As Cinco Estações de um Autor: o work in progress de João Almino, por João Cezar de Castro Rocha

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Revista “Imaginário”, ano XIII, n.o 14, 1.o semestre de 2007, p. 15-27.

João Cezar de Castro Rocha

As cinco estações do amor é o terceiro romance de João Almino, publicado em 2001. Ensaísta reconhecido, com uma importante obra de reflexão política e ética, desde 1988, com a publicação de Idéias para onde passar o fim do mundo, Almino vem construindo uma sólida e coerente obra ficcional, à qual se acrescenta Samba-enredo, romance lançado em 1994.

É possível encontrar temas comuns nos três romances de Almino? Uma pergunta ainda mais ambiciosa: é possível vislumbrar pontos de contato entre a imaginação teórica do ensaísta e a reflexão ficcional do romancista? A pergunta, espero, não será ociosa. Afinal, muitos dos mais importantes escritores contemporâneos exploram a contaminação recíproca da arte do romance e da crítica literária.

Em primeiro lugar, observemos que nos romances de João Almino destacam-se temas recorrentes, sugerindo o vigor de uma investigação em andamento, de um work in progress, para recordar a célebre expressão.

Por exemplo, a ação dos três romances ocorre na mesma cidade. Por isso, Silviano Santiago nomeou a série “a trilogia de Brasília”, cidade perfeitamente definida pela narradora de As cinco estações do amor: “O plano piloto não era bem uma cidade. Era uma idéia – idéia de modernidade, de futuro, minha idéia de Brasil” (ALMINO, 2001, 17). E, se a utopia decidiu contradizer a etimologia, localizando-se no Planalto Central, então, como uma gigantesca máquina de viver,[2] a utopia urbanística desejava criar o que a mesma narradora define com uma frase cujo conteúdo é a forma do projeto utópico:

Na paisagem eu adivinhava todo um estilo de vida, um jeito do Planalto. Arrojado e elegante. Simples e direto. Tosco e moderno. Como se o candango confiante brotasse da dureza de vida dos nordestinos. Havia um estilo do homem e da mulher de Brasília, mesmo que ninguém viesse dali. Talvez fosse aquele estrangeirismo, aquele não pertencer pertencendo (Almino, 2001, 17-8).

Assim resiste a utopia, com o objetivo de manter a fidelidade possível à palavra. Por isso, embora resida numa geografia particular, continua desalojando seus habitantes em um tempo excêntrico – o tempo que constitui o núcleo da experiência de Ana, a narradora palindrômica de As cinco estações do amor. Daí a referência a personagens que podem estar presentes em mais de um romance – por exemplo, Cadu, presença em Idéias para onde passar o fim do mundo e As cinco estações do amor. O mesmo acontece com a mística Íris; aliás, nos três romances. Sua onipresença ameaça contaminar o projeto modernista da cidade planejada com a dimensão impalpável das crenças religiosas e da fé mística.[3] Seria possível escrever uma biografia não autorizada de Brasília, iluminando o irônico processo de isolamento da racionalidade modernista, tanto nos bairros pobres em torno do plano piloto, quanto nas inúmeras seitas que proliferam na região.

Por isso, ao falar-se em Brasília como utopia geograficamente delimitada, não se pode esquecer o paradoxo: o Planalto Central se converteu no espaço do poder político e econômico. E não apenas: muitos afirmam que, nessa região árida, se encontra o maior centro mediúnico e espiritual do universo. Pelo menos, é o que afirmam os adeptos de variados grupos religiosos que elegeram o Planalto como um centro cósmico de energia incomparável. Da utopia do progresso ao misticismo atávico: a própria imagem do poder nos países latino-americanos. Nos três romances de João Almino, o leitor extrai reveladoras reflexões sobre esses dois aspectos, somente em aparência contraditórios. Em rigor, não são apenas semelhantes, mas indissociáveis. Sabemos que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. A trilogia de Brasília esclarece que o poder mitificado corrompe absolutamente as relações entre os homens e sua compreensão desse objeto de difícil discernimento que chamamos “realidade”, talvez com uma confiança excessiva.

“Realidade” – entre aspas, por certo. De fato, nessa suspensão da crença em um possível núcleo duro da realidade reside outro tema que atravessa a ficção de Almino. Sua ficção não abandona a tarefa de narrar uma história que prenda o interesse do leitor em seguir o fio do relato. Ao mesmo tempo, porém, sua ficção afirma que o “mundo é mesmo um sonho”; sonho do qual nem sempre se deseja despertar. A discussão sobre a ficcionalidade é matéria narrativa para Almino e não apenas pretexto para exercícios metalingüísticos.

Afinal, não é verdade que as contribuições fundamentais dos experimentos artísticos das vanguardas do século passado já foram plenamente assimiladas? Do século passado: a precisão histórica talvez expresse mais que um escrúpulo cronológico. Ou seja, hoje em dia, empregar artifícios experimentais não mais assegura uma diferença automática – inclusive programas de televisão e sobretudo técnicas de propaganda empregam os mais variados exercícios metalingüísticos. Certa crítica literária, porém, parece não ter ainda extraído as conseqüências dessa mudança fundamental. Por isso, insiste em continuar avaliando obras como se a prática metalingüística ainda representasse a ruptura entre uma escrita envolvida com seu próprio material e um outro tipo de texto, cujo interesse determinante residiria no desenvolvimento narrativo da trama. Vale, então, repetir: na obra de Almino a reflexão sobre a ficcionalidade é matéria narrativa e não apenas pretexto para exercícios metalingüísticos. Eis um elo significativo entre a lição de Machado de Assis e a ficção de Almino, pois o pulo do gato do autor de Dom Casmurro foi criar uma literatura que, sem deixar de narrar histórias, incorporou na própria narrativa a reflexão sobre a escrita.

Salvo engano, por isso mesmo, Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensamento, um modo particular de propor perguntas que não supõem respostas, mas a geração de perguntas novas – se possível, inovadoras. Jean-François Lyotard (1991) considera “filosófica” a questão que não supõe uma resposta conclusiva, mas que produz novas questões. No entanto, tal possibilidade é o que constitui desde sempre a potência peculiar à ficção. O romance de Almino propõe assim a verdadeira força da experiência literária: literatura é pensamento em ação; literatura é filosofia que não pára de pensar. Uma vez perguntaram a Albert Camus se ele se julgava escritor ou filósofo. O pensador do absurdo foi claro e conciso: afirmou-se escritor, já que, como esclareceu, não pensava com idéias, mas com palavras. Pensar com palavras significa propor continuamente novas perguntas. Em seu primeiro romance, Almino já caminhava nessa direção. Recorde-se, por exemplo, uma passagem em que, na verdade, esboçou o programa estético de sua trilogia:

(…) escrever é descobrir-se, percorrer espaços desconhecidos, explorar, tocar os mistérios, aumentar o saber e aumentar infinitamente mais a ignorância… Se o saber é como uma esfera solta nos universos escuros do não saber, que quanto mais aumenta de volume mais amplia seu contato com o desconhecido… Se conhecer não é só afirmar nem negar: é encontrar esse desconhecido e fazer-lhe mais perguntas (Almino, 1987, 23).

E, claro, não deixar nunca de suscitar novas questões. Se todo sistema de pensamento pode rapidamente se converter em uma máquina que oferece soluções e reduz complexidades – e o mesmo aconteceu ironicamente com o conceito de “condição pós-moderna”, tal como proposto por Lyotard –, a potência da ficção foi esclarecida pela narradora de As cinco estações do amor: “Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida” (ALMINO, 2001, 54).

Eis a passagem-ponte entre o ensaísta e o inventor de ficções: em ambos preside o gosto de refletir sobre as estruturas de poder – seja o poder político, seja o micro-poder das relações pessoais. Essas duas esferas aprofundam a mesma investigação sobre o duvidoso estatuto da “realidade” – investigação de corte fenomenológico, ressalte-se. Nas duas formas de escrita, existe o compromisso com a circunstância contemporânea e a condição humana, tanto do homem de Brasília, quanto dos órfãos das utopias modernistas. Contudo, não se trata de afirmar que o ensaísta e o narrador simplesmente se confundem, motivados por preocupações semelhantes, pois, como no poema de João Cabral de Melo Neto, o romancista deve esquecer o que fez o ensaísta. Do contrário, as duas mãos acabariam paralisadas.[4]

No caso do escritor brasileiro, a distância entre as duas mãos se revela no trabalho com o narrador desenvolvido desde seu primeiro romance. De um ponto de vista estrutural, o exercício com a figura do narrador é o tema que atravessa a escrita de Almino.

Em Idéias para onde passar o fim do mundo, o narrador é um escritor, já morto, que volta à Terra para terminar um roteiro. Por sua vez, os personagens da trama são literalmente tirados de uma fotografia.

Em Samba-enredo, a tela de um computador assume o papel de narrador, sugerindo a virtualidade do real, assim como o caráter irreal da realidade política tupiniquim. Brasília se converte em uma espécie de gigantesco e carnavalizado videogame, no qual os cidadãos sempre perdem o jogo que nem sequer começaram a jogar – sem nenhuma surpresa, aliás.

Em As cinco estações do amor, a narradora é um palíndromo: “Ana”. Como o “non” do padre Antônio Vieira, o palíndromo é uma ameaça, já que de todos os lados e de todos os modos diz o mesmo ou não diz nada.

A ação do romance começa em 1999. Ana recebe uma carta de um amigo do passado, Norberto, membro do “grupo dos inúteis”, como os próprios se denominavam. A mensagem recorda um projeto comum, o pacto estabelecido em 1970 durante a viagem que fizeram para conhecer Íris, a onipresente mística do Planalto Central. Em meio às convulsões políticas do período mais feroz da ditadura militar, a viagem propiciou uma curiosa experiência religiosa para os membros do grupo dos inúteis – et pour cause… Combinaram então o seu encontro marcado para a celebração do novo milênio. O romance cobre o período de pouco mais de um ano, que gira em torno da reunião dos inúteis, mediante a ótica de Ana, professora universitária, precocemente aposentada, que atravessa uma crise existencial no meio de seus 50 anos.

Naturalmente, não pretendo explorar as inúmeras possibilidades que o romance oferece para retomar as obsessões recorrentes na obra de João Almino. Proponho apenas um estudo mais detido sobre a figura da narradora. Creio que tal análise ajudará a compreender um dado novo em sua ficção. Escutemos, nesse caso, sua autodefinição:

Ao contrário de Funes, o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar meu Rio Letes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo (Almino, 2001, 50).

Não é necessário mencionar que o projeto não se realiza, como a narradora reconheceu. No entanto, a referência a Borges é fundamental, pois o argentino consolidou a imagem do autor que em primeiro lugar é leitor. Nas palavras de Silviano Santiago, o escritor latino-americano lê muito e ocasionalmente escreve[5] – na verdade, todo escritor digno deste nome, em qualquer latitude. Mas há uma família seleta de autores que não escamoteiam suas leituras. Pelo contrário, julgam-se literariamente mais ricos quanto mais crescem suas “dívidas”. Afinal, um autor que deseja ser original é simplesmente um escritor ingênuo, cuja biblioteca, além de pobre, só contém livros pouco interessantes. Com a publicação de As cinco estações do amor, João Almino apresenta-se como um autor que transforma sua biblioteca em personagens e motivos de seus romances. Por acaso, não foi desse modo que começou a moderna arte do romance? Alonso Quijana somente se transforma em Dom Quixote ao converter-se em personagem de sua própria biblioteca, lançando-se ao mundo para converter o outro em pretexto de suas leituras – literalmente pré-texto, bem entendido. Não foi também mediante o desenvolvimento de autênticas bibliotecas virtuais na superfície de sua escrita que se confirmou a originalidade do mais importante escritor brasileiro? Penso na referência fundamental para a obra de João Almino: Machado de Assis. Nesse contexto, vale recordar a nota crítica de Carlos Fuentes, em seu sugestivo ensaio Machado de la Mancha: o escritor brasileiro foi um dos mais agudos leitores e, por isso, reescritores da obra cervantina. Por sua vez, Almino é dos mais atentos leitores dos narradores machadianos, como veremos.

Ana, a narradora palindrômica do romance de Almino, é um mosaico de textos e de modos de ver. Ela é o Nietzsche das “considerações intempestivas da história”, o Nietzsche do vitalismo fortemente filosófico, ainda que visceralmente antiintelectual. O palíndromo Ana é Walter Benjamin em sua instantaneidade, tradução benjaminiana de Nietzsche, ou seja, uma forma do jetzheit benjaminiano proposto nas “Teses sobre a filosofia da história”. Jetzheit: “agoridade”.[6] No vocabulário de Ana, no encerramento do romance, reverberando sua epígrafe, extraída de poema de João Cabral:

Ao descobrir que o instante não é uma medida uniforme de tempo, decido me transpor para aquele instante crucial, montar-me nele, livremente me deixar levar por ele e descrevê-lo num presente contínuo, como uma câmara alerta que não se desprendesse de mim (Almino, 2001, 204).

As mesmas “Teses sobre a filosofia da história”, textualmente citadas, ainda que naturalmente modificadas segundo o interesse da narradora, no momento em que Ana decide reduplicar o gesto último de Emma Bovary: “(…) a imagem do passado em movimento e o olhar aterrorizado do anjo olhando para trás os escombros” (ALMINO, 2001, 171). Escombros, ruínas: imagens de um passado que não se pode recuperar, tampouco recordar integralmente. O passado é justamente isso: passado; o Rio Letes foi devidamente cruzado. Em As cinco estações do amor, o ato de leitura torna-se personagem implícito, sutil, que não se deve converter em referência erudita, mas deve integrar-se na estrutura da composição.

Mas, se a leitura torna-se personagem implícito, então a reescritura simultânea de obras literárias diversas no mesmo hipertexto se converte em um novo tipo de escrita. Escrita composta por textos combinados em quebra-cabeças surpreendentes, em uma renovação do “anacronismo deliberado” de Pierre Menard, com suas metódicas atribuições errôneas.[7] Essa é a escrita que João Almino alcança com As cinco estações do amor: sua preocupação com a virtualidade, com o caráter duvidoso da realidade, teria estimulado o desenvolvimento de um híbrido: o texto literário como a promessa do hipertexto, que deve se materializar na reconstrução dos leitores. Em outras palavras, a noção de “intertextualidade”, segundo a definição de Julia Kristeva (1969), não se refere apenas à escrita de textos, mas, sobretudo, à leitura dos mesmos. Uma tarefa crítica inspirada em seu trabalho seria o desenvolvimento do conceito de “interlegibilidade”. Trata-se de estabelecer as conseqüências críticas da seguinte hipótese: a leitura de um texto sempre se processa por meio da memória afetiva e intelectual de bibliotecas pessoais, de museus mentais. Proponho, nesse caso, uma reconstrução do romance de Almino: As cinco estações do amor é uma notável reescrita de aspectos da trama de Madame Bovary, através da mediação do olhar do narrador de Dom Casmurro. Escutemos, outra vez, a definição que a narradora oferece de seu projeto:

Aí tenho um estalo, uma visão: meu relato deve ser uma atividade inocente e essencial, como se eu estivesse construindo, com tijolos velhos, uma casa espiritual nova, uma só, que abrigasse todo o meu passado. Não será um diário, mas um livro do meu presente em movimento, em que as fronteiras entre passado e futuro estão apagadas (Almino, 2001, 50).

Não será um diário, mas uma confissão, semelhante a do personagem de Machado de Assis, Bento Santiago, que buscou reconstruir a juventude na maturidade, construindo uma casa idêntica àquela em que viveu na infância. A casa de Ana é feita de palavras, como todo palácio da memória – como, afinal, também foi a casa quimérica de Dom Casmurro.

De fato, na ficção de João Almino, Machado de Assis é presença vertebral na construção do narrador. O narrador, já morto, de seu primeiro romance, Idéias para onde passar o fim do mundo, é uma clara homenagem ao narrador das Memórias póstumas de Brás Cubas, o célebre “defunto autor”, como apontou Walnice Galvão.[8]

Provavelmente, nessa altura, o leitor perguntará: é possível associar os romances de Flaubert e Machado de Assis com a atividade da narradora do relato de Almino? Ora, Emma Bovary jamais tem voz própria, só a conhecemos por meio da voz impessoal do narrador flaubertiano, com seu elaborado discurso indireto livre. Do mesmo modo, Capitu nada pode revelar sobre os ciúmes impertinentes de seu marido, já que o mesmo é o dono do relato.[9] Proponho ao leitor, como alternativa, um exercício de imaginação: uma Emma Bovary que não apenas lesse, mas sobretudo escrevesse – perfeito antídoto quixotesco contra o vazio de uma vida estável, demasiadamente estável. Vazio que afeta a Ana e a leva a um gesto igualmente desesperado: “Esta é minha rebeldia, minha revolução. Chega de sobrevida medíocre e acomodada. Tivesse uma bomba aqui, explodia a casa, Brasília, o mundo, esta obra de um Deus mal-humorado” (ALMINO, 2001, 170). Talvez na pacata Yonville não fosse possível conceber uma solução tão radical, ainda que a autêntica radicalidade do gesto de Ana seja traduzir o ato de leitura em uma forma inesperada de seu próprio nome. Ler e escrever são atividades gêmeas, palindrômicas, quando uma começa, a outra se anuncia – de qualquer ponto de vista, as duas atividades se intercalam. Vejamos como isso acontece na tarefa da tradutora Ana.

No final de Madame Bovary, Charles, o médico medíocre, e marido ainda menos criativo, encontra alguns papéis de Emma, inclusive uma carta de seu amante, Rodolphe; mas continua sem compreender nada – ou prefere deixar de entender. O nada: o ideal da escrita de Flaubert; puro estilo; escrita sobre (e sob) a escrita. No entanto, Ana não pode ser apenas leitora de fantasias alheias. Palindrômica, necessita converter-se na autora de suas próprias memórias e ilusões. Sobretudo, deve converter-se na autora de seus esquecimentos. Portanto, pouco importa que não chegue a concluir seu texto: o gesto mesmo de escrevê-lo impõe uma diferença fundamental. O “bovarismo”, segundo a definição nova que Almino propõe, não é o afastar-se de si mediante o desejo de converter-se em outro; desejo mediado e inclusive criado por um intenso (ainda que limitado) ato de leitura. O particular “bovarismo” de Ana, a narradora palindrômica, supõe uma leitura que só pode desenvolver-se plenamente na escrita de si mesma. Talvez por isso, contrariamente à situação final de Madame Bovary, durante todo o romance, Ana é a própria investigadora de seus papéis e encontra, num outro Carlos, a “última estação do amor” – o amor-amizade da maturidade.

Maturidade que, se não me equivoco, também atende pelo título: As cinco estações do amor.

Referências Bibliográficas

ALMINO, João. As cinco estações do amor. Rio de Janeiro: Record, 2001.——. Idéias para onde pássaro fim do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor del Quijote” In. Ficciones. Obras Completas. Barcelona: Emecé Editores, s.d.

GALVÃO, Walnice Nogueira. “Prefácio”. In. Idéias para onde passar o fim do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

KRISTEVA, Julia. Sémeiotikè. Recherches pour une sémanalyse. Paris: Seuil, 1969.

MELO NETO. João Cabral de. “A Brasília de Oscar Niemeyer”. In. Museu de Tudo. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

——. “Joan Miró”. In. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

——. “O sim contra o sim”. In. Serial. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

LYOTARD, Jean-François. “Can Thought go on Without a Body?” In. The Inhuman – Reflections on Time. Stanford, Stanford University Press, 1991.

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu (Memórias póstumas). Rio de Janeiro: Record, 2005.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.

[1] Este texto é resultado de uma comunicação apresentada no Festival de la Palabra, 2004. Agradeço à María Luisa Armendáriz a gentileza do convite. Agradeço também a Gustavo da Veiga-Guimarães e à Embaixada Brasileira no México que tornaram possível a participação no Festival de la Palabra. Agradeço ao professor Pablo Rocca, da Universidad de la República (Montevidéu), pelas importantes sugestões e correções em uma primeira versão deste texto. O texto foi originalmente escrito em espanhol e traduzido para o português por Leonardo Vieira de Almeida.

[2] Utopia que inspirou os seguintes versos de João Cabral de Melo Neto, nos quais descreve as casas edificadas em Brasília: “(…) ou ginástica, para ensinar / quem for viver naquelas salas / um deixar-se, um deixar viver / de alma arejada, não fanática”. (MELO NETO, 1994, 399).

[3] Em seu primeiro romance, Almino apresentou a “arqueologia” da mística: “Aqui estão algumas das antigas anotações: ‘Música: samba-canção, bolero. Lugares: Catedral, Pirâmide, Vale da Salvação. Ísis/Osíris = Íris’ (…). Era na época em que Íris deixava a crença em tudo pela crença em nada. A crença em tudo tinha começado depois que chegou a Brasília e passou a visitar a Cidade Eclética, o Vale do Amanhecer, o Grupo de Investigação dos Extraterrenos, em Abadiânia” (ALMINO, 1987, 127).

[4] Penso nos versos: “Miró sentia a mão direita / demasiado sábia / e que de saber tanto / já não podia inventar nada. // Quis então que desaprendesse / o muito que aprendera, / a fim de reencontrar / a linha ainda fresca da esquerda (…)” (MELO NETO, 1994, 298). O poeta dedicou ao pintor seu ensaio crítico mais importante (MELO NETO, 1994, 689-720). Vale recordar que versos do poeta constituem a epígrafe de As cinco estações do amor

[5] “O escritor latino-americano é o devorador de livros de que os contos de Borges nos falam com insistência. Lê o tempo todo e publica de vez em quando” (SANTIAGO, 1978, 27).

[6] Tradução proposta por Haroldo de Campos.

[7] Penso, claro, na célebre citação: “Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido mediante una técnica nueva el arte detenido y rudimentario de la lectura: la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones erróneas. (…) Esa técnica puebla de aventura los libros más calmosos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline o a James Joyce la Imitación de Cristo, ¿no es una suficiente renovación de esos tenues avisos espirituales?” (BORGES, s.d., 450).

[8] “Estamos às voltas com um defunto-autor, em alusão explicitada a Machado de Assis” (GALVÃO, 1987, 7).

[9] Nesse contexto, vale recordar que, em Capitu (Memórias póstumas), Domício Proença Filho transformou Capitu na narradora de sua própria história: “Só agora, decorrido tanto tempo humano, posso, finalmente, contestar as acusações contra mim feitas pelo meu ex-marido, o Dr. Bento Santiago” (PROENÇA FILHO, 2005, 11).

Revista “Imaginário”, ano XIII, n.o 14, 1.o semestre de 2007, p. 15-27.

João Cezar de Castro Rocha

As cinco estações do amor é o terceiro romance de João Almino, publicado em 2001. Ensaísta reconhecido, com uma importante obra de reflexão política e ética, desde 1988, com a publicação de Idéias para onde passar o fim do mundo, Almino vem construindo uma sólida e coerente obra ficcional, à qual se acrescenta Samba-enredo, romance lançado em 1994.

É possível encontrar temas comuns nos três romances de Almino? Uma pergunta ainda mais ambiciosa: é possível vislumbrar pontos de contato entre a imaginação teórica do ensaísta e a reflexão ficcional do romancista? A pergunta, espero, não será ociosa. Afinal, muitos dos mais importantes escritores contemporâneos exploram a contaminação recíproca da arte do romance e da crítica literária.

Em primeiro lugar, observemos que nos romances de João Almino destacam-se temas recorrentes, sugerindo o vigor de uma investigação em andamento, de um work in progress, para recordar a célebre expressão.

Por exemplo, a ação dos três romances ocorre na mesma cidade. Por isso, Silviano Santiago nomeou a série “a trilogia de Brasília”, cidade perfeitamente definida pela narradora de As cinco estações do amor: “O plano piloto não era bem uma cidade. Era uma idéia – idéia de modernidade, de futuro, minha idéia de Brasil” (ALMINO, 2001, 17). E, se a utopia decidiu contradizer a etimologia, localizando-se no Planalto Central, então, como uma gigantesca máquina de viver,[2] a utopia urbanística desejava criar o que a mesma narradora define com uma frase cujo conteúdo é a forma do projeto utópico:

Na paisagem eu adivinhava todo um estilo de vida, um jeito do Planalto. Arrojado e elegante. Simples e direto. Tosco e moderno. Como se o candango confiante brotasse da dureza de vida dos nordestinos. Havia um estilo do homem e da mulher de Brasília, mesmo que ninguém viesse dali. Talvez fosse aquele estrangeirismo, aquele não pertencer pertencendo (Almino, 2001, 17-8).

Assim resiste a utopia, com o objetivo de manter a fidelidade possível à palavra. Por isso, embora resida numa geografia particular, continua desalojando seus habitantes em um tempo excêntrico – o tempo que constitui o núcleo da experiência de Ana, a narradora palindrômica de As cinco estações do amor. Daí a referência a personagens que podem estar presentes em mais de um romance – por exemplo, Cadu, presença em Idéias para onde passar o fim do mundo e As cinco estações do amor. O mesmo acontece com a mística Íris; aliás, nos três romances. Sua onipresença ameaça contaminar o projeto modernista da cidade planejada com a dimensão impalpável das crenças religiosas e da fé mística.[3] Seria possível escrever uma biografia não autorizada de Brasília, iluminando o irônico processo de isolamento da racionalidade modernista, tanto nos bairros pobres em torno do plano piloto, quanto nas inúmeras seitas que proliferam na região.

Por isso, ao falar-se em Brasília como utopia geograficamente delimitada, não se pode esquecer o paradoxo: o Planalto Central se converteu no espaço do poder político e econômico. E não apenas: muitos afirmam que, nessa região árida, se encontra o maior centro mediúnico e espiritual do universo. Pelo menos, é o que afirmam os adeptos de variados grupos religiosos que elegeram o Planalto como um centro cósmico de energia incomparável. Da utopia do progresso ao misticismo atávico: a própria imagem do poder nos países latino-americanos. Nos três romances de João Almino, o leitor extrai reveladoras reflexões sobre esses dois aspectos, somente em aparência contraditórios. Em rigor, não são apenas semelhantes, mas indissociáveis. Sabemos que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. A trilogia de Brasília esclarece que o poder mitificado corrompe absolutamente as relações entre os homens e sua compreensão desse objeto de difícil discernimento que chamamos “realidade”, talvez com uma confiança excessiva.

“Realidade” – entre aspas, por certo. De fato, nessa suspensão da crença em um possível núcleo duro da realidade reside outro tema que atravessa a ficção de Almino. Sua ficção não abandona a tarefa de narrar uma história que prenda o interesse do leitor em seguir o fio do relato. Ao mesmo tempo, porém, sua ficção afirma que o “mundo é mesmo um sonho”; sonho do qual nem sempre se deseja despertar. A discussão sobre a ficcionalidade é matéria narrativa para Almino e não apenas pretexto para exercícios metalingüísticos.

Afinal, não é verdade que as contribuições fundamentais dos experimentos artísticos das vanguardas do século passado já foram plenamente assimiladas? Do século passado: a precisão histórica talvez expresse mais que um escrúpulo cronológico. Ou seja, hoje em dia, empregar artifícios experimentais não mais assegura uma diferença automática – inclusive programas de televisão e sobretudo técnicas de propaganda empregam os mais variados exercícios metalingüísticos. Certa crítica literária, porém, parece não ter ainda extraído as conseqüências dessa mudança fundamental. Por isso, insiste em continuar avaliando obras como se a prática metalingüística ainda representasse a ruptura entre uma escrita envolvida com seu próprio material e um outro tipo de texto, cujo interesse determinante residiria no desenvolvimento narrativo da trama. Vale, então, repetir: na obra de Almino a reflexão sobre a ficcionalidade é matéria narrativa e não apenas pretexto para exercícios metalingüísticos. Eis um elo significativo entre a lição de Machado de Assis e a ficção de Almino, pois o pulo do gato do autor de Dom Casmurro foi criar uma literatura que, sem deixar de narrar histórias, incorporou na própria narrativa a reflexão sobre a escrita.

Salvo engano, por isso mesmo, Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensamento, um modo particular de propor perguntas que não supõem respostas, mas a geração de perguntas novas – se possível, inovadoras. Jean-François Lyotard (1991) considera “filosófica” a questão que não supõe uma resposta conclusiva, mas que produz novas questões. No entanto, tal possibilidade é o que constitui desde sempre a potência peculiar à ficção. O romance de Almino propõe assim a verdadeira força da experiência literária: literatura é pensamento em ação; literatura é filosofia que não pára de pensar. Uma vez perguntaram a Albert Camus se ele se julgava escritor ou filósofo. O pensador do absurdo foi claro e conciso: afirmou-se escritor, já que, como esclareceu, não pensava com idéias, mas com palavras. Pensar com palavras significa propor continuamente novas perguntas. Em seu primeiro romance, Almino já caminhava nessa direção. Recorde-se, por exemplo, uma passagem em que, na verdade, esboçou o programa estético de sua trilogia:

(…) escrever é descobrir-se, percorrer espaços desconhecidos, explorar, tocar os mistérios, aumentar o saber e aumentar infinitamente mais a ignorância… Se o saber é como uma esfera solta nos universos escuros do não saber, que quanto mais aumenta de volume mais amplia seu contato com o desconhecido… Se conhecer não é só afirmar nem negar: é encontrar esse desconhecido e fazer-lhe mais perguntas (Almino, 1987, 23).

E, claro, não deixar nunca de suscitar novas questões. Se todo sistema de pensamento pode rapidamente se converter em uma máquina que oferece soluções e reduz complexidades – e o mesmo aconteceu ironicamente com o conceito de “condição pós-moderna”, tal como proposto por Lyotard –, a potência da ficção foi esclarecida pela narradora de As cinco estações do amor: “Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida” (ALMINO, 2001, 54).

Eis a passagem-ponte entre o ensaísta e o inventor de ficções: em ambos preside o gosto de refletir sobre as estruturas de poder – seja o poder político, seja o micro-poder das relações pessoais. Essas duas esferas aprofundam a mesma investigação sobre o duvidoso estatuto da “realidade” – investigação de corte fenomenológico, ressalte-se. Nas duas formas de escrita, existe o compromisso com a circunstância contemporânea e a condição humana, tanto do homem de Brasília, quanto dos órfãos das utopias modernistas. Contudo, não se trata de afirmar que o ensaísta e o narrador simplesmente se confundem, motivados por preocupações semelhantes, pois, como no poema de João Cabral de Melo Neto, o romancista deve esquecer o que fez o ensaísta. Do contrário, as duas mãos acabariam paralisadas.[4]

No caso do escritor brasileiro, a distância entre as duas mãos se revela no trabalho com o narrador desenvolvido desde seu primeiro romance. De um ponto de vista estrutural, o exercício com a figura do narrador é o tema que atravessa a escrita de Almino.

Em Idéias para onde passar o fim do mundo, o narrador é um escritor, já morto, que volta à Terra para terminar um roteiro. Por sua vez, os personagens da trama são literalmente tirados de uma fotografia.

Em Samba-enredo, a tela de um computador assume o papel de narrador, sugerindo a virtualidade do real, assim como o caráter irreal da realidade política tupiniquim. Brasília se converte em uma espécie de gigantesco e carnavalizado videogame, no qual os cidadãos sempre perdem o jogo que nem sequer começaram a jogar – sem nenhuma surpresa, aliás.

Em As cinco estações do amor, a narradora é um palíndromo: “Ana”. Como o “non” do padre Antônio Vieira, o palíndromo é uma ameaça, já que de todos os lados e de todos os modos diz o mesmo ou não diz nada.

A ação do romance começa em 1999. Ana recebe uma carta de um amigo do passado, Norberto, membro do “grupo dos inúteis”, como os próprios se denominavam. A mensagem recorda um projeto comum, o pacto estabelecido em 1970 durante a viagem que fizeram para conhecer Íris, a onipresente mística do Planalto Central. Em meio às convulsões políticas do período mais feroz da ditadura militar, a viagem propiciou uma curiosa experiência religiosa para os membros do grupo dos inúteis – et pour cause… Combinaram então o seu encontro marcado para a celebração do novo milênio. O romance cobre o período de pouco mais de um ano, que gira em torno da reunião dos inúteis, mediante a ótica de Ana, professora universitária, precocemente aposentada, que atravessa uma crise existencial no meio de seus 50 anos.

Naturalmente, não pretendo explorar as inúmeras possibilidades que o romance oferece para retomar as obsessões recorrentes na obra de João Almino. Proponho apenas um estudo mais detido sobre a figura da narradora. Creio que tal análise ajudará a compreender um dado novo em sua ficção. Escutemos, nesse caso, sua autodefinição:

Ao contrário de Funes, o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar meu Rio Letes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo (Almino, 2001, 50).

Não é necessário mencionar que o projeto não se realiza, como a narradora reconheceu. No entanto, a referência a Borges é fundamental, pois o argentino consolidou a imagem do autor que em primeiro lugar é leitor. Nas palavras de Silviano Santiago, o escritor latino-americano lê muito e ocasionalmente escreve[5] – na verdade, todo escritor digno deste nome, em qualquer latitude. Mas há uma família seleta de autores que não escamoteiam suas leituras. Pelo contrário, julgam-se literariamente mais ricos quanto mais crescem suas “dívidas”. Afinal, um autor que deseja ser original é simplesmente um escritor ingênuo, cuja biblioteca, além de pobre, só contém livros pouco interessantes. Com a publicação de As cinco estações do amor, João Almino apresenta-se como um autor que transforma sua biblioteca em personagens e motivos de seus romances. Por acaso, não foi desse modo que começou a moderna arte do romance? Alonso Quijana somente se transforma em Dom Quixote ao converter-se em personagem de sua própria biblioteca, lançando-se ao mundo para converter o outro em pretexto de suas leituras – literalmente pré-texto, bem entendido. Não foi também mediante o desenvolvimento de autênticas bibliotecas virtuais na superfície de sua escrita que se confirmou a originalidade do mais importante escritor brasileiro? Penso na referência fundamental para a obra de João Almino: Machado de Assis. Nesse contexto, vale recordar a nota crítica de Carlos Fuentes, em seu sugestivo ensaio Machado de la Mancha: o escritor brasileiro foi um dos mais agudos leitores e, por isso, reescritores da obra cervantina. Por sua vez, Almino é dos mais atentos leitores dos narradores machadianos, como veremos.

Ana, a narradora palindrômica do romance de Almino, é um mosaico de textos e de modos de ver. Ela é o Nietzsche das “considerações intempestivas da história”, o Nietzsche do vitalismo fortemente filosófico, ainda que visceralmente antiintelectual. O palíndromo Ana é Walter Benjamin em sua instantaneidade, tradução benjaminiana de Nietzsche, ou seja, uma forma do jetzheit benjaminiano proposto nas “Teses sobre a filosofia da história”. Jetzheit: “agoridade”.[6] No vocabulário de Ana, no encerramento do romance, reverberando sua epígrafe, extraída de poema de João Cabral:

Ao descobrir que o instante não é uma medida uniforme de tempo, decido me transpor para aquele instante crucial, montar-me nele, livremente me deixar levar por ele e descrevê-lo num presente contínuo, como uma câmara alerta que não se desprendesse de mim (Almino, 2001, 204).

As mesmas “Teses sobre a filosofia da história”, textualmente citadas, ainda que naturalmente modificadas segundo o interesse da narradora, no momento em que Ana decide reduplicar o gesto último de Emma Bovary: “(…) a imagem do passado em movimento e o olhar aterrorizado do anjo olhando para trás os escombros” (ALMINO, 2001, 171). Escombros, ruínas: imagens de um passado que não se pode recuperar, tampouco recordar integralmente. O passado é justamente isso: passado; o Rio Letes foi devidamente cruzado. Em As cinco estações do amor, o ato de leitura torna-se personagem implícito, sutil, que não se deve converter em referência erudita, mas deve integrar-se na estrutura da composição.

Mas, se a leitura torna-se personagem implícito, então a reescritura simultânea de obras literárias diversas no mesmo hipertexto se converte em um novo tipo de escrita. Escrita composta por textos combinados em quebra-cabeças surpreendentes, em uma renovação do “anacronismo deliberado” de Pierre Menard, com suas metódicas atribuições errôneas.[7] Essa é a escrita que João Almino alcança com As cinco estações do amor: sua preocupação com a virtualidade, com o caráter duvidoso da realidade, teria estimulado o desenvolvimento de um híbrido: o texto literário como a promessa do hipertexto, que deve se materializar na reconstrução dos leitores. Em outras palavras, a noção de “intertextualidade”, segundo a definição de Julia Kristeva (1969), não se refere apenas à escrita de textos, mas, sobretudo, à leitura dos mesmos. Uma tarefa crítica inspirada em seu trabalho seria o desenvolvimento do conceito de “interlegibilidade”. Trata-se de estabelecer as conseqüências críticas da seguinte hipótese: a leitura de um texto sempre se processa por meio da memória afetiva e intelectual de bibliotecas pessoais, de museus mentais. Proponho, nesse caso, uma reconstrução do romance de Almino: As cinco estações do amor é uma notável reescrita de aspectos da trama de Madame Bovary, através da mediação do olhar do narrador de Dom Casmurro. Escutemos, outra vez, a definição que a narradora oferece de seu projeto:

Aí tenho um estalo, uma visão: meu relato deve ser uma atividade inocente e essencial, como se eu estivesse construindo, com tijolos velhos, uma casa espiritual nova, uma só, que abrigasse todo o meu passado. Não será um diário, mas um livro do meu presente em movimento, em que as fronteiras entre passado e futuro estão apagadas (Almino, 2001, 50).

Não será um diário, mas uma confissão, semelhante a do personagem de Machado de Assis, Bento Santiago, que buscou reconstruir a juventude na maturidade, construindo uma casa idêntica àquela em que viveu na infância. A casa de Ana é feita de palavras, como todo palácio da memória – como, afinal, também foi a casa quimérica de Dom Casmurro.

De fato, na ficção de João Almino, Machado de Assis é presença vertebral na construção do narrador. O narrador, já morto, de seu primeiro romance, Idéias para onde passar o fim do mundo, é uma clara homenagem ao narrador das Memórias póstumas de Brás Cubas, o célebre “defunto autor”, como apontou Walnice Galvão.[8]

Provavelmente, nessa altura, o leitor perguntará: é possível associar os romances de Flaubert e Machado de Assis com a atividade da narradora do relato de Almino? Ora, Emma Bovary jamais tem voz própria, só a conhecemos por meio da voz impessoal do narrador flaubertiano, com seu elaborado discurso indireto livre. Do mesmo modo, Capitu nada pode revelar sobre os ciúmes impertinentes de seu marido, já que o mesmo é o dono do relato.[9] Proponho ao leitor, como alternativa, um exercício de imaginação: uma Emma Bovary que não apenas lesse, mas sobretudo escrevesse – perfeito antídoto quixotesco contra o vazio de uma vida estável, demasiadamente estável. Vazio que afeta a Ana e a leva a um gesto igualmente desesperado: “Esta é minha rebeldia, minha revolução. Chega de sobrevida medíocre e acomodada. Tivesse uma bomba aqui, explodia a casa, Brasília, o mundo, esta obra de um Deus mal-humorado” (ALMINO, 2001, 170). Talvez na pacata Yonville não fosse possível conceber uma solução tão radical, ainda que a autêntica radicalidade do gesto de Ana seja traduzir o ato de leitura em uma forma inesperada de seu próprio nome. Ler e escrever são atividades gêmeas, palindrômicas, quando uma começa, a outra se anuncia – de qualquer ponto de vista, as duas atividades se intercalam. Vejamos como isso acontece na tarefa da tradutora Ana.

No final de Madame Bovary, Charles, o médico medíocre, e marido ainda menos criativo, encontra alguns papéis de Emma, inclusive uma carta de seu amante, Rodolphe; mas continua sem compreender nada – ou prefere deixar de entender. O nada: o ideal da escrita de Flaubert; puro estilo; escrita sobre (e sob) a escrita. No entanto, Ana não pode ser apenas leitora de fantasias alheias. Palindrômica, necessita converter-se na autora de suas próprias memórias e ilusões. Sobretudo, deve converter-se na autora de seus esquecimentos. Portanto, pouco importa que não chegue a concluir seu texto: o gesto mesmo de escrevê-lo impõe uma diferença fundamental. O “bovarismo”, segundo a definição nova que Almino propõe, não é o afastar-se de si mediante o desejo de converter-se em outro; desejo mediado e inclusive criado por um intenso (ainda que limitado) ato de leitura. O particular “bovarismo” de Ana, a narradora palindrômica, supõe uma leitura que só pode desenvolver-se plenamente na escrita de si mesma. Talvez por isso, contrariamente à situação final de Madame Bovary, durante todo o romance, Ana é a própria investigadora de seus papéis e encontra, num outro Carlos, a “última estação do amor” – o amor-amizade da maturidade.

Maturidade que, se não me equivoco, também atende pelo título: As cinco estações do amor.

Referências Bibliográficas

ALMINO, João. As cinco estações do amor. Rio de Janeiro: Record, 2001.——. Idéias para onde pássaro fim do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor del Quijote” In. Ficciones. Obras Completas. Barcelona: Emecé Editores, s.d.

GALVÃO, Walnice Nogueira. “Prefácio”. In. Idéias para onde passar o fim do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

KRISTEVA, Julia. Sémeiotikè. Recherches pour une sémanalyse. Paris: Seuil, 1969.

MELO NETO. João Cabral de. “A Brasília de Oscar Niemeyer”. In. Museu de Tudo. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

——. “Joan Miró”. In. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

——. “O sim contra o sim”. In. Serial. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

LYOTARD, Jean-François. “Can Thought go on Without a Body?” In. The Inhuman – Reflections on Time. Stanford, Stanford University Press, 1991.

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu (Memórias póstumas). Rio de Janeiro: Record, 2005.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.

[1] Este texto é resultado de uma comunicação apresentada no Festival de la Palabra, 2004. Agradeço à María Luisa Armendáriz a gentileza do convite. Agradeço também a Gustavo da Veiga-Guimarães e à Embaixada Brasileira no México que tornaram possível a participação no Festival de la Palabra. Agradeço ao professor Pablo Rocca, da Universidad de la República (Montevidéu), pelas importantes sugestões e correções em uma primeira versão deste texto. O texto foi originalmente escrito em espanhol e traduzido para o português por Leonardo Vieira de Almeida.

[2] Utopia que inspirou os seguintes versos de João Cabral de Melo Neto, nos quais descreve as casas edificadas em Brasília: “(…) ou ginástica, para ensinar / quem for viver naquelas salas / um deixar-se, um deixar viver / de alma arejada, não fanática”. (MELO NETO, 1994, 399).

[3] Em seu primeiro romance, Almino apresentou a “arqueologia” da mística: “Aqui estão algumas das antigas anotações: ‘Música: samba-canção, bolero. Lugares: Catedral, Pirâmide, Vale da Salvação. Ísis/Osíris = Íris’ (…). Era na época em que Íris deixava a crença em tudo pela crença em nada. A crença em tudo tinha começado depois que chegou a Brasília e passou a visitar a Cidade Eclética, o Vale do Amanhecer, o Grupo de Investigação dos Extraterrenos, em Abadiânia” (ALMINO, 1987, 127).

[4] Penso nos versos: “Miró sentia a mão direita / demasiado sábia / e que de saber tanto / já não podia inventar nada. // Quis então que desaprendesse / o muito que aprendera, / a fim de reencontrar / a linha ainda fresca da esquerda (…)” (MELO NETO, 1994, 298). O poeta dedicou ao pintor seu ensaio crítico mais importante (MELO NETO, 1994, 689-720). Vale recordar que versos do poeta constituem a epígrafe de As cinco estações do amor

[5] “O escritor latino-americano é o devorador de livros de que os contos de Borges nos falam com insistência. Lê o tempo todo e publica de vez em quando” (SANTIAGO, 1978, 27).

[6] Tradução proposta por Haroldo de Campos.

[7] Penso, claro, na célebre citação: “Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido mediante una técnica nueva el arte detenido y rudimentario de la lectura: la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones erróneas. (…) Esa técnica puebla de aventura los libros más calmosos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline o a James Joyce la Imitación de Cristo, ¿no es una suficiente renovación de esos tenues avisos espirituales?” (BORGES, s.d., 450).

[8] “Estamos às voltas com um defunto-autor, em alusão explicitada a Machado de Assis” (GALVÃO, 1987, 7).

[9] Nesse contexto, vale recordar que, em Capitu (Memórias póstumas), Domício Proença Filho transformou Capitu na narradora de sua própria história: “Só agora, decorrido tanto tempo humano, posso, finalmente, contestar as acusações contra mim feitas pelo meu ex-marido, o Dr. Bento Santiago” (PROENÇA FILHO, 2005, 11).

Revista “Imaginário”, ano XIII, n.o 14, 1.o semestre de 2007, p. 15-27.

João Cezar de Castro Rocha