REGINA ZILBERMAN, CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL. IN: NARRATI-VAS CONTEMPORÂNEAS, RECORTES CRÍTICOS SOBRE LITERATURA BRASI-LEIRA. ORG: GÍNIA MARIA GOMES. PORTO ALEGRE: LIBRETOS, P. 29-46.
CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL
Regina Zilberman
UFRGS
Resumo: O romance Cidade Livre, de João Almino, organiza a trama em função de dois eventos: a construção de Brasília e o desaparecimento do operário Valdivino. Examinam-se as conexões entre os dois episódios, o primeiro de ordem histórica, o segundo, de natureza ficcional, para se pensar as relações entre um mito de fundação e a condição sacral e sacrificial do herói fundador.
Palavras-chave: João Almino; Cidade Livre; fundação; memória cultural
Abstract: The plot of João Almino’s novel, Cidade Livre, is organized by two events: the building of Brasilia, the new Brazilian capital, and the vanishing of a worker, the character Valdivino. The connections between these episodes, one historical, the other ficcional, are examined, in order to understand the relations between a foundation myth, and the sacred and sacrificing conditon of a founder hero.
Key words: João Almino; Cidade Livre; foundation; cultural memory.
Nosso passado se esconde atrás de muros às vezes impenetráveis e se revela ao acaso, aqui e ali, quando o evocamos por meio de um indício, de uma palavra, de um cheiro, de um gosto, de um detalhe qualquer, como quem olha uma paisagem através de furos na parede. (ALMINO, 2010, p. 232)
1. À PROCURA DO AUTOR
Cidade Livre é o quinto romance de João Almino, autor também de Idéias para on-de passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008). Publicado em 2010, seu lançamento coincidiu com as comemorações do cinquentenário de Brasília, cenário desse conjunto de obras ficcionais. O escritor intitula “Quinteto de Brasília” a esse grupo de romances, cuja unidade decorre igualmente da reiteração de personagens, que, embora importantes, ocupam posições colaterais no enredo, o que faculta sua migração de uma obra a outra.
O tempo dirá se Cidade Livre é o fim de um ciclo; mas o romance, sem dúvida, nar-ra um começo – o da cidade que acolhe as figuras da trama, o que significa afirmar também que relata o início de um modelo de nação para o Brasil, dado o projeto que fundamentou e fecundou a criação de Brasília. Assim, Cidade Livre assume identidade épica enquanto pro-jeto narrativo, ao mesmo tempo em que lida com as coordenadas do mito enquanto modo de expor atos inaugurais de uma civilização ou de uma cultura.
Uma introdução e sete capítulos, todos devidamente providos de um título, estrutu-ram a ordem narrativa. A abertura, ela mesma nomeada “Introdução”, a que se seguem dois pontos e uma especificação, “Sete noites e um enterro”, é assinada pelo narrador e presun-tivo autor da obra, que se identifica apenas com as iniciais JA, mas que faz questão de se distinguir de João Almino, o escritor que, colocando seu nome na capa, é o responsável pe-lo livro. A disjunção entre os dois JAs apoia-se em dois recursos: o narrador alude ao fato de ter oferecido o livro para a leitura e correção de João Almino, arrependendo-se depois desse ato: “cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos” (ALMINO, 2010, p. 15); no transcurso dos capítulos seguintes, o narrador retoma o proce-dimento, aludindo mais de uma vez às sugestões expressas por João Almino no sentido de aperfeiçoar o texto, o que reforça a discriminação entre as duas criaturas [por exemplo: “discordo neste ponto da revisão de João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem ao Planalto Central” (ALMINO, 2010, p. 34)].
Por outro lado, o narrador parece não querer abrir mão da ambiguidade que a dupla denominação sugere. Assim, encerra a introdução com uma observação, dirigida aos leito-res, que, em lugar de esclarecer sua identidade, sublinha a coincidência entre os dois sujei-tos, à qual se seguem as iniciais JA, mencionadas antes:
Até aqui este é o único parágrafo que vocês, leitores do blog, comentaram, que-rem porque querem saber meu nome ou pelo menos se sou ou não sou João Al-mino, como se a história mudasse de sentido dependendo de quem seja seu autor, mas paciência, mantenho meu anonimato pela simples razão de que me dá mais liberdade, sobretudo liberdade para ser sincero. (ALMINO, 2010, p. 17-18)
Ao estabelecer a dualidade entre o narrador em primeira pessoa, identificado como João, e o escritor que assina o livro, o autor subverte a atribuição da autoria. Observe-se que a autoria, em qualquer circunstância, em se tratando de obras de ficção, corteja a condi-ção do ghostwriter, ainda que às avessas: uma obra é assinada por um ser histórico, mas quem é a enuncia é um ente imaginário, que responde por seu criador. No caso de Cidade Livre, porém, essa condição é colocada de cabeça para baixo, reinvertendo a situação do ghostwriter, agora, porém, em um texto de fantasia, pois ocorre de ser a criatura fictícia a reivindicar a autoria, relegando o indivíduo que assina o livro, e que responde legalmente por ele (FOUCAULT, 1992), à condição de interventor, interpondo-se no discurso alheio para desfigurá-lo a ponto de comprometer sua espontaneidade.
É, pois, como se o sujeito que coloca seu nome na capa cometesse um crime, rou-bando a propriedade que pertenceria, com legitimidade, à personagem, contudo não plena-mente identificada, que relata os eventos. Essa, por outro lado, também não é inocente, já que, da sua parte, se aproveita de discursos alheios, registrados por escrito, como os cader-nos de seu pai adotivo, ou transmitidos oralmente, como as lembranças, oriundas igualmen-te do pai do narrador, que, em estado agônico, aciona sua memória para dar conta do passa-do a ser recuperado pelo livro proposto.
Ladrão que rouba ladrão? É essa a cena fundadora de Cidade Livre? As apropria-ções, contudo, não se limitam à circulação dos enunciados entre criador e criatura. Evocam ainda ilustres representantes da literatura brasileira, sendo o mais notório, no caso, Gracili-ano Ramos (1892-1953), autor de São Bernardo (1934).
Também esse romance abre com uma introdução que expõe o processo de produção do livro. Paulo Honório, o protagonista e narrador, tão logo inicia o relato, declara:
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contri-buir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzei-ro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuá-ria, faria as despesas e poria o meu nome na capa. (RAMOS, 1972, p. 61)
No parágrafo seguinte, o narrador declara que o plano não dera certo; mas não de-siste, embora altere o modo de proceder: conserva a colaboração de Azevedo Gondim, e os dois trabalham juntos por um tempo, sobretudo porque Paulo Honório vê em seu parceiro “uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça” (RAMOS, 1972, p. 62). Porém, o resultado acaba por desagradá-lo:
O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei:
– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safa-do, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! (RAMOS, 1972, p. 62-63)
Processo semelhante encontra-se em Cidade Livre: também o João-narrador desen-canta-se com as sugestões do outro João, que almeja aperfeiçoar seu estilo:
[…] cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos, o encheu de gírias e cenas de violência, me alertou ser preciso acrescentar-lhe uma dimensão moral e filosófica e ainda me perguntou se continha algum ensi-namento, o que achei um absurdo e por isso decidi enviá-lo à editora mesmo sem a moral, a filosofia e o ensinamento, me chateando depois com a resposta polida de que não se enquadrava na sua linha editorial. (ALMINO, 2010, p. 15)
E, tal como ocorre em São Bernardo, cujo protagonista retoma, solitariamente, o projeto de escrita da obra após “ouvi[r] novo pio de coruja” – “iniciei a composição de re-pente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer van-tagem, direta ou indireta” (RAMOS, 1972, p. 64) –, o João de Cidade Livre é motivado por um “vulto. Papai!, chamo. Silêncio. Ainda ouço sua voz, como eco, lá no fundo de meu medo” (ALMINO, 2010, p. 24), o que aciona o gatilho da memória e garante a escrita do livro.
A introdução estabelece, pois, as regras da escrita:
– o compartilhamento da autoria, que, enquanto identidade, se dissolve entre vários sujeitos, ainda que o narrador controle os freios do relato e mante-nha a unidade do diálogo com o(s) leitor(es);
– a sugestão de apropriações nem sempre legítimas, denunciando o ato cri-minoso que sustenta a criação literária, formada pelo deslocamento dos su-jeitos da enunciação e pela incorporação de achados alheios, declarados al-guns, conforme indica o narrador no início da introdução – “meu relato manteve misturadas minhas memórias, as de papai, minhas pesquisas e as observações de tia Francisca” (ALMINO, 2010, p. 15) –, outros, porém, omitidos e nem sempre voluntários.
Apoiando a trama de Cidade Livre sobre a necessidade de esclarecimento de um as-sassinato, constata-se que o delito apresenta-se não apenas enquanto objeto da narrativa, mas assenta-se sobre o próprio processo de produção, razão porque o narrador pode ser u-no, mas as subjetividades que o habitam mostram-se variáveis, já que a propriedade materi-al da narração não lhe pertence com exclusividade.
2. TRAMA
Sete capítulos desdobram a trama, cumprindo o prometido no subtítulo da introdu-ção, pois correspondem às sete noites em que o narrador acompanhou a agonia do pai, pre-so e em estado terminal, relembrando com ele os anos da edificação de Brasília.
O primeiro capítulo, tendo por subtítulo “De A a Z”, contém dois segmentos. No primeiro, o narrador evoca a ação do pai adotivo, Moacyr Ribeiro, que relata o que teste-munhou no Jardim da Salvação, quando Valdivino, personagem cuja função no romance revela-se aos poucos, teria ou não falecido. Esses acontecimentos datam de 22 de abril de 1960, o dia subsequente à inauguração de Brasília. No segundo segmento, o narrador retor-na a 1956, quando sua família, então constituída pelo pai adotivo, por tia Francisca (irmã de sua finada mãe) e ele, ainda menino, é estimulada a transferir-se de Ceres, em Goiás, para a região onde será erigida a nova capital do país.
Ceres é, ela mesma, uma cidade, na época, recentemente fundada, originária da Co-lônia Agrícola de Goiás, estabelecida por Bernardo Sayão (1901-1959), engenheiro e então vice-governador do Estado, a quem será atribuída a missão de concretizar o projeto do pre-sidente Juscelino Kubitschek (1902-1976). Sayão é personagem não apenas da história de Brasília, mas da vida das personagens de Cidade Livre, pois sua presença e iniciativas de-sempenharão papel decisivo nos acontecimentos da intriga. Nesse ponto do relato, é o en-genheiro encarregado da Novacap quem induz Ribeiro e seus parentes, aos quais se junta sua irmã Matilde, designada por tia pelo narrador, a começar nova trajetória em um cenário até então pouco conhecido por todos.
O capítulo inicial coloca as personagens em dois tempos: a atualidade do narrador e o passado de sua transferência para Brasília. Esse momento corresponde simultaneamente a um novo início, já que elas viveram traumas – Moacyr decide mudar-se para Ceres e adotar o pequeno João, depois de uma crise de alcoolismo; João perdeu a família (pai, mãe e duas irmãs) em um acidente doméstico – de que precisam se liberar, e ao princípio propriamente dito de suas existências, pois não se apresentam acontecimentos prévios experimentados por qualquer uma dessas criaturas. Assim, não se sabe o que motivou a decadência de Mo-acyr, qual foi a trajetória pregressa da família do narrador, e tia Francisca e tia Matilde, re-presentando os dois lados da família, respectivamente a do narrador e a de seu pai adotivo, não contam com uma história anterior.
Tal como Brasília, a família atípica do narrador vivencia uma espécie de marco ze-ro, embora todos disponham de razões – fatos anteriormente vividos – que justificam a mu-dança em processo. Mas o que ocorreu antes não contribuiu para o que se passa mais adian-te, de modo que esses dados são omitidos, correspondendo a uma espécie de pré-história, logo, carente de registro, de situações motivadoras do presente, mas não suficientemente re-levantes para serem relatadas.
O capítulo se complementa pela apresentação dos primeiros movimentos na direção da instalação da Cidade Livre, entre 1956 e 1957. Aquela, que viria a constituir o atual Nú-cleo Bandeirante, dispõe de um estatuto particular: “primeira cidade descartável”, “constru-ída para ser destruída” (ALMINO, 2010, p. 43), e qualificada de “livre”, porque os comer-ciantes locais não pagavam impostos; além disso, acolhia, sem discriminações e preconcei-tos, pessoas da mais variada procedência, desde que comprometidas com a edificação de Brasília.
O capítulo inicial configura o modo como o romance se desenvolverá. Assim, alter-nam-se episódios relativos à história da construção da futura capital, com eventos experi-mentados pelo narrador. Rememoram-se as profecias milenaristas que prognosticavam seu aparecimento, as missões, desde o século XIX, que mapearam a região, as iniciativas do governo federal no sentido de viabilizar o projeto, as inaugurações que sinalizavam sua ins-talação, as medidas de ordem material de que a Brasília de hoje resultam, como a alteração na geografia dos rios, levando à criação do lago Paranoá. De outra parte, expõem-se as ati-vidades de tia Francisca, responsável por fornecer alimentos para o refeitório dos trabalha-dores, de Moacyr, que almeja documentar o testemunho dos visitantes ilustres que acompa-nham a implantação da nova urbe, enquanto se encarrega dos comodatos na Cidade Livre, e os devaneios eróticos do narrador, ainda menino, ao contemplar Matilde nua, imagem que o persegue por todo o transcurso da narrativa.
O capítulo seguinte, “Segunda-noite: De corpo e alma”, narra a inauguração de Bra-sília, concentrando-se nos festejos ocorridos entre 20 e 21 de abril de 1960. Reitera-se o te-or épico que marcara o capítulo inicial, relativo à instalação do projeto, para relembrar a mobilização de pessoas que acompanham as missas, os discursos do presidente, a euforia que contamina a todos. A essas recordações somam-se as alusões à precária situação de Valdivino, possivelmente perseguido pelo coronel nordestino a quem não pagara a dívida contraída ao aceitar a combinação que o levaria a migrar para o Centro-Oeste e obter colo-cação na construção da nova cidade:
Papai tinha conhecimento daqueles abusos. Montavam-se negócios para financiar as passagens dos retirantes, os agentes de empregos os encontravam onde estives-sem, até mesmo nos lugares mais recônditos do sertão, e eles, fugindo da seca, se deixavam seduzir pela promessa do trabalho em Brasília, submetendo-se a quais-quer que fossem as condições. (ALMINO, 2010, p. 70)
Mais adiante esclarece-se outro temor do rapaz: ele seria igualmente perseguido por Aristóteles, o “policial da GEB” (ALMINO, 2010, p. 75), com quem dividia o dormitório. Tais ameaças compõem o pano de fundo que culmina no sumiço de Valdivino, nunca mais encontrado pelo narrador, apenas por seu pai, conforme esse relata no capítulo primeiro, ao rever o filho, depois de anos de separação e próximo da morte. Não surpreende, pois, que o desaparecimento do rapaz converta-se em mistério irresolvido, mesmo porque não é inves-tigado, atormentando tão somente o narrador, por se sentir parcialmente responsável pelo fato, e sua tia Francisca, que permanentemente protesta a inocência de Moacyr, sobretudo depois do falecimento desse.
No parágrafo final do capítulo, o narrador inclui uma confissão que dá conta de sua parcela de culpa nos acontecimentos que culminam na morte de Valdivino:
Desde então ficaram misturados em minha cabeça o possível assassinato de Val-divino, a inauguração de Brasília e os peitos de tia Matilde, além de minha pró-pria culpa por ter querido tanto a morte de Valdivino, ele que me queria tanto bem. (ALMINO, 2010, p. 86)
À inauguração de Brasília soma-se, pois, um crime, cuja vítima pertence à classe trabalhadora e reúne as características do indivíduo associado à construção da cidade – o candango. Valdivino é o sertanejo que se desloca para o centro do país, de uma parte, em busca de uma oportunidade profissional, de outra, à procura da mulher que ama, cuja iden-tidade se revela nos capítulos finais. Instalada a nova capital, ele é exterminado, pois, em certo sentido, deixa de se mostrar necessário. Ao contrário da Cidade Livre, estabelecida para ser temporária, mas que permanece até a atualidade, Valdivino é o ente descartável, que não encontra lugar no mundo que se descortina em 21 de abril de 1960. Não por acaso, seu desaparecimento ocorre na data subsequente, 22 de abril, dia em que, conforme assina-lam os historiadores, a frota dos portugueses comandados por Pedro Álvares Cabral (1467/8-c.1520) aportou no litoral baiano, dando início à colonização da América lusitana.
Cidade Livre joga com os registros históricos, movendo-se do presente para o pas-sado, a fim de interpretar o momento vivido. O 21 de abril escolhido por Kubitschek para inaugurar a nova capital homenageia Tiradentes, como o romance relembra na página 81; mas é também a ocasião de um crime, quando Joaquim José da Silva Xavier (1746?-1792), o alferes que supostamente liderara a conjuração mineira, fora enforcado pelo poder metro-politano português. Assim, o 22 de abril assinala começos, o da colonização europeia e o de operação de Brasília enquanto centro político nacional; porém, a data está marcada por um crime que empana a imagem gloriosa que a memória gostaria de consignar. Provavelmente por esse motivo Moacyr, o pai do narrador, jamais consiga levar a cabo o Livro de Ouro em que ambiciona anotar para a posteridade as declarações de louvor ao projeto e funciona-mento da cidade por parte dos visitantes notórios que por ali passaram durante o período de sua edificação.
A partir do terceiro capítulo, a narrativa adota predominantemente procedimento li-near, substituindo o vaivém cronológico, entre 1956 e 1960, até então empregado. “Terceira noite: paisagens com cupins” detém-se sobretudo “no dia em que conhecemos Valdivino” (ALMINO, 2010, p. 87), por volta de outubro de 1956. O encontro dá-se em meio à mata, onde se acham o narrador e seu pai, quando o rapaz aparece, afirmando tê-los salvo do ata-que de uma onça. No mês seguinte, o jovem passa a trabalhar na Novacap, tornando-se fre-quentador assíduo da casa do narrador, pois conta com a admiração de Francisca e o apreço dos demais, incluindo o engenheiro Roberto, parceiro de Matilde.
“Quarta noite: Lucrécia” desloca parcialmente o foco para as ações de Moacyr, que se torna amante de Lucrécia, uma prostituta radicada na Cidade Livre. Introduz a persona-gem Paulão, a quem o pai do narrador se associa em uma série de negociatas de que advirá seu enriquecimento. Esse é matéria de “Quinta noite: A construção do mistério”, transcorri-do em 1958, também concentrado sobretudo nas ações de Moacyr, que se considera desti-nado a cumprir duas missões: “testemunhar aquele começo, registrá-lo para a história e en-riquecer com as oportunidades que se abriam.” (ALMINO, 2010, p. 148) Sua melhor opor-tunidade de acompanhar ilustres personalidades das artes e da política internacional ocorre quando Aldous Huxley (1894-1963) e a esposa conhecem Brasília, o que maravilha o autor de Admirável mundo novo.
“Sexta noite: O campo da esperança” divide as ações entre Moacyr e Valdivino. Aquele continua seus negócios com Paulão, mas, movido por seu empenho em testemunhar os eventos principais da história, acompanha os trabalhos de Bernardo Sayão na construção da rodovia que ligará Brasília a Belém, no Pará. Trata-se de outra tarefa épica, que faz sua primeira renomada vítima trágica: o próprio engenheiro é atingido por uma árvore que vi-nha sendo derrubada:
Pouco depois de meio-dia, papai se aproximava do local juntamente com um to-pógrafo e um engenheiro, e, quando por volta de uma da tarde os três assistiam à derrubada de uma gigantesca árvore que se prendia a outras por cipós e parasitas, um galho seco de quarenta a cinquenta quilos e medindo cerca de dois metros desprendeu-se das ramagens de uma árvore vizinha, voou feroz e veio atingir a cabeça de Bernardo Sayão, bem como seu braço e perna esquerdos. (ALMINO, 2010, p. 188)
Na sequência do capítulo, compete ao narrador testemunhar a mobilização popular por ocasião do enterro do engenheiro, que desse modo inaugura o campo santo da cidade que erigia. Outra vez o relato assume tom épico, ao lidar com a emoção popular e as medi-das públicas dos líderes políticos: “o presidente JK, chegando a Brasília, dera a ordem de enterrá-lo no terreno que o próprio Sayão demarcara, há menos de dois anos, para ser o fu-turo cemitério de Brasília, o Campo da Esperança, que seria assim inaugurado com seu en-terro.” (ALMINO, 2010, p. 192). Mais adiante, o narrador reitera: “Brasília nunca tinha vis-to e talvez jamais viesse a assistir novamente a enterro tão concorrido. O cemitério era um mar de trinta mil pessoas.” (ALMINO, 2010, p. 193)
As ações grandiosas não se limitam à reação popular. A rodovia entre Belém e a fu-tura capital é inaugurada em 31 de janeiro daquele ano, tomando o nome de Bernardo Sa-yão. Além disso, o presidente JK resolve punir a natureza que o privara de um de seus prin-cipais assessores:
[…] o próprio JK, orgulhoso, naquele dia havia derrubado um velho jatobá no ponto de ligação das frentes norte e sul da estrada, dera ordem para derrubar a primeira árvore e ele próprio derrubara a última […]. Sentado no trator, cuidado-samente desmobilizara o tronco de jatobá, que ainda se manteve de pé, em segui-da engrenara as lagartas e avançara com determinação sobre ele, o jatobá oscilara ainda, mas era já então o cambaleio que prenunciava a morte. (ALMINO, 2010, p. 194).
O episódio enuncia o outro combate que se travava, agora entre o homem e a natu-reza até então inviolável. Essa alcançara algumas vitórias, mas diante da ação empreende-dora do principal herói da trama histórica, o presidente JK, as derrotas se acumulavam. Elas podiam, porém, se mostrar passageiras ou enganosas, desconfiança introduzida pelo narra-dor, ao relembrar conto de Monteiro Lobato (1882-1948), “A vingança da peroba”, que a-lude à lenda do “pau de feitiço”, o “pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens” (LOBATO, 1947, p. 107).
A menção à narrativa configura, de uma parte, o tom “politicamente correto” do tex-to, ao mesmo tempo que sugere a depredação do espaço natural amazônico. Não se restrin-ge, porém, a esse papel, ao reforçar o caráter mítico do processo de fundação: tal como o-corre à inauguração da capital no Planalto Central, a do campo santo relaciona-se a um ato criminoso, que, ritualisticamente, consome os indivíduos que os planejaram, seja o cemité-rio, seja a nova cidade.
O capítulo sexto dá conta igualmente das agruras de Valdivino, acusado de seduzir e engravidar uma moça, razão porque é perseguido pela família dela, que exige o matrimônio do par. O suposto sedutor cogita ter sido vítima de uma armação, mas não encontra meios de reagir ou escapar à pena prevista; por isso, oculta-se por certo tempo, até reaparecer em casa de Francisca, por ocasião do carnaval de 1959, conforme relata o narrador. Reside um tempo junto à família de João, mas depois transfere-se para Vila Amaury, em razão de seu trabalho como pedreiro.
“Sétima noite: O deserto e o esquecimento” denomina o capítulo de encerramento. Dando continuidade ao percurso cronológico da narração, alcançam-se as cerimônias de i-nauguração, antecipadas em capítulo anterior e agora posicionadas enquanto efeito dos e-ventos previamente expostos. Retorna o tom grandiloquente da epopeia, extraído das in-formações contidas nas anotações que o pai do narrador lega à posteridade:
Como numa contagem regressiva para o lançamento de um foguete, a caixa de papéis de papai anunciava a inauguração de Brasília através de recortes de jor-nais, todos datados e numerados. Ele havia me mostrado no próprio dia da publi-cação um jornal de 16 de janeiro daquele ano de 1960, noticiando que a Caravana da Integração Nacional, com suas quatro colunas – do Norte, Sul, Leste e Oeste, ou seja, de Belém, Porto Alegre, Rio e Cuiabá –, formadas cada uma por cinquen-ta veículos de fabricação nacional, começava sua viagem para a futura capital, e no dia 2 de fevereiro, juntamente com Valdivino e as tias Francisca e Matilde, me levou sob um céu nublado para a Praça dos Três Poderes, onde quase toda a po-pulação de Brasília assistia à chegada daquelas colunas, que seriam recebidas por JK, dona Sarah e todo o ministério. (ALMINO, 2010, p. 212-213)
O narrador não abandona, porém, o destino de Valdivino no passado, nem de seu pai, que, neste capítulo derradeiro, se entrelaçam, já que Moacyr pode ter sido o assassino do rapaz: “Dizem que Valdivino agrediu você, papai, porque soube de seu caso com Lucré-cia, acreditam que foi você quem o assassinou em legítima defesa, que tinha depois tentado, sem êxito, salvá-lo, ressuscitá-lo.” (ALMINO, 2010, p. 216). O pai apresenta outra versão, repetindo a informação que dera a João no capítulo inicial: encontrou o rapaz inconsciente, tentou despertá-lo, mas não é bem sucedido: “aproximou-se de Valdivino quando ele tenta-va enunciar mais algumas palavras, envolveu delicadamente seu pescoço com as mãos, procurou levantar sua cabeça, pareceu-lhe então que Valdivino havia expirado, sentiu seu pulso e não teve mais dúvida.” (ALMINO, 2010, p. 29). Do renascimento não há provas, pois, apenas lendas que circulam entre os adeptos do culto de que Valdivino fazia parte, di-fundidas por Íris Quelemém:
Quando papai voltou ao Jardim da Salvação dois dias depois, Íris lhe disse, Ele é um santo, para explicar por que o corpo de Valdivino não apodrecia. Nunca vai apodrecer, vaticinou, e mais tarde espalhou que Valdivino ressuscitara, estava vi-vo, embora papai nem ninguém lá em casa nunca mais o tivesse visto. (ALMINO, 2010, p. 30)
É ainda no capítulo final que o narrador expõe os esclarecimentos apresentados por seu pai: Valdivino era adepto de seita milenarista comandada por Íris Quelemém; essa chamava-se originalmente Lucrécia, ex-amante tanto de Moacyr, quanto de Paulão, mas também a mulher que o rapaz buscava, quando se dirigiu, do sertão, ao Planalto Central. Sem elucidar se a sacerdotisa era a amada ou mãe de Valdivino [“Não sei se Íris era ou não a mãe dele, parece que quando ele era criança ela lhe contava que ele tinha sido enjeitado na porta de casa, mas quando quis parar com aquela relação maluca com ele, inventou de dizer que era sua mãe” (ALMINO, 2010, p. 235), escreve João], a narrativa deixa entrever uma relação incestuosa, que coloca várias disputas em cena, todas indicando para a retoma-da do mito de Édipo, apresentado aqui às avessas, já que se sacrifica o filho (Valdivino), e não o pai, em nome da posse da figura materna (Lucrécia).
A esse último interrogatório de Moacyr pelo filho adotivo, seguem-se a morte e o enterro do interrogado, cuja confissão não alcança diminuir as dúvidas e incertezas do inter-rogador, mesmo porque esse não supera o sentimento de culpa expresso ao leitor, por efeito de sua condição de narrador:
Confesso a vocês o que não disse a papai: que naquele tempo eu também me sen-tia assassino de Valdivino, um assassino sem remorso. Eu desejei aquela morte, a desejei muito, talvez mais do que qualquer outra pessoa. (ALMINO, 2010, p. 232)
O diálogo com o leitor, substituindo o interrogatório feito ao pai adotivo, acaba por ser respondido por esse último, retornando do passado e, de certo modo, de seu túmulo: “e por que você quer resolver esse problema?, nem todo problema tem solução, foram essas as últimas palavras que ouvi de papai, entre quatro paredes de um branco sujo.” (ALMINO, 2010, p. 232) Talvez por essa razão não se verifica o aclaramento desejado pelo narrador, restando, de uma parte, a dúvida e a suspeita, de outro, o esquecimento. São as palavras de Moacyr, ao reproduz para o filho seu diálogo com Lucrécia/Íris de Quelemém, que selam o destino da investigação do final de Valdivino: “não houve crime, em Brasília não haverá crimes, ela dizia. Ou os crimes não serão descobertos, contestei. Não, não haverá crimes, ela repetia.” (ALMINO, 2010, p. 229-230)
3. SACRALIDADE E EXCLUSÃO DA HISTÓRIA
Duas linhas de força travejam Cidade Livre:
– o processo de construção de Brasília, com ênfase no período transcorrido entre 1956 e 1960, episódio de fundo histórico, decisivo para a compreen-são do Brasil da segunda metade do século XX;
– a trajetória de Valdivino, desde o encontro com a família do narrador, por volta de 1956, até seu desaparecimento, em 22 de abril de 1960, episódio de natureza fictícia, mas fundamental para a interpretação conferida pelo romance ao pano de fundo histórico.
Essas linhas não são paralelas; pelo contrário, entrelaçam-se várias vezes, já que Valdivino e a família do narrador migram para o Planalto Central, de uma parte, para solu-cionar problemas particulares, mas, de outra, para se integrar aos sucessos notáveis que lá ocorriam. Assim, o sertanejo exerce vários ofícios em distintos segmentos da trama: é es-criba, depois servente de obra, operário, garçom; porém, invariavelmente ocupa a posição do representante da camada popular que sustentou a edificação da cidade – o candango, cu-ja importância ficou perenizada no monumento que o homenageia, de autoria do escultor Bruno Giorgi (1905-1993). Por sua vez, Francisca é “fornecedora de alimentos e também auxilia[r] na cozinha do restaurante do Serviço de Alimentação da Previdência Social” (ALMINO, 2010, p. 102), Moacyr negocia os comodatos, Matilde namora Roberto, enge-nheiro da obra.
A trama absorve as duas linhas de força, sendo que uma depende da outra: Brasília teria sua história sem Valdivino, Francisca e outros, mas não seria concretizada sem a mão de obra corporificada por eles. Sob esse aspecto, as personagens assumem significado ale-górico, cada qual correspondendo a elementos individuais do processo que, conglutinados, configuram sua imagem compósita. Só que o mosaico que se desenha é móvel, acolhendo, de uma parte, figuras novas, de outra, banindo as antigas.
A eliminação mais gritante é a de Valdivino, a personagem aparentemente colateral que faz as vezes do sujeito sacrificado. Sob esse aspecto, ele ascende à condição de prota-gonista, além de absorver fatores mágicos e divinos, sugeridos de imediato por sua nome de batismo. Outras associações reiteram sua situação simultânea de ente fadado ao sacrifício ritual e figura dotada de componentes míticos:
– a identidade com que é conhecido no Jardim da Salvação, Abel, nome do filho de Adão e Eva, o casal original da Bíblia hebraica, pastor de ovelhas e predileto de Deus, razão do ciúme suscitado em seu irmão, Caim, que o mata, inaugurando a série de crimes e de barbárie que faz a história da hu-manidade;
– a atração incestuosa por Lucrécia, mãe ou amante, que o conduz a Brasília, Tebas moderna, e que motiva sua morte, invertendo a sequência do mito trágico, mas não deixando de lado o aspecto sacrificial contido na punição de Édipo;
– a aproximação com o destino de Jesus Cristo, pois, ao ser encontrado mor-to ou semimorto no Jardim da Salvação, espera-se que ressuscite, expecta-tiva que se transforma em lenda relativa à sua sorte futura.
Além das aproximações míticas, fica sugerida uma associação, de ordem histórica, com Tiradentes, o mártir da independência brasileira, pois é por ocasião do feriado dedica-do àquela personalidade histórica que a capital é inaugurada.
Na composição de Valdivino, colaboram, pois, elementos míticos e históricos. Por outro lado, a composição da história de Brasília também incorpora perspectiva mítica, fa-zendo com que, por outro caminho, se cruzem as linhas de força que travejam o romance. Assim, a escolha do local da fundação da cidade relaciona-se à profecia de dom Bosco, du-plicada na missão de que Íris Quelemém se crê investida: “Íris tivera a iluminação de que dom Bosco lhe atribuía a missão de rumar para o Planalto Central para ajudar a criar a nova civilização” (ALMINO, 2010, p. 30); e Valdivino e a seita a que pertence consideram aque-le espaço mágico, capaz de conduzi-los a Z, “cidade perdida de uma civilização antiga e avançada” (ALMINO, 2010, p. 171). Se, por esse aspecto, o comportamento das persona-gens poderia parecer inverossímil, os fatos extraliterários colaboram para conferir-lhe vera-cidade, pois sabe-se que Brasília e a região que a cerca, no Planalto Central, congrega seitas milenaristas que contam com adeptos de todo o mundo, circunstância, aliás, mencionada na trama: “A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urba-nístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavm pelos seus arredores […].” (ALMINO, 2010, p. 222)
A perspectiva mítica por excelência não procede, porém, do contexto messiânico e apocalíptico que distingue a região central brasileira. Sem contrariar as peculiaridades do ambiente nacional, enraíza-se em um tipo de tradição sacrificial que foi objeto de investiga-ção e formulação de hipóteses interpretativas por parte de Sigmund Freud (1865-1939).
Em 1913, em Totem e tabu, Freud explanou os fundamentos de sua teoria, em que transportava para a antropologia suas descobertas relativas ao complexo de Édipo, matéria de A interpretação dos sonhos (1899). Destacando o papel da atração incestuosa de todo fi-lho homem pela mãe, tema do mito grego e da tragédia Édipo Rei de Sófocles (497/496-406/405 a.C.), Freud atribuiu a formação da personalidade à necessidade de reprimir esse instinto primevo. A identidade do sujeito constitui-se a partir de recalques primários, os quais somente alcançam manifestar-se de modo cifrado, por meio de imagens oníricas ou de lapsos de linguagem.
A confiança de Freud em suas teses levou-o a expandi-las para uma interpretação da formação da sociedade, calcada em similar processo de repressão do incesto, já que esse tema repete-se em narrativas produzidas por povos de procedência diversa, em distintos es-tágios de civilização. O resultado é o livro Totem e tabu (FREUD, 1970), em que expõe a concepção de que, na sociedade tribal primitiva, a atração dos filhos pelas mulheres do pai levou-os a assassinar o genitor, crime que ocasiona culpa compartilhada por todos, ainda que não expressa de modo explícito. O antepassado é divinizado, convertendo-se no totem adorado e respeitado pela comunidade. Ao mesmo tempo, eleva-se o tabu do incesto, o que faculta a vida social e impede a união sexual com mulheres com as quais os homens divi-dem laços sanguíneos.
Ainda que evidências posteriores à publicação de Totem e tabu colocassem sob sus-peita as conclusões de Freud, suspeitas agudizadas pelo fato de que ele saltava da psicolo-gia individual para a antropologia e a etnologia, o psicanalista não alterou seu pensamento com o passar do tempo. Pelo contrário, ampliou sua abrangência, retomando-o em seu últi-mo livro, Moisés e o monoteísmo (FREUD, 2001), quando procura explicar as razões do antissemitismo a partir de similar fundamento, apoiado na psicologia coletiva.
Nesta obra, produzida entre 1934 e 1938, e editada em 1939, Freud parte da hipóte-se de que Moisés não era hebreu, mas egípcio, seguidor da doutrina do faraó Akhenaton, o-riginalmente Amenófis IV, que instaurara entre seu povo, ainda que à força, o culto mono-teísta de Aton e fundara a cidade de Akhetaton, destinada à nova religião. Após a morte do faraó, os sacerdotes reinstalam o politeísmo, mas permanece um núcleo resistente, de que faria parte Moisés. Motivado pela sua fé, o patriarca decide liderar um grupo de hebreus, então escravos, prometendo-lhes a liberdade e o retorno à terra de Canaã, desde que acatada a religião que professava.
Os hebreus teriam aceito a proposta, mas, após deixar o Egito, cansados de vagar no deserto, acabam por assassinar seu líder, retomando suas crenças originais. Tal como em Totem e tabu, ao crime sucede a culpa, e essa conduz à mudança de perspectiva. O coman-dante egípcio é convertido em profeta, sacralizado e adotada sua religião, que, contudo, não mais se livra da noção de delito, necessidade de punição e veneração.
Conforme Freud, é Moisés, pois, o fundador do povo hebreu, não apenas por ter-lhe legado o culto monoteísta, mas, principalmente, por desencadear uma ética fundada na a-ceitação de regras rígidas e inquestionáveis, oriundas do sentimento de transgressão nunca superado. Freud acrescenta que, no caso do judaísmo, tais percepções conduziram a um es-piritualismo nem sempre deglutido por outros grupos, essa constituindo uma das razões do antissemitismo, outra sendo a ascensão da religião cristã, para a qual a culpa pode ser per-doada, desde que descontada em parcelas de ações generosas que garantem a salvação do indivíduo que as pratica.
Importa salientar o princípio presente no pensamento de Freud: a cultura instaura-se a partir da perpetração de um crime. Esse pode ser reprimido, sublimado ou travestido em deificação, mas suas marcas permanecem de algum modo. Para o psicanalista, essas marcas se revelam, mesmo quando à revelia, por meio do processo que denomina “retorno do re-primido”, mostrando-se seguidamente de forma mascarada, o que requer deciframento, tra-balho conduzido pela terapia psicanalítica, mesmo quando aplicada aos grupos sociais. Para Jan Assmann (1998; 2008), elas introduzem-se na cultura, caracterizando-se essa, pois, por conter necessariamente um elemento ambíguo e contraditório, dialético, diríamos, impedin-do que se apresente exclusivamente de modo celebratório e monumental, de uma parte, ou desqualificado e depressivo, de outra.
Observe-se que, adotada a perspectiva freudiana, como procede, em parte, Jan Ass-mann, ao desenvolver sua noção de memória cultural, torna-se imprescindível a presença da figura sacrificial – a que corporificará o elemento a ser eliminado, porque, de algum modo, indesejado, mas que permanece enquanto fantasma, sombra, enfim, enquanto um ente colo-cado a meio passo entre a vida e a morte.
Giorgio Agamben (2002) qualifica o homo sacer por essas características: sua sacra-lidade decorre de uma impunibilidade, e sua indestrutibilidade, da carência de materialida-de física, colocando-se em um espaço intermediário, inacessível à justiça e ao tempo, o que reitera sua imperecibilidade. É também sua condição que o situa entre a “vida nua” e o “poder soberano”, que não pode alcançá-lo. O estado de exceção, objeto da reflexão de A-gamben, justifica-se a partir daí, pois também ele se coloca em lugar inatingível, embora necessário, justificando-se permanentemente.
Agamben compara o homo sacer ao comatoso que nem experimenta a vida, nem pode escolher a morte. Um poder decide por ele, o que o substrai da existência:
A sala de reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além-comatoso e o faux vivant delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homem e pe-la sua tecnologia. E visto que se trata, justamente, não de um corpo natural, mas de uma extrema encarnação do homo sacer (o comatoso pode ser definido como “um ser intermediário entre o homem e o animal”), a aposta em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio (e que, como o homo sacer, é “insacrificável”, no sentido de que não poderia obvi-amente ser colocada à morte em uma execução de pena capital). (AGAMBEN, 2007, p. 171)
Nada mais próximo da posição de Valdivino ao final de Cidade Livre, a meio cami-nho entre a vida e a morte, sem, contudo, dispor de instrumentos próprios para alterar seu estado.
Valdivino compartilha com o homo sacer a condição sacral e a situação vitimária, sendo que a responsabilidade por essa circunstância circula entre as personagens masculi-nas de Cidade Livre, desde o coronel nordestino a quem estaria obrigado a pagar pelo transporte a Brasília, ao policial da GEB que desgosta dele, limites entre os quais se elen-cam a família da possível noiva Carminha, o pai do narrador, ciumento de Lucrécia, e o próprio narrador. Todos teriam motivo para desejar o aniquilamento de Valdivino, todos convivem com sua concomitante falta e presença, por cima dos quais persiste o poder sobe-rano que determina suas existências.
Valdivino é, pois, o morto que não pode ser enterrado, porque seu cadáver não foi encontrado. É o cordeiro de Deus sacrificado, é também o líder religioso que conduziria um povo à terra prometida. Como uma culpa injulgada e, portanto, impenalizável, Valdivino permanece entre nós, denunciando o que ficou incompleto e ignorado pelo poder soberano, em nosso ininterrupto estado de exceção.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. 2. reimpressão. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ALMINO, João. Cidade Livre. Rio de Janeiro: Record, 2010.
ASSMANN, Jan. Moses the Egiptian. The Memory of Egypt in Western Monotheism. Cambridge, Mass; London: Harvard University Press, 1998.
ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Trad. Marcelo G. Burello e Karen Saban. Buenos Ayres: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. Trad. António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Trad. Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. 4. ed. Trad. Luis Lópes-Ballesteros y de Torres. Madri: Alianza, 1970.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1947. (Obras Completas de Monteiro Lobato, 1. série, v. 1)
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 17. ed. São Paulo: Martins, 1972.
www.joaoalmino.com
REGINA ZILBERMAN, CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL. IN: NARRATI-VAS CONTEMPORÂNEAS, RECORTES CRÍTICOS SOBRE LITERATURA BRASI-LEIRA. ORG: GÍNIA MARIA GOMES. PORTO ALEGRE: LIBRETOS, P. 29-46.
CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL
Regina Zilberman
UFRGS
Resumo: O romance Cidade Livre, de João Almino, organiza a trama em função de dois eventos: a construção de Brasília e o desaparecimento do operário Valdivino. Examinam-se as conexões entre os dois episódios, o primeiro de ordem histórica, o segundo, de natureza ficcional, para se pensar as relações entre um mito de fundação e a condição sacral e sacrificial do herói fundador.
Palavras-chave: João Almino; Cidade Livre; fundação; memória cultural
Abstract: The plot of João Almino’s novel, Cidade Livre, is organized by two events: the building of Brasilia, the new Brazilian capital, and the vanishing of a worker, the character Valdivino. The connections between these episodes, one historical, the other ficcional, are examined, in order to understand the relations between a foundation myth, and the sacred and sacrificing conditon of a founder hero.
Key words: João Almino; Cidade Livre; foundation; cultural memory.
Nosso passado se esconde atrás de muros às vezes impenetráveis e se revela ao acaso, aqui e ali, quando o evocamos por meio de um indício, de uma palavra, de um cheiro, de um gosto, de um detalhe qualquer, como quem olha uma paisagem através de furos na parede. (ALMINO, 2010, p. 232)
1. À PROCURA DO AUTOR
Cidade Livre é o quinto romance de João Almino, autor também de Idéias para on-de passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008). Publicado em 2010, seu lançamento coincidiu com as comemorações do cinquentenário de Brasília, cenário desse conjunto de obras ficcionais. O escritor intitula “Quinteto de Brasília” a esse grupo de romances, cuja unidade decorre igualmente da reiteração de personagens, que, embora importantes, ocupam posições colaterais no enredo, o que faculta sua migração de uma obra a outra.
O tempo dirá se Cidade Livre é o fim de um ciclo; mas o romance, sem dúvida, nar-ra um começo – o da cidade que acolhe as figuras da trama, o que significa afirmar também que relata o início de um modelo de nação para o Brasil, dado o projeto que fundamentou e fecundou a criação de Brasília. Assim, Cidade Livre assume identidade épica enquanto pro-jeto narrativo, ao mesmo tempo em que lida com as coordenadas do mito enquanto modo de expor atos inaugurais de uma civilização ou de uma cultura.
Uma introdução e sete capítulos, todos devidamente providos de um título, estrutu-ram a ordem narrativa. A abertura, ela mesma nomeada “Introdução”, a que se seguem dois pontos e uma especificação, “Sete noites e um enterro”, é assinada pelo narrador e presun-tivo autor da obra, que se identifica apenas com as iniciais JA, mas que faz questão de se distinguir de João Almino, o escritor que, colocando seu nome na capa, é o responsável pe-lo livro. A disjunção entre os dois JAs apoia-se em dois recursos: o narrador alude ao fato de ter oferecido o livro para a leitura e correção de João Almino, arrependendo-se depois desse ato: “cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos” (ALMINO, 2010, p. 15); no transcurso dos capítulos seguintes, o narrador retoma o proce-dimento, aludindo mais de uma vez às sugestões expressas por João Almino no sentido de aperfeiçoar o texto, o que reforça a discriminação entre as duas criaturas [por exemplo: “discordo neste ponto da revisão de João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem ao Planalto Central” (ALMINO, 2010, p. 34)].
Por outro lado, o narrador parece não querer abrir mão da ambiguidade que a dupla denominação sugere. Assim, encerra a introdução com uma observação, dirigida aos leito-res, que, em lugar de esclarecer sua identidade, sublinha a coincidência entre os dois sujei-tos, à qual se seguem as iniciais JA, mencionadas antes:
Até aqui este é o único parágrafo que vocês, leitores do blog, comentaram, que-rem porque querem saber meu nome ou pelo menos se sou ou não sou João Al-mino, como se a história mudasse de sentido dependendo de quem seja seu autor, mas paciência, mantenho meu anonimato pela simples razão de que me dá mais liberdade, sobretudo liberdade para ser sincero. (ALMINO, 2010, p. 17-18)
Ao estabelecer a dualidade entre o narrador em primeira pessoa, identificado como João, e o escritor que assina o livro, o autor subverte a atribuição da autoria. Observe-se que a autoria, em qualquer circunstância, em se tratando de obras de ficção, corteja a condi-ção do ghostwriter, ainda que às avessas: uma obra é assinada por um ser histórico, mas quem é a enuncia é um ente imaginário, que responde por seu criador. No caso de Cidade Livre, porém, essa condição é colocada de cabeça para baixo, reinvertendo a situação do ghostwriter, agora, porém, em um texto de fantasia, pois ocorre de ser a criatura fictícia a reivindicar a autoria, relegando o indivíduo que assina o livro, e que responde legalmente por ele (FOUCAULT, 1992), à condição de interventor, interpondo-se no discurso alheio para desfigurá-lo a ponto de comprometer sua espontaneidade.
É, pois, como se o sujeito que coloca seu nome na capa cometesse um crime, rou-bando a propriedade que pertenceria, com legitimidade, à personagem, contudo não plena-mente identificada, que relata os eventos. Essa, por outro lado, também não é inocente, já que, da sua parte, se aproveita de discursos alheios, registrados por escrito, como os cader-nos de seu pai adotivo, ou transmitidos oralmente, como as lembranças, oriundas igualmen-te do pai do narrador, que, em estado agônico, aciona sua memória para dar conta do passa-do a ser recuperado pelo livro proposto.
Ladrão que rouba ladrão? É essa a cena fundadora de Cidade Livre? As apropria-ções, contudo, não se limitam à circulação dos enunciados entre criador e criatura. Evocam ainda ilustres representantes da literatura brasileira, sendo o mais notório, no caso, Gracili-ano Ramos (1892-1953), autor de São Bernardo (1934).
Também esse romance abre com uma introdução que expõe o processo de produção do livro. Paulo Honório, o protagonista e narrador, tão logo inicia o relato, declara:
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contri-buir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzei-ro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuá-ria, faria as despesas e poria o meu nome na capa. (RAMOS, 1972, p. 61)
No parágrafo seguinte, o narrador declara que o plano não dera certo; mas não de-siste, embora altere o modo de proceder: conserva a colaboração de Azevedo Gondim, e os dois trabalham juntos por um tempo, sobretudo porque Paulo Honório vê em seu parceiro “uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça” (RAMOS, 1972, p. 62). Porém, o resultado acaba por desagradá-lo:
O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei:
– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safa-do, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! (RAMOS, 1972, p. 62-63)
Processo semelhante encontra-se em Cidade Livre: também o João-narrador desen-canta-se com as sugestões do outro João, que almeja aperfeiçoar seu estilo:
[…] cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos, o encheu de gírias e cenas de violência, me alertou ser preciso acrescentar-lhe uma dimensão moral e filosófica e ainda me perguntou se continha algum ensi-namento, o que achei um absurdo e por isso decidi enviá-lo à editora mesmo sem a moral, a filosofia e o ensinamento, me chateando depois com a resposta polida de que não se enquadrava na sua linha editorial. (ALMINO, 2010, p. 15)
E, tal como ocorre em São Bernardo, cujo protagonista retoma, solitariamente, o projeto de escrita da obra após “ouvi[r] novo pio de coruja” – “iniciei a composição de re-pente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer van-tagem, direta ou indireta” (RAMOS, 1972, p. 64) –, o João de Cidade Livre é motivado por um “vulto. Papai!, chamo. Silêncio. Ainda ouço sua voz, como eco, lá no fundo de meu medo” (ALMINO, 2010, p. 24), o que aciona o gatilho da memória e garante a escrita do livro.
A introdução estabelece, pois, as regras da escrita:
– o compartilhamento da autoria, que, enquanto identidade, se dissolve entre vários sujeitos, ainda que o narrador controle os freios do relato e mante-nha a unidade do diálogo com o(s) leitor(es);
– a sugestão de apropriações nem sempre legítimas, denunciando o ato cri-minoso que sustenta a criação literária, formada pelo deslocamento dos su-jeitos da enunciação e pela incorporação de achados alheios, declarados al-guns, conforme indica o narrador no início da introdução – “meu relato manteve misturadas minhas memórias, as de papai, minhas pesquisas e as observações de tia Francisca” (ALMINO, 2010, p. 15) –, outros, porém, omitidos e nem sempre voluntários.
Apoiando a trama de Cidade Livre sobre a necessidade de esclarecimento de um as-sassinato, constata-se que o delito apresenta-se não apenas enquanto objeto da narrativa, mas assenta-se sobre o próprio processo de produção, razão porque o narrador pode ser u-no, mas as subjetividades que o habitam mostram-se variáveis, já que a propriedade materi-al da narração não lhe pertence com exclusividade.
2. TRAMA
Sete capítulos desdobram a trama, cumprindo o prometido no subtítulo da introdu-ção, pois correspondem às sete noites em que o narrador acompanhou a agonia do pai, pre-so e em estado terminal, relembrando com ele os anos da edificação de Brasília.
O primeiro capítulo, tendo por subtítulo “De A a Z”, contém dois segmentos. No primeiro, o narrador evoca a ação do pai adotivo, Moacyr Ribeiro, que relata o que teste-munhou no Jardim da Salvação, quando Valdivino, personagem cuja função no romance revela-se aos poucos, teria ou não falecido. Esses acontecimentos datam de 22 de abril de 1960, o dia subsequente à inauguração de Brasília. No segundo segmento, o narrador retor-na a 1956, quando sua família, então constituída pelo pai adotivo, por tia Francisca (irmã de sua finada mãe) e ele, ainda menino, é estimulada a transferir-se de Ceres, em Goiás, para a região onde será erigida a nova capital do país.
Ceres é, ela mesma, uma cidade, na época, recentemente fundada, originária da Co-lônia Agrícola de Goiás, estabelecida por Bernardo Sayão (1901-1959), engenheiro e então vice-governador do Estado, a quem será atribuída a missão de concretizar o projeto do pre-sidente Juscelino Kubitschek (1902-1976). Sayão é personagem não apenas da história de Brasília, mas da vida das personagens de Cidade Livre, pois sua presença e iniciativas de-sempenharão papel decisivo nos acontecimentos da intriga. Nesse ponto do relato, é o en-genheiro encarregado da Novacap quem induz Ribeiro e seus parentes, aos quais se junta sua irmã Matilde, designada por tia pelo narrador, a começar nova trajetória em um cenário até então pouco conhecido por todos.
O capítulo inicial coloca as personagens em dois tempos: a atualidade do narrador e o passado de sua transferência para Brasília. Esse momento corresponde simultaneamente a um novo início, já que elas viveram traumas – Moacyr decide mudar-se para Ceres e adotar o pequeno João, depois de uma crise de alcoolismo; João perdeu a família (pai, mãe e duas irmãs) em um acidente doméstico – de que precisam se liberar, e ao princípio propriamente dito de suas existências, pois não se apresentam acontecimentos prévios experimentados por qualquer uma dessas criaturas. Assim, não se sabe o que motivou a decadência de Mo-acyr, qual foi a trajetória pregressa da família do narrador, e tia Francisca e tia Matilde, re-presentando os dois lados da família, respectivamente a do narrador e a de seu pai adotivo, não contam com uma história anterior.
Tal como Brasília, a família atípica do narrador vivencia uma espécie de marco ze-ro, embora todos disponham de razões – fatos anteriormente vividos – que justificam a mu-dança em processo. Mas o que ocorreu antes não contribuiu para o que se passa mais adian-te, de modo que esses dados são omitidos, correspondendo a uma espécie de pré-história, logo, carente de registro, de situações motivadoras do presente, mas não suficientemente re-levantes para serem relatadas.
O capítulo se complementa pela apresentação dos primeiros movimentos na direção da instalação da Cidade Livre, entre 1956 e 1957. Aquela, que viria a constituir o atual Nú-cleo Bandeirante, dispõe de um estatuto particular: “primeira cidade descartável”, “constru-ída para ser destruída” (ALMINO, 2010, p. 43), e qualificada de “livre”, porque os comer-ciantes locais não pagavam impostos; além disso, acolhia, sem discriminações e preconcei-tos, pessoas da mais variada procedência, desde que comprometidas com a edificação de Brasília.
O capítulo inicial configura o modo como o romance se desenvolverá. Assim, alter-nam-se episódios relativos à história da construção da futura capital, com eventos experi-mentados pelo narrador. Rememoram-se as profecias milenaristas que prognosticavam seu aparecimento, as missões, desde o século XIX, que mapearam a região, as iniciativas do governo federal no sentido de viabilizar o projeto, as inaugurações que sinalizavam sua ins-talação, as medidas de ordem material de que a Brasília de hoje resultam, como a alteração na geografia dos rios, levando à criação do lago Paranoá. De outra parte, expõem-se as ati-vidades de tia Francisca, responsável por fornecer alimentos para o refeitório dos trabalha-dores, de Moacyr, que almeja documentar o testemunho dos visitantes ilustres que acompa-nham a implantação da nova urbe, enquanto se encarrega dos comodatos na Cidade Livre, e os devaneios eróticos do narrador, ainda menino, ao contemplar Matilde nua, imagem que o persegue por todo o transcurso da narrativa.
O capítulo seguinte, “Segunda-noite: De corpo e alma”, narra a inauguração de Bra-sília, concentrando-se nos festejos ocorridos entre 20 e 21 de abril de 1960. Reitera-se o te-or épico que marcara o capítulo inicial, relativo à instalação do projeto, para relembrar a mobilização de pessoas que acompanham as missas, os discursos do presidente, a euforia que contamina a todos. A essas recordações somam-se as alusões à precária situação de Valdivino, possivelmente perseguido pelo coronel nordestino a quem não pagara a dívida contraída ao aceitar a combinação que o levaria a migrar para o Centro-Oeste e obter colo-cação na construção da nova cidade:
Papai tinha conhecimento daqueles abusos. Montavam-se negócios para financiar as passagens dos retirantes, os agentes de empregos os encontravam onde estives-sem, até mesmo nos lugares mais recônditos do sertão, e eles, fugindo da seca, se deixavam seduzir pela promessa do trabalho em Brasília, submetendo-se a quais-quer que fossem as condições. (ALMINO, 2010, p. 70)
Mais adiante esclarece-se outro temor do rapaz: ele seria igualmente perseguido por Aristóteles, o “policial da GEB” (ALMINO, 2010, p. 75), com quem dividia o dormitório. Tais ameaças compõem o pano de fundo que culmina no sumiço de Valdivino, nunca mais encontrado pelo narrador, apenas por seu pai, conforme esse relata no capítulo primeiro, ao rever o filho, depois de anos de separação e próximo da morte. Não surpreende, pois, que o desaparecimento do rapaz converta-se em mistério irresolvido, mesmo porque não é inves-tigado, atormentando tão somente o narrador, por se sentir parcialmente responsável pelo fato, e sua tia Francisca, que permanentemente protesta a inocência de Moacyr, sobretudo depois do falecimento desse.
No parágrafo final do capítulo, o narrador inclui uma confissão que dá conta de sua parcela de culpa nos acontecimentos que culminam na morte de Valdivino:
Desde então ficaram misturados em minha cabeça o possível assassinato de Val-divino, a inauguração de Brasília e os peitos de tia Matilde, além de minha pró-pria culpa por ter querido tanto a morte de Valdivino, ele que me queria tanto bem. (ALMINO, 2010, p. 86)
À inauguração de Brasília soma-se, pois, um crime, cuja vítima pertence à classe trabalhadora e reúne as características do indivíduo associado à construção da cidade – o candango. Valdivino é o sertanejo que se desloca para o centro do país, de uma parte, em busca de uma oportunidade profissional, de outra, à procura da mulher que ama, cuja iden-tidade se revela nos capítulos finais. Instalada a nova capital, ele é exterminado, pois, em certo sentido, deixa de se mostrar necessário. Ao contrário da Cidade Livre, estabelecida para ser temporária, mas que permanece até a atualidade, Valdivino é o ente descartável, que não encontra lugar no mundo que se descortina em 21 de abril de 1960. Não por acaso, seu desaparecimento ocorre na data subsequente, 22 de abril, dia em que, conforme assina-lam os historiadores, a frota dos portugueses comandados por Pedro Álvares Cabral (1467/8-c.1520) aportou no litoral baiano, dando início à colonização da América lusitana.
Cidade Livre joga com os registros históricos, movendo-se do presente para o pas-sado, a fim de interpretar o momento vivido. O 21 de abril escolhido por Kubitschek para inaugurar a nova capital homenageia Tiradentes, como o romance relembra na página 81; mas é também a ocasião de um crime, quando Joaquim José da Silva Xavier (1746?-1792), o alferes que supostamente liderara a conjuração mineira, fora enforcado pelo poder metro-politano português. Assim, o 22 de abril assinala começos, o da colonização europeia e o de operação de Brasília enquanto centro político nacional; porém, a data está marcada por um crime que empana a imagem gloriosa que a memória gostaria de consignar. Provavelmente por esse motivo Moacyr, o pai do narrador, jamais consiga levar a cabo o Livro de Ouro em que ambiciona anotar para a posteridade as declarações de louvor ao projeto e funciona-mento da cidade por parte dos visitantes notórios que por ali passaram durante o período de sua edificação.
A partir do terceiro capítulo, a narrativa adota predominantemente procedimento li-near, substituindo o vaivém cronológico, entre 1956 e 1960, até então empregado. “Terceira noite: paisagens com cupins” detém-se sobretudo “no dia em que conhecemos Valdivino” (ALMINO, 2010, p. 87), por volta de outubro de 1956. O encontro dá-se em meio à mata, onde se acham o narrador e seu pai, quando o rapaz aparece, afirmando tê-los salvo do ata-que de uma onça. No mês seguinte, o jovem passa a trabalhar na Novacap, tornando-se fre-quentador assíduo da casa do narrador, pois conta com a admiração de Francisca e o apreço dos demais, incluindo o engenheiro Roberto, parceiro de Matilde.
“Quarta noite: Lucrécia” desloca parcialmente o foco para as ações de Moacyr, que se torna amante de Lucrécia, uma prostituta radicada na Cidade Livre. Introduz a persona-gem Paulão, a quem o pai do narrador se associa em uma série de negociatas de que advirá seu enriquecimento. Esse é matéria de “Quinta noite: A construção do mistério”, transcorri-do em 1958, também concentrado sobretudo nas ações de Moacyr, que se considera desti-nado a cumprir duas missões: “testemunhar aquele começo, registrá-lo para a história e en-riquecer com as oportunidades que se abriam.” (ALMINO, 2010, p. 148) Sua melhor opor-tunidade de acompanhar ilustres personalidades das artes e da política internacional ocorre quando Aldous Huxley (1894-1963) e a esposa conhecem Brasília, o que maravilha o autor de Admirável mundo novo.
“Sexta noite: O campo da esperança” divide as ações entre Moacyr e Valdivino. Aquele continua seus negócios com Paulão, mas, movido por seu empenho em testemunhar os eventos principais da história, acompanha os trabalhos de Bernardo Sayão na construção da rodovia que ligará Brasília a Belém, no Pará. Trata-se de outra tarefa épica, que faz sua primeira renomada vítima trágica: o próprio engenheiro é atingido por uma árvore que vi-nha sendo derrubada:
Pouco depois de meio-dia, papai se aproximava do local juntamente com um to-pógrafo e um engenheiro, e, quando por volta de uma da tarde os três assistiam à derrubada de uma gigantesca árvore que se prendia a outras por cipós e parasitas, um galho seco de quarenta a cinquenta quilos e medindo cerca de dois metros desprendeu-se das ramagens de uma árvore vizinha, voou feroz e veio atingir a cabeça de Bernardo Sayão, bem como seu braço e perna esquerdos. (ALMINO, 2010, p. 188)
Na sequência do capítulo, compete ao narrador testemunhar a mobilização popular por ocasião do enterro do engenheiro, que desse modo inaugura o campo santo da cidade que erigia. Outra vez o relato assume tom épico, ao lidar com a emoção popular e as medi-das públicas dos líderes políticos: “o presidente JK, chegando a Brasília, dera a ordem de enterrá-lo no terreno que o próprio Sayão demarcara, há menos de dois anos, para ser o fu-turo cemitério de Brasília, o Campo da Esperança, que seria assim inaugurado com seu en-terro.” (ALMINO, 2010, p. 192). Mais adiante, o narrador reitera: “Brasília nunca tinha vis-to e talvez jamais viesse a assistir novamente a enterro tão concorrido. O cemitério era um mar de trinta mil pessoas.” (ALMINO, 2010, p. 193)
As ações grandiosas não se limitam à reação popular. A rodovia entre Belém e a fu-tura capital é inaugurada em 31 de janeiro daquele ano, tomando o nome de Bernardo Sa-yão. Além disso, o presidente JK resolve punir a natureza que o privara de um de seus prin-cipais assessores:
[…] o próprio JK, orgulhoso, naquele dia havia derrubado um velho jatobá no ponto de ligação das frentes norte e sul da estrada, dera ordem para derrubar a primeira árvore e ele próprio derrubara a última […]. Sentado no trator, cuidado-samente desmobilizara o tronco de jatobá, que ainda se manteve de pé, em segui-da engrenara as lagartas e avançara com determinação sobre ele, o jatobá oscilara ainda, mas era já então o cambaleio que prenunciava a morte. (ALMINO, 2010, p. 194).
O episódio enuncia o outro combate que se travava, agora entre o homem e a natu-reza até então inviolável. Essa alcançara algumas vitórias, mas diante da ação empreende-dora do principal herói da trama histórica, o presidente JK, as derrotas se acumulavam. Elas podiam, porém, se mostrar passageiras ou enganosas, desconfiança introduzida pelo narra-dor, ao relembrar conto de Monteiro Lobato (1882-1948), “A vingança da peroba”, que a-lude à lenda do “pau de feitiço”, o “pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens” (LOBATO, 1947, p. 107).
A menção à narrativa configura, de uma parte, o tom “politicamente correto” do tex-to, ao mesmo tempo que sugere a depredação do espaço natural amazônico. Não se restrin-ge, porém, a esse papel, ao reforçar o caráter mítico do processo de fundação: tal como o-corre à inauguração da capital no Planalto Central, a do campo santo relaciona-se a um ato criminoso, que, ritualisticamente, consome os indivíduos que os planejaram, seja o cemité-rio, seja a nova cidade.
O capítulo sexto dá conta igualmente das agruras de Valdivino, acusado de seduzir e engravidar uma moça, razão porque é perseguido pela família dela, que exige o matrimônio do par. O suposto sedutor cogita ter sido vítima de uma armação, mas não encontra meios de reagir ou escapar à pena prevista; por isso, oculta-se por certo tempo, até reaparecer em casa de Francisca, por ocasião do carnaval de 1959, conforme relata o narrador. Reside um tempo junto à família de João, mas depois transfere-se para Vila Amaury, em razão de seu trabalho como pedreiro.
“Sétima noite: O deserto e o esquecimento” denomina o capítulo de encerramento. Dando continuidade ao percurso cronológico da narração, alcançam-se as cerimônias de i-nauguração, antecipadas em capítulo anterior e agora posicionadas enquanto efeito dos e-ventos previamente expostos. Retorna o tom grandiloquente da epopeia, extraído das in-formações contidas nas anotações que o pai do narrador lega à posteridade:
Como numa contagem regressiva para o lançamento de um foguete, a caixa de papéis de papai anunciava a inauguração de Brasília através de recortes de jor-nais, todos datados e numerados. Ele havia me mostrado no próprio dia da publi-cação um jornal de 16 de janeiro daquele ano de 1960, noticiando que a Caravana da Integração Nacional, com suas quatro colunas – do Norte, Sul, Leste e Oeste, ou seja, de Belém, Porto Alegre, Rio e Cuiabá –, formadas cada uma por cinquen-ta veículos de fabricação nacional, começava sua viagem para a futura capital, e no dia 2 de fevereiro, juntamente com Valdivino e as tias Francisca e Matilde, me levou sob um céu nublado para a Praça dos Três Poderes, onde quase toda a po-pulação de Brasília assistia à chegada daquelas colunas, que seriam recebidas por JK, dona Sarah e todo o ministério. (ALMINO, 2010, p. 212-213)
O narrador não abandona, porém, o destino de Valdivino no passado, nem de seu pai, que, neste capítulo derradeiro, se entrelaçam, já que Moacyr pode ter sido o assassino do rapaz: “Dizem que Valdivino agrediu você, papai, porque soube de seu caso com Lucré-cia, acreditam que foi você quem o assassinou em legítima defesa, que tinha depois tentado, sem êxito, salvá-lo, ressuscitá-lo.” (ALMINO, 2010, p. 216). O pai apresenta outra versão, repetindo a informação que dera a João no capítulo inicial: encontrou o rapaz inconsciente, tentou despertá-lo, mas não é bem sucedido: “aproximou-se de Valdivino quando ele tenta-va enunciar mais algumas palavras, envolveu delicadamente seu pescoço com as mãos, procurou levantar sua cabeça, pareceu-lhe então que Valdivino havia expirado, sentiu seu pulso e não teve mais dúvida.” (ALMINO, 2010, p. 29). Do renascimento não há provas, pois, apenas lendas que circulam entre os adeptos do culto de que Valdivino fazia parte, di-fundidas por Íris Quelemém:
Quando papai voltou ao Jardim da Salvação dois dias depois, Íris lhe disse, Ele é um santo, para explicar por que o corpo de Valdivino não apodrecia. Nunca vai apodrecer, vaticinou, e mais tarde espalhou que Valdivino ressuscitara, estava vi-vo, embora papai nem ninguém lá em casa nunca mais o tivesse visto. (ALMINO, 2010, p. 30)
É ainda no capítulo final que o narrador expõe os esclarecimentos apresentados por seu pai: Valdivino era adepto de seita milenarista comandada por Íris Quelemém; essa chamava-se originalmente Lucrécia, ex-amante tanto de Moacyr, quanto de Paulão, mas também a mulher que o rapaz buscava, quando se dirigiu, do sertão, ao Planalto Central. Sem elucidar se a sacerdotisa era a amada ou mãe de Valdivino [“Não sei se Íris era ou não a mãe dele, parece que quando ele era criança ela lhe contava que ele tinha sido enjeitado na porta de casa, mas quando quis parar com aquela relação maluca com ele, inventou de dizer que era sua mãe” (ALMINO, 2010, p. 235), escreve João], a narrativa deixa entrever uma relação incestuosa, que coloca várias disputas em cena, todas indicando para a retoma-da do mito de Édipo, apresentado aqui às avessas, já que se sacrifica o filho (Valdivino), e não o pai, em nome da posse da figura materna (Lucrécia).
A esse último interrogatório de Moacyr pelo filho adotivo, seguem-se a morte e o enterro do interrogado, cuja confissão não alcança diminuir as dúvidas e incertezas do inter-rogador, mesmo porque esse não supera o sentimento de culpa expresso ao leitor, por efeito de sua condição de narrador:
Confesso a vocês o que não disse a papai: que naquele tempo eu também me sen-tia assassino de Valdivino, um assassino sem remorso. Eu desejei aquela morte, a desejei muito, talvez mais do que qualquer outra pessoa. (ALMINO, 2010, p. 232)
O diálogo com o leitor, substituindo o interrogatório feito ao pai adotivo, acaba por ser respondido por esse último, retornando do passado e, de certo modo, de seu túmulo: “e por que você quer resolver esse problema?, nem todo problema tem solução, foram essas as últimas palavras que ouvi de papai, entre quatro paredes de um branco sujo.” (ALMINO, 2010, p. 232) Talvez por essa razão não se verifica o aclaramento desejado pelo narrador, restando, de uma parte, a dúvida e a suspeita, de outro, o esquecimento. São as palavras de Moacyr, ao reproduz para o filho seu diálogo com Lucrécia/Íris de Quelemém, que selam o destino da investigação do final de Valdivino: “não houve crime, em Brasília não haverá crimes, ela dizia. Ou os crimes não serão descobertos, contestei. Não, não haverá crimes, ela repetia.” (ALMINO, 2010, p. 229-230)
3. SACRALIDADE E EXCLUSÃO DA HISTÓRIA
Duas linhas de força travejam Cidade Livre:
– o processo de construção de Brasília, com ênfase no período transcorrido entre 1956 e 1960, episódio de fundo histórico, decisivo para a compreen-são do Brasil da segunda metade do século XX;
– a trajetória de Valdivino, desde o encontro com a família do narrador, por volta de 1956, até seu desaparecimento, em 22 de abril de 1960, episódio de natureza fictícia, mas fundamental para a interpretação conferida pelo romance ao pano de fundo histórico.
Essas linhas não são paralelas; pelo contrário, entrelaçam-se várias vezes, já que Valdivino e a família do narrador migram para o Planalto Central, de uma parte, para solu-cionar problemas particulares, mas, de outra, para se integrar aos sucessos notáveis que lá ocorriam. Assim, o sertanejo exerce vários ofícios em distintos segmentos da trama: é es-criba, depois servente de obra, operário, garçom; porém, invariavelmente ocupa a posição do representante da camada popular que sustentou a edificação da cidade – o candango, cu-ja importância ficou perenizada no monumento que o homenageia, de autoria do escultor Bruno Giorgi (1905-1993). Por sua vez, Francisca é “fornecedora de alimentos e também auxilia[r] na cozinha do restaurante do Serviço de Alimentação da Previdência Social” (ALMINO, 2010, p. 102), Moacyr negocia os comodatos, Matilde namora Roberto, enge-nheiro da obra.
A trama absorve as duas linhas de força, sendo que uma depende da outra: Brasília teria sua história sem Valdivino, Francisca e outros, mas não seria concretizada sem a mão de obra corporificada por eles. Sob esse aspecto, as personagens assumem significado ale-górico, cada qual correspondendo a elementos individuais do processo que, conglutinados, configuram sua imagem compósita. Só que o mosaico que se desenha é móvel, acolhendo, de uma parte, figuras novas, de outra, banindo as antigas.
A eliminação mais gritante é a de Valdivino, a personagem aparentemente colateral que faz as vezes do sujeito sacrificado. Sob esse aspecto, ele ascende à condição de prota-gonista, além de absorver fatores mágicos e divinos, sugeridos de imediato por sua nome de batismo. Outras associações reiteram sua situação simultânea de ente fadado ao sacrifício ritual e figura dotada de componentes míticos:
– a identidade com que é conhecido no Jardim da Salvação, Abel, nome do filho de Adão e Eva, o casal original da Bíblia hebraica, pastor de ovelhas e predileto de Deus, razão do ciúme suscitado em seu irmão, Caim, que o mata, inaugurando a série de crimes e de barbárie que faz a história da hu-manidade;
– a atração incestuosa por Lucrécia, mãe ou amante, que o conduz a Brasília, Tebas moderna, e que motiva sua morte, invertendo a sequência do mito trágico, mas não deixando de lado o aspecto sacrificial contido na punição de Édipo;
– a aproximação com o destino de Jesus Cristo, pois, ao ser encontrado mor-to ou semimorto no Jardim da Salvação, espera-se que ressuscite, expecta-tiva que se transforma em lenda relativa à sua sorte futura.
Além das aproximações míticas, fica sugerida uma associação, de ordem histórica, com Tiradentes, o mártir da independência brasileira, pois é por ocasião do feriado dedica-do àquela personalidade histórica que a capital é inaugurada.
Na composição de Valdivino, colaboram, pois, elementos míticos e históricos. Por outro lado, a composição da história de Brasília também incorpora perspectiva mítica, fa-zendo com que, por outro caminho, se cruzem as linhas de força que travejam o romance. Assim, a escolha do local da fundação da cidade relaciona-se à profecia de dom Bosco, du-plicada na missão de que Íris Quelemém se crê investida: “Íris tivera a iluminação de que dom Bosco lhe atribuía a missão de rumar para o Planalto Central para ajudar a criar a nova civilização” (ALMINO, 2010, p. 30); e Valdivino e a seita a que pertence consideram aque-le espaço mágico, capaz de conduzi-los a Z, “cidade perdida de uma civilização antiga e avançada” (ALMINO, 2010, p. 171). Se, por esse aspecto, o comportamento das persona-gens poderia parecer inverossímil, os fatos extraliterários colaboram para conferir-lhe vera-cidade, pois sabe-se que Brasília e a região que a cerca, no Planalto Central, congrega seitas milenaristas que contam com adeptos de todo o mundo, circunstância, aliás, mencionada na trama: “A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urba-nístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavm pelos seus arredores […].” (ALMINO, 2010, p. 222)
A perspectiva mítica por excelência não procede, porém, do contexto messiânico e apocalíptico que distingue a região central brasileira. Sem contrariar as peculiaridades do ambiente nacional, enraíza-se em um tipo de tradição sacrificial que foi objeto de investiga-ção e formulação de hipóteses interpretativas por parte de Sigmund Freud (1865-1939).
Em 1913, em Totem e tabu, Freud explanou os fundamentos de sua teoria, em que transportava para a antropologia suas descobertas relativas ao complexo de Édipo, matéria de A interpretação dos sonhos (1899). Destacando o papel da atração incestuosa de todo fi-lho homem pela mãe, tema do mito grego e da tragédia Édipo Rei de Sófocles (497/496-406/405 a.C.), Freud atribuiu a formação da personalidade à necessidade de reprimir esse instinto primevo. A identidade do sujeito constitui-se a partir de recalques primários, os quais somente alcançam manifestar-se de modo cifrado, por meio de imagens oníricas ou de lapsos de linguagem.
A confiança de Freud em suas teses levou-o a expandi-las para uma interpretação da formação da sociedade, calcada em similar processo de repressão do incesto, já que esse tema repete-se em narrativas produzidas por povos de procedência diversa, em distintos es-tágios de civilização. O resultado é o livro Totem e tabu (FREUD, 1970), em que expõe a concepção de que, na sociedade tribal primitiva, a atração dos filhos pelas mulheres do pai levou-os a assassinar o genitor, crime que ocasiona culpa compartilhada por todos, ainda que não expressa de modo explícito. O antepassado é divinizado, convertendo-se no totem adorado e respeitado pela comunidade. Ao mesmo tempo, eleva-se o tabu do incesto, o que faculta a vida social e impede a união sexual com mulheres com as quais os homens divi-dem laços sanguíneos.
Ainda que evidências posteriores à publicação de Totem e tabu colocassem sob sus-peita as conclusões de Freud, suspeitas agudizadas pelo fato de que ele saltava da psicolo-gia individual para a antropologia e a etnologia, o psicanalista não alterou seu pensamento com o passar do tempo. Pelo contrário, ampliou sua abrangência, retomando-o em seu últi-mo livro, Moisés e o monoteísmo (FREUD, 2001), quando procura explicar as razões do antissemitismo a partir de similar fundamento, apoiado na psicologia coletiva.
Nesta obra, produzida entre 1934 e 1938, e editada em 1939, Freud parte da hipóte-se de que Moisés não era hebreu, mas egípcio, seguidor da doutrina do faraó Akhenaton, o-riginalmente Amenófis IV, que instaurara entre seu povo, ainda que à força, o culto mono-teísta de Aton e fundara a cidade de Akhetaton, destinada à nova religião. Após a morte do faraó, os sacerdotes reinstalam o politeísmo, mas permanece um núcleo resistente, de que faria parte Moisés. Motivado pela sua fé, o patriarca decide liderar um grupo de hebreus, então escravos, prometendo-lhes a liberdade e o retorno à terra de Canaã, desde que acatada a religião que professava.
Os hebreus teriam aceito a proposta, mas, após deixar o Egito, cansados de vagar no deserto, acabam por assassinar seu líder, retomando suas crenças originais. Tal como em Totem e tabu, ao crime sucede a culpa, e essa conduz à mudança de perspectiva. O coman-dante egípcio é convertido em profeta, sacralizado e adotada sua religião, que, contudo, não mais se livra da noção de delito, necessidade de punição e veneração.
Conforme Freud, é Moisés, pois, o fundador do povo hebreu, não apenas por ter-lhe legado o culto monoteísta, mas, principalmente, por desencadear uma ética fundada na a-ceitação de regras rígidas e inquestionáveis, oriundas do sentimento de transgressão nunca superado. Freud acrescenta que, no caso do judaísmo, tais percepções conduziram a um es-piritualismo nem sempre deglutido por outros grupos, essa constituindo uma das razões do antissemitismo, outra sendo a ascensão da religião cristã, para a qual a culpa pode ser per-doada, desde que descontada em parcelas de ações generosas que garantem a salvação do indivíduo que as pratica.
Importa salientar o princípio presente no pensamento de Freud: a cultura instaura-se a partir da perpetração de um crime. Esse pode ser reprimido, sublimado ou travestido em deificação, mas suas marcas permanecem de algum modo. Para o psicanalista, essas marcas se revelam, mesmo quando à revelia, por meio do processo que denomina “retorno do re-primido”, mostrando-se seguidamente de forma mascarada, o que requer deciframento, tra-balho conduzido pela terapia psicanalítica, mesmo quando aplicada aos grupos sociais. Para Jan Assmann (1998; 2008), elas introduzem-se na cultura, caracterizando-se essa, pois, por conter necessariamente um elemento ambíguo e contraditório, dialético, diríamos, impedin-do que se apresente exclusivamente de modo celebratório e monumental, de uma parte, ou desqualificado e depressivo, de outra.
Observe-se que, adotada a perspectiva freudiana, como procede, em parte, Jan Ass-mann, ao desenvolver sua noção de memória cultural, torna-se imprescindível a presença da figura sacrificial – a que corporificará o elemento a ser eliminado, porque, de algum modo, indesejado, mas que permanece enquanto fantasma, sombra, enfim, enquanto um ente colo-cado a meio passo entre a vida e a morte.
Giorgio Agamben (2002) qualifica o homo sacer por essas características: sua sacra-lidade decorre de uma impunibilidade, e sua indestrutibilidade, da carência de materialida-de física, colocando-se em um espaço intermediário, inacessível à justiça e ao tempo, o que reitera sua imperecibilidade. É também sua condição que o situa entre a “vida nua” e o “poder soberano”, que não pode alcançá-lo. O estado de exceção, objeto da reflexão de A-gamben, justifica-se a partir daí, pois também ele se coloca em lugar inatingível, embora necessário, justificando-se permanentemente.
Agamben compara o homo sacer ao comatoso que nem experimenta a vida, nem pode escolher a morte. Um poder decide por ele, o que o substrai da existência:
A sala de reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além-comatoso e o faux vivant delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homem e pe-la sua tecnologia. E visto que se trata, justamente, não de um corpo natural, mas de uma extrema encarnação do homo sacer (o comatoso pode ser definido como “um ser intermediário entre o homem e o animal”), a aposta em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio (e que, como o homo sacer, é “insacrificável”, no sentido de que não poderia obvi-amente ser colocada à morte em uma execução de pena capital). (AGAMBEN, 2007, p. 171)
Nada mais próximo da posição de Valdivino ao final de Cidade Livre, a meio cami-nho entre a vida e a morte, sem, contudo, dispor de instrumentos próprios para alterar seu estado.
Valdivino compartilha com o homo sacer a condição sacral e a situação vitimária, sendo que a responsabilidade por essa circunstância circula entre as personagens masculi-nas de Cidade Livre, desde o coronel nordestino a quem estaria obrigado a pagar pelo transporte a Brasília, ao policial da GEB que desgosta dele, limites entre os quais se elen-cam a família da possível noiva Carminha, o pai do narrador, ciumento de Lucrécia, e o próprio narrador. Todos teriam motivo para desejar o aniquilamento de Valdivino, todos convivem com sua concomitante falta e presença, por cima dos quais persiste o poder sobe-rano que determina suas existências.
Valdivino é, pois, o morto que não pode ser enterrado, porque seu cadáver não foi encontrado. É o cordeiro de Deus sacrificado, é também o líder religioso que conduziria um povo à terra prometida. Como uma culpa injulgada e, portanto, impenalizável, Valdivino permanece entre nós, denunciando o que ficou incompleto e ignorado pelo poder soberano, em nosso ininterrupto estado de exceção.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. 2. reimpressão. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ALMINO, João. Cidade Livre. Rio de Janeiro: Record, 2010.
ASSMANN, Jan. Moses the Egiptian. The Memory of Egypt in Western Monotheism. Cambridge, Mass; London: Harvard University Press, 1998.
ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Trad. Marcelo G. Burello e Karen Saban. Buenos Ayres: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. Trad. António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Trad. Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. 4. ed. Trad. Luis Lópes-Ballesteros y de Torres. Madri: Alianza, 1970.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1947. (Obras Completas de Monteiro Lobato, 1. série, v. 1)
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 17. ed. São Paulo: Martins, 1972.
www.joaoalmino.com
REGINA ZILBERMAN, CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL. IN: NARRATI-VAS CONTEMPORÂNEAS, RECORTES CRÍTICOS SOBRE LITERATURA BRASI-LEIRA. ORG: GÍNIA MARIA GOMES. PORTO ALEGRE: LIBRETOS, P. 29-46.
CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL
Regina Zilberman
UFRGS
Resumo: O romance Cidade Livre, de João Almino, organiza a trama em função de dois eventos: a construção de Brasília e o desaparecimento do operário Valdivino. Examinam-se as conexões entre os dois episódios, o primeiro de ordem histórica, o segundo, de natureza ficcional, para se pensar as relações entre um mito de fundação e a condição sacral e sacrificial do herói fundador.
Palavras-chave: João Almino; Cidade Livre; fundação; memória cultural
Abstract: The plot of João Almino’s novel, Cidade Livre, is organized by two events: the building of Brasilia, the new Brazilian capital, and the vanishing of a worker, the character Valdivino. The connections between these episodes, one historical, the other ficcional, are examined, in order to understand the relations between a foundation myth, and the sacred and sacrificing conditon of a founder hero.
Key words: João Almino; Cidade Livre; foundation; cultural memory.
Nosso passado se esconde atrás de muros às vezes impenetráveis e se revela ao acaso, aqui e ali, quando o evocamos por meio de um indício, de uma palavra, de um cheiro, de um gosto, de um detalhe qualquer, como quem olha uma paisagem através de furos na parede. (ALMINO, 2010, p. 232)
1. À PROCURA DO AUTOR
Cidade Livre é o quinto romance de João Almino, autor também de Idéias para on-de passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008). Publicado em 2010, seu lançamento coincidiu com as comemorações do cinquentenário de Brasília, cenário desse conjunto de obras ficcionais. O escritor intitula “Quinteto de Brasília” a esse grupo de romances, cuja unidade decorre igualmente da reiteração de personagens, que, embora importantes, ocupam posições colaterais no enredo, o que faculta sua migração de uma obra a outra.
O tempo dirá se Cidade Livre é o fim de um ciclo; mas o romance, sem dúvida, nar-ra um começo – o da cidade que acolhe as figuras da trama, o que significa afirmar também que relata o início de um modelo de nação para o Brasil, dado o projeto que fundamentou e fecundou a criação de Brasília. Assim, Cidade Livre assume identidade épica enquanto pro-jeto narrativo, ao mesmo tempo em que lida com as coordenadas do mito enquanto modo de expor atos inaugurais de uma civilização ou de uma cultura.
Uma introdução e sete capítulos, todos devidamente providos de um título, estrutu-ram a ordem narrativa. A abertura, ela mesma nomeada “Introdução”, a que se seguem dois pontos e uma especificação, “Sete noites e um enterro”, é assinada pelo narrador e presun-tivo autor da obra, que se identifica apenas com as iniciais JA, mas que faz questão de se distinguir de João Almino, o escritor que, colocando seu nome na capa, é o responsável pe-lo livro. A disjunção entre os dois JAs apoia-se em dois recursos: o narrador alude ao fato de ter oferecido o livro para a leitura e correção de João Almino, arrependendo-se depois desse ato: “cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos” (ALMINO, 2010, p. 15); no transcurso dos capítulos seguintes, o narrador retoma o proce-dimento, aludindo mais de uma vez às sugestões expressas por João Almino no sentido de aperfeiçoar o texto, o que reforça a discriminação entre as duas criaturas [por exemplo: “discordo neste ponto da revisão de João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem ao Planalto Central” (ALMINO, 2010, p. 34)].
Por outro lado, o narrador parece não querer abrir mão da ambiguidade que a dupla denominação sugere. Assim, encerra a introdução com uma observação, dirigida aos leito-res, que, em lugar de esclarecer sua identidade, sublinha a coincidência entre os dois sujei-tos, à qual se seguem as iniciais JA, mencionadas antes:
Até aqui este é o único parágrafo que vocês, leitores do blog, comentaram, que-rem porque querem saber meu nome ou pelo menos se sou ou não sou João Al-mino, como se a história mudasse de sentido dependendo de quem seja seu autor, mas paciência, mantenho meu anonimato pela simples razão de que me dá mais liberdade, sobretudo liberdade para ser sincero. (ALMINO, 2010, p. 17-18)
Ao estabelecer a dualidade entre o narrador em primeira pessoa, identificado como João, e o escritor que assina o livro, o autor subverte a atribuição da autoria. Observe-se que a autoria, em qualquer circunstância, em se tratando de obras de ficção, corteja a condi-ção do ghostwriter, ainda que às avessas: uma obra é assinada por um ser histórico, mas quem é a enuncia é um ente imaginário, que responde por seu criador. No caso de Cidade Livre, porém, essa condição é colocada de cabeça para baixo, reinvertendo a situação do ghostwriter, agora, porém, em um texto de fantasia, pois ocorre de ser a criatura fictícia a reivindicar a autoria, relegando o indivíduo que assina o livro, e que responde legalmente por ele (FOUCAULT, 1992), à condição de interventor, interpondo-se no discurso alheio para desfigurá-lo a ponto de comprometer sua espontaneidade.
É, pois, como se o sujeito que coloca seu nome na capa cometesse um crime, rou-bando a propriedade que pertenceria, com legitimidade, à personagem, contudo não plena-mente identificada, que relata os eventos. Essa, por outro lado, também não é inocente, já que, da sua parte, se aproveita de discursos alheios, registrados por escrito, como os cader-nos de seu pai adotivo, ou transmitidos oralmente, como as lembranças, oriundas igualmen-te do pai do narrador, que, em estado agônico, aciona sua memória para dar conta do passa-do a ser recuperado pelo livro proposto.
Ladrão que rouba ladrão? É essa a cena fundadora de Cidade Livre? As apropria-ções, contudo, não se limitam à circulação dos enunciados entre criador e criatura. Evocam ainda ilustres representantes da literatura brasileira, sendo o mais notório, no caso, Gracili-ano Ramos (1892-1953), autor de São Bernardo (1934).
Também esse romance abre com uma introdução que expõe o processo de produção do livro. Paulo Honório, o protagonista e narrador, tão logo inicia o relato, declara:
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contri-buir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzei-ro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuá-ria, faria as despesas e poria o meu nome na capa. (RAMOS, 1972, p. 61)
No parágrafo seguinte, o narrador declara que o plano não dera certo; mas não de-siste, embora altere o modo de proceder: conserva a colaboração de Azevedo Gondim, e os dois trabalham juntos por um tempo, sobretudo porque Paulo Honório vê em seu parceiro “uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça” (RAMOS, 1972, p. 62). Porém, o resultado acaba por desagradá-lo:
O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei:
– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safa-do, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! (RAMOS, 1972, p. 62-63)
Processo semelhante encontra-se em Cidade Livre: também o João-narrador desen-canta-se com as sugestões do outro João, que almeja aperfeiçoar seu estilo:
[…] cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos, o encheu de gírias e cenas de violência, me alertou ser preciso acrescentar-lhe uma dimensão moral e filosófica e ainda me perguntou se continha algum ensi-namento, o que achei um absurdo e por isso decidi enviá-lo à editora mesmo sem a moral, a filosofia e o ensinamento, me chateando depois com a resposta polida de que não se enquadrava na sua linha editorial. (ALMINO, 2010, p. 15)
E, tal como ocorre em São Bernardo, cujo protagonista retoma, solitariamente, o projeto de escrita da obra após “ouvi[r] novo pio de coruja” – “iniciei a composição de re-pente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer van-tagem, direta ou indireta” (RAMOS, 1972, p. 64) –, o João de Cidade Livre é motivado por um “vulto. Papai!, chamo. Silêncio. Ainda ouço sua voz, como eco, lá no fundo de meu medo” (ALMINO, 2010, p. 24), o que aciona o gatilho da memória e garante a escrita do livro.
A introdução estabelece, pois, as regras da escrita:
– o compartilhamento da autoria, que, enquanto identidade, se dissolve entre vários sujeitos, ainda que o narrador controle os freios do relato e mante-nha a unidade do diálogo com o(s) leitor(es);
– a sugestão de apropriações nem sempre legítimas, denunciando o ato cri-minoso que sustenta a criação literária, formada pelo deslocamento dos su-jeitos da enunciação e pela incorporação de achados alheios, declarados al-guns, conforme indica o narrador no início da introdução – “meu relato manteve misturadas minhas memórias, as de papai, minhas pesquisas e as observações de tia Francisca” (ALMINO, 2010, p. 15) –, outros, porém, omitidos e nem sempre voluntários.
Apoiando a trama de Cidade Livre sobre a necessidade de esclarecimento de um as-sassinato, constata-se que o delito apresenta-se não apenas enquanto objeto da narrativa, mas assenta-se sobre o próprio processo de produção, razão porque o narrador pode ser u-no, mas as subjetividades que o habitam mostram-se variáveis, já que a propriedade materi-al da narração não lhe pertence com exclusividade.
2. TRAMA
Sete capítulos desdobram a trama, cumprindo o prometido no subtítulo da introdu-ção, pois correspondem às sete noites em que o narrador acompanhou a agonia do pai, pre-so e em estado terminal, relembrando com ele os anos da edificação de Brasília.
O primeiro capítulo, tendo por subtítulo “De A a Z”, contém dois segmentos. No primeiro, o narrador evoca a ação do pai adotivo, Moacyr Ribeiro, que relata o que teste-munhou no Jardim da Salvação, quando Valdivino, personagem cuja função no romance revela-se aos poucos, teria ou não falecido. Esses acontecimentos datam de 22 de abril de 1960, o dia subsequente à inauguração de Brasília. No segundo segmento, o narrador retor-na a 1956, quando sua família, então constituída pelo pai adotivo, por tia Francisca (irmã de sua finada mãe) e ele, ainda menino, é estimulada a transferir-se de Ceres, em Goiás, para a região onde será erigida a nova capital do país.
Ceres é, ela mesma, uma cidade, na época, recentemente fundada, originária da Co-lônia Agrícola de Goiás, estabelecida por Bernardo Sayão (1901-1959), engenheiro e então vice-governador do Estado, a quem será atribuída a missão de concretizar o projeto do pre-sidente Juscelino Kubitschek (1902-1976). Sayão é personagem não apenas da história de Brasília, mas da vida das personagens de Cidade Livre, pois sua presença e iniciativas de-sempenharão papel decisivo nos acontecimentos da intriga. Nesse ponto do relato, é o en-genheiro encarregado da Novacap quem induz Ribeiro e seus parentes, aos quais se junta sua irmã Matilde, designada por tia pelo narrador, a começar nova trajetória em um cenário até então pouco conhecido por todos.
O capítulo inicial coloca as personagens em dois tempos: a atualidade do narrador e o passado de sua transferência para Brasília. Esse momento corresponde simultaneamente a um novo início, já que elas viveram traumas – Moacyr decide mudar-se para Ceres e adotar o pequeno João, depois de uma crise de alcoolismo; João perdeu a família (pai, mãe e duas irmãs) em um acidente doméstico – de que precisam se liberar, e ao princípio propriamente dito de suas existências, pois não se apresentam acontecimentos prévios experimentados por qualquer uma dessas criaturas. Assim, não se sabe o que motivou a decadência de Mo-acyr, qual foi a trajetória pregressa da família do narrador, e tia Francisca e tia Matilde, re-presentando os dois lados da família, respectivamente a do narrador e a de seu pai adotivo, não contam com uma história anterior.
Tal como Brasília, a família atípica do narrador vivencia uma espécie de marco ze-ro, embora todos disponham de razões – fatos anteriormente vividos – que justificam a mu-dança em processo. Mas o que ocorreu antes não contribuiu para o que se passa mais adian-te, de modo que esses dados são omitidos, correspondendo a uma espécie de pré-história, logo, carente de registro, de situações motivadoras do presente, mas não suficientemente re-levantes para serem relatadas.
O capítulo se complementa pela apresentação dos primeiros movimentos na direção da instalação da Cidade Livre, entre 1956 e 1957. Aquela, que viria a constituir o atual Nú-cleo Bandeirante, dispõe de um estatuto particular: “primeira cidade descartável”, “constru-ída para ser destruída” (ALMINO, 2010, p. 43), e qualificada de “livre”, porque os comer-ciantes locais não pagavam impostos; além disso, acolhia, sem discriminações e preconcei-tos, pessoas da mais variada procedência, desde que comprometidas com a edificação de Brasília.
O capítulo inicial configura o modo como o romance se desenvolverá. Assim, alter-nam-se episódios relativos à história da construção da futura capital, com eventos experi-mentados pelo narrador. Rememoram-se as profecias milenaristas que prognosticavam seu aparecimento, as missões, desde o século XIX, que mapearam a região, as iniciativas do governo federal no sentido de viabilizar o projeto, as inaugurações que sinalizavam sua ins-talação, as medidas de ordem material de que a Brasília de hoje resultam, como a alteração na geografia dos rios, levando à criação do lago Paranoá. De outra parte, expõem-se as ati-vidades de tia Francisca, responsável por fornecer alimentos para o refeitório dos trabalha-dores, de Moacyr, que almeja documentar o testemunho dos visitantes ilustres que acompa-nham a implantação da nova urbe, enquanto se encarrega dos comodatos na Cidade Livre, e os devaneios eróticos do narrador, ainda menino, ao contemplar Matilde nua, imagem que o persegue por todo o transcurso da narrativa.
O capítulo seguinte, “Segunda-noite: De corpo e alma”, narra a inauguração de Bra-sília, concentrando-se nos festejos ocorridos entre 20 e 21 de abril de 1960. Reitera-se o te-or épico que marcara o capítulo inicial, relativo à instalação do projeto, para relembrar a mobilização de pessoas que acompanham as missas, os discursos do presidente, a euforia que contamina a todos. A essas recordações somam-se as alusões à precária situação de Valdivino, possivelmente perseguido pelo coronel nordestino a quem não pagara a dívida contraída ao aceitar a combinação que o levaria a migrar para o Centro-Oeste e obter colo-cação na construção da nova cidade:
Papai tinha conhecimento daqueles abusos. Montavam-se negócios para financiar as passagens dos retirantes, os agentes de empregos os encontravam onde estives-sem, até mesmo nos lugares mais recônditos do sertão, e eles, fugindo da seca, se deixavam seduzir pela promessa do trabalho em Brasília, submetendo-se a quais-quer que fossem as condições. (ALMINO, 2010, p. 70)
Mais adiante esclarece-se outro temor do rapaz: ele seria igualmente perseguido por Aristóteles, o “policial da GEB” (ALMINO, 2010, p. 75), com quem dividia o dormitório. Tais ameaças compõem o pano de fundo que culmina no sumiço de Valdivino, nunca mais encontrado pelo narrador, apenas por seu pai, conforme esse relata no capítulo primeiro, ao rever o filho, depois de anos de separação e próximo da morte. Não surpreende, pois, que o desaparecimento do rapaz converta-se em mistério irresolvido, mesmo porque não é inves-tigado, atormentando tão somente o narrador, por se sentir parcialmente responsável pelo fato, e sua tia Francisca, que permanentemente protesta a inocência de Moacyr, sobretudo depois do falecimento desse.
No parágrafo final do capítulo, o narrador inclui uma confissão que dá conta de sua parcela de culpa nos acontecimentos que culminam na morte de Valdivino:
Desde então ficaram misturados em minha cabeça o possível assassinato de Val-divino, a inauguração de Brasília e os peitos de tia Matilde, além de minha pró-pria culpa por ter querido tanto a morte de Valdivino, ele que me queria tanto bem. (ALMINO, 2010, p. 86)
À inauguração de Brasília soma-se, pois, um crime, cuja vítima pertence à classe trabalhadora e reúne as características do indivíduo associado à construção da cidade – o candango. Valdivino é o sertanejo que se desloca para o centro do país, de uma parte, em busca de uma oportunidade profissional, de outra, à procura da mulher que ama, cuja iden-tidade se revela nos capítulos finais. Instalada a nova capital, ele é exterminado, pois, em certo sentido, deixa de se mostrar necessário. Ao contrário da Cidade Livre, estabelecida para ser temporária, mas que permanece até a atualidade, Valdivino é o ente descartável, que não encontra lugar no mundo que se descortina em 21 de abril de 1960. Não por acaso, seu desaparecimento ocorre na data subsequente, 22 de abril, dia em que, conforme assina-lam os historiadores, a frota dos portugueses comandados por Pedro Álvares Cabral (1467/8-c.1520) aportou no litoral baiano, dando início à colonização da América lusitana.
Cidade Livre joga com os registros históricos, movendo-se do presente para o pas-sado, a fim de interpretar o momento vivido. O 21 de abril escolhido por Kubitschek para inaugurar a nova capital homenageia Tiradentes, como o romance relembra na página 81; mas é também a ocasião de um crime, quando Joaquim José da Silva Xavier (1746?-1792), o alferes que supostamente liderara a conjuração mineira, fora enforcado pelo poder metro-politano português. Assim, o 22 de abril assinala começos, o da colonização europeia e o de operação de Brasília enquanto centro político nacional; porém, a data está marcada por um crime que empana a imagem gloriosa que a memória gostaria de consignar. Provavelmente por esse motivo Moacyr, o pai do narrador, jamais consiga levar a cabo o Livro de Ouro em que ambiciona anotar para a posteridade as declarações de louvor ao projeto e funciona-mento da cidade por parte dos visitantes notórios que por ali passaram durante o período de sua edificação.
A partir do terceiro capítulo, a narrativa adota predominantemente procedimento li-near, substituindo o vaivém cronológico, entre 1956 e 1960, até então empregado. “Terceira noite: paisagens com cupins” detém-se sobretudo “no dia em que conhecemos Valdivino” (ALMINO, 2010, p. 87), por volta de outubro de 1956. O encontro dá-se em meio à mata, onde se acham o narrador e seu pai, quando o rapaz aparece, afirmando tê-los salvo do ata-que de uma onça. No mês seguinte, o jovem passa a trabalhar na Novacap, tornando-se fre-quentador assíduo da casa do narrador, pois conta com a admiração de Francisca e o apreço dos demais, incluindo o engenheiro Roberto, parceiro de Matilde.
“Quarta noite: Lucrécia” desloca parcialmente o foco para as ações de Moacyr, que se torna amante de Lucrécia, uma prostituta radicada na Cidade Livre. Introduz a persona-gem Paulão, a quem o pai do narrador se associa em uma série de negociatas de que advirá seu enriquecimento. Esse é matéria de “Quinta noite: A construção do mistério”, transcorri-do em 1958, também concentrado sobretudo nas ações de Moacyr, que se considera desti-nado a cumprir duas missões: “testemunhar aquele começo, registrá-lo para a história e en-riquecer com as oportunidades que se abriam.” (ALMINO, 2010, p. 148) Sua melhor opor-tunidade de acompanhar ilustres personalidades das artes e da política internacional ocorre quando Aldous Huxley (1894-1963) e a esposa conhecem Brasília, o que maravilha o autor de Admirável mundo novo.
“Sexta noite: O campo da esperança” divide as ações entre Moacyr e Valdivino. Aquele continua seus negócios com Paulão, mas, movido por seu empenho em testemunhar os eventos principais da história, acompanha os trabalhos de Bernardo Sayão na construção da rodovia que ligará Brasília a Belém, no Pará. Trata-se de outra tarefa épica, que faz sua primeira renomada vítima trágica: o próprio engenheiro é atingido por uma árvore que vi-nha sendo derrubada:
Pouco depois de meio-dia, papai se aproximava do local juntamente com um to-pógrafo e um engenheiro, e, quando por volta de uma da tarde os três assistiam à derrubada de uma gigantesca árvore que se prendia a outras por cipós e parasitas, um galho seco de quarenta a cinquenta quilos e medindo cerca de dois metros desprendeu-se das ramagens de uma árvore vizinha, voou feroz e veio atingir a cabeça de Bernardo Sayão, bem como seu braço e perna esquerdos. (ALMINO, 2010, p. 188)
Na sequência do capítulo, compete ao narrador testemunhar a mobilização popular por ocasião do enterro do engenheiro, que desse modo inaugura o campo santo da cidade que erigia. Outra vez o relato assume tom épico, ao lidar com a emoção popular e as medi-das públicas dos líderes políticos: “o presidente JK, chegando a Brasília, dera a ordem de enterrá-lo no terreno que o próprio Sayão demarcara, há menos de dois anos, para ser o fu-turo cemitério de Brasília, o Campo da Esperança, que seria assim inaugurado com seu en-terro.” (ALMINO, 2010, p. 192). Mais adiante, o narrador reitera: “Brasília nunca tinha vis-to e talvez jamais viesse a assistir novamente a enterro tão concorrido. O cemitério era um mar de trinta mil pessoas.” (ALMINO, 2010, p. 193)
As ações grandiosas não se limitam à reação popular. A rodovia entre Belém e a fu-tura capital é inaugurada em 31 de janeiro daquele ano, tomando o nome de Bernardo Sa-yão. Além disso, o presidente JK resolve punir a natureza que o privara de um de seus prin-cipais assessores:
[…] o próprio JK, orgulhoso, naquele dia havia derrubado um velho jatobá no ponto de ligação das frentes norte e sul da estrada, dera ordem para derrubar a primeira árvore e ele próprio derrubara a última […]. Sentado no trator, cuidado-samente desmobilizara o tronco de jatobá, que ainda se manteve de pé, em segui-da engrenara as lagartas e avançara com determinação sobre ele, o jatobá oscilara ainda, mas era já então o cambaleio que prenunciava a morte. (ALMINO, 2010, p. 194).
O episódio enuncia o outro combate que se travava, agora entre o homem e a natu-reza até então inviolável. Essa alcançara algumas vitórias, mas diante da ação empreende-dora do principal herói da trama histórica, o presidente JK, as derrotas se acumulavam. Elas podiam, porém, se mostrar passageiras ou enganosas, desconfiança introduzida pelo narra-dor, ao relembrar conto de Monteiro Lobato (1882-1948), “A vingança da peroba”, que a-lude à lenda do “pau de feitiço”, o “pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens” (LOBATO, 1947, p. 107).
A menção à narrativa configura, de uma parte, o tom “politicamente correto” do tex-to, ao mesmo tempo que sugere a depredação do espaço natural amazônico. Não se restrin-ge, porém, a esse papel, ao reforçar o caráter mítico do processo de fundação: tal como o-corre à inauguração da capital no Planalto Central, a do campo santo relaciona-se a um ato criminoso, que, ritualisticamente, consome os indivíduos que os planejaram, seja o cemité-rio, seja a nova cidade.
O capítulo sexto dá conta igualmente das agruras de Valdivino, acusado de seduzir e engravidar uma moça, razão porque é perseguido pela família dela, que exige o matrimônio do par. O suposto sedutor cogita ter sido vítima de uma armação, mas não encontra meios de reagir ou escapar à pena prevista; por isso, oculta-se por certo tempo, até reaparecer em casa de Francisca, por ocasião do carnaval de 1959, conforme relata o narrador. Reside um tempo junto à família de João, mas depois transfere-se para Vila Amaury, em razão de seu trabalho como pedreiro.
“Sétima noite: O deserto e o esquecimento” denomina o capítulo de encerramento. Dando continuidade ao percurso cronológico da narração, alcançam-se as cerimônias de i-nauguração, antecipadas em capítulo anterior e agora posicionadas enquanto efeito dos e-ventos previamente expostos. Retorna o tom grandiloquente da epopeia, extraído das in-formações contidas nas anotações que o pai do narrador lega à posteridade:
Como numa contagem regressiva para o lançamento de um foguete, a caixa de papéis de papai anunciava a inauguração de Brasília através de recortes de jor-nais, todos datados e numerados. Ele havia me mostrado no próprio dia da publi-cação um jornal de 16 de janeiro daquele ano de 1960, noticiando que a Caravana da Integração Nacional, com suas quatro colunas – do Norte, Sul, Leste e Oeste, ou seja, de Belém, Porto Alegre, Rio e Cuiabá –, formadas cada uma por cinquen-ta veículos de fabricação nacional, começava sua viagem para a futura capital, e no dia 2 de fevereiro, juntamente com Valdivino e as tias Francisca e Matilde, me levou sob um céu nublado para a Praça dos Três Poderes, onde quase toda a po-pulação de Brasília assistia à chegada daquelas colunas, que seriam recebidas por JK, dona Sarah e todo o ministério. (ALMINO, 2010, p. 212-213)
O narrador não abandona, porém, o destino de Valdivino no passado, nem de seu pai, que, neste capítulo derradeiro, se entrelaçam, já que Moacyr pode ter sido o assassino do rapaz: “Dizem que Valdivino agrediu você, papai, porque soube de seu caso com Lucré-cia, acreditam que foi você quem o assassinou em legítima defesa, que tinha depois tentado, sem êxito, salvá-lo, ressuscitá-lo.” (ALMINO, 2010, p. 216). O pai apresenta outra versão, repetindo a informação que dera a João no capítulo inicial: encontrou o rapaz inconsciente, tentou despertá-lo, mas não é bem sucedido: “aproximou-se de Valdivino quando ele tenta-va enunciar mais algumas palavras, envolveu delicadamente seu pescoço com as mãos, procurou levantar sua cabeça, pareceu-lhe então que Valdivino havia expirado, sentiu seu pulso e não teve mais dúvida.” (ALMINO, 2010, p. 29). Do renascimento não há provas, pois, apenas lendas que circulam entre os adeptos do culto de que Valdivino fazia parte, di-fundidas por Íris Quelemém:
Quando papai voltou ao Jardim da Salvação dois dias depois, Íris lhe disse, Ele é um santo, para explicar por que o corpo de Valdivino não apodrecia. Nunca vai apodrecer, vaticinou, e mais tarde espalhou que Valdivino ressuscitara, estava vi-vo, embora papai nem ninguém lá em casa nunca mais o tivesse visto. (ALMINO, 2010, p. 30)
É ainda no capítulo final que o narrador expõe os esclarecimentos apresentados por seu pai: Valdivino era adepto de seita milenarista comandada por Íris Quelemém; essa chamava-se originalmente Lucrécia, ex-amante tanto de Moacyr, quanto de Paulão, mas também a mulher que o rapaz buscava, quando se dirigiu, do sertão, ao Planalto Central. Sem elucidar se a sacerdotisa era a amada ou mãe de Valdivino [“Não sei se Íris era ou não a mãe dele, parece que quando ele era criança ela lhe contava que ele tinha sido enjeitado na porta de casa, mas quando quis parar com aquela relação maluca com ele, inventou de dizer que era sua mãe” (ALMINO, 2010, p. 235), escreve João], a narrativa deixa entrever uma relação incestuosa, que coloca várias disputas em cena, todas indicando para a retoma-da do mito de Édipo, apresentado aqui às avessas, já que se sacrifica o filho (Valdivino), e não o pai, em nome da posse da figura materna (Lucrécia).
A esse último interrogatório de Moacyr pelo filho adotivo, seguem-se a morte e o enterro do interrogado, cuja confissão não alcança diminuir as dúvidas e incertezas do inter-rogador, mesmo porque esse não supera o sentimento de culpa expresso ao leitor, por efeito de sua condição de narrador:
Confesso a vocês o que não disse a papai: que naquele tempo eu também me sen-tia assassino de Valdivino, um assassino sem remorso. Eu desejei aquela morte, a desejei muito, talvez mais do que qualquer outra pessoa. (ALMINO, 2010, p. 232)
O diálogo com o leitor, substituindo o interrogatório feito ao pai adotivo, acaba por ser respondido por esse último, retornando do passado e, de certo modo, de seu túmulo: “e por que você quer resolver esse problema?, nem todo problema tem solução, foram essas as últimas palavras que ouvi de papai, entre quatro paredes de um branco sujo.” (ALMINO, 2010, p. 232) Talvez por essa razão não se verifica o aclaramento desejado pelo narrador, restando, de uma parte, a dúvida e a suspeita, de outro, o esquecimento. São as palavras de Moacyr, ao reproduz para o filho seu diálogo com Lucrécia/Íris de Quelemém, que selam o destino da investigação do final de Valdivino: “não houve crime, em Brasília não haverá crimes, ela dizia. Ou os crimes não serão descobertos, contestei. Não, não haverá crimes, ela repetia.” (ALMINO, 2010, p. 229-230)
3. SACRALIDADE E EXCLUSÃO DA HISTÓRIA
Duas linhas de força travejam Cidade Livre:
– o processo de construção de Brasília, com ênfase no período transcorrido entre 1956 e 1960, episódio de fundo histórico, decisivo para a compreen-são do Brasil da segunda metade do século XX;
– a trajetória de Valdivino, desde o encontro com a família do narrador, por volta de 1956, até seu desaparecimento, em 22 de abril de 1960, episódio de natureza fictícia, mas fundamental para a interpretação conferida pelo romance ao pano de fundo histórico.
Essas linhas não são paralelas; pelo contrário, entrelaçam-se várias vezes, já que Valdivino e a família do narrador migram para o Planalto Central, de uma parte, para solu-cionar problemas particulares, mas, de outra, para se integrar aos sucessos notáveis que lá ocorriam. Assim, o sertanejo exerce vários ofícios em distintos segmentos da trama: é es-criba, depois servente de obra, operário, garçom; porém, invariavelmente ocupa a posição do representante da camada popular que sustentou a edificação da cidade – o candango, cu-ja importância ficou perenizada no monumento que o homenageia, de autoria do escultor Bruno Giorgi (1905-1993). Por sua vez, Francisca é “fornecedora de alimentos e também auxilia[r] na cozinha do restaurante do Serviço de Alimentação da Previdência Social” (ALMINO, 2010, p. 102), Moacyr negocia os comodatos, Matilde namora Roberto, enge-nheiro da obra.
A trama absorve as duas linhas de força, sendo que uma depende da outra: Brasília teria sua história sem Valdivino, Francisca e outros, mas não seria concretizada sem a mão de obra corporificada por eles. Sob esse aspecto, as personagens assumem significado ale-górico, cada qual correspondendo a elementos individuais do processo que, conglutinados, configuram sua imagem compósita. Só que o mosaico que se desenha é móvel, acolhendo, de uma parte, figuras novas, de outra, banindo as antigas.
A eliminação mais gritante é a de Valdivino, a personagem aparentemente colateral que faz as vezes do sujeito sacrificado. Sob esse aspecto, ele ascende à condição de prota-gonista, além de absorver fatores mágicos e divinos, sugeridos de imediato por sua nome de batismo. Outras associações reiteram sua situação simultânea de ente fadado ao sacrifício ritual e figura dotada de componentes míticos:
– a identidade com que é conhecido no Jardim da Salvação, Abel, nome do filho de Adão e Eva, o casal original da Bíblia hebraica, pastor de ovelhas e predileto de Deus, razão do ciúme suscitado em seu irmão, Caim, que o mata, inaugurando a série de crimes e de barbárie que faz a história da hu-manidade;
– a atração incestuosa por Lucrécia, mãe ou amante, que o conduz a Brasília, Tebas moderna, e que motiva sua morte, invertendo a sequência do mito trágico, mas não deixando de lado o aspecto sacrificial contido na punição de Édipo;
– a aproximação com o destino de Jesus Cristo, pois, ao ser encontrado mor-to ou semimorto no Jardim da Salvação, espera-se que ressuscite, expecta-tiva que se transforma em lenda relativa à sua sorte futura.
Além das aproximações míticas, fica sugerida uma associação, de ordem histórica, com Tiradentes, o mártir da independência brasileira, pois é por ocasião do feriado dedica-do àquela personalidade histórica que a capital é inaugurada.
Na composição de Valdivino, colaboram, pois, elementos míticos e históricos. Por outro lado, a composição da história de Brasília também incorpora perspectiva mítica, fa-zendo com que, por outro caminho, se cruzem as linhas de força que travejam o romance. Assim, a escolha do local da fundação da cidade relaciona-se à profecia de dom Bosco, du-plicada na missão de que Íris Quelemém se crê investida: “Íris tivera a iluminação de que dom Bosco lhe atribuía a missão de rumar para o Planalto Central para ajudar a criar a nova civilização” (ALMINO, 2010, p. 30); e Valdivino e a seita a que pertence consideram aque-le espaço mágico, capaz de conduzi-los a Z, “cidade perdida de uma civilização antiga e avançada” (ALMINO, 2010, p. 171). Se, por esse aspecto, o comportamento das persona-gens poderia parecer inverossímil, os fatos extraliterários colaboram para conferir-lhe vera-cidade, pois sabe-se que Brasília e a região que a cerca, no Planalto Central, congrega seitas milenaristas que contam com adeptos de todo o mundo, circunstância, aliás, mencionada na trama: “A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urba-nístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavm pelos seus arredores […].” (ALMINO, 2010, p. 222)
A perspectiva mítica por excelência não procede, porém, do contexto messiânico e apocalíptico que distingue a região central brasileira. Sem contrariar as peculiaridades do ambiente nacional, enraíza-se em um tipo de tradição sacrificial que foi objeto de investiga-ção e formulação de hipóteses interpretativas por parte de Sigmund Freud (1865-1939).
Em 1913, em Totem e tabu, Freud explanou os fundamentos de sua teoria, em que transportava para a antropologia suas descobertas relativas ao complexo de Édipo, matéria de A interpretação dos sonhos (1899). Destacando o papel da atração incestuosa de todo fi-lho homem pela mãe, tema do mito grego e da tragédia Édipo Rei de Sófocles (497/496-406/405 a.C.), Freud atribuiu a formação da personalidade à necessidade de reprimir esse instinto primevo. A identidade do sujeito constitui-se a partir de recalques primários, os quais somente alcançam manifestar-se de modo cifrado, por meio de imagens oníricas ou de lapsos de linguagem.
A confiança de Freud em suas teses levou-o a expandi-las para uma interpretação da formação da sociedade, calcada em similar processo de repressão do incesto, já que esse tema repete-se em narrativas produzidas por povos de procedência diversa, em distintos es-tágios de civilização. O resultado é o livro Totem e tabu (FREUD, 1970), em que expõe a concepção de que, na sociedade tribal primitiva, a atração dos filhos pelas mulheres do pai levou-os a assassinar o genitor, crime que ocasiona culpa compartilhada por todos, ainda que não expressa de modo explícito. O antepassado é divinizado, convertendo-se no totem adorado e respeitado pela comunidade. Ao mesmo tempo, eleva-se o tabu do incesto, o que faculta a vida social e impede a união sexual com mulheres com as quais os homens divi-dem laços sanguíneos.
Ainda que evidências posteriores à publicação de Totem e tabu colocassem sob sus-peita as conclusões de Freud, suspeitas agudizadas pelo fato de que ele saltava da psicolo-gia individual para a antropologia e a etnologia, o psicanalista não alterou seu pensamento com o passar do tempo. Pelo contrário, ampliou sua abrangência, retomando-o em seu últi-mo livro, Moisés e o monoteísmo (FREUD, 2001), quando procura explicar as razões do antissemitismo a partir de similar fundamento, apoiado na psicologia coletiva.
Nesta obra, produzida entre 1934 e 1938, e editada em 1939, Freud parte da hipóte-se de que Moisés não era hebreu, mas egípcio, seguidor da doutrina do faraó Akhenaton, o-riginalmente Amenófis IV, que instaurara entre seu povo, ainda que à força, o culto mono-teísta de Aton e fundara a cidade de Akhetaton, destinada à nova religião. Após a morte do faraó, os sacerdotes reinstalam o politeísmo, mas permanece um núcleo resistente, de que faria parte Moisés. Motivado pela sua fé, o patriarca decide liderar um grupo de hebreus, então escravos, prometendo-lhes a liberdade e o retorno à terra de Canaã, desde que acatada a religião que professava.
Os hebreus teriam aceito a proposta, mas, após deixar o Egito, cansados de vagar no deserto, acabam por assassinar seu líder, retomando suas crenças originais. Tal como em Totem e tabu, ao crime sucede a culpa, e essa conduz à mudança de perspectiva. O coman-dante egípcio é convertido em profeta, sacralizado e adotada sua religião, que, contudo, não mais se livra da noção de delito, necessidade de punição e veneração.
Conforme Freud, é Moisés, pois, o fundador do povo hebreu, não apenas por ter-lhe legado o culto monoteísta, mas, principalmente, por desencadear uma ética fundada na a-ceitação de regras rígidas e inquestionáveis, oriundas do sentimento de transgressão nunca superado. Freud acrescenta que, no caso do judaísmo, tais percepções conduziram a um es-piritualismo nem sempre deglutido por outros grupos, essa constituindo uma das razões do antissemitismo, outra sendo a ascensão da religião cristã, para a qual a culpa pode ser per-doada, desde que descontada em parcelas de ações generosas que garantem a salvação do indivíduo que as pratica.
Importa salientar o princípio presente no pensamento de Freud: a cultura instaura-se a partir da perpetração de um crime. Esse pode ser reprimido, sublimado ou travestido em deificação, mas suas marcas permanecem de algum modo. Para o psicanalista, essas marcas se revelam, mesmo quando à revelia, por meio do processo que denomina “retorno do re-primido”, mostrando-se seguidamente de forma mascarada, o que requer deciframento, tra-balho conduzido pela terapia psicanalítica, mesmo quando aplicada aos grupos sociais. Para Jan Assmann (1998; 2008), elas introduzem-se na cultura, caracterizando-se essa, pois, por conter necessariamente um elemento ambíguo e contraditório, dialético, diríamos, impedin-do que se apresente exclusivamente de modo celebratório e monumental, de uma parte, ou desqualificado e depressivo, de outra.
Observe-se que, adotada a perspectiva freudiana, como procede, em parte, Jan Ass-mann, ao desenvolver sua noção de memória cultural, torna-se imprescindível a presença da figura sacrificial – a que corporificará o elemento a ser eliminado, porque, de algum modo, indesejado, mas que permanece enquanto fantasma, sombra, enfim, enquanto um ente colo-cado a meio passo entre a vida e a morte.
Giorgio Agamben (2002) qualifica o homo sacer por essas características: sua sacra-lidade decorre de uma impunibilidade, e sua indestrutibilidade, da carência de materialida-de física, colocando-se em um espaço intermediário, inacessível à justiça e ao tempo, o que reitera sua imperecibilidade. É também sua condição que o situa entre a “vida nua” e o “poder soberano”, que não pode alcançá-lo. O estado de exceção, objeto da reflexão de A-gamben, justifica-se a partir daí, pois também ele se coloca em lugar inatingível, embora necessário, justificando-se permanentemente.
Agamben compara o homo sacer ao comatoso que nem experimenta a vida, nem pode escolher a morte. Um poder decide por ele, o que o substrai da existência:
A sala de reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além-comatoso e o faux vivant delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homem e pe-la sua tecnologia. E visto que se trata, justamente, não de um corpo natural, mas de uma extrema encarnação do homo sacer (o comatoso pode ser definido como “um ser intermediário entre o homem e o animal”), a aposta em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio (e que, como o homo sacer, é “insacrificável”, no sentido de que não poderia obvi-amente ser colocada à morte em uma execução de pena capital). (AGAMBEN, 2007, p. 171)
Nada mais próximo da posição de Valdivino ao final de Cidade Livre, a meio cami-nho entre a vida e a morte, sem, contudo, dispor de instrumentos próprios para alterar seu estado.
Valdivino compartilha com o homo sacer a condição sacral e a situação vitimária, sendo que a responsabilidade por essa circunstância circula entre as personagens masculi-nas de Cidade Livre, desde o coronel nordestino a quem estaria obrigado a pagar pelo transporte a Brasília, ao policial da GEB que desgosta dele, limites entre os quais se elen-cam a família da possível noiva Carminha, o pai do narrador, ciumento de Lucrécia, e o próprio narrador. Todos teriam motivo para desejar o aniquilamento de Valdivino, todos convivem com sua concomitante falta e presença, por cima dos quais persiste o poder sobe-rano que determina suas existências.
Valdivino é, pois, o morto que não pode ser enterrado, porque seu cadáver não foi encontrado. É o cordeiro de Deus sacrificado, é também o líder religioso que conduziria um povo à terra prometida. Como uma culpa injulgada e, portanto, impenalizável, Valdivino permanece entre nós, denunciando o que ficou incompleto e ignorado pelo poder soberano, em nosso ininterrupto estado de exceção.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. 2. reimpressão. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ALMINO, João. Cidade Livre. Rio de Janeiro: Record, 2010.
ASSMANN, Jan. Moses the Egiptian. The Memory of Egypt in Western Monotheism. Cambridge, Mass; London: Harvard University Press, 1998.
ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Trad. Marcelo G. Burello e Karen Saban. Buenos Ayres: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. Trad. António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Trad. Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. 4. ed. Trad. Luis Lópes-Ballesteros y de Torres. Madri: Alianza, 1970.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1947. (Obras Completas de Monteiro Lobato, 1. série, v. 1)
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 17. ed. São Paulo: Martins, 1972.
www.joaoalmino.com
REGINA ZILBERMAN, CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL. IN: NARRATI-VAS CONTEMPORÂNEAS, RECORTES CRÍTICOS SOBRE LITERATURA BRASI-LEIRA. ORG: GÍNIA MARIA GOMES. PORTO ALEGRE: LIBRETOS, P. 29-46.
CIDADE LIVRE – FUNDAÇÃO E MEMÓRIA CULTURAL
Regina Zilberman
UFRGS
Resumo: O romance Cidade Livre, de João Almino, organiza a trama em função de dois eventos: a construção de Brasília e o desaparecimento do operário Valdivino. Examinam-se as conexões entre os dois episódios, o primeiro de ordem histórica, o segundo, de natureza ficcional, para se pensar as relações entre um mito de fundação e a condição sacral e sacrificial do herói fundador.
Palavras-chave: João Almino; Cidade Livre; fundação; memória cultural
Abstract: The plot of João Almino’s novel, Cidade Livre, is organized by two events: the building of Brasilia, the new Brazilian capital, and the vanishing of a worker, the character Valdivino. The connections between these episodes, one historical, the other ficcional, are examined, in order to understand the relations between a foundation myth, and the sacred and sacrificing conditon of a founder hero.
Key words: João Almino; Cidade Livre; foundation; cultural memory.
Nosso passado se esconde atrás de muros às vezes impenetráveis e se revela ao acaso, aqui e ali, quando o evocamos por meio de um indício, de uma palavra, de um cheiro, de um gosto, de um detalhe qualquer, como quem olha uma paisagem através de furos na parede. (ALMINO, 2010, p. 232)
1. À PROCURA DO AUTOR
Cidade Livre é o quinto romance de João Almino, autor também de Idéias para on-de passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008). Publicado em 2010, seu lançamento coincidiu com as comemorações do cinquentenário de Brasília, cenário desse conjunto de obras ficcionais. O escritor intitula “Quinteto de Brasília” a esse grupo de romances, cuja unidade decorre igualmente da reiteração de personagens, que, embora importantes, ocupam posições colaterais no enredo, o que faculta sua migração de uma obra a outra.
O tempo dirá se Cidade Livre é o fim de um ciclo; mas o romance, sem dúvida, nar-ra um começo – o da cidade que acolhe as figuras da trama, o que significa afirmar também que relata o início de um modelo de nação para o Brasil, dado o projeto que fundamentou e fecundou a criação de Brasília. Assim, Cidade Livre assume identidade épica enquanto pro-jeto narrativo, ao mesmo tempo em que lida com as coordenadas do mito enquanto modo de expor atos inaugurais de uma civilização ou de uma cultura.
Uma introdução e sete capítulos, todos devidamente providos de um título, estrutu-ram a ordem narrativa. A abertura, ela mesma nomeada “Introdução”, a que se seguem dois pontos e uma especificação, “Sete noites e um enterro”, é assinada pelo narrador e presun-tivo autor da obra, que se identifica apenas com as iniciais JA, mas que faz questão de se distinguir de João Almino, o escritor que, colocando seu nome na capa, é o responsável pe-lo livro. A disjunção entre os dois JAs apoia-se em dois recursos: o narrador alude ao fato de ter oferecido o livro para a leitura e correção de João Almino, arrependendo-se depois desse ato: “cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos” (ALMINO, 2010, p. 15); no transcurso dos capítulos seguintes, o narrador retoma o proce-dimento, aludindo mais de uma vez às sugestões expressas por João Almino no sentido de aperfeiçoar o texto, o que reforça a discriminação entre as duas criaturas [por exemplo: “discordo neste ponto da revisão de João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem ao Planalto Central” (ALMINO, 2010, p. 34)].
Por outro lado, o narrador parece não querer abrir mão da ambiguidade que a dupla denominação sugere. Assim, encerra a introdução com uma observação, dirigida aos leito-res, que, em lugar de esclarecer sua identidade, sublinha a coincidência entre os dois sujei-tos, à qual se seguem as iniciais JA, mencionadas antes:
Até aqui este é o único parágrafo que vocês, leitores do blog, comentaram, que-rem porque querem saber meu nome ou pelo menos se sou ou não sou João Al-mino, como se a história mudasse de sentido dependendo de quem seja seu autor, mas paciência, mantenho meu anonimato pela simples razão de que me dá mais liberdade, sobretudo liberdade para ser sincero. (ALMINO, 2010, p. 17-18)
Ao estabelecer a dualidade entre o narrador em primeira pessoa, identificado como João, e o escritor que assina o livro, o autor subverte a atribuição da autoria. Observe-se que a autoria, em qualquer circunstância, em se tratando de obras de ficção, corteja a condi-ção do ghostwriter, ainda que às avessas: uma obra é assinada por um ser histórico, mas quem é a enuncia é um ente imaginário, que responde por seu criador. No caso de Cidade Livre, porém, essa condição é colocada de cabeça para baixo, reinvertendo a situação do ghostwriter, agora, porém, em um texto de fantasia, pois ocorre de ser a criatura fictícia a reivindicar a autoria, relegando o indivíduo que assina o livro, e que responde legalmente por ele (FOUCAULT, 1992), à condição de interventor, interpondo-se no discurso alheio para desfigurá-lo a ponto de comprometer sua espontaneidade.
É, pois, como se o sujeito que coloca seu nome na capa cometesse um crime, rou-bando a propriedade que pertenceria, com legitimidade, à personagem, contudo não plena-mente identificada, que relata os eventos. Essa, por outro lado, também não é inocente, já que, da sua parte, se aproveita de discursos alheios, registrados por escrito, como os cader-nos de seu pai adotivo, ou transmitidos oralmente, como as lembranças, oriundas igualmen-te do pai do narrador, que, em estado agônico, aciona sua memória para dar conta do passa-do a ser recuperado pelo livro proposto.
Ladrão que rouba ladrão? É essa a cena fundadora de Cidade Livre? As apropria-ções, contudo, não se limitam à circulação dos enunciados entre criador e criatura. Evocam ainda ilustres representantes da literatura brasileira, sendo o mais notório, no caso, Gracili-ano Ramos (1892-1953), autor de São Bernardo (1934).
Também esse romance abre com uma introdução que expõe o processo de produção do livro. Paulo Honório, o protagonista e narrador, tão logo inicia o relato, declara:
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contri-buir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzei-ro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuá-ria, faria as despesas e poria o meu nome na capa. (RAMOS, 1972, p. 61)
No parágrafo seguinte, o narrador declara que o plano não dera certo; mas não de-siste, embora altere o modo de proceder: conserva a colaboração de Azevedo Gondim, e os dois trabalham juntos por um tempo, sobretudo porque Paulo Honório vê em seu parceiro “uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça” (RAMOS, 1972, p. 62). Porém, o resultado acaba por desagradá-lo:
O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei:
– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safa-do, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! (RAMOS, 1972, p. 62-63)
Processo semelhante encontra-se em Cidade Livre: também o João-narrador desen-canta-se com as sugestões do outro João, que almeja aperfeiçoar seu estilo:
[…] cometi o erro de entregá-lo a um escritor que o esvaziou de vírgulas e pontos, o encheu de gírias e cenas de violência, me alertou ser preciso acrescentar-lhe uma dimensão moral e filosófica e ainda me perguntou se continha algum ensi-namento, o que achei um absurdo e por isso decidi enviá-lo à editora mesmo sem a moral, a filosofia e o ensinamento, me chateando depois com a resposta polida de que não se enquadrava na sua linha editorial. (ALMINO, 2010, p. 15)
E, tal como ocorre em São Bernardo, cujo protagonista retoma, solitariamente, o projeto de escrita da obra após “ouvi[r] novo pio de coruja” – “iniciei a composição de re-pente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer van-tagem, direta ou indireta” (RAMOS, 1972, p. 64) –, o João de Cidade Livre é motivado por um “vulto. Papai!, chamo. Silêncio. Ainda ouço sua voz, como eco, lá no fundo de meu medo” (ALMINO, 2010, p. 24), o que aciona o gatilho da memória e garante a escrita do livro.
A introdução estabelece, pois, as regras da escrita:
– o compartilhamento da autoria, que, enquanto identidade, se dissolve entre vários sujeitos, ainda que o narrador controle os freios do relato e mante-nha a unidade do diálogo com o(s) leitor(es);
– a sugestão de apropriações nem sempre legítimas, denunciando o ato cri-minoso que sustenta a criação literária, formada pelo deslocamento dos su-jeitos da enunciação e pela incorporação de achados alheios, declarados al-guns, conforme indica o narrador no início da introdução – “meu relato manteve misturadas minhas memórias, as de papai, minhas pesquisas e as observações de tia Francisca” (ALMINO, 2010, p. 15) –, outros, porém, omitidos e nem sempre voluntários.
Apoiando a trama de Cidade Livre sobre a necessidade de esclarecimento de um as-sassinato, constata-se que o delito apresenta-se não apenas enquanto objeto da narrativa, mas assenta-se sobre o próprio processo de produção, razão porque o narrador pode ser u-no, mas as subjetividades que o habitam mostram-se variáveis, já que a propriedade materi-al da narração não lhe pertence com exclusividade.
2. TRAMA
Sete capítulos desdobram a trama, cumprindo o prometido no subtítulo da introdu-ção, pois correspondem às sete noites em que o narrador acompanhou a agonia do pai, pre-so e em estado terminal, relembrando com ele os anos da edificação de Brasília.
O primeiro capítulo, tendo por subtítulo “De A a Z”, contém dois segmentos. No primeiro, o narrador evoca a ação do pai adotivo, Moacyr Ribeiro, que relata o que teste-munhou no Jardim da Salvação, quando Valdivino, personagem cuja função no romance revela-se aos poucos, teria ou não falecido. Esses acontecimentos datam de 22 de abril de 1960, o dia subsequente à inauguração de Brasília. No segundo segmento, o narrador retor-na a 1956, quando sua família, então constituída pelo pai adotivo, por tia Francisca (irmã de sua finada mãe) e ele, ainda menino, é estimulada a transferir-se de Ceres, em Goiás, para a região onde será erigida a nova capital do país.
Ceres é, ela mesma, uma cidade, na época, recentemente fundada, originária da Co-lônia Agrícola de Goiás, estabelecida por Bernardo Sayão (1901-1959), engenheiro e então vice-governador do Estado, a quem será atribuída a missão de concretizar o projeto do pre-sidente Juscelino Kubitschek (1902-1976). Sayão é personagem não apenas da história de Brasília, mas da vida das personagens de Cidade Livre, pois sua presença e iniciativas de-sempenharão papel decisivo nos acontecimentos da intriga. Nesse ponto do relato, é o en-genheiro encarregado da Novacap quem induz Ribeiro e seus parentes, aos quais se junta sua irmã Matilde, designada por tia pelo narrador, a começar nova trajetória em um cenário até então pouco conhecido por todos.
O capítulo inicial coloca as personagens em dois tempos: a atualidade do narrador e o passado de sua transferência para Brasília. Esse momento corresponde simultaneamente a um novo início, já que elas viveram traumas – Moacyr decide mudar-se para Ceres e adotar o pequeno João, depois de uma crise de alcoolismo; João perdeu a família (pai, mãe e duas irmãs) em um acidente doméstico – de que precisam se liberar, e ao princípio propriamente dito de suas existências, pois não se apresentam acontecimentos prévios experimentados por qualquer uma dessas criaturas. Assim, não se sabe o que motivou a decadência de Mo-acyr, qual foi a trajetória pregressa da família do narrador, e tia Francisca e tia Matilde, re-presentando os dois lados da família, respectivamente a do narrador e a de seu pai adotivo, não contam com uma história anterior.
Tal como Brasília, a família atípica do narrador vivencia uma espécie de marco ze-ro, embora todos disponham de razões – fatos anteriormente vividos – que justificam a mu-dança em processo. Mas o que ocorreu antes não contribuiu para o que se passa mais adian-te, de modo que esses dados são omitidos, correspondendo a uma espécie de pré-história, logo, carente de registro, de situações motivadoras do presente, mas não suficientemente re-levantes para serem relatadas.
O capítulo se complementa pela apresentação dos primeiros movimentos na direção da instalação da Cidade Livre, entre 1956 e 1957. Aquela, que viria a constituir o atual Nú-cleo Bandeirante, dispõe de um estatuto particular: “primeira cidade descartável”, “constru-ída para ser destruída” (ALMINO, 2010, p. 43), e qualificada de “livre”, porque os comer-ciantes locais não pagavam impostos; além disso, acolhia, sem discriminações e preconcei-tos, pessoas da mais variada procedência, desde que comprometidas com a edificação de Brasília.
O capítulo inicial configura o modo como o romance se desenvolverá. Assim, alter-nam-se episódios relativos à história da construção da futura capital, com eventos experi-mentados pelo narrador. Rememoram-se as profecias milenaristas que prognosticavam seu aparecimento, as missões, desde o século XIX, que mapearam a região, as iniciativas do governo federal no sentido de viabilizar o projeto, as inaugurações que sinalizavam sua ins-talação, as medidas de ordem material de que a Brasília de hoje resultam, como a alteração na geografia dos rios, levando à criação do lago Paranoá. De outra parte, expõem-se as ati-vidades de tia Francisca, responsável por fornecer alimentos para o refeitório dos trabalha-dores, de Moacyr, que almeja documentar o testemunho dos visitantes ilustres que acompa-nham a implantação da nova urbe, enquanto se encarrega dos comodatos na Cidade Livre, e os devaneios eróticos do narrador, ainda menino, ao contemplar Matilde nua, imagem que o persegue por todo o transcurso da narrativa.
O capítulo seguinte, “Segunda-noite: De corpo e alma”, narra a inauguração de Bra-sília, concentrando-se nos festejos ocorridos entre 20 e 21 de abril de 1960. Reitera-se o te-or épico que marcara o capítulo inicial, relativo à instalação do projeto, para relembrar a mobilização de pessoas que acompanham as missas, os discursos do presidente, a euforia que contamina a todos. A essas recordações somam-se as alusões à precária situação de Valdivino, possivelmente perseguido pelo coronel nordestino a quem não pagara a dívida contraída ao aceitar a combinação que o levaria a migrar para o Centro-Oeste e obter colo-cação na construção da nova cidade:
Papai tinha conhecimento daqueles abusos. Montavam-se negócios para financiar as passagens dos retirantes, os agentes de empregos os encontravam onde estives-sem, até mesmo nos lugares mais recônditos do sertão, e eles, fugindo da seca, se deixavam seduzir pela promessa do trabalho em Brasília, submetendo-se a quais-quer que fossem as condições. (ALMINO, 2010, p. 70)
Mais adiante esclarece-se outro temor do rapaz: ele seria igualmente perseguido por Aristóteles, o “policial da GEB” (ALMINO, 2010, p. 75), com quem dividia o dormitório. Tais ameaças compõem o pano de fundo que culmina no sumiço de Valdivino, nunca mais encontrado pelo narrador, apenas por seu pai, conforme esse relata no capítulo primeiro, ao rever o filho, depois de anos de separação e próximo da morte. Não surpreende, pois, que o desaparecimento do rapaz converta-se em mistério irresolvido, mesmo porque não é inves-tigado, atormentando tão somente o narrador, por se sentir parcialmente responsável pelo fato, e sua tia Francisca, que permanentemente protesta a inocência de Moacyr, sobretudo depois do falecimento desse.
No parágrafo final do capítulo, o narrador inclui uma confissão que dá conta de sua parcela de culpa nos acontecimentos que culminam na morte de Valdivino:
Desde então ficaram misturados em minha cabeça o possível assassinato de Val-divino, a inauguração de Brasília e os peitos de tia Matilde, além de minha pró-pria culpa por ter querido tanto a morte de Valdivino, ele que me queria tanto bem. (ALMINO, 2010, p. 86)
À inauguração de Brasília soma-se, pois, um crime, cuja vítima pertence à classe trabalhadora e reúne as características do indivíduo associado à construção da cidade – o candango. Valdivino é o sertanejo que se desloca para o centro do país, de uma parte, em busca de uma oportunidade profissional, de outra, à procura da mulher que ama, cuja iden-tidade se revela nos capítulos finais. Instalada a nova capital, ele é exterminado, pois, em certo sentido, deixa de se mostrar necessário. Ao contrário da Cidade Livre, estabelecida para ser temporária, mas que permanece até a atualidade, Valdivino é o ente descartável, que não encontra lugar no mundo que se descortina em 21 de abril de 1960. Não por acaso, seu desaparecimento ocorre na data subsequente, 22 de abril, dia em que, conforme assina-lam os historiadores, a frota dos portugueses comandados por Pedro Álvares Cabral (1467/8-c.1520) aportou no litoral baiano, dando início à colonização da América lusitana.
Cidade Livre joga com os registros históricos, movendo-se do presente para o pas-sado, a fim de interpretar o momento vivido. O 21 de abril escolhido por Kubitschek para inaugurar a nova capital homenageia Tiradentes, como o romance relembra na página 81; mas é também a ocasião de um crime, quando Joaquim José da Silva Xavier (1746?-1792), o alferes que supostamente liderara a conjuração mineira, fora enforcado pelo poder metro-politano português. Assim, o 22 de abril assinala começos, o da colonização europeia e o de operação de Brasília enquanto centro político nacional; porém, a data está marcada por um crime que empana a imagem gloriosa que a memória gostaria de consignar. Provavelmente por esse motivo Moacyr, o pai do narrador, jamais consiga levar a cabo o Livro de Ouro em que ambiciona anotar para a posteridade as declarações de louvor ao projeto e funciona-mento da cidade por parte dos visitantes notórios que por ali passaram durante o período de sua edificação.
A partir do terceiro capítulo, a narrativa adota predominantemente procedimento li-near, substituindo o vaivém cronológico, entre 1956 e 1960, até então empregado. “Terceira noite: paisagens com cupins” detém-se sobretudo “no dia em que conhecemos Valdivino” (ALMINO, 2010, p. 87), por volta de outubro de 1956. O encontro dá-se em meio à mata, onde se acham o narrador e seu pai, quando o rapaz aparece, afirmando tê-los salvo do ata-que de uma onça. No mês seguinte, o jovem passa a trabalhar na Novacap, tornando-se fre-quentador assíduo da casa do narrador, pois conta com a admiração de Francisca e o apreço dos demais, incluindo o engenheiro Roberto, parceiro de Matilde.
“Quarta noite: Lucrécia” desloca parcialmente o foco para as ações de Moacyr, que se torna amante de Lucrécia, uma prostituta radicada na Cidade Livre. Introduz a persona-gem Paulão, a quem o pai do narrador se associa em uma série de negociatas de que advirá seu enriquecimento. Esse é matéria de “Quinta noite: A construção do mistério”, transcorri-do em 1958, também concentrado sobretudo nas ações de Moacyr, que se considera desti-nado a cumprir duas missões: “testemunhar aquele começo, registrá-lo para a história e en-riquecer com as oportunidades que se abriam.” (ALMINO, 2010, p. 148) Sua melhor opor-tunidade de acompanhar ilustres personalidades das artes e da política internacional ocorre quando Aldous Huxley (1894-1963) e a esposa conhecem Brasília, o que maravilha o autor de Admirável mundo novo.
“Sexta noite: O campo da esperança” divide as ações entre Moacyr e Valdivino. Aquele continua seus negócios com Paulão, mas, movido por seu empenho em testemunhar os eventos principais da história, acompanha os trabalhos de Bernardo Sayão na construção da rodovia que ligará Brasília a Belém, no Pará. Trata-se de outra tarefa épica, que faz sua primeira renomada vítima trágica: o próprio engenheiro é atingido por uma árvore que vi-nha sendo derrubada:
Pouco depois de meio-dia, papai se aproximava do local juntamente com um to-pógrafo e um engenheiro, e, quando por volta de uma da tarde os três assistiam à derrubada de uma gigantesca árvore que se prendia a outras por cipós e parasitas, um galho seco de quarenta a cinquenta quilos e medindo cerca de dois metros desprendeu-se das ramagens de uma árvore vizinha, voou feroz e veio atingir a cabeça de Bernardo Sayão, bem como seu braço e perna esquerdos. (ALMINO, 2010, p. 188)
Na sequência do capítulo, compete ao narrador testemunhar a mobilização popular por ocasião do enterro do engenheiro, que desse modo inaugura o campo santo da cidade que erigia. Outra vez o relato assume tom épico, ao lidar com a emoção popular e as medi-das públicas dos líderes políticos: “o presidente JK, chegando a Brasília, dera a ordem de enterrá-lo no terreno que o próprio Sayão demarcara, há menos de dois anos, para ser o fu-turo cemitério de Brasília, o Campo da Esperança, que seria assim inaugurado com seu en-terro.” (ALMINO, 2010, p. 192). Mais adiante, o narrador reitera: “Brasília nunca tinha vis-to e talvez jamais viesse a assistir novamente a enterro tão concorrido. O cemitério era um mar de trinta mil pessoas.” (ALMINO, 2010, p. 193)
As ações grandiosas não se limitam à reação popular. A rodovia entre Belém e a fu-tura capital é inaugurada em 31 de janeiro daquele ano, tomando o nome de Bernardo Sa-yão. Além disso, o presidente JK resolve punir a natureza que o privara de um de seus prin-cipais assessores:
[…] o próprio JK, orgulhoso, naquele dia havia derrubado um velho jatobá no ponto de ligação das frentes norte e sul da estrada, dera ordem para derrubar a primeira árvore e ele próprio derrubara a última […]. Sentado no trator, cuidado-samente desmobilizara o tronco de jatobá, que ainda se manteve de pé, em segui-da engrenara as lagartas e avançara com determinação sobre ele, o jatobá oscilara ainda, mas era já então o cambaleio que prenunciava a morte. (ALMINO, 2010, p. 194).
O episódio enuncia o outro combate que se travava, agora entre o homem e a natu-reza até então inviolável. Essa alcançara algumas vitórias, mas diante da ação empreende-dora do principal herói da trama histórica, o presidente JK, as derrotas se acumulavam. Elas podiam, porém, se mostrar passageiras ou enganosas, desconfiança introduzida pelo narra-dor, ao relembrar conto de Monteiro Lobato (1882-1948), “A vingança da peroba”, que a-lude à lenda do “pau de feitiço”, o “pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens” (LOBATO, 1947, p. 107).
A menção à narrativa configura, de uma parte, o tom “politicamente correto” do tex-to, ao mesmo tempo que sugere a depredação do espaço natural amazônico. Não se restrin-ge, porém, a esse papel, ao reforçar o caráter mítico do processo de fundação: tal como o-corre à inauguração da capital no Planalto Central, a do campo santo relaciona-se a um ato criminoso, que, ritualisticamente, consome os indivíduos que os planejaram, seja o cemité-rio, seja a nova cidade.
O capítulo sexto dá conta igualmente das agruras de Valdivino, acusado de seduzir e engravidar uma moça, razão porque é perseguido pela família dela, que exige o matrimônio do par. O suposto sedutor cogita ter sido vítima de uma armação, mas não encontra meios de reagir ou escapar à pena prevista; por isso, oculta-se por certo tempo, até reaparecer em casa de Francisca, por ocasião do carnaval de 1959, conforme relata o narrador. Reside um tempo junto à família de João, mas depois transfere-se para Vila Amaury, em razão de seu trabalho como pedreiro.
“Sétima noite: O deserto e o esquecimento” denomina o capítulo de encerramento. Dando continuidade ao percurso cronológico da narração, alcançam-se as cerimônias de i-nauguração, antecipadas em capítulo anterior e agora posicionadas enquanto efeito dos e-ventos previamente expostos. Retorna o tom grandiloquente da epopeia, extraído das in-formações contidas nas anotações que o pai do narrador lega à posteridade:
Como numa contagem regressiva para o lançamento de um foguete, a caixa de papéis de papai anunciava a inauguração de Brasília através de recortes de jor-nais, todos datados e numerados. Ele havia me mostrado no próprio dia da publi-cação um jornal de 16 de janeiro daquele ano de 1960, noticiando que a Caravana da Integração Nacional, com suas quatro colunas – do Norte, Sul, Leste e Oeste, ou seja, de Belém, Porto Alegre, Rio e Cuiabá –, formadas cada uma por cinquen-ta veículos de fabricação nacional, começava sua viagem para a futura capital, e no dia 2 de fevereiro, juntamente com Valdivino e as tias Francisca e Matilde, me levou sob um céu nublado para a Praça dos Três Poderes, onde quase toda a po-pulação de Brasília assistia à chegada daquelas colunas, que seriam recebidas por JK, dona Sarah e todo o ministério. (ALMINO, 2010, p. 212-213)
O narrador não abandona, porém, o destino de Valdivino no passado, nem de seu pai, que, neste capítulo derradeiro, se entrelaçam, já que Moacyr pode ter sido o assassino do rapaz: “Dizem que Valdivino agrediu você, papai, porque soube de seu caso com Lucré-cia, acreditam que foi você quem o assassinou em legítima defesa, que tinha depois tentado, sem êxito, salvá-lo, ressuscitá-lo.” (ALMINO, 2010, p. 216). O pai apresenta outra versão, repetindo a informação que dera a João no capítulo inicial: encontrou o rapaz inconsciente, tentou despertá-lo, mas não é bem sucedido: “aproximou-se de Valdivino quando ele tenta-va enunciar mais algumas palavras, envolveu delicadamente seu pescoço com as mãos, procurou levantar sua cabeça, pareceu-lhe então que Valdivino havia expirado, sentiu seu pulso e não teve mais dúvida.” (ALMINO, 2010, p. 29). Do renascimento não há provas, pois, apenas lendas que circulam entre os adeptos do culto de que Valdivino fazia parte, di-fundidas por Íris Quelemém:
Quando papai voltou ao Jardim da Salvação dois dias depois, Íris lhe disse, Ele é um santo, para explicar por que o corpo de Valdivino não apodrecia. Nunca vai apodrecer, vaticinou, e mais tarde espalhou que Valdivino ressuscitara, estava vi-vo, embora papai nem ninguém lá em casa nunca mais o tivesse visto. (ALMINO, 2010, p. 30)
É ainda no capítulo final que o narrador expõe os esclarecimentos apresentados por seu pai: Valdivino era adepto de seita milenarista comandada por Íris Quelemém; essa chamava-se originalmente Lucrécia, ex-amante tanto de Moacyr, quanto de Paulão, mas também a mulher que o rapaz buscava, quando se dirigiu, do sertão, ao Planalto Central. Sem elucidar se a sacerdotisa era a amada ou mãe de Valdivino [“Não sei se Íris era ou não a mãe dele, parece que quando ele era criança ela lhe contava que ele tinha sido enjeitado na porta de casa, mas quando quis parar com aquela relação maluca com ele, inventou de dizer que era sua mãe” (ALMINO, 2010, p. 235), escreve João], a narrativa deixa entrever uma relação incestuosa, que coloca várias disputas em cena, todas indicando para a retoma-da do mito de Édipo, apresentado aqui às avessas, já que se sacrifica o filho (Valdivino), e não o pai, em nome da posse da figura materna (Lucrécia).
A esse último interrogatório de Moacyr pelo filho adotivo, seguem-se a morte e o enterro do interrogado, cuja confissão não alcança diminuir as dúvidas e incertezas do inter-rogador, mesmo porque esse não supera o sentimento de culpa expresso ao leitor, por efeito de sua condição de narrador:
Confesso a vocês o que não disse a papai: que naquele tempo eu também me sen-tia assassino de Valdivino, um assassino sem remorso. Eu desejei aquela morte, a desejei muito, talvez mais do que qualquer outra pessoa. (ALMINO, 2010, p. 232)
O diálogo com o leitor, substituindo o interrogatório feito ao pai adotivo, acaba por ser respondido por esse último, retornando do passado e, de certo modo, de seu túmulo: “e por que você quer resolver esse problema?, nem todo problema tem solução, foram essas as últimas palavras que ouvi de papai, entre quatro paredes de um branco sujo.” (ALMINO, 2010, p. 232) Talvez por essa razão não se verifica o aclaramento desejado pelo narrador, restando, de uma parte, a dúvida e a suspeita, de outro, o esquecimento. São as palavras de Moacyr, ao reproduz para o filho seu diálogo com Lucrécia/Íris de Quelemém, que selam o destino da investigação do final de Valdivino: “não houve crime, em Brasília não haverá crimes, ela dizia. Ou os crimes não serão descobertos, contestei. Não, não haverá crimes, ela repetia.” (ALMINO, 2010, p. 229-230)
3. SACRALIDADE E EXCLUSÃO DA HISTÓRIA
Duas linhas de força travejam Cidade Livre:
– o processo de construção de Brasília, com ênfase no período transcorrido entre 1956 e 1960, episódio de fundo histórico, decisivo para a compreen-são do Brasil da segunda metade do século XX;
– a trajetória de Valdivino, desde o encontro com a família do narrador, por volta de 1956, até seu desaparecimento, em 22 de abril de 1960, episódio de natureza fictícia, mas fundamental para a interpretação conferida pelo romance ao pano de fundo histórico.
Essas linhas não são paralelas; pelo contrário, entrelaçam-se várias vezes, já que Valdivino e a família do narrador migram para o Planalto Central, de uma parte, para solu-cionar problemas particulares, mas, de outra, para se integrar aos sucessos notáveis que lá ocorriam. Assim, o sertanejo exerce vários ofícios em distintos segmentos da trama: é es-criba, depois servente de obra, operário, garçom; porém, invariavelmente ocupa a posição do representante da camada popular que sustentou a edificação da cidade – o candango, cu-ja importância ficou perenizada no monumento que o homenageia, de autoria do escultor Bruno Giorgi (1905-1993). Por sua vez, Francisca é “fornecedora de alimentos e também auxilia[r] na cozinha do restaurante do Serviço de Alimentação da Previdência Social” (ALMINO, 2010, p. 102), Moacyr negocia os comodatos, Matilde namora Roberto, enge-nheiro da obra.
A trama absorve as duas linhas de força, sendo que uma depende da outra: Brasília teria sua história sem Valdivino, Francisca e outros, mas não seria concretizada sem a mão de obra corporificada por eles. Sob esse aspecto, as personagens assumem significado ale-górico, cada qual correspondendo a elementos individuais do processo que, conglutinados, configuram sua imagem compósita. Só que o mosaico que se desenha é móvel, acolhendo, de uma parte, figuras novas, de outra, banindo as antigas.
A eliminação mais gritante é a de Valdivino, a personagem aparentemente colateral que faz as vezes do sujeito sacrificado. Sob esse aspecto, ele ascende à condição de prota-gonista, além de absorver fatores mágicos e divinos, sugeridos de imediato por sua nome de batismo. Outras associações reiteram sua situação simultânea de ente fadado ao sacrifício ritual e figura dotada de componentes míticos:
– a identidade com que é conhecido no Jardim da Salvação, Abel, nome do filho de Adão e Eva, o casal original da Bíblia hebraica, pastor de ovelhas e predileto de Deus, razão do ciúme suscitado em seu irmão, Caim, que o mata, inaugurando a série de crimes e de barbárie que faz a história da hu-manidade;
– a atração incestuosa por Lucrécia, mãe ou amante, que o conduz a Brasília, Tebas moderna, e que motiva sua morte, invertendo a sequência do mito trágico, mas não deixando de lado o aspecto sacrificial contido na punição de Édipo;
– a aproximação com o destino de Jesus Cristo, pois, ao ser encontrado mor-to ou semimorto no Jardim da Salvação, espera-se que ressuscite, expecta-tiva que se transforma em lenda relativa à sua sorte futura.
Além das aproximações míticas, fica sugerida uma associação, de ordem histórica, com Tiradentes, o mártir da independência brasileira, pois é por ocasião do feriado dedica-do àquela personalidade histórica que a capital é inaugurada.
Na composição de Valdivino, colaboram, pois, elementos míticos e históricos. Por outro lado, a composição da história de Brasília também incorpora perspectiva mítica, fa-zendo com que, por outro caminho, se cruzem as linhas de força que travejam o romance. Assim, a escolha do local da fundação da cidade relaciona-se à profecia de dom Bosco, du-plicada na missão de que Íris Quelemém se crê investida: “Íris tivera a iluminação de que dom Bosco lhe atribuía a missão de rumar para o Planalto Central para ajudar a criar a nova civilização” (ALMINO, 2010, p. 30); e Valdivino e a seita a que pertence consideram aque-le espaço mágico, capaz de conduzi-los a Z, “cidade perdida de uma civilização antiga e avançada” (ALMINO, 2010, p. 171). Se, por esse aspecto, o comportamento das persona-gens poderia parecer inverossímil, os fatos extraliterários colaboram para conferir-lhe vera-cidade, pois sabe-se que Brasília e a região que a cerca, no Planalto Central, congrega seitas milenaristas que contam com adeptos de todo o mundo, circunstância, aliás, mencionada na trama: “A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urba-nístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavm pelos seus arredores […].” (ALMINO, 2010, p. 222)
A perspectiva mítica por excelência não procede, porém, do contexto messiânico e apocalíptico que distingue a região central brasileira. Sem contrariar as peculiaridades do ambiente nacional, enraíza-se em um tipo de tradição sacrificial que foi objeto de investiga-ção e formulação de hipóteses interpretativas por parte de Sigmund Freud (1865-1939).
Em 1913, em Totem e tabu, Freud explanou os fundamentos de sua teoria, em que transportava para a antropologia suas descobertas relativas ao complexo de Édipo, matéria de A interpretação dos sonhos (1899). Destacando o papel da atração incestuosa de todo fi-lho homem pela mãe, tema do mito grego e da tragédia Édipo Rei de Sófocles (497/496-406/405 a.C.), Freud atribuiu a formação da personalidade à necessidade de reprimir esse instinto primevo. A identidade do sujeito constitui-se a partir de recalques primários, os quais somente alcançam manifestar-se de modo cifrado, por meio de imagens oníricas ou de lapsos de linguagem.
A confiança de Freud em suas teses levou-o a expandi-las para uma interpretação da formação da sociedade, calcada em similar processo de repressão do incesto, já que esse tema repete-se em narrativas produzidas por povos de procedência diversa, em distintos es-tágios de civilização. O resultado é o livro Totem e tabu (FREUD, 1970), em que expõe a concepção de que, na sociedade tribal primitiva, a atração dos filhos pelas mulheres do pai levou-os a assassinar o genitor, crime que ocasiona culpa compartilhada por todos, ainda que não expressa de modo explícito. O antepassado é divinizado, convertendo-se no totem adorado e respeitado pela comunidade. Ao mesmo tempo, eleva-se o tabu do incesto, o que faculta a vida social e impede a união sexual com mulheres com as quais os homens divi-dem laços sanguíneos.
Ainda que evidências posteriores à publicação de Totem e tabu colocassem sob sus-peita as conclusões de Freud, suspeitas agudizadas pelo fato de que ele saltava da psicolo-gia individual para a antropologia e a etnologia, o psicanalista não alterou seu pensamento com o passar do tempo. Pelo contrário, ampliou sua abrangência, retomando-o em seu últi-mo livro, Moisés e o monoteísmo (FREUD, 2001), quando procura explicar as razões do antissemitismo a partir de similar fundamento, apoiado na psicologia coletiva.
Nesta obra, produzida entre 1934 e 1938, e editada em 1939, Freud parte da hipóte-se de que Moisés não era hebreu, mas egípcio, seguidor da doutrina do faraó Akhenaton, o-riginalmente Amenófis IV, que instaurara entre seu povo, ainda que à força, o culto mono-teísta de Aton e fundara a cidade de Akhetaton, destinada à nova religião. Após a morte do faraó, os sacerdotes reinstalam o politeísmo, mas permanece um núcleo resistente, de que faria parte Moisés. Motivado pela sua fé, o patriarca decide liderar um grupo de hebreus, então escravos, prometendo-lhes a liberdade e o retorno à terra de Canaã, desde que acatada a religião que professava.
Os hebreus teriam aceito a proposta, mas, após deixar o Egito, cansados de vagar no deserto, acabam por assassinar seu líder, retomando suas crenças originais. Tal como em Totem e tabu, ao crime sucede a culpa, e essa conduz à mudança de perspectiva. O coman-dante egípcio é convertido em profeta, sacralizado e adotada sua religião, que, contudo, não mais se livra da noção de delito, necessidade de punição e veneração.
Conforme Freud, é Moisés, pois, o fundador do povo hebreu, não apenas por ter-lhe legado o culto monoteísta, mas, principalmente, por desencadear uma ética fundada na a-ceitação de regras rígidas e inquestionáveis, oriundas do sentimento de transgressão nunca superado. Freud acrescenta que, no caso do judaísmo, tais percepções conduziram a um es-piritualismo nem sempre deglutido por outros grupos, essa constituindo uma das razões do antissemitismo, outra sendo a ascensão da religião cristã, para a qual a culpa pode ser per-doada, desde que descontada em parcelas de ações generosas que garantem a salvação do indivíduo que as pratica.
Importa salientar o princípio presente no pensamento de Freud: a cultura instaura-se a partir da perpetração de um crime. Esse pode ser reprimido, sublimado ou travestido em deificação, mas suas marcas permanecem de algum modo. Para o psicanalista, essas marcas se revelam, mesmo quando à revelia, por meio do processo que denomina “retorno do re-primido”, mostrando-se seguidamente de forma mascarada, o que requer deciframento, tra-balho conduzido pela terapia psicanalítica, mesmo quando aplicada aos grupos sociais. Para Jan Assmann (1998; 2008), elas introduzem-se na cultura, caracterizando-se essa, pois, por conter necessariamente um elemento ambíguo e contraditório, dialético, diríamos, impedin-do que se apresente exclusivamente de modo celebratório e monumental, de uma parte, ou desqualificado e depressivo, de outra.
Observe-se que, adotada a perspectiva freudiana, como procede, em parte, Jan Ass-mann, ao desenvolver sua noção de memória cultural, torna-se imprescindível a presença da figura sacrificial – a que corporificará o elemento a ser eliminado, porque, de algum modo, indesejado, mas que permanece enquanto fantasma, sombra, enfim, enquanto um ente colo-cado a meio passo entre a vida e a morte.
Giorgio Agamben (2002) qualifica o homo sacer por essas características: sua sacra-lidade decorre de uma impunibilidade, e sua indestrutibilidade, da carência de materialida-de física, colocando-se em um espaço intermediário, inacessível à justiça e ao tempo, o que reitera sua imperecibilidade. É também sua condição que o situa entre a “vida nua” e o “poder soberano”, que não pode alcançá-lo. O estado de exceção, objeto da reflexão de A-gamben, justifica-se a partir daí, pois também ele se coloca em lugar inatingível, embora necessário, justificando-se permanentemente.
Agamben compara o homo sacer ao comatoso que nem experimenta a vida, nem pode escolher a morte. Um poder decide por ele, o que o substrai da existência:
A sala de reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além-comatoso e o faux vivant delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homem e pe-la sua tecnologia. E visto que se trata, justamente, não de um corpo natural, mas de uma extrema encarnação do homo sacer (o comatoso pode ser definido como “um ser intermediário entre o homem e o animal”), a aposta em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio (e que, como o homo sacer, é “insacrificável”, no sentido de que não poderia obvi-amente ser colocada à morte em uma execução de pena capital). (AGAMBEN, 2007, p. 171)
Nada mais próximo da posição de Valdivino ao final de Cidade Livre, a meio cami-nho entre a vida e a morte, sem, contudo, dispor de instrumentos próprios para alterar seu estado.
Valdivino compartilha com o homo sacer a condição sacral e a situação vitimária, sendo que a responsabilidade por essa circunstância circula entre as personagens masculi-nas de Cidade Livre, desde o coronel nordestino a quem estaria obrigado a pagar pelo transporte a Brasília, ao policial da GEB que desgosta dele, limites entre os quais se elen-cam a família da possível noiva Carminha, o pai do narrador, ciumento de Lucrécia, e o próprio narrador. Todos teriam motivo para desejar o aniquilamento de Valdivino, todos convivem com sua concomitante falta e presença, por cima dos quais persiste o poder sobe-rano que determina suas existências.
Valdivino é, pois, o morto que não pode ser enterrado, porque seu cadáver não foi encontrado. É o cordeiro de Deus sacrificado, é também o líder religioso que conduziria um povo à terra prometida. Como uma culpa injulgada e, portanto, impenalizável, Valdivino permanece entre nós, denunciando o que ficou incompleto e ignorado pelo poder soberano, em nosso ininterrupto estado de exceção.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. 2. reimpressão. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ALMINO, João. Cidade Livre. Rio de Janeiro: Record, 2010.
ASSMANN, Jan. Moses the Egiptian. The Memory of Egypt in Western Monotheism. Cambridge, Mass; London: Harvard University Press, 1998.
ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Trad. Marcelo G. Burello e Karen Saban. Buenos Ayres: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. Trad. António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992.
FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Trad. Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. 4. ed. Trad. Luis Lópes-Ballesteros y de Torres. Madri: Alianza, 1970.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1947. (Obras Completas de Monteiro Lobato, 1. série, v. 1)
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 17. ed. São Paulo: Martins, 1972.
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