DE VOLTA PRA CASA. Denilson Lopes, Pensar, Correio Braziliense, sobre As cinco estações do amor, de João Almino, e Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa

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Correio Braziliense, sábado, 30 de agosto de 2003

Caderno “Pensar”

Denilson Lopes

Já não é de hoje que se multiplicam até a exaustão os estudos e narrativas sobre as cidades. Proliferam se­minários, instalações e intervenções sobre o espaço urbano. Nada de surpreendente, até necessário, des­que a cidade se tornou na modernidade seu espaço privilegiado. Mas que fim levou a casa?

Penso em dois romances particularmente, que na sua discrição parecem falar de uma falta nos nossos imaginá­rios, mas que talvez sejam tão impactantes, na sua mo­déstia e despretensão, na beleza que emerge das peque­nas situações, nos personagens frágeis, banais e seus co­tidianos: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, e As Cinco estações do amor, de João Almino.

Sinfonia em branco encena a volta de Maria Inês para a casa onde nascera e a espera dos que retornaram ou se encontraram nela-sua irmã Clarice e o primeiro aman­te de Maria Inês, Tomás. Clarice volta pra casa, vende as terras não para voltar ao inicio, nem dar uma última sa­tisfação à mãe ou por necessidade de raiz, porto seguro, autenticidade. A volta é um gesto afetivo, depois de tanta dor, ser uma vez mais criança, não para esquecer, mas para trazer mais leve a dor.

A viagem de volta pra casa de Maria Inês começa com despojamento. “Melhor era ser menos, apequenar-se, ser o mínimo possível e reivindicar o silêncio, a nudez e a li­berdade. Melhor era ter as mãos vazias.” No caminho, sentia “uma delicada solidão, metade febre e metade amor, onde vingavam sua melhores dúvidas. Depois de dezessete anos.” Ainda que distante, a fazenda permane­ce como “epicentro da vida e dos sonhos de Maria Inês”, ainda que com 10 anos sem pisar ali.

“Talvez Tomás já tivesse envelhecido, talvez já tivesse atingido aquela espécie de planalto onde vão se extin­guindo quaisquer formações geográficas mais intensas, talvez já pudesse apenas testemunhar a paisagem com seus olhos transparentes e pensar em tudo como passa­do. Tudo. Ou quase tudo.” A viagem de Tomás é o encon­tro de uma casa, longe da sua, o encontro da serenidade, traduzida no pensamento heideggeriano, não como me­ra vontade, nem o deixar-se à deriva, mas um aventurar­se no próprio aberto, aguardar por algo sem saber o quê, caminho e repouso.

A casa de fazenda aparece sem riquezas, nem muito grande, nem muito pequena. Nem muito velha, nem muito nova. A casa de quando nos encontramos no meio do caminho, nem na infância, nem na velhice, nem no fim, nem no início. Naquele meio que urge pas­sar, depois de sonhos realizados ou não, na calmaria, na ausência da paixões, apenas a realidade suave e nua, cruel e bela. “As coisas pareciam menos devastadoras, depois de vistas de perto. Perdiam o sagrado, ficavam comuns, cotidianas. Reduziam aquela distância entre elas mesma e a idéia delas.”

A volta para casa é um gesto simples, banal, para além de toda mágoa, rancor, como se fosse possí­vel a redescoberta de uma outra infância, apesar de toda lembrança, a alegria que aceita a vida sem restrições. A volta pra casa não se apresenta como fracasso da viagem, das metáforas da deriva, como o filho pródigo que retorna a sua famí­lia arrependido. Retornar à casa tam­bém não como fuga do presente, nem como nostalgia de uma infância e passado idealizados, perdidos, como gesto de memória depois da vida vivi­da, mas como gesto de construção, mais do que de reconstrução, mais do que um lugar, uma possibilidade de encontro. Voltar para uma casa, onde se possa novamente pertencer. Não tanto a literatura da casa-grande, do casa patriar­cal, arcaica, mas a frágil casa do presente, mas ainda possível. Construir uma casa afe­tiva, uma família conquistada. A este desa­fio é que As Cinco estações do amor, de João Almino, se lança, em que a própria escrita é uma casa espiritual nova, um abrigo.

Ana, a protagonista, é professora universitária aposentada em Brasília. A paisagem de Brasília é toda afetiva, um mistério em meio ao excesso de luz nas suas quatro estações, e mais uma, como um presente, uma conquista. “Importa mais onde a gente está do que para onde a gente vai e de onde a gen­te vem.” Depois da casa perdida, incendiada, não o retor­no para de onde viera, a casa de sua mãe em Taimbé, nem se isolar, se fechar, mas o encontro, a transformação na maturidade: “Quero o absolutamente simples, que me acalenta, meu olhar sereno sobre a cidade que escolhi, a caminhada pela orla do lago Paranoá que sugiro agora a Carlos”. Desde o início, Carlos é marcado pela suavidade, um homem que gosta de flores, procurando um ritmo marcado pela lentidão e tranqüilidade. A cidade monu­ental, desumana, “de sonhos perdidos entre paisagens e desolação”, terra de estrangeiros, se transforma para Ana, sob um novo olhar: “Estou em estado de graça per­ante o destino, talvez por causa do novo outono, que vej­o no azul violáceo dos jacarandás, ou porque Carlos já me espera na varanda da casa, pronto para o passeio. Quero receber no rosto o sol quente. Embriagar-me no excesso de luz que projeta uma sombra de sonhos.”

0 destino de Ana é a leveza: “Me sinto mais leve e mais jovem. Sou, finalmente, meu verdadeiro ser, despojado impurezas, dos excessos e do peso dos anos.” Trata-se também da serenidade para o mundo das coisas, mesmo em meio à fugacidade das imagens midiáticas, insepará­vel à abertura ao mistério que nos dá a perspectiva de um no­vo enraizamento.

A volta à casa é uma vol­ta ao jardim, representada por Carlos no seu cons­tante cultivo de flores em As Cinco estações do amor. Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos re­duzidos no fim, ao essen­cial, ao que podemos abarcar, com o olhar, tocar, cultivar. 0 jardim sempre es­tivera lá, mas só agora o nota­mos, espaço da delicadeza, do ex­terior próximo, perto da casa. Chegamos enfim.

VER TAMBÉM: LOPES, DENILSON, A DELICADEZA. Brasília: editora UnB, 2008, p.115-129.

Correio Braziliense, sábado, 30 de agosto de 2003

Caderno “Pensar”

Denilson Lopes

Já não é de hoje que se multiplicam até a exaustão os estudos e narrativas sobre as cidades. Proliferam se­minários, instalações e intervenções sobre o espaço urbano. Nada de surpreendente, até necessário, des­que a cidade se tornou na modernidade seu espaço privilegiado. Mas que fim levou a casa?

Penso em dois romances particularmente, que na sua discrição parecem falar de uma falta nos nossos imaginá­rios, mas que talvez sejam tão impactantes, na sua mo­déstia e despretensão, na beleza que emerge das peque­nas situações, nos personagens frágeis, banais e seus co­tidianos: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, e As Cinco estações do amor, de João Almino.

Sinfonia em branco encena a volta de Maria Inês para a casa onde nascera e a espera dos que retornaram ou se encontraram nela-sua irmã Clarice e o primeiro aman­te de Maria Inês, Tomás. Clarice volta pra casa, vende as terras não para voltar ao inicio, nem dar uma última sa­tisfação à mãe ou por necessidade de raiz, porto seguro, autenticidade. A volta é um gesto afetivo, depois de tanta dor, ser uma vez mais criança, não para esquecer, mas para trazer mais leve a dor.

A viagem de volta pra casa de Maria Inês começa com despojamento. “Melhor era ser menos, apequenar-se, ser o mínimo possível e reivindicar o silêncio, a nudez e a li­berdade. Melhor era ter as mãos vazias.” No caminho, sentia “uma delicada solidão, metade febre e metade amor, onde vingavam sua melhores dúvidas. Depois de dezessete anos.” Ainda que distante, a fazenda permane­ce como “epicentro da vida e dos sonhos de Maria Inês”, ainda que com 10 anos sem pisar ali.

“Talvez Tomás já tivesse envelhecido, talvez já tivesse atingido aquela espécie de planalto onde vão se extin­guindo quaisquer formações geográficas mais intensas, talvez já pudesse apenas testemunhar a paisagem com seus olhos transparentes e pensar em tudo como passa­do. Tudo. Ou quase tudo.” A viagem de Tomás é o encon­tro de uma casa, longe da sua, o encontro da serenidade, traduzida no pensamento heideggeriano, não como me­ra vontade, nem o deixar-se à deriva, mas um aventurar­se no próprio aberto, aguardar por algo sem saber o quê, caminho e repouso.

A casa de fazenda aparece sem riquezas, nem muito grande, nem muito pequena. Nem muito velha, nem muito nova. A casa de quando nos encontramos no meio do caminho, nem na infância, nem na velhice, nem no fim, nem no início. Naquele meio que urge pas­sar, depois de sonhos realizados ou não, na calmaria, na ausência da paixões, apenas a realidade suave e nua, cruel e bela. “As coisas pareciam menos devastadoras, depois de vistas de perto. Perdiam o sagrado, ficavam comuns, cotidianas. Reduziam aquela distância entre elas mesma e a idéia delas.”

A volta para casa é um gesto simples, banal, para além de toda mágoa, rancor, como se fosse possí­vel a redescoberta de uma outra infância, apesar de toda lembrança, a alegria que aceita a vida sem restrições. A volta pra casa não se apresenta como fracasso da viagem, das metáforas da deriva, como o filho pródigo que retorna a sua famí­lia arrependido. Retornar à casa tam­bém não como fuga do presente, nem como nostalgia de uma infância e passado idealizados, perdidos, como gesto de memória depois da vida vivi­da, mas como gesto de construção, mais do que de reconstrução, mais do que um lugar, uma possibilidade de encontro. Voltar para uma casa, onde se possa novamente pertencer. Não tanto a literatura da casa-grande, do casa patriar­cal, arcaica, mas a frágil casa do presente, mas ainda possível. Construir uma casa afe­tiva, uma família conquistada. A este desa­fio é que As Cinco estações do amor, de João Almino, se lança, em que a própria escrita é uma casa espiritual nova, um abrigo.

Ana, a protagonista, é professora universitária aposentada em Brasília. A paisagem de Brasília é toda afetiva, um mistério em meio ao excesso de luz nas suas quatro estações, e mais uma, como um presente, uma conquista. “Importa mais onde a gente está do que para onde a gente vai e de onde a gen­te vem.” Depois da casa perdida, incendiada, não o retor­no para de onde viera, a casa de sua mãe em Taimbé, nem se isolar, se fechar, mas o encontro, a transformação na maturidade: “Quero o absolutamente simples, que me acalenta, meu olhar sereno sobre a cidade que escolhi, a caminhada pela orla do lago Paranoá que sugiro agora a Carlos”. Desde o início, Carlos é marcado pela suavidade, um homem que gosta de flores, procurando um ritmo marcado pela lentidão e tranqüilidade. A cidade monu­ental, desumana, “de sonhos perdidos entre paisagens e desolação”, terra de estrangeiros, se transforma para Ana, sob um novo olhar: “Estou em estado de graça per­ante o destino, talvez por causa do novo outono, que vej­o no azul violáceo dos jacarandás, ou porque Carlos já me espera na varanda da casa, pronto para o passeio. Quero receber no rosto o sol quente. Embriagar-me no excesso de luz que projeta uma sombra de sonhos.”

0 destino de Ana é a leveza: “Me sinto mais leve e mais jovem. Sou, finalmente, meu verdadeiro ser, despojado impurezas, dos excessos e do peso dos anos.” Trata-se também da serenidade para o mundo das coisas, mesmo em meio à fugacidade das imagens midiáticas, insepará­vel à abertura ao mistério que nos dá a perspectiva de um no­vo enraizamento.

A volta à casa é uma vol­ta ao jardim, representada por Carlos no seu cons­tante cultivo de flores em As Cinco estações do amor. Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos re­duzidos no fim, ao essen­cial, ao que podemos abarcar, com o olhar, tocar, cultivar. 0 jardim sempre es­tivera lá, mas só agora o nota­mos, espaço da delicadeza, do ex­terior próximo, perto da casa. Chegamos enfim.

VER TAMBÉM: LOPES, DENILSON, A DELICADEZA. Brasília: editora UnB, 2008, p.115-129.

Correio Braziliense, sábado, 30 de agosto de 2003

Caderno “Pensar”

Denilson Lopes

Já não é de hoje que se multiplicam até a exaustão os estudos e narrativas sobre as cidades. Proliferam se­minários, instalações e intervenções sobre o espaço urbano. Nada de surpreendente, até necessário, des­que a cidade se tornou na modernidade seu espaço privilegiado. Mas que fim levou a casa?

Penso em dois romances particularmente, que na sua discrição parecem falar de uma falta nos nossos imaginá­rios, mas que talvez sejam tão impactantes, na sua mo­déstia e despretensão, na beleza que emerge das peque­nas situações, nos personagens frágeis, banais e seus co­tidianos: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, e As Cinco estações do amor, de João Almino.

Sinfonia em branco encena a volta de Maria Inês para a casa onde nascera e a espera dos que retornaram ou se encontraram nela-sua irmã Clarice e o primeiro aman­te de Maria Inês, Tomás. Clarice volta pra casa, vende as terras não para voltar ao inicio, nem dar uma última sa­tisfação à mãe ou por necessidade de raiz, porto seguro, autenticidade. A volta é um gesto afetivo, depois de tanta dor, ser uma vez mais criança, não para esquecer, mas para trazer mais leve a dor.

A viagem de volta pra casa de Maria Inês começa com despojamento. “Melhor era ser menos, apequenar-se, ser o mínimo possível e reivindicar o silêncio, a nudez e a li­berdade. Melhor era ter as mãos vazias.” No caminho, sentia “uma delicada solidão, metade febre e metade amor, onde vingavam sua melhores dúvidas. Depois de dezessete anos.” Ainda que distante, a fazenda permane­ce como “epicentro da vida e dos sonhos de Maria Inês”, ainda que com 10 anos sem pisar ali.

“Talvez Tomás já tivesse envelhecido, talvez já tivesse atingido aquela espécie de planalto onde vão se extin­guindo quaisquer formações geográficas mais intensas, talvez já pudesse apenas testemunhar a paisagem com seus olhos transparentes e pensar em tudo como passa­do. Tudo. Ou quase tudo.” A viagem de Tomás é o encon­tro de uma casa, longe da sua, o encontro da serenidade, traduzida no pensamento heideggeriano, não como me­ra vontade, nem o deixar-se à deriva, mas um aventurar­se no próprio aberto, aguardar por algo sem saber o quê, caminho e repouso.

A casa de fazenda aparece sem riquezas, nem muito grande, nem muito pequena. Nem muito velha, nem muito nova. A casa de quando nos encontramos no meio do caminho, nem na infância, nem na velhice, nem no fim, nem no início. Naquele meio que urge pas­sar, depois de sonhos realizados ou não, na calmaria, na ausência da paixões, apenas a realidade suave e nua, cruel e bela. “As coisas pareciam menos devastadoras, depois de vistas de perto. Perdiam o sagrado, ficavam comuns, cotidianas. Reduziam aquela distância entre elas mesma e a idéia delas.”

A volta para casa é um gesto simples, banal, para além de toda mágoa, rancor, como se fosse possí­vel a redescoberta de uma outra infância, apesar de toda lembrança, a alegria que aceita a vida sem restrições. A volta pra casa não se apresenta como fracasso da viagem, das metáforas da deriva, como o filho pródigo que retorna a sua famí­lia arrependido. Retornar à casa tam­bém não como fuga do presente, nem como nostalgia de uma infância e passado idealizados, perdidos, como gesto de memória depois da vida vivi­da, mas como gesto de construção, mais do que de reconstrução, mais do que um lugar, uma possibilidade de encontro. Voltar para uma casa, onde se possa novamente pertencer. Não tanto a literatura da casa-grande, do casa patriar­cal, arcaica, mas a frágil casa do presente, mas ainda possível. Construir uma casa afe­tiva, uma família conquistada. A este desa­fio é que As Cinco estações do amor, de João Almino, se lança, em que a própria escrita é uma casa espiritual nova, um abrigo.

Ana, a protagonista, é professora universitária aposentada em Brasília. A paisagem de Brasília é toda afetiva, um mistério em meio ao excesso de luz nas suas quatro estações, e mais uma, como um presente, uma conquista. “Importa mais onde a gente está do que para onde a gente vai e de onde a gen­te vem.” Depois da casa perdida, incendiada, não o retor­no para de onde viera, a casa de sua mãe em Taimbé, nem se isolar, se fechar, mas o encontro, a transformação na maturidade: “Quero o absolutamente simples, que me acalenta, meu olhar sereno sobre a cidade que escolhi, a caminhada pela orla do lago Paranoá que sugiro agora a Carlos”. Desde o início, Carlos é marcado pela suavidade, um homem que gosta de flores, procurando um ritmo marcado pela lentidão e tranqüilidade. A cidade monu­ental, desumana, “de sonhos perdidos entre paisagens e desolação”, terra de estrangeiros, se transforma para Ana, sob um novo olhar: “Estou em estado de graça per­ante o destino, talvez por causa do novo outono, que vej­o no azul violáceo dos jacarandás, ou porque Carlos já me espera na varanda da casa, pronto para o passeio. Quero receber no rosto o sol quente. Embriagar-me no excesso de luz que projeta uma sombra de sonhos.”

0 destino de Ana é a leveza: “Me sinto mais leve e mais jovem. Sou, finalmente, meu verdadeiro ser, despojado impurezas, dos excessos e do peso dos anos.” Trata-se também da serenidade para o mundo das coisas, mesmo em meio à fugacidade das imagens midiáticas, insepará­vel à abertura ao mistério que nos dá a perspectiva de um no­vo enraizamento.

A volta à casa é uma vol­ta ao jardim, representada por Carlos no seu cons­tante cultivo de flores em As Cinco estações do amor. Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos re­duzidos no fim, ao essen­cial, ao que podemos abarcar, com o olhar, tocar, cultivar. 0 jardim sempre es­tivera lá, mas só agora o nota­mos, espaço da delicadeza, do ex­terior próximo, perto da casa. Chegamos enfim.

VER TAMBÉM: LOPES, DENILSON, A DELICADEZA. Brasília: editora UnB, 2008, p.115-129.

Correio Braziliense, sábado, 30 de agosto de 2003

Caderno “Pensar”

Denilson Lopes

Já não é de hoje que se multiplicam até a exaustão os estudos e narrativas sobre as cidades. Proliferam se­minários, instalações e intervenções sobre o espaço urbano. Nada de surpreendente, até necessário, des­que a cidade se tornou na modernidade seu espaço privilegiado. Mas que fim levou a casa?

Penso em dois romances particularmente, que na sua discrição parecem falar de uma falta nos nossos imaginá­rios, mas que talvez sejam tão impactantes, na sua mo­déstia e despretensão, na beleza que emerge das peque­nas situações, nos personagens frágeis, banais e seus co­tidianos: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, e As Cinco estações do amor, de João Almino.

Sinfonia em branco encena a volta de Maria Inês para a casa onde nascera e a espera dos que retornaram ou se encontraram nela-sua irmã Clarice e o primeiro aman­te de Maria Inês, Tomás. Clarice volta pra casa, vende as terras não para voltar ao inicio, nem dar uma última sa­tisfação à mãe ou por necessidade de raiz, porto seguro, autenticidade. A volta é um gesto afetivo, depois de tanta dor, ser uma vez mais criança, não para esquecer, mas para trazer mais leve a dor.

A viagem de volta pra casa de Maria Inês começa com despojamento. “Melhor era ser menos, apequenar-se, ser o mínimo possível e reivindicar o silêncio, a nudez e a li­berdade. Melhor era ter as mãos vazias.” No caminho, sentia “uma delicada solidão, metade febre e metade amor, onde vingavam sua melhores dúvidas. Depois de dezessete anos.” Ainda que distante, a fazenda permane­ce como “epicentro da vida e dos sonhos de Maria Inês”, ainda que com 10 anos sem pisar ali.

“Talvez Tomás já tivesse envelhecido, talvez já tivesse atingido aquela espécie de planalto onde vão se extin­guindo quaisquer formações geográficas mais intensas, talvez já pudesse apenas testemunhar a paisagem com seus olhos transparentes e pensar em tudo como passa­do. Tudo. Ou quase tudo.” A viagem de Tomás é o encon­tro de uma casa, longe da sua, o encontro da serenidade, traduzida no pensamento heideggeriano, não como me­ra vontade, nem o deixar-se à deriva, mas um aventurar­se no próprio aberto, aguardar por algo sem saber o quê, caminho e repouso.

A casa de fazenda aparece sem riquezas, nem muito grande, nem muito pequena. Nem muito velha, nem muito nova. A casa de quando nos encontramos no meio do caminho, nem na infância, nem na velhice, nem no fim, nem no início. Naquele meio que urge pas­sar, depois de sonhos realizados ou não, na calmaria, na ausência da paixões, apenas a realidade suave e nua, cruel e bela. “As coisas pareciam menos devastadoras, depois de vistas de perto. Perdiam o sagrado, ficavam comuns, cotidianas. Reduziam aquela distância entre elas mesma e a idéia delas.”

A volta para casa é um gesto simples, banal, para além de toda mágoa, rancor, como se fosse possí­vel a redescoberta de uma outra infância, apesar de toda lembrança, a alegria que aceita a vida sem restrições. A volta pra casa não se apresenta como fracasso da viagem, das metáforas da deriva, como o filho pródigo que retorna a sua famí­lia arrependido. Retornar à casa tam­bém não como fuga do presente, nem como nostalgia de uma infância e passado idealizados, perdidos, como gesto de memória depois da vida vivi­da, mas como gesto de construção, mais do que de reconstrução, mais do que um lugar, uma possibilidade de encontro. Voltar para uma casa, onde se possa novamente pertencer. Não tanto a literatura da casa-grande, do casa patriar­cal, arcaica, mas a frágil casa do presente, mas ainda possível. Construir uma casa afe­tiva, uma família conquistada. A este desa­fio é que As Cinco estações do amor, de João Almino, se lança, em que a própria escrita é uma casa espiritual nova, um abrigo.

Ana, a protagonista, é professora universitária aposentada em Brasília. A paisagem de Brasília é toda afetiva, um mistério em meio ao excesso de luz nas suas quatro estações, e mais uma, como um presente, uma conquista. “Importa mais onde a gente está do que para onde a gente vai e de onde a gen­te vem.” Depois da casa perdida, incendiada, não o retor­no para de onde viera, a casa de sua mãe em Taimbé, nem se isolar, se fechar, mas o encontro, a transformação na maturidade: “Quero o absolutamente simples, que me acalenta, meu olhar sereno sobre a cidade que escolhi, a caminhada pela orla do lago Paranoá que sugiro agora a Carlos”. Desde o início, Carlos é marcado pela suavidade, um homem que gosta de flores, procurando um ritmo marcado pela lentidão e tranqüilidade. A cidade monu­ental, desumana, “de sonhos perdidos entre paisagens e desolação”, terra de estrangeiros, se transforma para Ana, sob um novo olhar: “Estou em estado de graça per­ante o destino, talvez por causa do novo outono, que vej­o no azul violáceo dos jacarandás, ou porque Carlos já me espera na varanda da casa, pronto para o passeio. Quero receber no rosto o sol quente. Embriagar-me no excesso de luz que projeta uma sombra de sonhos.”

0 destino de Ana é a leveza: “Me sinto mais leve e mais jovem. Sou, finalmente, meu verdadeiro ser, despojado impurezas, dos excessos e do peso dos anos.” Trata-se também da serenidade para o mundo das coisas, mesmo em meio à fugacidade das imagens midiáticas, insepará­vel à abertura ao mistério que nos dá a perspectiva de um no­vo enraizamento.

A volta à casa é uma vol­ta ao jardim, representada por Carlos no seu cons­tante cultivo de flores em As Cinco estações do amor. Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos re­duzidos no fim, ao essen­cial, ao que podemos abarcar, com o olhar, tocar, cultivar. 0 jardim sempre es­tivera lá, mas só agora o nota­mos, espaço da delicadeza, do ex­terior próximo, perto da casa. Chegamos enfim.

VER TAMBÉM: LOPES, DENILSON, A DELICADEZA. Brasília: editora UnB, 2008, p.115-129.