G1, Máquina de Escrever. Domingo, 05/11/2017.
Por Luciano Trigo
Diálogo com outras linguagens marca a ficção de João Almino
Aos 70 anos, um advogado decide sair de sua zona de conforto em Taguatinga, no Planalto Central, larga a família e parte para a periferia rural, onde passou a infância. A motivação: vingar a morte do pai e acertar as contas com o passado. Esta é a premissa de “Entre facas, algodão”, o sétimo romance do escritor e diplomata João Almino, também autor de “Ideias para onde passar o fim do mundo” e “As cinco estações do amor”. Nesta entrevista, Almino explica o seu processo criativo, fala sobre a importância da Academia Brasileira de Letras e reflete sobre o papel do escritor em tempos de crise política.
– Seu sétimo romance está sendo lançado 30 anos depois do primeiro. Qual é a relação entre os dois?
JOÃO ALMINO: Num certo sentido, este poderia ter sido o primeiro. Há 30 anos, embora tivesse criado personagens nordestinas, como Berenice e Íris, que percorreram vários de meus romances, evitei desenvolver a maior parte daquele meu primeiro romance no Nordeste. Tinha sido e ainda sou um leitor de autores nordestinos, em especial de Graciliano Ramos, identificados com uma tradição literária forte e amplamente reconhecida.
Não queria correr o risco de repetir, em grau e qualidade menores, o que já havia sido feito. Brasília era, em grande medida, território virgem para a ficção, e eu estaria mais livre para explorar meu próprio caminho. Esse temor desapareceu com o tempo. Dos meus sete romances, cinco foram escritos em primeira pessoa – em torno de personagens muito distintos uns dos outros. Mas este é o primeiro em que a narrativa em primeira pessoa é de um nordestino.
– Fale sobre a gênese de “Entre facas, algodão”. O que te motivou a eleger como protagonista um advogado de 70 anos que parte em busca do passado?
ALMINO: Sempre parto do personagem. Sua biografia pode não ser totalmente explicitada no livro, mas preciso dela para fazer mover a história. Ele precisa ter sonhos, lembranças e viver emoções que o leitor identifique como verdadeiros. A busca do passado tem a ver com a memória, tema muito explorado pela literatura e ao qual me dediquei com afinco e de distintas perspectivas em meus romances.
Para ilustrar este ponto: Ana Kaufman, a narradora de “As cinco estações do amor”, quer apagar o passado, começar sua vida do zero. Este gesto anti-proustiano vai deixando seu rastro, que é uma forma não de negação, mas de reescrita do passado.
“O livro das emoções” é narrado a partir da descrição, recuperada pela memória, de uma série de fotografias que marcaram a vida de um fotógrafo que ficou cego. Em “Cidade Livre”, há várias memórias superpostas, às vezes no mesmo parágrafo, sobretudo as do narrador, um jornalista que rememora cenas de sua infância cotejadas com as do pai moribundo e com quem dialoga.
No novo romance, a memória é falha, e a recuperação do passado nunca se completa. A viagem serve não apenas para confirmar o que restou do passado nem só para contrastar o novo com o velho, mas também para representar um tempo que nunca volta, como se a própria natureza não se repetisse e a viagem fosse sempre de ida, mesmo com percalços, com altos e baixos.
– O acerto de contas – com a memória, com a infância, com a morte do pai – é um elemento que atravessa a narrativa, mas nem tudo acontece como o personagem espera. Dá para estabelecer um paralelo com a própria escrita do romance, ou já ao começar a escrevê-lo você já sabia tudo que ia acontecer na história? Em outras palavras, a sua escrita é racional ou instintiva?
ALMINO: É um misto das duas coisas, pois antes de começar a escrita preciso do personagem e de um rumo para a história. Mas na hora de escrever nunca sigo rigidamente meu plano, refaço-o sempre que necessário com total liberdade, a ponto às vezes de fundir ou dividir personagens e de mudar a estrutura da narrativa. A própria intenção, no caso deste romance, se casa bem com essa escrita de aparência espontânea, pois viagem é aventura e tem de estar aberta a surpresas.
– De que maneira cada um dos seus romances está conectado com o contexto da época em que foi lançado?
ALMINO: Não sei se consigo, mas tento escrever de tal forma que imagino poder ser lido independentemente de conjunturas. Isso não significa deixar de retratar a época em que vivemos. Ao contrário, às vezes o presente – e mesmo o instante presente — é parte central da matéria de meus romances. O importante, para mim, é o tratamento próprio dado pela ficção àquela matéria, que também poderia ser fonte para o jornalista, para o historiador e até para o filósofo.
– Você enxerga uma linha evolutiva na sua ficção? Em que sentido?
ALMINO: Procurei não me repetir, mesmo do ponto de vista da técnica, e encontrar a linguagem mais adequada a cada livro. Cada um tem sua arquitetura específica. A escolha e a perspectiva dos narradores influenciaram tanto a técnica quanto a linguagem. No caso deste último livro, até mesmo a secura nordestina me levou a radicalizar a linguagem enxuta. Tentei me apropriar de algo do linguajar popular mantendo-me fiel ao que considero ser um texto propriamente literário.
Também procurei, ao longo de meus sete romances, manter o diálogo da escrita literária com outras formas de expressão e de linguagem. No primeiro, “Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo”, há 30 anos, com o cinema. No segundo, “Samba-Enredo”, com o computador e as redes informatizadas de comunicação. No quarto, “O Livro das Emoções”, com a fotografia. No quinto, “Cidade Livre”, com os blogs. Agora, com as redes sociais e as comunicações instantâneas do WhatsApp. Mas em nenhum caso a linguagem foi do cinema ou do blog, e a fotografia somente aparece através da palavra.
Ou seja, trata-se de uma tomada de partido pela literatura e de uma aposta no fato de que ela, longe de morrer ou ser absorvida, por exemplo, pela imagem, é capaz de se renovar a partir das novas realidades sociais, comportamentais, políticas e de comunicação.
– A orelha do livro é assinada por Cristóvão Tezza. Com que outros escritores contemporâneos sua obra dialoga?
ALMINO: Não saberia lhe dizer, pois essa obra é produto principalmente de um trabalho solitário. Mas admiro muitos escritores contemporâneos, brasileiros e não brasileiros. Cristóvão é certamente um deles. Gosto de vários autores britânicos contemporâneos: Ian McEwan, Martin Amis, Julian Barnes, Zadie Smith… Entre os menos óbvios, Edward St Aubyn. Assim como leio e releio autores não contemporâneos. Uma vez mais, não saberia dizer se meu trabalho dialoga com eles, mas algo espero que tenha condições de aprender com essas leituras. No Brasil, minhas principais referências de leitura são Machado, Graciliano, João Cabral e Clarice. Mas também fui e sou leitor frequente de Borges, Dostoievski, Flaubert e Proust, entre tantos outros autores.
– Hoje o êxito na vida literária brasileira parece muito associado ao marketing, à participação em festas literárias. O que você acha disso?
ALMINO: Não é meu caso, mas acho que isso dá melhores condições a escritores de se sustentarem com o trabalho literário. Também pode ajudar a incentivar a leitura. Mas não se deve confundir esse êxito, às vezes associado ao interesse pela biografia ou pela performance do autor, com a qualidade de sua obra literária.
– De que forma sua carreira na diplomacia afetou sua produção literária?
ALMINO: Tenho dito que não sou escritor enquanto diplomata nem diplomata enquanto escritor. Mas a diplomacia me deu oportunidades de conhecer melhor outras culturas e literaturas. À exceção de Madri, nunca centrei minhas histórias nas cidades estrangeiras onde vivi, embora elas apareçam, de maneira lateral, em vários de meus romances, a começar pelo primeiro, no qual Brasília dialoga com Paris.
– Desde março você é membro da Academia Brasileira de Letras. O que isso representa para você? Como avalia o papel da ABL hoje?
ALMINO: O Brasil é um país de pouca memória e com grau ainda insuficiente de institucionalização. Portanto, haver no país uma instituição de 120 anos que tenha por fim a cultura da língua e da literatura nacional, como preveem seus estatutos e como queria Machado, é algo que devemos prezar e comemorar. A ABL deve ser fator de preservação do patrimônio linguístico e literário – em sentido amplo — que temos acumulado. E, ao mesmo tempo, que ela mantenha sempre como exemplos aqueles de seus quadros que souberam inovar dentro ou fora da literatura, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Barão do Rio Branco, Oswaldo Cruz, Santos Dumont, Manuel Bandeira, João Cabral, Guimarães Rosa e outros tantos.
– Em tempos de crise política, você acha que escritores devem se engajar em causas sociais e políticas, dentro e fora de suas obras?
ALMINO: Essa é uma decisão de foro íntimo de qualquer cidadão e não apenas dos escritores. Mas há que reconhecer que existe sempre um elemento de inconformismo na arte e na literatura em geral e em particular no trabalho de ficção, e que a palavra tem a capacidade de resistir a todas as formas de censura e opressão. A literatura é, assim, sem dúvida uma arma contra a tirania.
Não devemos, por outro lado, confundir as opiniões dos autores com o sentido mais profundo de sua obra numa perspectiva histórica. Caso contrário, não poderíamos valorizar o alcance social da obra de um Balzac, nem apreciar esteticamente o trabalho de Céline ou Pound. As próprias opiniões e o ativismo político de Machado de Assis são pálidos diante da importância social de sua obra. A ficção pode conter elementos de crítica social e política, mas não deveria, a meu ver, ser mero pretexto para defender certas causas, sob pena de ficar presa a seu momento presente e a seu sistema ideológico, perdendo interesse para a posteridade. Para emitir uma opinião, às vezes pode ser mais eficaz um artigo de jornal ou uma entrevista.
Além disso, as intenções dos autores não são suficientes para produzir os resultados desejados. Antonio Candido dizia que é às vezes ilusória a declaração de um criador a respeito de sua própria criação, e a função social decorre, segundo ele, da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do caráter de sua expressão.
Capa de Entre Facas, Algodão