As Cinco Estações do Amor The Five Seasons of LoveLas Cinco Estaciones del AmorLe cinque stagioni dell’amore

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Ao contrário de Funes, o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar o meu Rio Lethes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo. Deixarei de lado o futuro, para não construir ilusões e nem prever desastres, o que, em vez de evitá-los, talvez os acelere. Quero captar o instante, começar do zero. Sem a carga do passado. Sem história, nem rumo. Apagar-me. Imobilizar-me. Condensar minha vida no instante, viver exclusivamente nele, dele, feito meu cachorro Rodolfo, aqui a meus pés. O presente instantâneo. Um instante que se prolonga, como numa figura borrada ou como quadro depois de quadro de um filme que não pára de rodar. Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. Comigo é freqüente: ver a mesma coisa como promessa de céu ou de inferno. Num piscar de olhos, o claro vira escuro. Tudo aqui depende de um triz, está por um fio, que pode ser desde a linha tênue de que eu falava até o meu humor ou um nada de realidade.

Vou me apoiar na iluminação que tenho — acho finalmente que é disso que se trata, de uma iluminação — para dar o grande salto. Às vezes é melhor ter coragem de recomeçar, de jogar fora. Até mesmo amores. Não sou de preservar o que me atormenta. Por isso preciso me desfazer completa e definitivamente de Eduardo. Se consigo recomeçar do zero, estou também cumprindo fielmente a promessa feita no encontro de há trinta anos. E os outros inúteis? Farão um esforço semelhante de renovação espiritual?

A fumaça do cigarro sobe do cinzeiro, como uma chaminé. Rodolfo me espia com o rabo do olho, certamente desconfiando de que tenho minhocas na cabeça. Baixa a sua própria cabeça sobre as patas, franze as sobrancelhas e deixa seu olhar triste perder-se no infinito, um infinito mais concreto que o meu e à altura do chão.

Digo que tudo isso “acontece” agora e não que “aconteceu” um dia, pois quero descrever essa presença instantânea que está sempre em movimento e se define por ele, deixando as infindáveis manchas borradas que mencionava; quero mostrar esse instante por dentro. Presente instantâneo do acontecido. Afinal, o passado é só um rastro do instante, num instante qualquer.

Então? Nesse instante penso que vou viver sem rumo, só viajando dentro de mim. Que o importante na vida não é atingir um objetivo, chegar a um lugar, mas curtir cada momento, pois, como o mundo não pára de dar voltas, a forma da viagem é mais importante do que seu destino. Que meus medos e projetos nada têm a ver com a realidade objetiva, porque ando areada e já perdi a noção de objetividade. Não me interessa saber o que é real além da percepção instantânea, a que me flagra o olhar de surpresa e dor, um franzido em minha sobrancelha, meu ombro direito contorcido, o corpo em desequilíbrio, o susto levantando minha mão esquerda, enquanto, como no quadro de Caravaggio, minha mão direita paira tensa sobre os galhos e frutos que se desarrumam sobre a mesa, o meu dedo médio apontado para baixo, de cuja ponta se pendura o ávido lagarto que me pica. Ao lado, o vaso de água no canto direito do quadro é quieto e translúcido, gotas visíveis em sua superfície. Contém uma camélia e seu galho, irmã da que trago em meu cabelo.

Olhando as folhas de papel, ainda em branco, sinto que as verdades estão depositadas em larvas de palavras, à espera de situações, as mais banais e inesperadas, que possam juntá-las umas às outras para lhes dar corpo e sentido.

Depois de muitas noites trôpegas, em que meu estado de saúde só piora, descubro o ovo de Colombo. A idéia me vem quando penso no alívio de não ter tido de ler tantas notícias inquietantes desde que Berenice deixou de comprar os jornais. Minha nova ocupação vai certamente me dar prazer por meses a fio. Não é só dos jornais que não preciso. Tomo a decisão de separar a montanha de livros, cartas e outros papéis acumulados ao longo da vida, com a intenção de trans­formá-los, como se eu fosse uma máquina, numa mistura esfarinhada de palavras, que depois porei — toda ela — no mesmo saco. Só por ter esta idéia, me sinto leve e fagueira e posso finalmente dar seguimento ao relato. Ligo o som, ouço o CD animado que Jeremias me deu de presente e até danço sozinha, como uma louca, para comemorar um não-sei-bem-o-quê que desbloqueia minha mente e minha alma. Por sorte, apenas Rodolfo testemunha este meu estado de exaltação e até gosta de presenciar meus movimentos.

Não que eu tenha tido uma idéia brilhante ou sequer inventado alguma coisa, sei disso. Desde que, há cinco mil anos, os sumerianos cunharam a sua escrita, para fixar mensagens, registrar fatos e pensamentos de maneira durável… Desde que, há quase quatro mil anos, os semitas criaram o seu alfabeto, pai de quase todos os sistemas alfabéticos do mundo, a escrita pode ser apagada, transformada e perdida. Desde que, há sessenta mil anos, existe a linguagem, a língua pode comer a língua e também fixar para sempre o instante.

O método será o seguinte: suprirei a ausência dos papéis que vou rasgando, com novas palavras, que vou escrevendo nas folhas de papel em branco. Assim, vou deixando numa folha uma mágoa, noutra uma alegria, noutra ainda luto e tristeza. Dos livros basta extrair o que ficou retido na memória. Quero libertar o que pesa nela.

De fato, a memória é um arquivo de gavetas fechadas. Várias das chaves das gavetas são feitas de pessoas, objetos, coisas que nos cercam, das cartas, fotografias e livros. Cada carta, cada uma delas, abre uma enorme gaveta de recordações, que talvez ficasse fechada para sempre se a carta não estivesse ali, exibindo fisicamente suas frases. Ao destruir cada carta, estarei abrindo uma destas gavetas, multiplicando, portanto, as possibilidades de registro no meu relato de despedida, que pretendo ir compondo aos pouquinhos, um parágrafo aqui, outro ali.

Ficar nua e leve, me desfazer dos papéis, renascer livre da carga do passado, é tudo o que quero. Com idéias murchas é difícil me vingar de palavras adormecidas. Porém, os papéis vão gritar, chorar, ao ser rasgados, recobrando vida às idéias e aos sentimentos neles armazenados. A partir de agora, minhas palavras de ordem são: nada retido, nada guardado. É chegado o momento de descarregar o que venho acumulando. E também de liberar as palavras dos blocos — graníticos — feitos com as emoções que o tempo calou. Que elas saiam,­ feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante. Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém, que vai passando ele próprio suas páginas, abrindo-se cada dia numa diferente, e que, por ser vivo, sangra quando tentam virar suas páginas. Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente, enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade.

Vendo minha arrumação, Berenice reclama:

  • A senhora me desculpe, Dona Ana, mas a senhora está fazendo loucura de se desfazer dos papéis.
  • Pode jogar no lixo, Berenice.
  • A senhora está fazendo besteira, olhe o que lhe digo.
  • Então deixe ali naquela pilha. Depois decido.

É melhor mesmo ir fazendo uma enorme pilha de papel. Posso, por exemplo, deixar separado num canto, por uns tempos, tudo o que diga respeito ao amor, que, apesar de me ter tratado tão mal, merece, afinal de contas, minha consideração, pois nele cabem todas as virtudes. Será a pilha do amor, que talvez me faça ver algo distinto do que a vida vem me ensinando ou simplesmente me confirme que não posso mesmo ter o impossível, ou seja, o outro à altura de meu sonho.

Vou limpar minhas prateleiras, esvaziar a casa, começando pelo quarto a ser alugado, talvez ao próprio Norberto. Os papéis que me incomodam são a tal ponto parte de minha vida, que a única maneira de me desfazer deles é transformá-los na farinha de palavras que mencionei, farinha pouca e densa, socada a ponto de virar um livro de pedra, ou seja, um livro da vida, que é simples e misteriosa como uma pedra.

Será minha versão do Livro absoluto que Mallarmé quis escrever no fim da vida e acabou destruindo antes de morrer, ou daquele, citado no conto “A biblioteca de Babel” de Borges, que abrange perfeitamente todos os demais. Sua feitura deverá ajudar a libertar-me dos livros de minha biblioteca e dos papéis acumulados — cartas, anotações, poemas, páginas e páginas de diários e outros escritos. Será meu museu de tudo, caixão de lixo ou arquivo.

Vou à luta, então. E desde o começo esta é minha odisséia de muitas ondas e correntes, em que enfrento ventos e tempestades num mar infinito, mar de muitos encontros, onde via­jo sozinha. Sozinha com meus papéis e minha caneta.

(Translated by Elizabeth A. Jackson)

Unlike Funes, the Memoirist, the Borges character who forgot nothing and remembered everything, I am going to cross my River Lethe to forget everything, to have the freedom to think and write spontaneously, guided only by desire. I will put aside the future, so that I don’t construct illusions or predict disasters, which, rather than avoiding them , may even accelerate them. I want to capture the moment, to start from zero. Without any baggage from the past. Without history, without direction. I want to erase myself. To immobilize myself. To condense my life into an instant, to live entirely in it, of it, just like my dog Rodolfo, here at my feet. The instantaneous present. A moment prolonged, like a blurred picture or like frame after frame of a film that doesn’t stop rolling. Zero, the moment in which I write, one step from the abyss and from paradise. With me it often happens: I see one thing as both the promise of heaven or hell. In the blink of an eye, what is light becomes dark. Everything here depends on a moment, hangs by a thread, that can be anything from the tenuous line that separates life from death to my mood or some insignificant nothing.

I am going to lean on the revelation that I have—I think ultimately that this is what it’s about, a revelation—to take the great leap. Sometimes it’s better to have the courage to start over, to discard. Even loves. I am not one to keep things that torment me. That’s why I need to rid myself of Eduardo once and for all. If I can manage to restart from zero, I am also fulfilling the promise made at that gathering thirty years ago. And the other useless? Will they make a similar effort at spiritual renewal?

The smoke from the cigarette rises from the ashtray like a chimney. Rodolfo looks at me out of the corner of his eye, surely suspecting that I have gone soft in the head. He lowers his head onto his paws, furrows his brow and lets his sad look become lost in the infinite, a more concrete infinite than mine and on a level with the floor.

I say that all of this “happens” now and not “happened” one day, because I want to describe this instantaneous presence that is always in motion and is defined by it, leaving the endless blotchy stains that I mentioned; I want to show the inside of the moment. The instantaneous present tense of things past. After all, the past is only the trail of an instant, at any instant.

So? In this instant I think that I will live aimlessly, simply traveling within myself. The important thing in life is not just to reach a goal, to arrive at a place, but to enjoy every moment. Because the world doesn’t stop spinning, the nature of the journey is more important than its destination. My fears and projects have nothing to do with objective reality, because I’m bewildered and I’ve already lost all sense of objectivity. I have no interest in knowing what is real beyond the perception of an instant, that catches a look of surprise or pain, a furrow in my brow, my right shoulder contorted, my body unbalanced, fright raising my left hand, while, as in a painting by Caravaggio, my right hand hovers tensely above the boughs and fruits strewn on the table, my middle finger pointing down, from its tip hanging a greedy lizard that bites me. To the side, the water jar in the painting’s right hand corner is quiet and translucent, drops visible on its surface. It contains a camellia and its stem, sister of the one I wear in my hair.

Looking at the sheets of still blank paper, I feel that truths are deposited in larvae of words, awaiting even the most banal and unexpected situations, that can bring them together to give them substance and meaning.

After many shaky nights, in which my state of health only deteriorates, I make a startling discovery. The idea comes to me when I think about the relief of not having to read so much disturbing news ever since Berenice stopped buying newspapers. My new task will certainly give me pleasure for months on end. It’s not only newspapers that I don’t need. I make the decision to sort the mountain of books, letters and other papers accumulated throughout my life, with the intention of transforming them, as if I were a mill, into a floury mixture of words, that I will then put—all of it—into the same sack. Just having this idea makes me feel light and satisfied and I can finally continue with my narrative. I turn on the stereo, and listen to the lively CD that Jeremias gave me as a gift and I even dance alone, like a crazy woman, to celebrate an I don’t quite know what that unblocks my mind and my soul. Fortunately, only Rodolfo witnesses this state of exaltation, and he even enjoys watching my movements.

Not that I had a brilliant idea or even invented something, I know. Ever since the Sumerians five thousand years ago, invented their writing to record messages, register facts and thoughts in a permanent way… Ever since, the Semites, almost four thousand years ago, created their alphabet, the father of almost all of the world’s alphabetical systems, writing can be erased, transformed and lost. Ever since language came into existence sixty thousand years ago, tongues have been able to eat tongues and also to preserve the moment forever.

The method will be as follows: I will replace the absence of the papers that I tear up, with new words that I will be writing on blank sheets of paper. This way, I will leave a pain on one sheet, a joy on another, on another grief and sadness. From the books it will be enough to extract what was retained in my memory. I want to free what weighs it down.

In fact, memory is a filing cabinet with closed drawers. Some of the keys to the drawers are made of people, objects, things around us, letters, photographs, and books. Each letter, each one of them, opens an enormous drawer of memories, that would perhaps stay closed forever if the letter were not there, physically exhibiting its sentences. By destroying each letter, I will be opening one of these drawers, thereby multiplying the possibilities of the writing of my farewell narrative that I intend to continue composing little by little, a paragraph here, another there.

To become naked and light, free myself of the papers, be reborn free of the weight of the past, is all that I want. With faded ideas it is difficult to avenge myself on sleeping words. Nevertheless, the papers are going to scream, to weep as they are torn, restoring life to the ideas and sentiments stored in them. From now on, my instructions are: nothing kept, nothing saved. The moment to dispose of everything I have been accumulating has arrived. And also the moment to free words from their blocks—of granite—made from the emotions that time has silenced. Let them emerge, like sharpened knives, sculpting the spirit of the instant. I want to live as in a hypertext that never stops constructing itself, in which writing is a continuous and unending dialogue with the mind or a counterpoint for life. I want to erase all of the books, to allow the natural book to shine, alone: the one they believed in the Yucatan, that was not written by anyone, that turns its own pages, opening each day to a different one, and because it’s alive, bleeds when they try to turn its pages. My interior revolution depends on the courage to continue composing the text, always in the present, while I dispose of accumulated papers. The absent papers will increase my freedom space.

Seeing my cleanup, Berenice complains:

  • –Please forgive me, Miss Ana, but it’s crazy to get rid of your papers.
  • –You may throw them in the trash, Berenice.
  • –You are making a mistake, mark my words.
  • –Then leave them all there in a pile. I’ll decide later.

It’s better to make an enormous pile of paper anyway. For example, I can temporarily put in a pile in one corner everything that has to do with love. Despite having mistreated me so badly, love deserves my consideration after all because it contains all virtue. The love pile will perhaps make me see differently than what life has taught me, or simply confirm in the end that I can’t have the impossible, that is, the other who measures up to my dream.

I am going to clear shelves, empty the house, beginning with the room to be rented perhaps to Norberto himself. The papers that bother me are so much a part of my life that the only way to discard them is to transform them into the flour of words I mentioned, sparse dense flour, pounded until it becomes a stone book, that is, a book of life, that is as simple and mysterious as a stone.

It will be my version of the Livre Absolu that Mallarmé tried to write at the end of his life and finally destroyed before he died. Or perhaps the one quoted in the short story “La biblioteca de Babel” by Borges, that completely encompasses all other books. Writing it should help to free me from the books in my library and from the accumulated papers—letters, notes, poems, pages and pages of diaries and other writings. It will be my museum of everything, dumpster or file cabinet.

I’ll begin the struggle, then. And from the start this is my odyssey of many waves and currents, in which I face winds and storms in an infinite sea, a sea of many encounters, where I travel alone. Alone with my papers and my pen.

Las Cinco Estaciones del Amor, de João Almino

(Traducción de María Auxilio Salado y Antelma Cisneros)

Al contrario de Funes, el memorioso, el personaje de Borges que no olvidaba nada y se acordaba de todo, voy a atravesar mi río Lethes para olvidar todo, para tener la libertad de pensar y escribir espontáneamente, guiada sólo por el deseo. Haré a un lado el futuro, para no construir ilusiones ni prever desastres, lo que, en vez de evitarlos, tal vez los acelere. Quiero captar el instante, comenzar de cero. Sin la carga del pasado. Sin historia ni rumbo. Borrarme. Inmovilizarme.Condensar mi vida en el instante, vivir exclusivamente en él, de él, como mi perro Rodolfo, aquí a mis pies. El presente instantáneo. Un instante que se prolonga, como una figura borrada o como cuadro después de cuadro de una película que no deja de rodar. Cero, el momento en que escribo, a un paso del abismo y del paraíso. Conmigo es frecuente: ver la misma cosa como promesa de cielo o de infierno. En un parpadeo, lo claro se hace oscuro. Todo aquí depende de un tris, pende de un hilo, que puede ser desde la línea tenue de la que hablaba hasta mi humor o una nada de realidad.

Voy a apoyarme en la iluminación que tengo –creo finalmente que es de eso de lo que se trata, de iluminación– para dar el gran salto. A veces es mejor tener valor para recomenzar, para echar fuera. Incluso amores. No acostumbro conservar lo que me atormenta. Por eso necesito deshacerme completa y definitivamente de Eduardo. Si logro recomenzar de cero, estoy también cumpliendo fielmente la promesa hecha en el encuentro de hace treinta años. ¿Y los otros inútiles? ¿Harán un esfuerzo semejante de renovación espiritual?

El humo del cigarrillo sube del cenicero, como una chimenea. Rodolfo me espía de reojo, seguramente sospechando que tengo gusanos en el cerebro. Baja la cabeza sobre las patas, frunce las cejas y deja que su mirada triste se pierda en el infinito, un infinito más concreto que el mío y a la altura del suelo.

Digo que todo esto “sucede” ahora y no que “sucedió” un día, pues quiero describir esa presencia instantánea que está siempre en movimiento y se define por él, dejando las interminables manchas borradas que mencionaba; quiero mostrar ese instante por dentro. Presente instantáneo de lo ocurrido. Después de todo, el pasado es sólo un rastro del instante, en un instante cualquiera.

¿Entonces? En este instante pienso que voy a vivir sin rumbo, nada más viajando dentro de mí. Que lo importante en la vida no es alcanzar un objetivo, llegar a un lugar, sino disfrutar cada momento, pues, como el mundo no deja de dar vueltas, la forma del viaje es más importante que su destino. Que mis miedos y proyectos nada tienen que ver con la realidad objetiva, porque ando perturbada y ya perdí la noción de objetividad. No me interesa saber lo que es real más allá de la percepción instantánea, la que me incendia la mirada de sorpresa y dolor, una arruga en mi ceja, mi hombro derecho contraído, el cuerpo en desequilibrio, el asombro levantando mi mano izquierda, mientras, como en el cuadro de Caravaggio, mi mano derecha se suspende tensa sobre las ramas y frutos que se desordenan sobre la mesa, y mi dedo medio apuntando hacia abajo, de cuya punta se cuelga el ávido lagarto que me muerde. Al lado, el vaso de agua en el ángulo derecho del cuadro está quieto y translúcido, gotas visibles en su superficie. Contiene una camelia y sus ramas, hermana de la que traigo en mi cabello.

Mirando las hojas de papel, todavía en blanco, siento que las verdades están depositadas en larvas de palabras, a la espera de situaciones, las más banales e inesperadas, que puedan juntarlas unas con otras para darles cuerpo y sentido.

Después de muchas noches vacilantes, en que mi estado de salud empeora, descubro el huevo de Colón. La idea me viene cuando pienso en el alivio de no haber tenido que leer tantas noticias inquietantes desde que Berenice dejó de comprar los periódicos. Mi nueva ocupación va con seguridad a darme placer durante meses seguidos. No es solamente de los periódicos que no necesito. Tomo la decisión de separar la montaña de libros, cartas y otros papeles acumulados a lo largo de la vida, con la intención de transformarlos, como si fuera una máquina, en una mezcla harinosa de palabras, que después pondré –toda por completo– en el mismo saco. Sólo por tener esta idea, me siento leve y feliz y puedo finalmente continuar el relato. Prendo el estéreo, oigo el CD contagioso que me dio Jeremías de regalo y hasta bailo sola, como una loca, para conmemorar un no sé bien qué que desbloquea mi mente y mi alma. Por suerte, el único testigo de este estado de exaltación es Rodolfo, a quien hasta le gusta presenciar mis movimientos.

No es que haya tenido una idea brillante o siquiera inventado algo nuevo, lo sé. Desde que, hace cinco mil años, los sumerios acuñaron su escritura, para fijar mensajes, registrar hechos y pensamientos de manera perdurable… Desde que, hace casi cuatro mil años, los semitas crearon su alfabeto, padre de casi todos los sistemas alfabéticos del mundo, la escritura puede ser borrada, transformada y perdida. Desde que, hace sesenta mil años existe el lenguaje, la lengua puede comerse a la lengua y fijar para siempre el instante.

El método será el siguiente: supliré la ausencia de los papeles que voy rompiendo, con nuevas palabras, que voy escribiendo en las hojas de papel en blanco. Así, voy dejando en una hoja un dolor, en otra una alegría, en otra, además, luto y tristeza. De los libros basta extraer lo que quedó retenido en la memoria. Quiero libertar lo que pesa en ella.

De hecho, la memoria es un archivo de cajones cerrados. Varias de las llaves de los cajones son hechas de personas, objetos, cosas que nos rodean, de las cartas, fotografías y libros. Cada carta, cada una de ellas, abre un enorme cajón de recuerdos, que tal vez quedaría cerrado para siempre si la carta no estuviera ahí, exhibiendo físicamente sus frases. Al destruir cada carta, estaré abriendo uno de estos cajones, multiplicando, por lo tanto, las posibilidades de registro en mi relato de despedida, que pretendo ir componiendo poco a poco, un párrafo aquí, otro ahí.

Quedar desnuda y leve, deshacerme de los papeles, renacer libre de la carga del pasado, es todo lo que quiero. Con ideas marchitas es difícil vengarme de palabras adormecidas. Sin embargo, los papeles van a gritar, a llorar, al ser rotos, recobrando vida a las ideas y a los sentimientos en ellos almacenados. A partir de ahora, mis palabras de orden son: nada retenido, nada guardado. Ha llegado el momento de descargar lo que vengo acumulando. Y también de liberar las palabras de los bloques –de granito– hechos con las emociones que el tiempo calló. Que ellas salgan, como cuchillos afilados, esculpiendo el espíritu del instante. Quiero vivir como en un hipertexto que nunca deja de construirse, donde la escritura es un diálogo continuo e infinito con la mente, o un contrapunto de la vida. Borrar todos los libros, para dejar brillar, solo, el libro natural: aquel en el que se creía en Yucatán, el que no fue escrito por nadie, el que va pasando sus propias hojas, abriéndose cada día en una diferente, y que, por estar vivo, sangra cuando intentan dar vuelta a sus páginas. Mi revolución interior depende del valor de ir componiendo el texto, siempre en presente, mientras me deshago de los papeles acumulados. Los papeles eliminados aumentarán mi espacio de libertad.

Viendo mis arreglos, Berenice reclama:

  • –Disculpe doña Ana, pero está usted cometiendo una locura al deshacerse de los papeles.
  • –Puedes echarlos a la basura, Berenice.
  • –Es una tontería, mire lo que le digo.
  • –Entonces déjalos ahí, en aquel montón. Después decido.

Lo mejor es ir haciendo un enorme montón de papel. Puedo, por ejemplo, dejar separado en un rincón, por un tiempo, todo lo que diga respecto al amor, que, a pesar de haberme tratado tan mal, merece, al final de cuentas, mi consideración, pues en él caben todas las virtudes. Será la pila del amor, que tal vez me haga ver algo distinto de lo que la vida me ha enseñado o simplemente me confirme que ya no puedo tener lo imposible, o sea, el otro a la altura de mis sueños.

Voy a limpiar entrepaños, vaciar la casa, empezando por el cuarto que va a ser rentado, tal vez al propio Norberto. Los papeles que me incomodan son a tal grado parte de mi vida, que la única manera de deshacerme de ellos es transformarlos en la harina de palabras que mencioné, harina poca y densa, amasada a punto de convertirse en un libro de piedra, o sea, un libro de la vida, que es sencilla y misteriosa como la piedra.

Será mi versión del Libro absoluto que Mallarmé quiso escribir al final de su vida y acabó destruyendo antes de morir, o de aquel, citado en el cuento “La biblioteca de Babel” de Borges, que abarca perfectamente a todos los demás. Su elaboración deberá ayudar a liberarme de los libros de mi biblioteca y de los papeles acumulados –cartas, anotaciones, poemas, páginas y páginas de diarios y otros escritos. Será mi museo de todo, cajón de basura o archivo.

Sigo en la lucha, entonces. Y desde el principio esta es mi odisea de muchas olas y corrientes, donde enfrento vientos y tempestades en un mar infinito, mar de muchos encuentros, donde viajo sola. Sola con mis papeles y mi pluma.

Le cinque stagioni dell’amore, João Almino. Il Sirente, 2012.
Traduzione Amina Di Munno

Il Piano Pilota non era esattamente una città. Era un’idea – un’idea del moderno, del futuro, la mia idea di Brasile.
Per me era come saltare da un muro e cadere nel cuore del paese, un cuore che batteva come il mio. Con la forma di farfalla che le ha dato Lúcio Costa, Brasilia era un punto libero nello spazio vuoto, con la capacità di volare e di crescere in ogni direzione. La sua buona stella oscillava tra il firmamento infinito e il fango umido e scuro – dove, con piacere, mi inzaccheravo i piedi e questo contrastava con le vie pulite e con il verde sparso in grandi quadrati.

Città nuova, vita nuova. All’arrivo, di sera, i miei occhi brillavano di fronte a un tappeto di piccole luci in fila che si diramavano come raggi in tutte le direzioni. Quelle fiammelle di mistero e di speranza ammiccavano verso di me. La loro bellezza stupefacente mi dava i brividi. Così sono arrivata a Brasilia, con la voglia di avventura e libertà.

Nel paesaggio intravedevo tutto uno stile di vita, un modo di essere del Planalto. Audace ed elegante. Semplice e diretto. Grezzo e moderno. Come se il fiducioso nativo germogliasse dalla durezza della vita dei lavoratori del nordest. Esisteva uno stile dell’uomo e della donna di Brasilia, anche quando nessuno venisse da lì. Forse era quell’estraniamento, quella non appartenenza pur appartenendo. Lo stupore comune di fronte all’immensità del cielo, all’eccesso del suolo. L’immaginazione stimolata dalla libertà e leggerezza delle lastre di cemento, che sfidavano i calcoli degli ingegneri. La tenacia nel disfare il tracciato pulito, le linee rette e le curve dolci degli architetti. E tutto con la spontaneità caotica stampata sui muri sporchi e nei sentieri sinuosi. Si può capire perché all’astronauta russo Yuri Gagarin sia sembrato un altro pianeta.

Il metodo sarà il seguente: sopperirò la mancanza delle carte che strapperò, con nuove parole, che procederò a scrivere sui fogli bianchi. Così, lascerò su un foglio un dolore, su un altro un’allegria, su un’altro ancora lutto e tristezza. Dai libri basta estrarre quel che è stato trattenuto nella memoria. Voglio liberarla di quello che le pesa.

La memoria è, infatti, un archivio di cassetti chiusi. Molte delle chiavi dei cassetti sono fatte di persone, oggetti, cose che ci circondano, di lettere, fotografie e libri. Ogni lettera, ciascuna di esse, apre un enorme cassetto di ricordi, che forse sarebbe rimasto chiuso per sempre se la lettera non fosse stata lì, a mostrare fisicamente le sue frasi. Nel distruggere ogni lettera, starò aprendo uno di quei cassetti, moltiplicando, dunque, le possibilità di registro nel mio racconto di addio, che mi prefiggo di comporre a poco a poco, un paragrafo qua, un altro lì.

Restare nuda e leggera, disfarmi delle carte, rinascere libera del carico del passato, è tutto quel che voglio. Con le idee vane è difficile riscattarmi da parole addormentate. Ma le carte grideranno, piangeranno, nell’essere strappate, riacquisteranno vita dalle idee e dai sentimenti in esse immagazzinati. D’ora in poi, le mie parole d’ordine sono: nulla trattenuto, nulla conservato. E’ arrivato il momento di eliminare ciò che ho accumulato. E anche di liberare le parole dai blocchi – granitici – fatti con le emozioni che il tempo ha messo a tacere. Che vengano fuori, come coltelli affilati, a scolpire lo spirito dell’istante. Voglio vivere come in un ipertesto che non finisce mai di costruirsi, in cui la scrittura sia un dialogo continuo e interminabile con la mente o un contrappunto della vita. Cancellare tutti i libri, per far risplendere, unicamente, il libro naturale: quello a cui credevano nello Yucatán, quello che non è stato scritto da nessuno, che sfoglia da sé le sue pagine, che si apre ogni giorno in una diversa e che, essendo vivo, sanguina quando cercano di voltare le sue pagine. La mia rivolta interiore dipende dal coraggio di comporre il testo, sempre al presente, mentre mi disfo delle carte accumulate. Le carte in meno aumenteranno il mio spazio di libertà.

Voglio la semplicità assoluta, che mi conforta, il mio sguardo sereno sulla città che ho scelto, la passeggiata lungo la sponda del Lago Paranoá che ora suggerisco a Carlos.

Le città cambiano con il tempo, a mano a mano che diventano familiari. Non mi sento più straniera a Brasilia. Ho altri occhi e un altro cuore nei confronti dei paesaggi di sempre. La città non mi impressiona più, e le speranze che, a mia insaputa, mi infonde sono alla portata di mano. Essa è mia, con i suoi vuoti, la sua freddezza e la sua solitudine. Ho acquisito intimità con la sua aria polverosa e secca, con l’uniformità dei suoi isolati, dei suoi lunghi assi sotto il cielo immenso.

La città delle di, come si dice, non è più la città del diletto, della delusione e della disperazione, la città del mio divorzio. Non è la città della demenza. Non sono demente solo perché amo di nuovo questa città. Brasilia ha smesso di essere la mia prigione volontaria. E’ la città di Diana, cacciatrice di illusioni; di sogni perduti fra paesaggi di desolazione. Poiché amo amare, voglio vivere in questo spazio in cui la visione del futuro è stata preservata tra i fossili e gli artifici di questo nuovo millennio. Costruire una città dal niente è una scommessa di vita. Voglio vivere alla frontiera che avanza sull’immenso vuoto. Ricostruirmi dalle ceneri.

Sono in stato di grazia di fronte al destino, forse a causa del nuovo autunno, che vedo nell’azzurro violaceo degli alberi fioriti dei jacarandá, o perché Carlos mi aspetta già sulla veranda di casa, pronto per la passeggiata. Voglio accogliere sul viso il sole caldo. Inebriarmi nell’eccesso di luce che proietta un’ombra di sogni. I miei dolori passeggeri se, da una parte, sono terribili e crudeli, dall’altra curano un altro dolore, insistente e noioso come un’emicrania, quello della mia tragedia quotidiana.

Vedo il cielo immenso davanti a me, dall’altra sponda del lago, sopra i palazzi dei ministeri, dove un sole enorme e rosso mi acceca. Mi ricordo del giorno in cui, dopo aver ricevuto la lettera di Berta, mi avviavo in automobile verso la casa di Chicão, percorrendo l’Asse Monumentale. Era un cielo così quello che vidi quel giorno. Si solleva la stessa nube di domanda, questa volta riflessa nel lago e ancora più rossa.

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