JORNAL DA PUC, 13/09/01
Betty Mindlin
Que visão de si mesma tem uma madura mulher de 55 anos, separada, sem filhos, aposentada de um cargo de professora universitária numa profissão indefinida, talvez letras ou história? E ainda mais sendo ela solitária,educando dois sobrinhos adolescentes com quem mora, cercada apenas por poucos amigos da juventude – antigos militantes contra a ditadura militar -, apoiada nas tarefas diárias por uma empregada dedicada, dando muito afeto a dois gatos e um cachorro velho?
A narradora do novo romance de João Almino, As Cinco Estações do Amor, falando na primeira pessoa, no tom de prosa confessional, vê-se cindida entre as personagens correspondentes aos seus dois nomes: Diana, ousada, sensual, determinada, voltada para o prazer, aberta para a rosa de aniversário do vizinho admirador, e Ana, que é como todos a chamam, recolhida, tímida, espectadora, hesitante, presa nos limites da rotina, boiando ao sabor do destino.
O cenário e os temas são atuais: Brasília em expansão, para onde Ana veio
de Minas, antes de casar, e onde conheceu o seu grupo coeso de amigos migrantes; a violência, as drogas, a criminalidade, a ameaça de assaltos; a passagem do milênio e as esperanças despertadas; a depressão rondando, Prozac, assassinato, tiros, suicídio, as aventuras sexuais sem conseqüências emocionais para o parceiro e atingindo a fundo a parceira, o amor, o adultério, a ruptura.
A figura de Ana, delineada por ela própria, é feita de muitos detalhes concretos, com dados sobre o quotidiano, os sentimentos, o passado, a vida sexual e amorosa, os fatos, a cidade e as ruas, os jantares e o teor das conversas. O que fica, porém, é um clima nebuloso de vazio, como se nada se soubesse sobre ela, ressaltado apenas seu profundo sentimento de ser sozinha. Que mais é ela, a não ser a falta de um amor? O que a faz vibrar no mundo, qual a sua ação, o que faz, que rios a arrastam, qual o seu repertório cultural?
Como se não estivesse no centro da modernidade urbana, começando o terceiro milênio carregado de dramas raciais, econômicos, com conflitos de raízes e sentidos, com políticas sociais e desregramentos, com liberdade amorosa e desvios, com inusitados caminhos da fantasia e descoberta, ela poderia ser uma puritana heroína da era vitoriana, seguindo comportada, perplexa, uma trilha esperada, dada pela moral convencional ou pelas circunstâncias possíveis.
Nesse sentido, Ana lembra alguma personagem de Natalia Ginzburg, como a sem nome de È stato cosí, que não tem outra razão de existir a não ser seguir o marido; ou a personagem de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Há na história da protagonista de As Cinco Estações do Amor uma economia de vitalidade, restringindo a expansão e a soltura, um prenúncio de grandes crises de melancolia, a escuridão latente.
Para se compreender Ana não se pode ignorar que ela é mineira da cidadezinha de Taimbé – onde moram sua mãe e irmã, e para onde pretende voltar – e carrega uma tradicional imagem de mulher abafada, que se aproxima de domésticas heroínas sem perfil próprio. Nem tampouco esquecer que o grupo de amigos com quem ela se relaciona se autodenominava, quando chegara em Brasília, de “inúteis”. Talvez aqui também um traço que explique porque tanta falta fazem a Ana: eram os artistas improdutivos, utópicos, brincalhões, trazendo ânimo e festa sem os rígidos objetivos do trabalho e da carreira.
TRANSEXUALIDADE – Um dos aspectos mais interessantes e inovadores do livro é o espaço para a transexualidade, e para as relações homossexuais, aceitas e acolhidas, e que transformam o que é considerado feminino. Grandes amigos de Ana são um casal de homens com um filho adotivo, que lhe fazem a festa de aniversário.
A crise de Ana/Diana e a sua comoção interior, desencadeando mudanças, estala com a chegada do travesti Berta, reaparecendo loira e metamorfoseada depois de anos, seu amigo e amor antigo, Norberto, um dos “inúteis”, que fez uma operação para se tornar mulher. Ana a convida para viver em sua casa, e é a alegria entrando, a comunicação, a risada, a vida plena, sem razão. São poucos dias para que se acostume a ver a amiga no amigo anterior, para se deixar levar. Mas as convenções e o olhar alheio cobram seu preço… e há muitas formas de trair.
Os personagens, ou pelo menos muitos nomes de As Cinco Estações do Amor, já surgiam no romance anterior de João Almino, Samba-enredo (Marco Zero, 1994). A partir de que magma original biográfico ou inventado são extraídos? Estariam também no primeiro romance, já que são três os livros de Almino considerados marcos da ficção em Brasília? Há, por exemplo, uma cena do carnaval, com um assassinato imaginário ou real do homem amado desaparecido, que está nos dois livros.
Ana/Diana salva-se de duas maneiras bem distintas, uma tradicional e uma pela via criativa. Ana queima seus papéis e o passado – que de todo modo se extinguem num incêndio -, mas volta no final do livro à tarefa de um relato biográfico, investigando o significado da travessia pelos anos. Sem se pronunciar escritora, está, pelo mergulho honesto na intimidade e na força das palavras, justificando-se por existir, estabelecendo no vácuo laços luminosos com o resto da humanidade. E assim como grande parte das mulheres em toda a história, deixa de se sentir deslocada e marginal ao encontrar um companheiro para um amor equilibrado, casando-se com o vizinho viúvo.
Um romance bem escrito, com começo, meio, enredo, e fim não infeliz, esperançoso, embora conformado aos arquétipos sagrados, procurando deixar para trás toda a angústia da existência feminina.
Betty Mindlin é doutora em Antropologia pela PUC-SP e autora, dentre outros livros de mitos indígenas, de 0 Primeiro Homem (Cosac & Naify, 2001)
JORNAL DA PUC, 13/09/01
Betty Mindlin
Que visão de si mesma tem uma madura mulher de 55 anos, separada, sem filhos, aposentada de um cargo de professora universitária numa profissão indefinida, talvez letras ou história? E ainda mais sendo ela solitária,educando dois sobrinhos adolescentes com quem mora, cercada apenas por poucos amigos da juventude – antigos militantes contra a ditadura militar -, apoiada nas tarefas diárias por uma empregada dedicada, dando muito afeto a dois gatos e um cachorro velho?
A narradora do novo romance de João Almino, As Cinco Estações do Amor, falando na primeira pessoa, no tom de prosa confessional, vê-se cindida entre as personagens correspondentes aos seus dois nomes: Diana, ousada, sensual, determinada, voltada para o prazer, aberta para a rosa de aniversário do vizinho admirador, e Ana, que é como todos a chamam, recolhida, tímida, espectadora, hesitante, presa nos limites da rotina, boiando ao sabor do destino.
O cenário e os temas são atuais: Brasília em expansão, para onde Ana veio
de Minas, antes de casar, e onde conheceu o seu grupo coeso de amigos migrantes; a violência, as drogas, a criminalidade, a ameaça de assaltos; a passagem do milênio e as esperanças despertadas; a depressão rondando, Prozac, assassinato, tiros, suicídio, as aventuras sexuais sem conseqüências emocionais para o parceiro e atingindo a fundo a parceira, o amor, o adultério, a ruptura.
A figura de Ana, delineada por ela própria, é feita de muitos detalhes concretos, com dados sobre o quotidiano, os sentimentos, o passado, a vida sexual e amorosa, os fatos, a cidade e as ruas, os jantares e o teor das conversas. O que fica, porém, é um clima nebuloso de vazio, como se nada se soubesse sobre ela, ressaltado apenas seu profundo sentimento de ser sozinha. Que mais é ela, a não ser a falta de um amor? O que a faz vibrar no mundo, qual a sua ação, o que faz, que rios a arrastam, qual o seu repertório cultural?
Como se não estivesse no centro da modernidade urbana, começando o terceiro milênio carregado de dramas raciais, econômicos, com conflitos de raízes e sentidos, com políticas sociais e desregramentos, com liberdade amorosa e desvios, com inusitados caminhos da fantasia e descoberta, ela poderia ser uma puritana heroína da era vitoriana, seguindo comportada, perplexa, uma trilha esperada, dada pela moral convencional ou pelas circunstâncias possíveis.
Nesse sentido, Ana lembra alguma personagem de Natalia Ginzburg, como a sem nome de È stato cosí, que não tem outra razão de existir a não ser seguir o marido; ou a personagem de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Há na história da protagonista de As Cinco Estações do Amor uma economia de vitalidade, restringindo a expansão e a soltura, um prenúncio de grandes crises de melancolia, a escuridão latente.
Para se compreender Ana não se pode ignorar que ela é mineira da cidadezinha de Taimbé – onde moram sua mãe e irmã, e para onde pretende voltar – e carrega uma tradicional imagem de mulher abafada, que se aproxima de domésticas heroínas sem perfil próprio. Nem tampouco esquecer que o grupo de amigos com quem ela se relaciona se autodenominava, quando chegara em Brasília, de “inúteis”. Talvez aqui também um traço que explique porque tanta falta fazem a Ana: eram os artistas improdutivos, utópicos, brincalhões, trazendo ânimo e festa sem os rígidos objetivos do trabalho e da carreira.
TRANSEXUALIDADE – Um dos aspectos mais interessantes e inovadores do livro é o espaço para a transexualidade, e para as relações homossexuais, aceitas e acolhidas, e que transformam o que é considerado feminino. Grandes amigos de Ana são um casal de homens com um filho adotivo, que lhe fazem a festa de aniversário.
A crise de Ana/Diana e a sua comoção interior, desencadeando mudanças, estala com a chegada do travesti Berta, reaparecendo loira e metamorfoseada depois de anos, seu amigo e amor antigo, Norberto, um dos “inúteis”, que fez uma operação para se tornar mulher. Ana a convida para viver em sua casa, e é a alegria entrando, a comunicação, a risada, a vida plena, sem razão. São poucos dias para que se acostume a ver a amiga no amigo anterior, para se deixar levar. Mas as convenções e o olhar alheio cobram seu preço… e há muitas formas de trair.
Os personagens, ou pelo menos muitos nomes de As Cinco Estações do Amor, já surgiam no romance anterior de João Almino, Samba-enredo (Marco Zero, 1994). A partir de que magma original biográfico ou inventado são extraídos? Estariam também no primeiro romance, já que são três os livros de Almino considerados marcos da ficção em Brasília? Há, por exemplo, uma cena do carnaval, com um assassinato imaginário ou real do homem amado desaparecido, que está nos dois livros.
Ana/Diana salva-se de duas maneiras bem distintas, uma tradicional e uma pela via criativa. Ana queima seus papéis e o passado – que de todo modo se extinguem num incêndio -, mas volta no final do livro à tarefa de um relato biográfico, investigando o significado da travessia pelos anos. Sem se pronunciar escritora, está, pelo mergulho honesto na intimidade e na força das palavras, justificando-se por existir, estabelecendo no vácuo laços luminosos com o resto da humanidade. E assim como grande parte das mulheres em toda a história, deixa de se sentir deslocada e marginal ao encontrar um companheiro para um amor equilibrado, casando-se com o vizinho viúvo.
Um romance bem escrito, com começo, meio, enredo, e fim não infeliz, esperançoso, embora conformado aos arquétipos sagrados, procurando deixar para trás toda a angústia da existência feminina.
Betty Mindlin é doutora em Antropologia pela PUC-SP e autora, dentre outros livros de mitos indígenas, de 0 Primeiro Homem (Cosac & Naify, 2001)
JORNAL DA PUC, 13/09/01
Betty Mindlin
Que visão de si mesma tem uma madura mulher de 55 anos, separada, sem filhos, aposentada de um cargo de professora universitária numa profissão indefinida, talvez letras ou história? E ainda mais sendo ela solitária,educando dois sobrinhos adolescentes com quem mora, cercada apenas por poucos amigos da juventude – antigos militantes contra a ditadura militar -, apoiada nas tarefas diárias por uma empregada dedicada, dando muito afeto a dois gatos e um cachorro velho?
A narradora do novo romance de João Almino, As Cinco Estações do Amor, falando na primeira pessoa, no tom de prosa confessional, vê-se cindida entre as personagens correspondentes aos seus dois nomes: Diana, ousada, sensual, determinada, voltada para o prazer, aberta para a rosa de aniversário do vizinho admirador, e Ana, que é como todos a chamam, recolhida, tímida, espectadora, hesitante, presa nos limites da rotina, boiando ao sabor do destino.
O cenário e os temas são atuais: Brasília em expansão, para onde Ana veio
de Minas, antes de casar, e onde conheceu o seu grupo coeso de amigos migrantes; a violência, as drogas, a criminalidade, a ameaça de assaltos; a passagem do milênio e as esperanças despertadas; a depressão rondando, Prozac, assassinato, tiros, suicídio, as aventuras sexuais sem conseqüências emocionais para o parceiro e atingindo a fundo a parceira, o amor, o adultério, a ruptura.
A figura de Ana, delineada por ela própria, é feita de muitos detalhes concretos, com dados sobre o quotidiano, os sentimentos, o passado, a vida sexual e amorosa, os fatos, a cidade e as ruas, os jantares e o teor das conversas. O que fica, porém, é um clima nebuloso de vazio, como se nada se soubesse sobre ela, ressaltado apenas seu profundo sentimento de ser sozinha. Que mais é ela, a não ser a falta de um amor? O que a faz vibrar no mundo, qual a sua ação, o que faz, que rios a arrastam, qual o seu repertório cultural?
Como se não estivesse no centro da modernidade urbana, começando o terceiro milênio carregado de dramas raciais, econômicos, com conflitos de raízes e sentidos, com políticas sociais e desregramentos, com liberdade amorosa e desvios, com inusitados caminhos da fantasia e descoberta, ela poderia ser uma puritana heroína da era vitoriana, seguindo comportada, perplexa, uma trilha esperada, dada pela moral convencional ou pelas circunstâncias possíveis.
Nesse sentido, Ana lembra alguma personagem de Natalia Ginzburg, como a sem nome de È stato cosí, que não tem outra razão de existir a não ser seguir o marido; ou a personagem de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Há na história da protagonista de As Cinco Estações do Amor uma economia de vitalidade, restringindo a expansão e a soltura, um prenúncio de grandes crises de melancolia, a escuridão latente.
Para se compreender Ana não se pode ignorar que ela é mineira da cidadezinha de Taimbé – onde moram sua mãe e irmã, e para onde pretende voltar – e carrega uma tradicional imagem de mulher abafada, que se aproxima de domésticas heroínas sem perfil próprio. Nem tampouco esquecer que o grupo de amigos com quem ela se relaciona se autodenominava, quando chegara em Brasília, de “inúteis”. Talvez aqui também um traço que explique porque tanta falta fazem a Ana: eram os artistas improdutivos, utópicos, brincalhões, trazendo ânimo e festa sem os rígidos objetivos do trabalho e da carreira.
TRANSEXUALIDADE – Um dos aspectos mais interessantes e inovadores do livro é o espaço para a transexualidade, e para as relações homossexuais, aceitas e acolhidas, e que transformam o que é considerado feminino. Grandes amigos de Ana são um casal de homens com um filho adotivo, que lhe fazem a festa de aniversário.
A crise de Ana/Diana e a sua comoção interior, desencadeando mudanças, estala com a chegada do travesti Berta, reaparecendo loira e metamorfoseada depois de anos, seu amigo e amor antigo, Norberto, um dos “inúteis”, que fez uma operação para se tornar mulher. Ana a convida para viver em sua casa, e é a alegria entrando, a comunicação, a risada, a vida plena, sem razão. São poucos dias para que se acostume a ver a amiga no amigo anterior, para se deixar levar. Mas as convenções e o olhar alheio cobram seu preço… e há muitas formas de trair.
Os personagens, ou pelo menos muitos nomes de As Cinco Estações do Amor, já surgiam no romance anterior de João Almino, Samba-enredo (Marco Zero, 1994). A partir de que magma original biográfico ou inventado são extraídos? Estariam também no primeiro romance, já que são três os livros de Almino considerados marcos da ficção em Brasília? Há, por exemplo, uma cena do carnaval, com um assassinato imaginário ou real do homem amado desaparecido, que está nos dois livros.
Ana/Diana salva-se de duas maneiras bem distintas, uma tradicional e uma pela via criativa. Ana queima seus papéis e o passado – que de todo modo se extinguem num incêndio -, mas volta no final do livro à tarefa de um relato biográfico, investigando o significado da travessia pelos anos. Sem se pronunciar escritora, está, pelo mergulho honesto na intimidade e na força das palavras, justificando-se por existir, estabelecendo no vácuo laços luminosos com o resto da humanidade. E assim como grande parte das mulheres em toda a história, deixa de se sentir deslocada e marginal ao encontrar um companheiro para um amor equilibrado, casando-se com o vizinho viúvo.
Um romance bem escrito, com começo, meio, enredo, e fim não infeliz, esperançoso, embora conformado aos arquétipos sagrados, procurando deixar para trás toda a angústia da existência feminina.
Betty Mindlin é doutora em Antropologia pela PUC-SP e autora, dentre outros livros de mitos indígenas, de 0 Primeiro Homem (Cosac & Naify, 2001)
JORNAL DA PUC, 13/09/01
Betty Mindlin
Que visão de si mesma tem uma madura mulher de 55 anos, separada, sem filhos, aposentada de um cargo de professora universitária numa profissão indefinida, talvez letras ou história? E ainda mais sendo ela solitária,educando dois sobrinhos adolescentes com quem mora, cercada apenas por poucos amigos da juventude – antigos militantes contra a ditadura militar -, apoiada nas tarefas diárias por uma empregada dedicada, dando muito afeto a dois gatos e um cachorro velho?
A narradora do novo romance de João Almino, As Cinco Estações do Amor, falando na primeira pessoa, no tom de prosa confessional, vê-se cindida entre as personagens correspondentes aos seus dois nomes: Diana, ousada, sensual, determinada, voltada para o prazer, aberta para a rosa de aniversário do vizinho admirador, e Ana, que é como todos a chamam, recolhida, tímida, espectadora, hesitante, presa nos limites da rotina, boiando ao sabor do destino.
O cenário e os temas são atuais: Brasília em expansão, para onde Ana veio
de Minas, antes de casar, e onde conheceu o seu grupo coeso de amigos migrantes; a violência, as drogas, a criminalidade, a ameaça de assaltos; a passagem do milênio e as esperanças despertadas; a depressão rondando, Prozac, assassinato, tiros, suicídio, as aventuras sexuais sem conseqüências emocionais para o parceiro e atingindo a fundo a parceira, o amor, o adultério, a ruptura.
A figura de Ana, delineada por ela própria, é feita de muitos detalhes concretos, com dados sobre o quotidiano, os sentimentos, o passado, a vida sexual e amorosa, os fatos, a cidade e as ruas, os jantares e o teor das conversas. O que fica, porém, é um clima nebuloso de vazio, como se nada se soubesse sobre ela, ressaltado apenas seu profundo sentimento de ser sozinha. Que mais é ela, a não ser a falta de um amor? O que a faz vibrar no mundo, qual a sua ação, o que faz, que rios a arrastam, qual o seu repertório cultural?
Como se não estivesse no centro da modernidade urbana, começando o terceiro milênio carregado de dramas raciais, econômicos, com conflitos de raízes e sentidos, com políticas sociais e desregramentos, com liberdade amorosa e desvios, com inusitados caminhos da fantasia e descoberta, ela poderia ser uma puritana heroína da era vitoriana, seguindo comportada, perplexa, uma trilha esperada, dada pela moral convencional ou pelas circunstâncias possíveis.
Nesse sentido, Ana lembra alguma personagem de Natalia Ginzburg, como a sem nome de È stato cosí, que não tem outra razão de existir a não ser seguir o marido; ou a personagem de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Há na história da protagonista de As Cinco Estações do Amor uma economia de vitalidade, restringindo a expansão e a soltura, um prenúncio de grandes crises de melancolia, a escuridão latente.
Para se compreender Ana não se pode ignorar que ela é mineira da cidadezinha de Taimbé – onde moram sua mãe e irmã, e para onde pretende voltar – e carrega uma tradicional imagem de mulher abafada, que se aproxima de domésticas heroínas sem perfil próprio. Nem tampouco esquecer que o grupo de amigos com quem ela se relaciona se autodenominava, quando chegara em Brasília, de “inúteis”. Talvez aqui também um traço que explique porque tanta falta fazem a Ana: eram os artistas improdutivos, utópicos, brincalhões, trazendo ânimo e festa sem os rígidos objetivos do trabalho e da carreira.
TRANSEXUALIDADE – Um dos aspectos mais interessantes e inovadores do livro é o espaço para a transexualidade, e para as relações homossexuais, aceitas e acolhidas, e que transformam o que é considerado feminino. Grandes amigos de Ana são um casal de homens com um filho adotivo, que lhe fazem a festa de aniversário.
A crise de Ana/Diana e a sua comoção interior, desencadeando mudanças, estala com a chegada do travesti Berta, reaparecendo loira e metamorfoseada depois de anos, seu amigo e amor antigo, Norberto, um dos “inúteis”, que fez uma operação para se tornar mulher. Ana a convida para viver em sua casa, e é a alegria entrando, a comunicação, a risada, a vida plena, sem razão. São poucos dias para que se acostume a ver a amiga no amigo anterior, para se deixar levar. Mas as convenções e o olhar alheio cobram seu preço… e há muitas formas de trair.
Os personagens, ou pelo menos muitos nomes de As Cinco Estações do Amor, já surgiam no romance anterior de João Almino, Samba-enredo (Marco Zero, 1994). A partir de que magma original biográfico ou inventado são extraídos? Estariam também no primeiro romance, já que são três os livros de Almino considerados marcos da ficção em Brasília? Há, por exemplo, uma cena do carnaval, com um assassinato imaginário ou real do homem amado desaparecido, que está nos dois livros.
Ana/Diana salva-se de duas maneiras bem distintas, uma tradicional e uma pela via criativa. Ana queima seus papéis e o passado – que de todo modo se extinguem num incêndio -, mas volta no final do livro à tarefa de um relato biográfico, investigando o significado da travessia pelos anos. Sem se pronunciar escritora, está, pelo mergulho honesto na intimidade e na força das palavras, justificando-se por existir, estabelecendo no vácuo laços luminosos com o resto da humanidade. E assim como grande parte das mulheres em toda a história, deixa de se sentir deslocada e marginal ao encontrar um companheiro para um amor equilibrado, casando-se com o vizinho viúvo.
Um romance bem escrito, com começo, meio, enredo, e fim não infeliz, esperançoso, embora conformado aos arquétipos sagrados, procurando deixar para trás toda a angústia da existência feminina.
Betty Mindlin é doutora em Antropologia pela PUC-SP e autora, dentre outros livros de mitos indígenas, de 0 Primeiro Homem (Cosac & Naify, 2001)