me permite como escritor abranger mais a vida. Se eu escrevesse este mesmo livro com um personagem masculino, talvez não pudesse me aprofundar tanto em aspectos humanos que eu gostaria de me aprofundar. Eu queria uma dimensão mais completa da vida. Acho que os homens se limitam mais em alguns aspectos. Preferi fazer um livro mais quente, e achei que poderia fazer isso melhor com um personagem feminino.
Por que Brasília é uma fonte de inspiração para você?
JOÃO ALMINO: Brasília, em primeiro lugar, é um vazio. Uma cidade sem história ainda, com mais futuro do que passado. É uma incógnita em muitos sentidos. Mas, sendo um vazio, é também uma cidade onde você pode mais facilmente põr o que você quiser. Tem um horizonte muito amplo para a ficção. E é uma mistura de brasis: tem muito do Nordeste brasileiro, tem algo do Centro do Brasil, do Planalto, um pouco da Amazônia, um pouco do Sul. E bastante do Sudeste, ao dar continuidade à administração federal que veio do Rio. Mas Brasília é também palco, teatro. Mesmo a sua arquitetura se presta aos grandes cenários. Pessoalmente, como fui um migrante em minha vida toda, e em todos os lugares em que eu vivi, vivi relativamente pouco tempo, eu diria que Brasília é daqueles lugares do mundo onde eu mais vivi. Mas nem sempre esta minha ligação com a cidade é de atração, pode ser de repulsa. Mas a atração é suficiente para que a cidade me instigue.
Mesmo a Brasília da falta de ética nas relações políticas é uma boa idéia para se passar o fim do mundo?
JOÃO ALMINO: Sim, Brasília é um bom lugar para se passar o fim do mundo, assim como outros. Acho que a idéia do fim do mundo, pelo menos na minha literatura, está presente desde o começo porque também está muito presente no imaginário moderno. A gente teve a impressão de que seria possível transformar o mundo de maneira radical. Faz parte do imaginário moderno essa idéia de uma mudança, e da possibilidade de uma mudança radical. Sobretudo através da idéia da revolução, que foi uma idéia histórica tão importante. Inclusive, gerou grandes transformações no século XX – a própria idéia da construção de um homem novo. Mas, ao mesmo tempo, há uma consciência crescente de que se trata de uma ilusão também. No fundo, as coisas mudam para melhor e para pior, mas há também, e sobretudo, uma grande continuidade, há algo subjacente que permanece, que tem a ver com a cultura. 0 fim do mundo, portanto, em vez de existir em algum ponto do futuro, em vez de haver um zero da história em algum momento, de alguma maneira, se ele existe, existe todos os dias. Temos que conviver com ele porque é parte do nosso imaginário. Depende de nós querer vivê-lo como ilusão ou ter consciência de que ele nada mais é do que uma idéia pela qual somos atraídos ou que nos assusta.
Em outras palavras, você passaria o fim do mundo em Brasília, mas trabalhando para livrá-la do purgatório…
JOÃO ALMINO: 0 papel do escritor é, sobretudo, o de tentar aumentar o universo. das percepções, da consciência para os problemas, e tentar reduzir o universo das ilusões. Se com isso ele conseguir fazer com que seus leitores se distanciem do inferno, talvez esse seja um bom efeito da sua literatura. Mas eu tenho uma certa dúvida dessa eficácia. Eu gostaria de poder acreditar nessa capacidade transformadora da palavra, mas infelizmente não estou certo dela.
Particularmente em relação a “As cinco estações do amor”, como se deu a concepção do livro?
JOAO ALMINO: Tudo começou com o primeiro livro, que abriu um leque de caminhos. No início, eu imaginei até que poderiam ser mais de três. Os personagens estão lá, eles vão. amadurecendo, alguns crescem um pouco mais, outros nem tanto. E, no final de cada livro, ficam as sementes do livro seguinte. Outros projetos de livros, dos quais escolho um. Então, essa personagem (Ana Kaufmann), que acaba sendo desenvolvida de maneira mais clara no terceiro livro, está presente tanto no primeiro como no segundo. Mas os três livros não precisam ser lidos em série. Eles são independentes.
Você costuma desenvolver a narrativa na primeira pessoa. É uma ferramenta literária mais fácil de ser usada?
JOÃO ALMIN0: A narrativa na primeira pessoa leva talvez a uma mais fácil identificação do leitor com o personagem. Tentei muito brincar com essa idéia da primeira e também da terceira pessoa nos meus romances. O meu primeiro livro (“Idéias para onde passar o fim do mundo”) é, em grande parte, em terceira pessoa. Mas é uma terceira pessoa não típica. A estrutura dele é a seguinte: um fantasma desce à terra para completar, digamos, uma história, um roteiro de cinema que ele tentara em vida realizar e não conseguira. Então ele baixa na terra em cada um dos seus personagens. Cada capítulo é narrado em terceira pessoa, mas é uma narrativa feita a partir de dentro do personagem, quer dizer, o fantasma está dentro do personagem. Portanto, é uma terceira pessoa que tem toda a dimensão da primeira pessoa. Esse foi o jogo do primeiro livro, do ponto de vista da técnica da narrativa No segundo (“Samba-enredo”), a narrativa é em primeira pessoa, mas é uma primeira pessoa atípica; porque quem está narrando é uma máquina, uma primeira pessoa que tem os limites e a objetividade da terceira pessoa.
Alguns autores brasileiros, como Ana Maria Machado e Ignácio de Loyola Brandão, identificaram o seu “humor literário corrosivo” com o de Machado. O que acha?
JOÃO ALMINO: Não sei se devo acreditar, mas obviamente me sentiria muito honrado com qualquer comparação que se fizesse com o grande mestre da ficção brasileira Por acaso, li Machado muito cedo, porque meu pai, mesmo sendo um autodidata que tinha apenas o curso primário, era dono de uma boa biblioteca. Era um grande leitor e, para felicidade minha, lá no interior do Rio Grande do Norte, em Mossoró, eu tinha em casa a obra de Machado e a de Graciliano, autores que eu comecei a ler muito cedo. Se algum dia eu tiver dúvida sobre a vontade de viver, pegar um livro do Machado, abrir e ler algumas páginas, sei que é algo que me fará renascer.
O que, no Brasil real o inspirou em sua ficção?
JOÃO ALMINO: Acho que, em primeiro lugar, o escritor reage à idéia do homem no mundo. Então, em primeiro lugar não é apenas o Brasil. É o seu estar no mundo que é uma fonte perene de inspiração para os escritores, desde os clássicos, desde os gregos, desde antes. Acho que matéria-prima para se trabalhar com a literatura não falta. E os grandes temas são os temas perenes, como o amor e a amizade. Agora, além disso, eu diria que o projeto moderno é um projeto ainda inacabado, e os grandes problemas que a Humanidade tem enfrentado para a construção desse mundo moderno são problemas ainda existentes. E, à medida que se tenta resolver alguns, outros tantos surgem. Então, a cada dia que passa enfrentamos novos problemas no Brasil e fora do Brasil. A literatura obviamente lida com aquilo que, quem escreve, conhece melhor, como a sua vivência, a sua existência. Certamente que um escritor brasileiro, mesmo que não fale do Brasil, estará refletindo a sua existência brasileira. Como por exemplo, Shakespeare, ao escrever sobre a Dinamarca, obviamente continua sendo um autor inglês. Nesse sentido, não há como fugir à realidade do país. A realidade do país é complexa, é brutal, e o escritor tem que enfrentá-la através da sua linguagem.
ENTREVISTA JOÃO ALMINO
Chega na próxima semana às livrarias do país mais uma obra do terceiro “joão literário” produzido pela diplomacia brasileira. Depois de João Guimarães Rosa e de João Cabral de Mello Neto, a vez é do diplomata João Almino, que lança seu romance “As cinco estações do amor” terça-feira, às 20h, na Argumento. Ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Londres, em julho Almino assume a direção do Instituto Rio Branco, em Brasília.
Cassia Maria Rodrigues
Correspondente • LONDRES
O GLOBO: Com “As cinco estações do amor”, você concluiu a trilogia de Brasília iniciada com “Idéias para onde passar o fim do mundo”. De que trata o livro? E por que este título?
JOÃO ALMINO: O livro é uma reflexão sobre as relações contemporâneas, sobretudo as amorosas. Vivemos um momento de crise e de revisão de comportamentos, que se remete à grande revolução de costumes de 1968. Mas não apenas isso. É algo que vem de mais longe. 0 amor é uma idéia; é uma construção moderna sobretudo a idéia de que o amor pode vir junto com o casamento. Houve épocas em que essas duas coisas não estavam ligadas. Então, pensar a questão da relação do ponto de vista afetivo, da convivência, neste momento de grandes transformações comportamentos, é o tema do livro. Sobre “As cinco estações do amor”, bom, é uma metáfora. Em português, pelo menos, elas têm um sentido ambíguo, porque podem ser como as estações do ano ou as estações da cruz. Mas estas são mais do que cinco. Então as cinco, de fato, lançam uma espécie de pergunta. Há o que vai além do que é previsível, algo como a terceira margem do rio.
Em suas narrativas, você amplia a importância dos personagens femininos. Despertam fascínio maior por serem mais ricos em emoções?
JOÃO ALMINO: Sim. 0 personagem feminino me permite como escritor abranger mais a vida. Se eu escrevesse este mesmo livro com um personagem masculino, talvez não pudesse me aprofundar tanto em aspectos humanos que eu gostaria de me aprofundar. Eu queria uma dimensão mais completa da vida. Acho que os homens se limitam mais em alguns aspectos. Preferi fazer um livro mais quente, e achei que poderia fazer isso melhor com um personagem feminino.
Por que Brasília é uma fonte de inspiração para você?
JOÃO ALMINO: Brasília, em primeiro lugar, é um vazio. Uma cidade sem história ainda, com mais futuro do que passado. É uma incógnita em muitos sentidos. Mas, sendo um vazio, é também uma cidade onde você pode mais facilmente põr o que você quiser. Tem um horizonte muito amplo para a ficção. E é uma mistura de brasis: tem muito do Nordeste brasileiro, tem algo do Centro do Brasil, do Planalto, um pouco da Amazônia, um pouco do Sul. E bastante do Sudeste, ao dar continuidade à administração federal que veio do Rio. Mas Brasília é também palco, teatro. Mesmo a sua arquitetura se presta aos grandes cenários. Pessoalmente, como fui um migrante em minha vida toda, e em todos os lugares em que eu vivi, vivi relativamente pouco tempo, eu diria que Brasília é daqueles lugares do mundo onde eu mais vivi. Mas nem sempre esta minha ligação com a cidade é de atração, pode ser de repulsa. Mas a atração é suficiente para que a cidade me instigue.
Mesmo a Brasília da falta de ética nas relações políticas é uma boa idéia para se passar o fim do mundo?
JOÃO ALMINO: Sim, Brasília é um bom lugar para se passar o fim do mundo, assim como outros. Acho que a idéia do fim do mundo, pelo menos na minha literatura, está presente desde o começo porque também está muito presente no imaginário moderno. A gente teve a impressão de que seria possível transformar o mundo de maneira radical. Faz parte do imaginário moderno essa idéia de uma mudança, e da possibilidade de uma mudança radical. Sobretudo através da idéia da revolução, que foi uma idéia histórica tão importante. Inclusive, gerou grandes transformações no século XX – a própria idéia da construção de um homem novo. Mas, ao mesmo tempo, há uma consciência crescente de que se trata de uma ilusão também. No fundo, as coisas mudam para melhor e para pior, mas há também, e sobretudo, uma grande continuidade, há algo subjacente que permanece, que tem a ver com a cultura. 0 fim do mundo, portanto, em vez de existir em algum ponto do futuro, em vez de haver um zero da história em algum momento, de alguma maneira, se ele existe, existe todos os dias. Temos que conviver com ele porque é parte do nosso imaginário. Depende de nós querer vivê-lo como ilusão ou ter consciência de que ele nada mais é do que uma idéia pela qual somos atraídos ou que nos assusta.
Em outras palavras, você passaria o fim do mundo em Brasília, mas trabalhando para livrá-la do purgatório…
JOÃO ALMINO: 0 papel do escritor é, sobretudo, o de tentar aumentar o universo. das percepções, da consciência para os problemas, e tentar reduzir o universo das ilusões. Se com isso ele conseguir fazer com que seus leitores se distanciem do inferno, talvez esse seja um bom efeito da sua literatura. Mas eu tenho uma certa dúvida dessa eficácia. Eu gostaria de poder acreditar nessa capacidade transformadora da palavra, mas infelizmente não estou certo dela.
Particularmente em relação a “As cinco estações do amor”, como se deu a concepção do livro?
JOAO ALMINO: Tudo começou com o primeiro livro, que abriu um leque de caminhos. No início, eu imaginei até que poderiam ser mais de três. Os personagens estão lá, eles vão. amadurecendo, alguns crescem um pouco mais, outros nem tanto. E, no final de cada livro, ficam as sementes do livro seguinte. Outros projetos de livros, dos quais escolho um. Então, essa personagem (Ana Kaufmann), que acaba sendo desenvolvida de maneira mais clara no terceiro livro, está presente tanto no primeiro como no segundo. Mas os três livros não precisam ser lidos em série. Eles são independentes.
Você costuma desenvolver a narrativa na primeira pessoa. É uma ferramenta literária mais fácil de ser usada?
JOÃO ALMIN0: A narrativa na primeira pessoa leva talvez a uma mais fácil identificação do leitor com o personagem. Tentei muito brincar com essa idéia da primeira e também da terceira pessoa nos meus romances. O meu primeiro livro (“Idéias para onde passar o fim do mundo”) é, em grande parte, em terceira pessoa. Mas é uma terceira pessoa não típica. A estrutura dele é a seguinte: um fantasma desce à terra para completar, digamos, uma história, um roteiro de cinema que ele tentara em vida realizar e não conseguira. Então ele baixa na terra em cada um dos seus personagens. Cada capítulo é narrado em terceira pessoa, mas é uma narrativa feita a partir de dentro do personagem, quer dizer, o fantasma está dentro do personagem. Portanto, é uma terceira pessoa que tem toda a dimensão da primeira pessoa. Esse foi o jogo do primeiro livro, do ponto de vista da técnica da narrativa No segundo (“Samba-enredo”), a narrativa é em primeira pessoa, mas é uma primeira pessoa atípica; porque quem está narrando é uma máquina, uma primeira pessoa que tem os limites e a objetividade da terceira pessoa.
Alguns autores brasileiros, como Ana Maria Machado e Ignácio de Loyola Brandão, identificaram o seu “humor literário corrosivo” com o de Machado. O que acha?
JOÃO ALMINO: Não sei se devo acreditar, mas obviamente me sentiria muito honrado com qualquer comparação que se fizesse com o grande mestre da ficção brasileira Por acaso, li Machado muito cedo, porque meu pai, mesmo sendo um autodidata que tinha apenas o curso primário, era dono de uma boa biblioteca. Era um grande leitor e, para felicidade minha, lá no interior do Rio Grande do Norte, em Mossoró, eu tinha em casa a obra de Machado e a de Graciliano, autores que eu comecei a ler muito cedo. Se algum dia eu tiver dúvida sobre a vontade de viver, pegar um livro do Machado, abrir e ler algumas páginas, sei que é algo que me fará renascer.
O que, no Brasil real o inspirou em sua ficção?
JOÃO ALMINO: Acho que, em primeiro lugar, o escritor reage à idéia do homem no mundo. Então, em primeiro lugar não é apenas o Brasil. É o seu estar no mundo que é uma fonte perene de inspiração para os escritores, desde os clássicos, desde os gregos, desde antes. Acho que matéria-prima para se trabalhar com a literatura não falta. E os grandes temas são os temas perenes, como o amor e a amizade. Agora, além disso, eu diria que o projeto moderno é um projeto ainda inacabado, e os grandes problemas que a Humanidade tem enfrentado para a construção desse mundo moderno são problemas ainda existentes. E, à medida que se tenta resolver alguns, outros tantos surgem. Então, a cada dia que passa enfrentamos novos problemas no Brasil e fora do Brasil. A literatura obviamente lida com aquilo que, quem escreve, conhece melhor, como a sua vivência, a sua existência. Certamente que um escritor brasileiro, mesmo que não fale do Brasil, estará refletindo a sua existência brasileira. Como por exemplo, Shakespeare, ao escrever sobre a Dinamarca, obviamente continua sendo um autor inglês. Nesse sentido, não há como fugir à realidade do país. A realidade do país é complexa, é brutal, e o escritor tem que enfrentá-la através da sua linguagem.
ENTREVISTA JOÃO ALMINO
Chega na próxima semana às livrarias do país mais uma obra do terceiro “joão literário” produzido pela diplomacia brasileira. Depois de João Guimarães Rosa e de João Cabral de Mello Neto, a vez é do diplomata João Almino, que lança seu romance “As cinco estações do amor” terça-feira, às 20h, na Argumento. Ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Londres, em julho Almino assume a direção do Instituto Rio Branco, em Brasília.
Cassia Maria Rodrigues
Correspondente • LONDRES
O GLOBO: Com “As cinco estações do amor”, você concluiu a trilogia de Brasília iniciada com “Idéias para onde passar o fim do mundo”. De que trata o livro? E por que este título?
JOÃO ALMINO: O livro é uma reflexão sobre as relações contemporâneas, sobretudo as amorosas. Vivemos um momento de crise e de revisão de comportamentos, que se remete à grande revolução de costumes de 1968. Mas não apenas isso. É algo que vem de mais longe. 0 amor é uma idéia; é uma construção moderna sobretudo a idéia de que o amor pode vir junto com o casamento. Houve épocas em que essas duas coisas não estavam ligadas. Então, pensar a questão da relação do ponto de vista afetivo, da convivência, neste momento de grandes transformações comportamentos, é o tema do livro. Sobre “As cinco estações do amor”, bom, é uma metáfora. Em português, pelo menos, elas têm um sentido ambíguo, porque podem ser como as estações do ano ou as estações da cruz. Mas estas são mais do que cinco. Então as cinco, de fato, lançam uma espécie de pergunta. Há o que vai além do que é previsível, algo como a terceira margem do rio.
Em suas narrativas, você amplia a importância dos personagens femininos. Despertam fascínio maior por serem mais ricos em emoções?
JOÃO ALMINO: Sim. 0 personagem feminino me permite como escritor abranger mais a vida. Se eu escrevesse este mesmo livro com um personagem masculino, talvez não pudesse me aprofundar tanto em aspectos humanos que eu gostaria de me aprofundar. Eu queria uma dimensão mais completa da vida. Acho que os homens se limitam mais em alguns aspectos. Preferi fazer um livro mais quente, e achei que poderia fazer isso melhor com um personagem feminino.
Por que Brasília é uma fonte de inspiração para você?
JOÃO ALMINO: Brasília, em primeiro lugar, é um vazio. Uma cidade sem história ainda, com mais futuro do que passado. É uma incógnita em muitos sentidos. Mas, sendo um vazio, é também uma cidade onde você pode mais facilmente põr o que você quiser. Tem um horizonte muito amplo para a ficção. E é uma mistura de brasis: tem muito do Nordeste brasileiro, tem algo do Centro do Brasil, do Planalto, um pouco da Amazônia, um pouco do Sul. E bastante do Sudeste, ao dar continuidade à administração federal que veio do Rio. Mas Brasília é também palco, teatro. Mesmo a sua arquitetura se presta aos grandes cenários. Pessoalmente, como fui um migrante em minha vida toda, e em todos os lugares em que eu vivi, vivi relativamente pouco tempo, eu diria que Brasília é daqueles lugares do mundo onde eu mais vivi. Mas nem sempre esta minha ligação com a cidade é de atração, pode ser de repulsa. Mas a atração é suficiente para que a cidade me instigue.
Mesmo a Brasília da falta de ética nas relações políticas é uma boa idéia para se passar o fim do mundo?
JOÃO ALMINO: Sim, Brasília é um bom lugar para se passar o fim do mundo, assim como outros. Acho que a idéia do fim do mundo, pelo menos na minha literatura, está presente desde o começo porque também está muito presente no imaginário moderno. A gente teve a impressão de que seria possível transformar o mundo de maneira radical. Faz parte do imaginário moderno essa idéia de uma mudança, e da possibilidade de uma mudança radical. Sobretudo através da idéia da revolução, que foi uma idéia histórica tão importante. Inclusive, gerou grandes transformações no século XX – a própria idéia da construção de um homem novo. Mas, ao mesmo tempo, há uma consciência crescente de que se trata de uma ilusão também. No fundo, as coisas mudam para melhor e para pior, mas há também, e sobretudo, uma grande continuidade, há algo subjacente que permanece, que tem a ver com a cultura. 0 fim do mundo, portanto, em vez de existir em algum ponto do futuro, em vez de haver um zero da história em algum momento, de alguma maneira, se ele existe, existe todos os dias. Temos que conviver com ele porque é parte do nosso imaginário. Depende de nós querer vivê-lo como ilusão ou ter consciência de que ele nada mais é do que uma idéia pela qual somos atraídos ou que nos assusta.
Em outras palavras, você passaria o fim do mundo em Brasília, mas trabalhando para livrá-la do purgatório…
JOÃO ALMINO: 0 papel do escritor é, sobretudo, o de tentar aumentar o universo. das percepções, da consciência para os problemas, e tentar reduzir o universo das ilusões. Se com isso ele conseguir fazer com que seus leitores se distanciem do inferno, talvez esse seja um bom efeito da sua literatura. Mas eu tenho uma certa dúvida dessa eficácia. Eu gostaria de poder acreditar nessa capacidade transformadora da palavra, mas infelizmente não estou certo dela.
Particularmente em relação a “As cinco estações do amor”, como se deu a concepção do livro?
JOAO ALMINO: Tudo começou com o primeiro livro, que abriu um leque de caminhos. No início, eu imaginei até que poderiam ser mais de três. Os personagens estão lá, eles vão. amadurecendo, alguns crescem um pouco mais, outros nem tanto. E, no final de cada livro, ficam as sementes do livro seguinte. Outros projetos de livros, dos quais escolho um. Então, essa personagem (Ana Kaufmann), que acaba sendo desenvolvida de maneira mais clara no terceiro livro, está presente tanto no primeiro como no segundo. Mas os três livros não precisam ser lidos em série. Eles são independentes.
Você costuma desenvolver a narrativa na primeira pessoa. É uma ferramenta literária mais fácil de ser usada?
JOÃO ALMIN0: A narrativa na primeira pessoa leva talvez a uma mais fácil identificação do leitor com o personagem. Tentei muito brincar com essa idéia da primeira e também da terceira pessoa nos meus romances. O meu primeiro livro (“Idéias para onde passar o fim do mundo”) é, em grande parte, em terceira pessoa. Mas é uma terceira pessoa não típica. A estrutura dele é a seguinte: um fantasma desce à terra para completar, digamos, uma história, um roteiro de cinema que ele tentara em vida realizar e não conseguira. Então ele baixa na terra em cada um dos seus personagens. Cada capítulo é narrado em terceira pessoa, mas é uma narrativa feita a partir de dentro do personagem, quer dizer, o fantasma está dentro do personagem. Portanto, é uma terceira pessoa que tem toda a dimensão da primeira pessoa. Esse foi o jogo do primeiro livro, do ponto de vista da técnica da narrativa No segundo (“Samba-enredo”), a narrativa é em primeira pessoa, mas é uma primeira pessoa atípica; porque quem está narrando é uma máquina, uma primeira pessoa que tem os limites e a objetividade da terceira pessoa.
Alguns autores brasileiros, como Ana Maria Machado e Ignácio de Loyola Brandão, identificaram o seu “humor literário corrosivo” com o de Machado. O que acha?
JOÃO ALMINO: Não sei se devo acreditar, mas obviamente me sentiria muito honrado com qualquer comparação que se fizesse com o grande mestre da ficção brasileira Por acaso, li Machado muito cedo, porque meu pai, mesmo sendo um autodidata que tinha apenas o curso primário, era dono de uma boa biblioteca. Era um grande leitor e, para felicidade minha, lá no interior do Rio Grande do Norte, em Mossoró, eu tinha em casa a obra de Machado e a de Graciliano, autores que eu comecei a ler muito cedo. Se algum dia eu tiver dúvida sobre a vontade de viver, pegar um livro do Machado, abrir e ler algumas páginas, sei que é algo que me fará renascer.
O que, no Brasil real o inspirou em sua ficção?
JOÃO ALMINO: Acho que, em primeiro lugar, o escritor reage à idéia do homem no mundo. Então, em primeiro lugar não é apenas o Brasil. É o seu estar no mundo que é uma fonte perene de inspiração para os escritores, desde os clássicos, desde os gregos, desde antes. Acho que matéria-prima para se trabalhar com a literatura não falta. E os grandes temas são os temas perenes, como o amor e a amizade. Agora, além disso, eu diria que o projeto moderno é um projeto ainda inacabado, e os grandes problemas que a Humanidade tem enfrentado para a construção desse mundo moderno são problemas ainda existentes. E, à medida que se tenta resolver alguns, outros tantos surgem. Então, a cada dia que passa enfrentamos novos problemas no Brasil e fora do Brasil. A literatura obviamente lida com aquilo que, quem escreve, conhece melhor, como a sua vivência, a sua existência. Certamente que um escritor brasileiro, mesmo que não fale do Brasil, estará refletindo a sua existência brasileira. Como por exemplo, Shakespeare, ao escrever sobre a Dinamarca, obviamente continua sendo um autor inglês. Nesse sentido, não há como fugir à realidade do país. A realidade do país é complexa, é brutal, e o escritor tem que enfrentá-la através da sua linguagem.