A carnavalização na obra de João Almino. Régis Bonvicino, Jornal do Brasil, Ideias/Livros, sobre Samba-Enredo

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JORNAL DO BRASIL, IDÉIAS/ LIVROS, sábado, 27/8/94

Escritor retoma a reflexão e a ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional

Um dos principais méritos de Samba-enredo, novo romance de João Almino, é o de retomar para a prosa de ficção brasileira o diálogo com Machado de Assis, especialmente o Machado de Assis de Memórias póstumas de Brás Cubas. Até a sóbria mas existente visualidade de escritura do romance remete a Machado. Uma espécie de poema – à moda do “ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver” – abre Samba-enredo. “Dedico/ às almas errantes/ e aos fragmentos/de cérebro deslocados…”

Deslocamento. Talvez seja esta uma das pedras-de-toque para se entender o romance: a primeira pessoa é deslocada da narração, cedendo lugar a um computador “apaixonado por sua dona”. É a dúvida machadiana, que inaugura Brás Cubas: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar meu nascimento ou minha morte”. Em Samba-enredo, de Almino, a dúvida se reequaciona assim: “Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que meu oficio é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma”.

Esta capacidade de linguagem, em Almino de Samba-enredo, é utilizada para tentar – mesmo que melancólico – um encontro com a realidade brasileira. Leia-se: “Se você permite uma reflexão de máquina, neste intervalo em que vôo entre a lua e o relato, só não sei se os dois protagonistas daquelas cenas passadas, ou seja, Ana e o presidente, terão sido tão virtuosos quanto o esgoto, que, por abreviar o encontro, certamente, como disse o título, evitou um escândalo”.

0 entrecho do romance é simples, no sentido de corriqueiro, quase jornalístico, comum. Como bem o definiu o professor Jorge Schwartz na orelha. “0 Carnaval que atravessa o romance tem Brasília e seu torvelhinho de intrigas amorosas e palacianas, como espaço privilegiado. A trama tem por centro o seqüestro e as relações amorosas e clandestinas do presidente do Brasil, Paulo Antonio Fernandes.”

Almino mobiliza, agencia, em Samba-enredo, o máximo de inteligência reflexiva, na prosa, para tentar compreender a carnavalização banal e alienante da cultura brasileira atual: um computador-narrador, um entrecho de romance policial, o registro do kitsch, das fusões mais horrendas, a coloquialidade das frases, rompida – como pontuação artística – por adensamentos abruptos de linguagem. 0 romance tem – como Brás Cubas – uma estrutura de capítulos curtos, que tensionam e pressionam a trama. Teria tudo, pelos temas que aborda explicitamente, para cair num oswaldianismo pop, a brutalidade e a justaposição feroz das idéias. João Miramar e Serafim Ponte Grande são duas obras-primas da literatura brasileira mas foram copiados ao extremo. Aí está um dos méritos de Almino: evitar um modo tropical-brutalista para falar do Brasil, retomando o tom de reflexão e ironia de Machado (que, aliás, influenciou o próprio Oswald). Há um equilíbrio em, por exemplo: “Enquanto cuidam dos ferimentos de Pedro, o palanque, lá fora, está ocupado pela profetisa Íris Quelemém, que capta a mensagem confirmando que o presidente está salvo, mas muito longe, não se sabe bem onde. Captara, disse, por transmissão de pensamento”.

Prosa de ficção, todavia, não é sociologia. Samba-enredo é extremamente bem escrito (e construído), com momentos líricos, irônicos, poéticos. Almino tem capacidade de recortar os aspectos plásticos das cenas, objetos. 0 texto traz informação em si mesmo. E contorna os personagens: “Olhando a multidão parda como quem procura algo, destaca-se a mulher alta, bem morena, olhos levemente orientais, lábios grossos e nariz proeminente, (…), cabelos compridos, negros como a noite. Traz um vestido abaixo do joelho, muito florido, largo, rodado, e cujo modelo realça os seios ainda firmes, que dispensam o sutiã. É a professora Ana Kaufmam.”

A morosidade, detalhismo e malemolência brasileiras da descrição são abruptamente interrompidos pelo estrangeirismo Kaufman. Há essas sutilezas no texto todo de Samba-enredo, como no lirismo pseudo-ingênuo de: “Ainda é noite clara. A lua cheia ilumina as nuvens velozes e solitárias que, tangidas pelo vento, fogem daquelas mais densas que chegam para ficar. A cidade se descortina por sobre o brilho do Lago Paranoá. Bem em frente vê-se o Congresso, a torre de televisão e o perfil do setor bancário…”

Mistura adúltera de tudo, a cultura brasileira é repassada com inteligência e sensibilidade por João Almino, numa síntese, numa apropriação feliz de Machado e Oswald (este mais no conteúdo). Ou, na observação de Jorge Schwartz: “…uma possível leitura trágica do Brasil se dá ironicamente na unidimensionalidade deste mesmo tecido político-social, no qual não falta nenhum dos ingredientes que constituem nosso pobre cotidiano mascarado pelo desfile do samba-enredo.”

Um computador-narrador de uma aparente trama policial (sequestro do presidente e suas várias hipóteses de solução), na verdade, fio condutor de uma reflexão poética, com ritmos densos, sobre a realidade brasileira. 0 leitor não vai se sentir traído como o computador (“… Achei ingenuamente no começo que a bela Silvia – propondo-me casamento – se interessara por mim. Mas fui ludibriada”). Vai ter lido uma das mais consistentes realizações na área de ficção, no Brasil.

Régis Bonvicino é poeta e crítico, autor de Outros poemas c Litanias da lua, editados pela Iluminuras.

JORNAL DO BRASIL, IDÉIAS/ LIVROS, sábado, 27/8/94

Escritor retoma a reflexão e a ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional

Um dos principais méritos de Samba-enredo, novo romance de João Almino, é o de retomar para a prosa de ficção brasileira o diálogo com Machado de Assis, especialmente o Machado de Assis de Memórias póstumas de Brás Cubas. Até a sóbria mas existente visualidade de escritura do romance remete a Machado. Uma espécie de poema – à moda do “ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver” – abre Samba-enredo. “Dedico/ às almas errantes/ e aos fragmentos/de cérebro deslocados…”

Deslocamento. Talvez seja esta uma das pedras-de-toque para se entender o romance: a primeira pessoa é deslocada da narração, cedendo lugar a um computador “apaixonado por sua dona”. É a dúvida machadiana, que inaugura Brás Cubas: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar meu nascimento ou minha morte”. Em Samba-enredo, de Almino, a dúvida se reequaciona assim: “Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que meu oficio é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma”.

Esta capacidade de linguagem, em Almino de Samba-enredo, é utilizada para tentar – mesmo que melancólico – um encontro com a realidade brasileira. Leia-se: “Se você permite uma reflexão de máquina, neste intervalo em que vôo entre a lua e o relato, só não sei se os dois protagonistas daquelas cenas passadas, ou seja, Ana e o presidente, terão sido tão virtuosos quanto o esgoto, que, por abreviar o encontro, certamente, como disse o título, evitou um escândalo”.

0 entrecho do romance é simples, no sentido de corriqueiro, quase jornalístico, comum. Como bem o definiu o professor Jorge Schwartz na orelha. “0 Carnaval que atravessa o romance tem Brasília e seu torvelhinho de intrigas amorosas e palacianas, como espaço privilegiado. A trama tem por centro o seqüestro e as relações amorosas e clandestinas do presidente do Brasil, Paulo Antonio Fernandes.”

Almino mobiliza, agencia, em Samba-enredo, o máximo de inteligência reflexiva, na prosa, para tentar compreender a carnavalização banal e alienante da cultura brasileira atual: um computador-narrador, um entrecho de romance policial, o registro do kitsch, das fusões mais horrendas, a coloquialidade das frases, rompida – como pontuação artística – por adensamentos abruptos de linguagem. 0 romance tem – como Brás Cubas – uma estrutura de capítulos curtos, que tensionam e pressionam a trama. Teria tudo, pelos temas que aborda explicitamente, para cair num oswaldianismo pop, a brutalidade e a justaposição feroz das idéias. João Miramar e Serafim Ponte Grande são duas obras-primas da literatura brasileira mas foram copiados ao extremo. Aí está um dos méritos de Almino: evitar um modo tropical-brutalista para falar do Brasil, retomando o tom de reflexão e ironia de Machado (que, aliás, influenciou o próprio Oswald). Há um equilíbrio em, por exemplo: “Enquanto cuidam dos ferimentos de Pedro, o palanque, lá fora, está ocupado pela profetisa Íris Quelemém, que capta a mensagem confirmando que o presidente está salvo, mas muito longe, não se sabe bem onde. Captara, disse, por transmissão de pensamento”.

Prosa de ficção, todavia, não é sociologia. Samba-enredo é extremamente bem escrito (e construído), com momentos líricos, irônicos, poéticos. Almino tem capacidade de recortar os aspectos plásticos das cenas, objetos. 0 texto traz informação em si mesmo. E contorna os personagens: “Olhando a multidão parda como quem procura algo, destaca-se a mulher alta, bem morena, olhos levemente orientais, lábios grossos e nariz proeminente, (…), cabelos compridos, negros como a noite. Traz um vestido abaixo do joelho, muito florido, largo, rodado, e cujo modelo realça os seios ainda firmes, que dispensam o sutiã. É a professora Ana Kaufmam.”

A morosidade, detalhismo e malemolência brasileiras da descrição são abruptamente interrompidos pelo estrangeirismo Kaufman. Há essas sutilezas no texto todo de Samba-enredo, como no lirismo pseudo-ingênuo de: “Ainda é noite clara. A lua cheia ilumina as nuvens velozes e solitárias que, tangidas pelo vento, fogem daquelas mais densas que chegam para ficar. A cidade se descortina por sobre o brilho do Lago Paranoá. Bem em frente vê-se o Congresso, a torre de televisão e o perfil do setor bancário…”

Mistura adúltera de tudo, a cultura brasileira é repassada com inteligência e sensibilidade por João Almino, numa síntese, numa apropriação feliz de Machado e Oswald (este mais no conteúdo). Ou, na observação de Jorge Schwartz: “…uma possível leitura trágica do Brasil se dá ironicamente na unidimensionalidade deste mesmo tecido político-social, no qual não falta nenhum dos ingredientes que constituem nosso pobre cotidiano mascarado pelo desfile do samba-enredo.”

Um computador-narrador de uma aparente trama policial (sequestro do presidente e suas várias hipóteses de solução), na verdade, fio condutor de uma reflexão poética, com ritmos densos, sobre a realidade brasileira. 0 leitor não vai se sentir traído como o computador (“… Achei ingenuamente no começo que a bela Silvia – propondo-me casamento – se interessara por mim. Mas fui ludibriada”). Vai ter lido uma das mais consistentes realizações na área de ficção, no Brasil.

Régis Bonvicino é poeta e crítico, autor de Outros poemas c Litanias da lua, editados pela Iluminuras.

JORNAL DO BRASIL, IDÉIAS/ LIVROS, sábado, 27/8/94

Escritor retoma a reflexão e a ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional

Um dos principais méritos de Samba-enredo, novo romance de João Almino, é o de retomar para a prosa de ficção brasileira o diálogo com Machado de Assis, especialmente o Machado de Assis de Memórias póstumas de Brás Cubas. Até a sóbria mas existente visualidade de escritura do romance remete a Machado. Uma espécie de poema – à moda do “ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver” – abre Samba-enredo. “Dedico/ às almas errantes/ e aos fragmentos/de cérebro deslocados…”

Deslocamento. Talvez seja esta uma das pedras-de-toque para se entender o romance: a primeira pessoa é deslocada da narração, cedendo lugar a um computador “apaixonado por sua dona”. É a dúvida machadiana, que inaugura Brás Cubas: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar meu nascimento ou minha morte”. Em Samba-enredo, de Almino, a dúvida se reequaciona assim: “Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que meu oficio é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma”.

Esta capacidade de linguagem, em Almino de Samba-enredo, é utilizada para tentar – mesmo que melancólico – um encontro com a realidade brasileira. Leia-se: “Se você permite uma reflexão de máquina, neste intervalo em que vôo entre a lua e o relato, só não sei se os dois protagonistas daquelas cenas passadas, ou seja, Ana e o presidente, terão sido tão virtuosos quanto o esgoto, que, por abreviar o encontro, certamente, como disse o título, evitou um escândalo”.

0 entrecho do romance é simples, no sentido de corriqueiro, quase jornalístico, comum. Como bem o definiu o professor Jorge Schwartz na orelha. “0 Carnaval que atravessa o romance tem Brasília e seu torvelhinho de intrigas amorosas e palacianas, como espaço privilegiado. A trama tem por centro o seqüestro e as relações amorosas e clandestinas do presidente do Brasil, Paulo Antonio Fernandes.”

Almino mobiliza, agencia, em Samba-enredo, o máximo de inteligência reflexiva, na prosa, para tentar compreender a carnavalização banal e alienante da cultura brasileira atual: um computador-narrador, um entrecho de romance policial, o registro do kitsch, das fusões mais horrendas, a coloquialidade das frases, rompida – como pontuação artística – por adensamentos abruptos de linguagem. 0 romance tem – como Brás Cubas – uma estrutura de capítulos curtos, que tensionam e pressionam a trama. Teria tudo, pelos temas que aborda explicitamente, para cair num oswaldianismo pop, a brutalidade e a justaposição feroz das idéias. João Miramar e Serafim Ponte Grande são duas obras-primas da literatura brasileira mas foram copiados ao extremo. Aí está um dos méritos de Almino: evitar um modo tropical-brutalista para falar do Brasil, retomando o tom de reflexão e ironia de Machado (que, aliás, influenciou o próprio Oswald). Há um equilíbrio em, por exemplo: “Enquanto cuidam dos ferimentos de Pedro, o palanque, lá fora, está ocupado pela profetisa Íris Quelemém, que capta a mensagem confirmando que o presidente está salvo, mas muito longe, não se sabe bem onde. Captara, disse, por transmissão de pensamento”.

Prosa de ficção, todavia, não é sociologia. Samba-enredo é extremamente bem escrito (e construído), com momentos líricos, irônicos, poéticos. Almino tem capacidade de recortar os aspectos plásticos das cenas, objetos. 0 texto traz informação em si mesmo. E contorna os personagens: “Olhando a multidão parda como quem procura algo, destaca-se a mulher alta, bem morena, olhos levemente orientais, lábios grossos e nariz proeminente, (…), cabelos compridos, negros como a noite. Traz um vestido abaixo do joelho, muito florido, largo, rodado, e cujo modelo realça os seios ainda firmes, que dispensam o sutiã. É a professora Ana Kaufmam.”

A morosidade, detalhismo e malemolência brasileiras da descrição são abruptamente interrompidos pelo estrangeirismo Kaufman. Há essas sutilezas no texto todo de Samba-enredo, como no lirismo pseudo-ingênuo de: “Ainda é noite clara. A lua cheia ilumina as nuvens velozes e solitárias que, tangidas pelo vento, fogem daquelas mais densas que chegam para ficar. A cidade se descortina por sobre o brilho do Lago Paranoá. Bem em frente vê-se o Congresso, a torre de televisão e o perfil do setor bancário…”

Mistura adúltera de tudo, a cultura brasileira é repassada com inteligência e sensibilidade por João Almino, numa síntese, numa apropriação feliz de Machado e Oswald (este mais no conteúdo). Ou, na observação de Jorge Schwartz: “…uma possível leitura trágica do Brasil se dá ironicamente na unidimensionalidade deste mesmo tecido político-social, no qual não falta nenhum dos ingredientes que constituem nosso pobre cotidiano mascarado pelo desfile do samba-enredo.”

Um computador-narrador de uma aparente trama policial (sequestro do presidente e suas várias hipóteses de solução), na verdade, fio condutor de uma reflexão poética, com ritmos densos, sobre a realidade brasileira. 0 leitor não vai se sentir traído como o computador (“… Achei ingenuamente no começo que a bela Silvia – propondo-me casamento – se interessara por mim. Mas fui ludibriada”). Vai ter lido uma das mais consistentes realizações na área de ficção, no Brasil.

Régis Bonvicino é poeta e crítico, autor de Outros poemas c Litanias da lua, editados pela Iluminuras.

Escritor retoma a reflexão e a ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional

Um dos principais méritos de Samba-enredo, novo romance de João Almino, é o de retomar para a prosa de ficção brasileira o diálogo com Machado de Assis, especialmente o Machado de Assis de Memórias póstumas de Brás Cubas. Até a sóbria mas existente visualidade de escritura do romance remete a Machado. Uma espécie de poema – à moda do “ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver” – abre Samba-enredo. “Dedico/ às almas errantes/ e aos fragmentos/de cérebro deslocados…”

Deslocamento. Talvez seja esta uma das pedras-de-toque para se entender o romance: a primeira pessoa é deslocada da narração, cedendo lugar a um computador “apaixonado por sua dona”. É a dúvida machadiana, que inaugura Brás Cubas: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar meu nascimento ou minha morte”. Em Samba-enredo, de Almino, a dúvida se reequaciona assim: “Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que meu oficio é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma”.

Esta capacidade de linguagem, em Almino de Samba-enredo, é utilizada para tentar – mesmo que melancólico – um encontro com a realidade brasileira. Leia-se: “Se você permite uma reflexão de máquina, neste intervalo em que vôo entre a lua e o relato, só não sei se os dois protagonistas daquelas cenas passadas, ou seja, Ana e o presidente, terão sido tão virtuosos quanto o esgoto, que, por abreviar o encontro, certamente, como disse o título, evitou um escândalo”.

0 entrecho do romance é simples, no sentido de corriqueiro, quase jornalístico, comum. Como bem o definiu o professor Jorge Schwartz na orelha. “0 Carnaval que atravessa o romance tem Brasília e seu torvelhinho de intrigas amorosas e palacianas, como espaço privilegiado. A trama tem por centro o seqüestro e as relações amorosas e clandestinas do presidente do Brasil, Paulo Antonio Fernandes.”

Almino mobiliza, agencia, em Samba-enredo, o máximo de inteligência reflexiva, na prosa, para tentar compreender a carnavalização banal e alienante da cultura brasileira atual: um computador-narrador, um entrecho de romance policial, o registro do kitsch, das fusões mais horrendas, a coloquialidade das frases, rompida – como pontuação artística – por adensamentos abruptos de linguagem. 0 romance tem – como Brás Cubas – uma estrutura de capítulos curtos, que tensionam e pressionam a trama. Teria tudo, pelos temas que aborda explicitamente, para cair num oswaldianismo pop, a brutalidade e a justaposição feroz das idéias. João Miramar e Serafim Ponte Grande são duas obras-primas da literatura brasileira mas foram copiados ao extremo. Aí está um dos méritos de Almino: evitar um modo tropical-brutalista para falar do Brasil, retomando o tom de reflexão e ironia de Machado (que, aliás, influenciou o próprio Oswald). Há um equilíbrio em, por exemplo: “Enquanto cuidam dos ferimentos de Pedro, o palanque, lá fora, está ocupado pela profetisa Íris Quelemém, que capta a mensagem confirmando que o presidente está salvo, mas muito longe, não se sabe bem onde. Captara, disse, por transmissão de pensamento”.

Prosa de ficção, todavia, não é sociologia. Samba-enredo é extremamente bem escrito (e construído), com momentos líricos, irônicos, poéticos. Almino tem capacidade de recortar os aspectos plásticos das cenas, objetos. 0 texto traz informação em si mesmo. E contorna os personagens: “Olhando a multidão parda como quem procura algo, destaca-se a mulher alta, bem morena, olhos levemente orientais, lábios grossos e nariz proeminente, (…), cabelos compridos, negros como a noite. Traz um vestido abaixo do joelho, muito florido, largo, rodado, e cujo modelo realça os seios ainda firmes, que dispensam o sutiã. É a professora Ana Kaufmam.”

A morosidade, detalhismo e malemolência brasileiras da descrição são abruptamente interrompidos pelo estrangeirismo Kaufman. Há essas sutilezas no texto todo de Samba-enredo, como no lirismo pseudo-ingênuo de: “Ainda é noite clara. A lua cheia ilumina as nuvens velozes e solitárias que, tangidas pelo vento, fogem daquelas mais densas que chegam para ficar. A cidade se descortina por sobre o brilho do Lago Paranoá. Bem em frente vê-se o Congresso, a torre de televisão e o perfil do setor bancário…”

Mistura adúltera de tudo, a cultura brasileira é repassada com inteligência e sensibilidade por João Almino, numa síntese, numa apropriação feliz de Machado e Oswald (este mais no conteúdo). Ou, na observação de Jorge Schwartz: “…uma possível leitura trágica do Brasil se dá ironicamente na unidimensionalidade deste mesmo tecido político-social, no qual não falta nenhum dos ingredientes que constituem nosso pobre cotidiano mascarado pelo desfile do samba-enredo.”

Um computador-narrador de uma aparente trama policial (sequestro do presidente e suas várias hipóteses de solução), na verdade, fio condutor de uma reflexão poética, com ritmos densos, sobre a realidade brasileira. 0 leitor não vai se sentir traído como o computador (“… Achei ingenuamente no começo que a bela Silvia – propondo-me casamento – se interessara por mim. Mas fui ludibriada”). Vai ter lido uma das mais consistentes realizações na área de ficção, no Brasil.

Régis Bonvicino é poeta e crítico, autor de Outros poemas c Litanias da lua, editados pela Iluminuras.