Almino se liberta da tradição. Jornal Estado de Minas sobre Entre facas, algodão

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Jornal Estado de Minas, 02 de novembro de 2017

Almino se liberta da tradição

No romance Entre facas, algodão, o escritor João Almino abandona a paisagem de Brasília, cidade onde vive, e cria trama em que o personagem viaja ao Nordeste de suas origens.

Nahima Maciel

João Almino deu um adeus a Brasília, um simpático aceno de mão após escrever seis romances nos quais a capital figurava entre os protagonistas. No sétimo livro, o escritor nascido em Mossoró (RN) e radicado na capital, transporta a história para Várzea Pacífica, cidadezinha imaginária no interior do Ceará. Nesse cenário, o protagonista, um homem de 70 anos que acaba de se separar, sai em busca da própria identidade ao revisitar a memória (ou o que resta dela) e os lugares onde cresceu.

É, no entanto, de Brasília que o personagem parte. Quando tem início a narrativa de Entre facas, algodão, ele já tem atrás de si um passado construído na cidade. Mas, desta vez, o foco de Almino era o Nordeste. Eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em março último, o diplomata e escritor trouxe para esse sétimo romance uma vontade antiga: a de escrever a partir da perspectiva de um personagem nordestino. Não que personagens do Nordeste nunca tivessem constado na literatura de Almino: eles estão lá, em praticamente todos os livros. Porém, nunca estiveram à frente de uma narrativa em primeira pessoa, como em Entre facas, algodão.

O romance é quase uma permissão dada a si mesmo pelo próprio autor depois de garantir um lugar na cena literária nacional. Vale lembrar que Almino já ganhou prêmios como o Casa de las Americas e Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, além de ter sido finalista de Jabutis e Portugal Telecom. Atualmente, ele está na lista dos finalistas do Oceanos com o romance Enigmas da primavera.

“A coisa principal desse livro (Entre facas, algodão) é estar centrando a história no Nordeste e nesse personagem. Isso tem a ver com meu esforço em escrever, desde o começo. Quando comecei, uma das minhas preocupações foi não centrar as histórias no Nordeste porque eu tinha uma visão, que pode ter sido preconceituosa, de que, se fizesse isso primeiro, faria uma coisa menor e menos importante diante do que já tinha sido feito”, explica o admirador de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto.

Quando começou a escrever, Almino achou que trazer Brasília para os romances ajudaria a criar laços com o leitor, a colocá-lo mais perto dos personagens e dos cenários, a provocar momentos de identificação. “Então situei em Brasília e coloquei personagens nordestinos, mas a cidade de Brasília me deu o cenário. E passou a aparecer como uma espécie de personagem dessas primeiras histórias. Depois de seis romances, relaxei. Achei que não precisava mais ter esse tipo de preocupação. E o que estava lá atrás, voltou. Pensei que esse era o momento de fazer algo que queria lá no começo”, conta. “Agora não tenho mais essas preocupações de como vão ler e qual a tradição na qual me insiro.”

Narrado em primeira pessoa e em forma de diário, Entre facas, algodão conta o retorno do personagem à pequena cidade onde cresceu, a uma fazenda na qual era o filho de uma empregada criado junto com os filhos do patrão da casa grande. Um amor de adolescência pela filha do fazendeiro leva o agora advogado aposentado de volta às origens, mas a vida não para na estação e, no caso desse senhor, está pronta para atropelar seus protagonistas.

A memória, João Almino ensina, não é uma só, fechada e acabada. É um processo em construção, com finais abertos, mesmo quando enfrenta a tentativa de ser apagada. O escritor tratou disso em livros como Cidade livre e As cinco estações do amor. E volta ao tema neste novo romance, que tem lançamento marcado para hoje (30/10, segunda), às 19h, no Carpe Diem. “Tentei fugir ao estereótipo de uma viagem de regresso na memória, minha ideia não foi de que houvesse um regresso ao passado, porque acho que a viagem é apenas de ida, ela vai apresentando novas surpresas ao personagem e não existe o regresso ao passado”, explica.

“Nesse caso, o trabalho da memória é um trabalho falho. O personagem se lembra de umas coisas e não se lembra de outras, esquece. E vai tentando reconstruir alguma coisa do passado descobrindo os contrastes entre o novo e o velho e construindo algo novo.”

Entre facas, algodão
De João Almino. Record, 192 páginas. R$ 39,90.