As Cinco Estações do Amor, de João Almino, por Silviano Santiago

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Silviano Santiago

Todos se lembram das cidades-fantasmas da mineração, entrevistas nos faroestes do cinema ou na literatura das Minas Gerais. Brasília é uma cidade-fantasma às avessas. Ela acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada no planalto pelo imaginário dos arquitetos, pelo concreto das construtoras e pelo trabalho dos pedreiros. Uma cidade-fantasma às avessas é antibíblica, réplica leiga que é de Sodoma. Dá-se à luz no momento em que os casulos vazios bauhaus passam a ser ocupados por migrantes. Ao contrário do que mostra o silêncio asséptico dos cartões-postais, que só retratam o monumental, Brasília é rasteira e barulhenta. Humana demasiadamente humana. Uma cidade à medida do amor e da amizade, e não do Poder nela encalacrado.

A Brasília de carne e osso é matéria para ficcionistas, poetas e músicos pop. Com a Trilogia de Brasília, de que vamos ler agora As cinco estações do amor, João Almino define-se como o mais completo “autor” de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali aportaram. São essas vozes que o ouvido afinado de João Almino vem surpreendendo. Capta-as com a sua implacável kodak romanesca. Imagens instantaneístas da revolução que não houve, do homem novo que deveria ter sido, do fim do mundo que não chega, da passagem do milênio que se comemora, para quê?

O último volume da trilogia preocupa-se com os migrantes que não mais o quiseram ser. Fincaram pé na poeira para sempre, transformando-se no grupo felliniano de “Os inúteis”. As cinco estações do amor detém-se nas histórias frustradas desses remanescentes da geração pós-68. Pensaram que na cidade do futuro estava o futuro da humanidade. A ação desse novo e extraordinário romance de João Almino se passa hoje, nos primeiros dias do novo século, do novo milênio. Fecha-se a cortina do passado.

Segundo o romancista, a utopia está hoje na redefinição das relações possíveis entre as pessoas. João Almino mói no áspero. Amor e amizade. Sexo e sensualidade. Desejo e violência. Daí o naipe de personagens, que tanto aponta para as transformações revolucionárias que deveriam ter sido quanto para as mutações comportamentais que estão sendo. Ex-guerrilheiros convivem com homossexuais e travestis, jovens criminosos contrastam com a maturidade (in)conformada.

Se Brasília é a cidade-fantasma que anunciava o fim da metáfora do Brasil como país também fantasma, As cinco estações do amor redefine a nação brasileira como algo que esteve para ser inventado pelos homens. No novo milênio, os casulos vazios bauhaus não têm mais a forma de cubos e esferas. Página virada pelos inúteis. Temos hoje os casulos vazios da terra improdutiva. “Pratico o pessimismo como método”, afirma o romancista e pensador João Almino.

Atenção: pessimismo não se confunde com derrotismo.

É luminoso o parágrafo que abre As cinco estações do amor (2001), o premiado romance de João Almino. Na idade madura, enxergam-se melhor os fatos da vida depois de dois dias de “crise e revelação”. Aquela é motor desta, e ambas são sucessivamente despertadas na mente da narradora-personagem por uma carta postada em São Francisco, na Califórnia. A carta vem assinada por um/a antigo/a amigo/a (a indefinição no gênero do/a remetente se impõe). Crise e revelação repercutem numa dessas tardes quentes de Brasília, em que os olhos, a imaginação e o coração renovados da destinatária da carta descortinam a paisagem da vida vivida, a espelhar a esterilidade da recordação que não mais fecunda os dias presentes e futuros. O primeiro parágrafo do romance diz ainda: “Há erros que só aparecem com a experiência, quando já não conseguimos corrigi-los”.

A carta enviada de São Francisco chega às mãos de Ana/Diana, narradora-personagem de As cinco estações do amor, no dia em que completa 55 anos. Ela é professora aposentada de História, da Universidade de Brasília. Na carta, Norberto – ou Berta, como passou a se chamar depois da cirurgia transexual, da maquiagem pesada e do guarda-roupa novo – anuncia a próxima chegada à capital federal e, em lembrança do compromisso assumido trinta anos atrás pelo “grupo de inúteis”, de que fizeram parte, convoca os sobreviventes para se reunirem no dia 31 de dezembro de 1999 à noite, uma sexta-feira. Dispersos pelo Brasil e o mundo, os coroas se reuniriam em Brasília para o réveillon do milênio. Durante o jantar comemorativo, fariam o balanço das respectivas vidas, em conformidade com o acordo selado em histórica viagem mística pelo Jardim da Salvação.

Em crise de descobertas, Ana/Diana se dá conta de que os dias passados se foram definitivamente e, por isso, inexiste a oportunidade de remendar os enganos e equívocos da vida vivida, que passa a se lhe afigurar como vazia. Por os fatos antigos não serem passíveis de remendo na ocasião em que revelam o que verdadeiramente significam, ela tampouco dispõe de instrumentos que poderiam “evitar o que vai acontecer”. Braços cruzados, Ana/Diana se entrega ao instante presente e à exploração de sua plenitude. Por um lado, aprende a conviver com os erros passados e com a impossibilidade de transformá-los em algo de positivo. Por outro lado, acata os dias futuros tal como formatados não só pelos antigos enganos, como também pela crise e a revelação deflagradas pela carta de Norberto, o velho companheiro de inutilidades e hoje travesti assumido. Colocada contra a parede do século, que se vai, e do milênio, que se anuncia no reencontro com os antigos companheiros, Ana/Diana é a primeira do grupo a se impor o balanço subjetivo e geracional como tarefa diária. Esta exige uma mudança drástica de comportamento, de vida.

À voz castrada da experiência, João Almino tinha contraposto – em epígrafe tomada ao poeta João Cabral de Melo Neto – o refúgio na ladainha do cotidiano. Ela reza que a vida se nos apresenta em alternativas insalubres ou redentoras – ou se mata o tempo, ou se o vivencia à flor da pele. Ou se tem a coragem de dar como perdido o tempo passado, em atitude radical e anti-proustiana, ou – como orienta João Cabral – se toma carona na vida “enquanto [o tempo] ocorre, ao vivo”. Ao matar o passado e a vida futura com uma cajadada só, a narradora recorre ao subterfúgio da imaginação, essa “falsa demente”, como a apelidou corretamente Carlos Drummond de Andrade no poema “Dissolução”. [1] A falsa demente incita o ser humano – como aconselham os versos em epígrafe – a viver “em ponta de agulha […], viver a agulha de um só instante, plenamente”.

Quando me adentrei pelo primeiro parágrafo do romance de João Almino e reli os versos de João Cabral no lugar que passaram a ocupar, não consegui desvencilhar-me da imagem dum long play silencioso, em 33 1/3 RPM (rotações por minuto), depositado num prato de toca-discos. Ali estavam as duas raízes teóricas que, imbricadas, explicitavam o “commencement” (para retomar o conceito clássico de Roland Barthes) [2] da magnífica prosa que iria ler. O long play viria a soar – e que belo som mobiliaria o espaço interior do romance e invadiria o ambiente da leitura! – se deixasse seu microssulco espiralado ser ferido, desperto e aguçado pela agulha de vitrola do cotidiano.

Ao caminhar pelo microssulco da borda externa para o centro do vinil, a agulha vibra, e as vibrações são transformadas nos sinais elétricos da prosa de As cinco estações do amor. “Viver a agulha de um só instante, plenamente” – como prenuncia a epígrafe. (Por associação de idéias, ou por ser Brasília uma das capitais da música pop brasileira, relembro o som da guitarra de Fernando Deluqui e a voz de Paulo Ricardo, da banda RPM. Ele começa a cantar “Alvorada Voraz”: “Na virada do século / Alvorada Voraz / nos aguardam exércitos / […] a face do mal / um grito de horror / um fato normal / um êxtase de dor / E medo de tudo / Medo do nada / Medo da vida / Assim engatilhada / fardas e força / forjam as armações / farsas e jogos / armas de fogo / um corte exposto / em seu rosto amor…”.)

Lidas as primeiras páginas do romance, sinto-me reconfortado. A agulha da vitrola cabralina tinha atendido ao comando dado pelo botão de controle, perdão, pelo primeiro parágrafo. Passa a vibrar, e os sinais elétricos, ao explodirem no alto-falante da página, enunciam as palavras e o silêncio gravados no microssulco espiralado. Palavras e silêncio encaminham o leitor da borda (da epígrafe e do primeiro parágrafo) para o eixo de rotação da trama romanesca – o pino central do toca-discos, de onde a narradora comanda a ação. Ana/Diana é finissecular e, em evidente desprezo pela tecnologia old-fashioned da bolacha de vinil (evocada pelo prefaciador, imerso em recordações), confessa a preferência pela varredura feita por raio laser:

Ligo o som, ouço o CD animado que Jeremias me deu de presente e até danço sozinha, como uma louca, para comemorar um não-sei-bem-o-quê que desbloqueia minha mente e minha alma (53). [3]

A carta de Norberto/Berta já tinha sido assimilada pela louca professora aposentada. Às vésperas do novo milênio, sua mente e alma são desbloqueadas pela dança solitária. Ao som do CD, Ana/Diana comemora algo – o projeto de balanço do vivido? o começo da vida? o resto da vida? – desprovido, ainda, de significado. Compete-lhe, pela escrita, dar sentido ao que se lhe apresenta como informe: “É aí que me vem a idéia de escrever o relato. Minha versão do balanço de vida prometido para o encontro [decidido no Jardim da Salvação trinta anos atrás e agendado de São Francisco por Norberto/Berta]” (46).

Crise e revelação, ponta de agulha e microssulco – respectivamente, alicerce temático e alicerce teórico do relato de Ana/Diana – abafam a presença do passado no presente e obstruem a entrada do futuro conivente e esperançoso. Sem história, nem rumo, a professora aposentada de História caminha para a varanda da vida, de onde pretende descortinar a plenitude do instante presente. Esclarece: “Não será um diário, mas um livro do meu presente em movimento, em que as fronteiras entre passado e futuro estão apagadas. Um presente em movimento até o fim dos meus dias” (50). Contraditória ou paradoxalmente, o balanço da vivência – o relato de uma vida vivida e por viver – estará sendo escrito “em ponta de agulha” pela narradora. Ana/Diana passa a viver – e a escrever palavras – “no instante finíssimo em que ocorre”. Na brecha aberta pelo presente, não se bebe saber na fonte da memória ou da experiência; nela imersos, corpo e alma não flutuam gloriosamente nas águas da utopia.

Em linguagem que lembra os mestres Carlos Drummond e João Cabral, a narradora deseja “que elas [as palavras] saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante” (54). Antes, já tinha mencionado o instrumento de que está se valendo para “esculpir o espírito do instante”: “Tomo de uma caneta como se fosse o revólver que comprei. Aponto-a para o papel, disposta a atirar” (48).

No ano de 1999, em Brasília e por toda parte no mundo globalizado, a escrita ficcional é mortífera. Caneta e revólver apontam e atiram tinta e balas. (As “facas afiadas” ficam por enquanto no inconsciente do relato. Só serão desrecalcadas no capítulo final.) Caneta e revólver pertencem, portanto, ao “tempo dos assassinos” (Artur Rimbaud), e se equiparam, respectivamente, no trabalho do balanço da vida pessoal e na vivência cotidiana dos cidadãos nas metrópoles. Durante o percurso de As cinco estações do amor, caneta e revólver estarão atuando lado a lado dos variadíssimos personagens e, na qualidade de co-partícipes do relato, serão os legítimos responsáveis pela lenta e rocambolesca composição do não-sei-bem-o-quê, que compete à narradora, tomada pela música do CD, significar. No relato, impera, portanto, o medo, de que falam a paranóia pervagante, a canção “Alvorada voraz”, na voz de Paulo Ricardo, e antigos poemas de Carlos Drummond. No poema “Nosso tempo”, Drummond resumiu a atualidade: “Tempo de cinco sentidos / num só”. Há perigo em revirar o passado. O perigo ronda os dias atuais dos cidadãos da antiga e pacata Brasília. [4]

A insegurança – na selva do asfalto e diante da vida passada e futura – é a chave-mestra do relato “em ponta de agulha”. Por isso, ao escarafunchar os documentos, cartas e anotações que atestariam a favor dos dias vividos inutilmente, a narradora conclui com palavras ainda inspiradas pelos versos em epígrafe: “É então que desenvolvo a teoria do instantaneísmo, cuja premissa é simples: a realidade, feita de matéria e espírito, é o instante presente. A verdade só existe completamente no instante” (50).

No projeto teórico de relato, a verdade esculpida pelo espírito do instante despreza o ensinamento clássico da cadeia aritmética para se confundir com o zero absoluto da escrita ficcional assassina. Não há número inteiro negativo que precede o zero [-1]; não há número inteiro positivo que o sucede [1]. A vida não se escorregou no despenhadeiro. A grandeza da utopia não alvoroçará a mente. O relato escrito à caneta e/ou com o revólver tem de fazer o valor nulo aritmético significar. Diz o texto: “Quero captar o instante, começar do zero. […] Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. Comigo é freqüente: ver a mesma coisa como promessa de céu ou de inferno. Num piscar de olhos, o claro vira escuro” (50/51). [5]

No projeto teórico de relato, tal como exposto pela narradora, o zero da escrita da vida não conduz à inação nem ao silêncio. É um indecidível [6] (céu/inferno, claro/escuro). O zero é palavra e é promessa de começo – ou de novo olhar, se o leitor se lembrar do modo como se dá o processo de conversão ao catolicismo na poesia de Murilo Mendes – [7] para a vida e seu relato.

O indecidível temporal e temático se sobrepôs ao indecidível no plano da narradora e dos personagens homossexuais, que vinham acompanhando o leitor desde as páginas iniciais. O forte de Ana/Diana – como foi anunciado – é o indecidível de personae. Desde o primeiro capítulo ela se desdobra em “Diana, a aventureira; Ana, a recatada. Diana, a corajosa; Ana, a que sofria os estragos da coragem” (23). [8] Ainda se sobrepôs ao indecidível de gênero [gender], como é o caso de Norberto/Berta, que propiciou a crise, a revelação e o relato de Ana/Diana.

Bissexual na juventude (é pai dum filho), Norberto foi progressivamente se assumindo como homossexual, até se apresentar como Berta, o traveco. Sem a indispensável identidade feminina nos documentos, Berta espera reaparecer em Brasília, ocupando o lugar vazio deixado por Helena, a amiga e guerrilheira assassinada no Araguaia pela repressão militar e dada pela ditadura como desaparecida (68/9). Frustrada em seu intento de clonagem, Berta acaba por comprar documentos falsos num cartório de Goiás. A partir da metade do romance, Norberto é Mona Habib, uma libanesa cuja família tinha regressado à terra natal (121). As sucessivas e a definitiva metamorfose identitária de Norberto desgostam Ana/Diana, sua melhor e mais íntima amiga. Em reviravolta sentimental e amorosa, passa a se sentir agredida pelas imaginações pecaminosas e as farolices sexuais desenvolvidas pelo traveco na vida noturna de Brasília.

Diana/Ana reencontra no passado o ditado da consciência moral conservadora, recupera-o para liberá-lo em atitude imprevista. Enxota Berta de casa.

Salientamos a mudança brusca no comportamento sentimental e amoroso de Diana/Ana para chamar a atenção para uma reviravolta definitiva no relato. Ao meio dele, o principal drama trabalhado não é mais as contínuas e intermináveis transformações por que vem passando a nova Ana/Diana, operadas pela destruição de anotações pessoais e de documentos antigos, que atestavam sobre o equívoco e a inutilidade da vida vivida. O principal conflito de As cinco estações do amor passa a residir no modo como o projeto teórico de relato – imaginado no parágrafo de abertura, com o respaldo dos versos de João Cabral – se contradiz com o retorno intempestivo, inconveniente e agressivo de sentimentos e emoções intolerantes (para dizer o mínimo) que – o leitor acredita – tinham sido sepultados por Ana/Diana na bolacha de vinil.

O microssulco romanesco do cotidiano é representado pelos valores do passado e por palavras tão homofóbicas e inquisitoriais quanto as escritas na papelada antiga, que estava sendo jogada na lata de lixo da história pessoal, ou sendo queimada. O projeto teórico de relato se transforma em outro para que a vida continue a mesma de ontem e se abra para um futuro previsível. Assim como, em virtude da repressão militar, o projeto teórico de guerrilha dos anos 1960 se distanciara gradativamente das boas intenções revolucionárias, o projeto teórico de relato, em virtude da atitude repressiva de Diana/Ana às portas do novo milênio, se distancia da vida a ser vivida em ponta de agulha. Apesar da entrega à dança do instante, a mente e a alma de Ana/Diana voltaram a ser bloqueadas, agora pela força imperiosa do neoconservadorismo finissecular.

O revólver comanda a escrita à caneta do relato.

A personagem-narradora cede, pois, o lugar de destaque a Berta, que passa a ganhar os contornos de única e verdadeira heroína do relato teórico e a autêntica deflagradora dos dramas assassinos e absurdos de quem decide viver a vida em ponta de agulha. Se a carta postada em São Francisco provocara crise e revelação em Ana/Diana, a presença ao vivo e em cores de Berta na vida social brasiliense tensiona a armação balbuciante da amizade amorosa que por ela diz nutrir. A narradora-personagem instituiu a possibilidade e agora desconstitui a realização do amor platônico entre mulheres que foram além da diferença biológica. Para que deixar aflorar no relato libertário o prazer apaixonante do sexo entre homem e mulher que não segue a ordenação papai-mamãe? [9]

Berta não se deixa confundir pelas boas intenções pseudo-amorosas e revolucionárias de Ana, sua hospedeira e melhor amiga, e de seu relato, entregue ao leitor como work in progress. Desperta Diana, a corajosa, do sono letárgico em que passara a viver nos momentos de apaziguamento de Ana, a recatada, e, sem papas na língua, lhe joga na cara: “Você tem preconceito contra gente como eu. Não acredita que só estou interessada em encontrar alguém que me ame. Acha que fico mudando de homem a torto e a direito” (124). Apenas Chicão, outro homossexual do grupo de inúteis, finca-pé nas boas intenções revolucionárias do projeto teórico de vida, questionando a atitude arrogante e arbitrária de Diana, que passa a obscurecer e a escurecer o relato cristalino em ponta de agulha. Leia-se o diálogo entre Diana e Chicão, em seguida à saída de Berta da casa que a acolhera:

_Berta só levou uma mala pequena, com parte do guarda-roupa. Não deve tardar a voltar, pelo menos pra buscar suas coisas. Só me assustou não encontrar o revólver sobre o guarda-roupa – informo [Diana informa] a Chicão.

_Pode ser que nunca mais volte – ele joga na minha cara seu realismo cru (125).

Sem a presença de Berta (“Espero que Berta reapareça para o reencontro dos inúteis”, 143) e com a presença à última hora de Carlos, viúvo, vizinho e paquera, o aguardado réveillon do milênio – apesar do champanhe que escorre das mil e uma garrafas como água de torneira – transcorre num clima de agua fiestas, como dizem nossos hermanos. “Abrimos mais garrafas de champanhe. Ouvem-se as explosões dos fogos. É meia-noite, começo do novo ano, do novo século, do novo milênio. _Gente, que emoção! – exclama Marcelo, acordando de um cochilo”. Só a atitude de Marcelo (amante de Chicão) traduz a falsidade íntima que governa a dupla comemoração frustrada: o desânimo que o tinha abatido e levado ao sono é interrompido pela explosão dos fogos de artifício lá fora, nas ruas da cidade.

A culpa e o remorso – valores passadistas por excelência em relato de ponta de agulha – irrompem no ambiente aparentemente festivo e fazem o projeto teórico de relato se esboroar nas migalhas da intolerância. Ao entregar a condução da própria vida e do relato à corajosa Diana, observa Ana: “Berta, que me cobrou a convocação deste encontro, sequer deu notícias. Não quer enfrentar o olhar dos velhos amigos […]. Não, a razão é outra, entendo Berta: não tem motivos para aparecer, depois do que aconteceu entre nós duas” (146). Páginas adiante, retorna a ausência violentamente presente de Berta: “Faltou Berta. Talvez ela tenha querido simplesmente cortar o contato conosco. Sou a culpada de sua ausência. Ofendi-a por causa de meus preconceitos. Chicão sacou bem, tenho de admitir. Sobretudo faltou a elevação, a epifania, que ultrapassasse a banalização do cotidiano […]. Chicão está certo, vai continuar tudo igual” (157, grifo meu). [10]

Perdidos os valores presentes do indecidível, a banalização e a mesmice imperam no comportamento cotidiano de Ana/Diana e corroem o projeto teórico de livro. Não houve começo nem novo olhar. A banalização e a mesmice imperam e irão destruir o próprio livro, que, aliás, tinha passado a ser escrito em computador – e não mais à caneta e com revólver. Imperam e desviam de seu norte a vida que, ao se narrar, seria vivida em ponta de agulha. As teclas do computador são mais eficientes na corrosão das palavras do que a caneta-revólver que atirava balas pela página e a cidade. Não é por outra razão que caneta-revólver se metamorfoseia numa tesoura, que também escreve, mas apunhala. As palavras do relato saem “feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante”. No dia primeiro de janeiro de 2000, um sábado, um garoto de programa, à saída da boate, dá sessenta tesouradas em Norberto/Berta/Helena/Mona Habib. (O assassinato abriga tantas ressonâncias e significados simbólicos, que entrego à imaginação crítica do leitor a tarefa de enumerá-los e de analisá-los.)

Fracassou o projeto teórico de relato. Perdeu o leme da auto-análise em ponta de agulha para se redefinir pela narrativa minuciosa – diria: realista – dum amontoado infinito de fatos policialescos e trágicos. Os acontecimentos são tantos e paralelos e sucessivos, que o leitor, ao se extraviar da proposta inicial de relato, se adentra por um universo melodramático desatinado e frenético, em que a narradora-personagem não conduz mais o dia-a-dia. O cotidiano de Ana/Diana e dos demais personagens passa a ser conduzido e controlado pelos acontecimentos que sua intolerância, contra a própria vontade, tinha deflagrado. Culpa e remorso não são suficientes para preencher a falta que ama.

Confessa Ana, reafirmando o estrago causado por Diana: “Berta era uma parte importante de mim. Sem ela sou apenas uma metade” (164). Quer refugiar-se no ascetismo monástico e abandonar de vez qualquer veleidade de prazer. Pensa em entrar para o convento. A morte iminente domina seus passos e suas leituras de poemas. (O romancista deu adeus aos versos em epígrafe de João Cabral.) Angustiada, busca a vacina contra a melancolia. Observa: Berta “tinha guiado meu último ano, criado a expectativa do reencontro do milênio e indiretamente me levado a tentar revolucionar a minha vida com a destruição de meus papéis e a composição do relato ainda não concluído” (167). Pé cá pé lá, em ausência presente e em silêncio tumular, Berta é responsável pelas mudanças inevitáveis no projeto teórico de vida e de relato. Ela guia Ana/Diana à destruição do computador, [11] entregando-lhe – de volta e em troca das tesouradas – o revólver com a função de caneta. Leva Diana a se suicidar, destruindo pelo fogo os papéis e a casa, de onde tinha sido expulsa.

Anota a narradora: “Minha alma está morta, falta agora matar meu corpo” (169). Continuemos a ler: “Alcanço o revólver, aponto-o para o meu ouvido e disparo. Quando recobro a consciência, vejo um crucifixo no alto da parede branca na minha frente” (171). O fogo ateado nos documentos e papéis pessoais se alastrara pela casa, atingira a garagem, onde explodira o carro. O relato de palavras e silêncio, incendiado, vira cinzas, e se abre para a imagem do crucifixo na parede do hospital, símbolo já anunciado pela culpa e o remorso. Instala-se o clima de quarta-feira de cinzas, que é paródico do projeto teórico de vida.

De cinzas, o relato se deixa recobrir por páginas de grande sensibilidade, onde se agigantam o amor demonstrado pelos familiares e a amizade dos antigos amigos inúteis. A nova bolacha de vinil rodopia pelo prato do toca-discos como o poema “Ash-Wednesday”, de T. S. Eliot, cuja leitura seria recomendável, e emite os acordes de marcha fúnebre das boas intenções revolucionárias da tolerância cristã. As “aventuras da solidão” (título do primeiro capítulo) perdem terreno para as “paixões de suicidas” (título do quarto), que despertam a solidariedade nos que são semelhantes e próximos. A presença/ausência de Berta serve de pano de fundo para a quarta-feira-de-cinzas, e não é paródica do projeto teórico de relato: “Foi sua chegada [de Norberto/Berta] que me abriu para uma vida nova; foi sua morte que me levou ao abismo. Ela atravessa minha vida, dividindo-a em duas”.

Dividindo-a em três, corrige o leitor atento, que se apoiou no texto: “Que das cinzas cresça um galho novo de mim – trêmulo, frágil, mais disposto a viver” (183). Das cinzas renasce uma Ana/Diana amorosa à antiga, atenta aos reclamos da amizade e sensível ao amor desprovido das loucuras que tinha vivenciado com Cadu. O apaziguamento interior pelo suicídio é a forma autêntica da derrota frente à presença ultrajante e inexorável de Berta e dos fogos de artifício a saudar o novo milênio. Ele é a forma de culpa-remorso que o personagem auto-injeta (self inflict) para se salvar. Ana/Diana se fez duplamente vítima e, como Fênix, renasce das cinzas para o crucifixo na parede.

A quinta estação [12] do amor tem lugar em Taimbé, cidade natal de Ana, para onde retorna em busca da necessária e indispensável paz de espírito. O antigo projeto teórico deu em nada, ou melhor, dera origem a um “livro de pedra”. Dele Ana se desfaz, com o intuito de recomeçar uma experiência de vida centrada “na história de uma criança velha, eu mesma, que se revolta porque o mundo mudou ao seu redor” (184). Acarinhada pelas mãos do mundo, recebe a visita de Carlos – seu salvador – em Taimbé. Ele a salva pela segunda vez, pois com ele vem a se casar.

A narradora-personagem tem que refazer a teoria do instantaneísmo: “As coisas evoluem em muitas direções, mas há momentos em que um conjunto delas se apresenta harmoniosamente a uma perspectiva inesperada. Às vezes, olhando numa direção nova, a gente descobre que a confusão se arruma” (188). A linearidade dos sucessivos instantes de vida, proporcionada pela ponta de agulha em contato com o microssulco “do espírito do instante presente”, cede lugar a um amontoado de fatos – coisas que evoluem em múltiplas direções -, que passa a ser organizado por entroncamentos inesperados. Para se chegar ao fim da vida, a baldeação é o modo de percurso do novo relato. Perde-se também o sentido do indecidível: “Agora me recuso a pensar que tudo é nada. Perco a certeza de que é melhor viver de perguntas e indecisão, prever que tudo é imprevisível, determinar que tudo é indeterminado” (188).

Na verdade, a nova face da vida íntima de Ana/Diana prima pelo disfarce: “Puxo fumo escondida de Carlos”. A partir do gesto-atitude solitário e sub-reptício de fumar um baseado, brotam as muitas direções pelas quais as coisas evoluem e conduzem Ana/Diana e Carlos, seu marido, à beira do Lago Paranoá e de volta à casa. Decorrente do disfarce do baseado, que lhe fora dado de presente por Cadu, surge o corpo lânguido e sensual de Berta, que conduz o casal pelo périplo brasiliense. Retomo a citação: “Puxo fumo escondida de Carlos. Depois lhe proponho um passeio a pé, me lembrando das caminhadas com Berta, ela com as mãos na cintura, requebrando na minha frente e de Vera, pedindo nosso conselho sobre a medida certa para seus gestos de mulher” (194). Carlos inexiste sentimental e amorosamente. De volta à casa, Ana/Diana – tomada pelo gosto de Cadu e a lembrança de Berta, insistamos – é levada a usar pela última vez o revólver. Reencontra um dos assassinos da amiga, que sempre a tinha ameaçado também. Ao se defender, vinga com o revólver e as palavras a morte de Mona Habib.

[…] o canalha vem na minha direção, aviso que não se aproxime, ele nem liga, continua vindo, então dou um primeiro tiro, acerto-o na altura do peito, dou um segundo, outra vez acerto-o, é como se seguisse com toda a segurança a direção da bala, como se tivesse controle sobre ela, não erro pontaria, o terceiro tiro fere-o na cabeça, ele cai, dou um quarto, talvez fatal, bem de perto, também na cabeça, e, por fim, com o cano do revólver do sem-vergonha, revejo num flash minha tentativa de suicídio e dou mais um, o último e quinto tiro (195).

Se a insegurança causada pelo medo fora uma das chaves-mestras a abrir as portas temáticas do projeto teórico de livro, cuja representação simbólica era o zero absoluto, [13] a fatalidade nos afrontamentos interpessoais é sua sucessora e tem como mediação simbólica os meneios e as piruetas dramáticas originadas pela compra e o uso do revólver – sempre o mesmo e sempre fatal.

Ana/Diana, narradora-personagem, e Norberto/Berta, principal protagonista, são acidentais. O revólver é a figura dramática dominante em As cinco estações do amor. Percorre-o de fio a pavio, de maneira contraditória e muitas vezes paradoxal. A narradora conclui que o relato “é definitivo não porque [ele] substitui todos os outros, como eu quis um dia, mas porque é precário; quando termina, é inteiramente o passado deste instante e pode ser guardado intacto, como um retrato, para sempre” (199). Permanece a pergunta insidiosa que, pela negação de seu poder de fogo, dera origem ao projeto teórico de relato e que, ao final, vem selar seu fracasso: “qual presente existe sem a dor da ausência?” (198)

“… forjam as armações / farsas e jogos / armas de fogo / um corte exposto / em seu rosto amor…”

Silviano Santiago

[1] Minha alusão à metáfora de Drummond não é gratuita. Ao poema citado seguem-se, em Claro enigma, “Remissão”, “A ingaia ciência” e “Legado”. Os quatro poemas, em particular o terceiro, levam o leitor a trilhar o percurso propriamente poético – no caso, elegíaco – da prosa de As cinco estações do amor e o compromisso da narradora-personagem, natural de Taimbé, Minas Gerais, com o melhor da literatura de seu estado. Do poema “A ingaia ciência”, cito esta estrofe como exemplo: “A madureza essa terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela […]”. Tampouco o leitor deveria descartar semelhanças do romance com um dos clássicos da mineiridade, que é Encontro marcado (1956), de Fernando Sabino. Embora a situação dramática seja aparentada, a trama de As cinco estações do amor se desenvolve de maneira diferente. Esses exemplos são trazidos para mostrar que há um modo comum (mineiro?) de se pensar a experiência da vida.
[2] Não se deve confundir a idéia de começo, como a que reapresento aqui, com passagem tardia do romance, em que também se fala de começo. Cito a passagem: “Um dos [gatinhos] amarelinhos nasce com as patas brancas. Estou feliz. É como se minha vida tivesse um novo começo, com a chegada dos gatinhos e de Norberto” (72). Começo, nessa frase, guarda um peso sentimental alheio à proposta teórica de livro/vida que estará sendo desenvolvida ao largo do romance.
[3] O número de página da citação vem e continuará a vir logo depois dela e entre parênteses.
[4] O revólver que Ana/Diana possui e carrega na bolsa, além de ser referência contínua em todo o relato, como se verá, é também símbolo da impunidade reinante em Brasília. Leia-se, por exemplo, este trecho: “Penso nos crimes que marcaram a história desta cidade, desde o seqüestro e a morte banal, nunca esclarecidos, da menina Ana Lídia, já há muitos anos, até mais recentemente o incêndio de um índio por garotos que queriam apenas se divertir” (37).
[5] Na conferência que dará na Universidade de Brasília, a convite do colega Jeremias, a professora aposentada de História terá a oportunidade de esclarecer o que entende filosoficamente por instantaneísmo: “Defendo meu ismo: a aceleração do tempo não nos deixa outra saída senão a do instantaneísmo. Não me refiro à paisagem ideal, em que predominam a quietude e o repouso, mas ao instante em movimento, como numa pintura de Klee, ou ao movimento no instante, ao imediatamente visível e ao sentido com causa e produto instantâneos da ação. ‘Não fujamos do instante’, conclamo a platéia, pondo naquelas palavras toda a minha garra” (93). Essa reflexão, que se complementa pela “teoria do pêndulo bêbado” (112/113), será retomada no capítulo IV, momento em que, terminado o longo período de abstinência sexual, Diana (e não mais Ana) se entrega totalmente a Cadu: “Tento lhe explicar [a Cadu], da forma mais simples que consigo, que este momento com ele me ilumina sobre o sentido do instantaneísmo” (140). Após a transa, confessa: “Estou abandonada neste barco da paixão” (141).
[6] Para a noção de indécidable (indecidível), v. Jacques Derrida, “La pharmacie de Platon” em Dissémination (1973).
[7] Murilo Mendes, outro poeta mineiro, e seu poema “Meu novo olhar” (1934) se encaixam bem aqui: “Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagem / e não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas, / mas se dilata à vista da musa bela e serena, / a que me conduzirá ao amor essencial”.
[8] À p. 10, anota a narradora: “Diana é meu lado avesso, que sempre morou dentro de mim. Eu devia ter sido registrada como Ana, nome escolhido de comum acordo por meus pais. Mas Diana foi o primeiro nome que mamãe quis me dar […]”.
[9] Com Cadu, Ana/Diana experimenta o coito anal: “Meu prazer envolve com um anel espesso seu sexo duro, que sinto como punhal dançarino, aço de tesão que sobe por minhas nádegas, cava meu rego, explora meu outro buraco, chafurda no meu mais fundo” (137).
[10] Bem mais adiante no relato se lerá o mea-culpa que dará continuidade ao remorso: “Sou mesmo uma filha-da-puta pequeno-burguesa. A culpa é minha. Chicão tinha razão de falar de meu moralismo. Em vez de dar carinho a Berta, de retribuir seus cuidados, a fiz fugir de casa. [….] Joguei-a aos leões” (164/165).
[11] Ao saber da morte de Berta, a narradora toma “a decisão de jogar no lixo [seu] computador portátil, onde escrevia o relato definitivo, que já não faz mais sentido […]” (169).
[12] Acreditamos que “estação” remete inicialmente à experiência rimbaldiana de Une saison en enfer, para em seguida se apoiar nas estações que compõem a via-sacra, a Paixão de Cristo. Os dois sentidos – o primeiro nitidamente hedonista e o segundo de inspiração cristã – se entrelaçam, com predomínio do segundo, no último capítulo do romance. Não é por coincidência que empresta o título ao romance.
[13] A forma mais terrível de medo fora despertada pela radicalidade do projeto teórico de livro. Cf. pelo seu oposto: “O texto definitivo, vivo e único […] não pode ser um zero” (199).

Todos se lembram das cidades-fantasmas da mineração, entrevistas nos faroestes do cinema ou na literatura das Minas Gerais. Brasília é uma cidade-fantasma às avessas. Ela acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada no planalto pelo imaginário dos arquitetos, pelo concreto das construtoras e pelo trabalho dos pedreiros. Uma cidade-fantasma às avessas é antibíblica, réplica leiga que é de Sodoma. Dá-se à luz no momento em que os casulos vazios bauhaus passam a ser ocupados por migrantes. Ao contrário do que mostra o silêncio asséptico dos cartões-postais, que só retratam o monumental, Brasília é rasteira e barulhenta. Humana demasiadamente humana. Uma cidade à medida do amor e da amizade, e não do Poder nela encalacrado.

A Brasília de carne e osso é matéria para ficcionistas, poetas e músicos pop. Com a Trilogia de Brasília, de que vamos ler agora As cinco estações do amor, João Almino define-se como o mais completo “autor” de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali aportaram. São essas vozes que o ouvido afinado de João Almino vem surpreendendo. Capta-as com a sua implacável kodak romanesca. Imagens instantaneístas da revolução que não houve, do homem novo que deveria ter sido, do fim do mundo que não chega, da passagem do milênio que se comemora, para quê?

O último volume da trilogia preocupa-se com os migrantes que não mais o quiseram ser. Fincaram pé na poeira para sempre, transformando-se no grupo felliniano de “Os inúteis”. As cinco estações do amor detém-se nas histórias frustradas desses remanescentes da geração pós-68. Pensaram que na cidade do futuro estava o futuro da humanidade. A ação desse novo e extraordinário romance de João Almino se passa hoje, nos primeiros dias do novo século, do novo milênio. Fecha-se a cortina do passado.

Segundo o romancista, a utopia está hoje na redefinição das relações possíveis entre as pessoas. João Almino mói no áspero. Amor e amizade. Sexo e sensualidade. Desejo e violência. Daí o naipe de personagens, que tanto aponta para as transformações revolucionárias que deveriam ter sido quanto para as mutações comportamentais que estão sendo. Ex-guerrilheiros convivem com homossexuais e travestis, jovens criminosos contrastam com a maturidade (in)conformada.

Se Brasília é a cidade-fantasma que anunciava o fim da metáfora do Brasil como país também fantasma, As cinco estações do amor redefine a nação brasileira como algo que esteve para ser inventado pelos homens. No novo milênio, os casulos vazios bauhaus não têm mais a forma de cubos e esferas. Página virada pelos inúteis. Temos hoje os casulos vazios da terra improdutiva. “Pratico o pessimismo como método”, afirma o romancista e pensador João Almino.

Atenção: pessimismo não se confunde com derrotismo.

É luminoso o parágrafo que abre As cinco estações do amor (2001), o premiado romance de João Almino. Na idade madura, enxergam-se melhor os fatos da vida depois de dois dias de “crise e revelação”. Aquela é motor desta, e ambas são sucessivamente despertadas na mente da narradora-personagem por uma carta postada em São Francisco, na Califórnia. A carta vem assinada por um/a antigo/a amigo/a (a indefinição no gênero do/a remetente se impõe). Crise e revelação repercutem numa dessas tardes quentes de Brasília, em que os olhos, a imaginação e o coração renovados da destinatária da carta descortinam a paisagem da vida vivida, a espelhar a esterilidade da recordação que não mais fecunda os dias presentes e futuros. O primeiro parágrafo do romance diz ainda: “Há erros que só aparecem com a experiência, quando já não conseguimos corrigi-los”.

A carta enviada de São Francisco chega às mãos de Ana/Diana, narradora-personagem de As cinco estações do amor, no dia em que completa 55 anos. Ela é professora aposentada de História, da Universidade de Brasília. Na carta, Norberto – ou Berta, como passou a se chamar depois da cirurgia transexual, da maquiagem pesada e do guarda-roupa novo – anuncia a próxima chegada à capital federal e, em lembrança do compromisso assumido trinta anos atrás pelo “grupo de inúteis”, de que fizeram parte, convoca os sobreviventes para se reunirem no dia 31 de dezembro de 1999 à noite, uma sexta-feira. Dispersos pelo Brasil e o mundo, os coroas se reuniriam em Brasília para o réveillon do milênio. Durante o jantar comemorativo, fariam o balanço das respectivas vidas, em conformidade com o acordo selado em histórica viagem mística pelo Jardim da Salvação.

Em crise de descobertas, Ana/Diana se dá conta de que os dias passados se foram definitivamente e, por isso, inexiste a oportunidade de remendar os enganos e equívocos da vida vivida, que passa a se lhe afigurar como vazia. Por os fatos antigos não serem passíveis de remendo na ocasião em que revelam o que verdadeiramente significam, ela tampouco dispõe de instrumentos que poderiam “evitar o que vai acontecer”. Braços cruzados, Ana/Diana se entrega ao instante presente e à exploração de sua plenitude. Por um lado, aprende a conviver com os erros passados e com a impossibilidade de transformá-los em algo de positivo. Por outro lado, acata os dias futuros tal como formatados não só pelos antigos enganos, como também pela crise e a revelação deflagradas pela carta de Norberto, o velho companheiro de inutilidades e hoje travesti assumido. Colocada contra a parede do século, que se vai, e do milênio, que se anuncia no reencontro com os antigos companheiros, Ana/Diana é a primeira do grupo a se impor o balanço subjetivo e geracional como tarefa diária. Esta exige uma mudança drástica de comportamento, de vida.

À voz castrada da experiência, João Almino tinha contraposto – em epígrafe tomada ao poeta João Cabral de Melo Neto – o refúgio na ladainha do cotidiano. Ela reza que a vida se nos apresenta em alternativas insalubres ou redentoras – ou se mata o tempo, ou se o vivencia à flor da pele. Ou se tem a coragem de dar como perdido o tempo passado, em atitude radical e anti-proustiana, ou – como orienta João Cabral – se toma carona na vida “enquanto [o tempo] ocorre, ao vivo”. Ao matar o passado e a vida futura com uma cajadada só, a narradora recorre ao subterfúgio da imaginação, essa “falsa demente”, como a apelidou corretamente Carlos Drummond de Andrade no poema “Dissolução”. [1] A falsa demente incita o ser humano – como aconselham os versos em epígrafe – a viver “em ponta de agulha […], viver a agulha de um só instante, plenamente”.

Quando me adentrei pelo primeiro parágrafo do romance de João Almino e reli os versos de João Cabral no lugar que passaram a ocupar, não consegui desvencilhar-me da imagem dum long play silencioso, em 33 1/3 RPM (rotações por minuto), depositado num prato de toca-discos. Ali estavam as duas raízes teóricas que, imbricadas, explicitavam o “commencement” (para retomar o conceito clássico de Roland Barthes) [2] da magnífica prosa que iria ler. O long play viria a soar – e que belo som mobiliaria o espaço interior do romance e invadiria o ambiente da leitura! – se deixasse seu microssulco espiralado ser ferido, desperto e aguçado pela agulha de vitrola do cotidiano.

Ao caminhar pelo microssulco da borda externa para o centro do vinil, a agulha vibra, e as vibrações são transformadas nos sinais elétricos da prosa de As cinco estações do amor. “Viver a agulha de um só instante, plenamente” – como prenuncia a epígrafe. (Por associação de idéias, ou por ser Brasília uma das capitais da música pop brasileira, relembro o som da guitarra de Fernando Deluqui e a voz de Paulo Ricardo, da banda RPM. Ele começa a cantar “Alvorada Voraz”: “Na virada do século / Alvorada Voraz / nos aguardam exércitos / […] a face do mal / um grito de horror / um fato normal / um êxtase de dor / E medo de tudo / Medo do nada / Medo da vida / Assim engatilhada / fardas e força / forjam as armações / farsas e jogos / armas de fogo / um corte exposto / em seu rosto amor…”.)

Lidas as primeiras páginas do romance, sinto-me reconfortado. A agulha da vitrola cabralina tinha atendido ao comando dado pelo botão de controle, perdão, pelo primeiro parágrafo. Passa a vibrar, e os sinais elétricos, ao explodirem no alto-falante da página, enunciam as palavras e o silêncio gravados no microssulco espiralado. Palavras e silêncio encaminham o leitor da borda (da epígrafe e do primeiro parágrafo) para o eixo de rotação da trama romanesca – o pino central do toca-discos, de onde a narradora comanda a ação. Ana/Diana é finissecular e, em evidente desprezo pela tecnologia old-fashioned da bolacha de vinil (evocada pelo prefaciador, imerso em recordações), confessa a preferência pela varredura feita por raio laser:

Ligo o som, ouço o CD animado que Jeremias me deu de presente e até danço sozinha, como uma louca, para comemorar um não-sei-bem-o-quê que desbloqueia minha mente e minha alma (53). [3]

A carta de Norberto/Berta já tinha sido assimilada pela louca professora aposentada. Às vésperas do novo milênio, sua mente e alma são desbloqueadas pela dança solitária. Ao som do CD, Ana/Diana comemora algo – o projeto de balanço do vivido? o começo da vida? o resto da vida? – desprovido, ainda, de significado. Compete-lhe, pela escrita, dar sentido ao que se lhe apresenta como informe: “É aí que me vem a idéia de escrever o relato. Minha versão do balanço de vida prometido para o encontro [decidido no Jardim da Salvação trinta anos atrás e agendado de São Francisco por Norberto/Berta]” (46).

Crise e revelação, ponta de agulha e microssulco – respectivamente, alicerce temático e alicerce teórico do relato de Ana/Diana – abafam a presença do passado no presente e obstruem a entrada do futuro conivente e esperançoso. Sem história, nem rumo, a professora aposentada de História caminha para a varanda da vida, de onde pretende descortinar a plenitude do instante presente. Esclarece: “Não será um diário, mas um livro do meu presente em movimento, em que as fronteiras entre passado e futuro estão apagadas. Um presente em movimento até o fim dos meus dias” (50). Contraditória ou paradoxalmente, o balanço da vivência – o relato de uma vida vivida e por viver – estará sendo escrito “em ponta de agulha” pela narradora. Ana/Diana passa a viver – e a escrever palavras – “no instante finíssimo em que ocorre”. Na brecha aberta pelo presente, não se bebe saber na fonte da memória ou da experiência; nela imersos, corpo e alma não flutuam gloriosamente nas águas da utopia.

Em linguagem que lembra os mestres Carlos Drummond e João Cabral, a narradora deseja “que elas [as palavras] saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante” (54). Antes, já tinha mencionado o instrumento de que está se valendo para “esculpir o espírito do instante”: “Tomo de uma caneta como se fosse o revólver que comprei. Aponto-a para o papel, disposta a atirar” (48).

No ano de 1999, em Brasília e por toda parte no mundo globalizado, a escrita ficcional é mortífera. Caneta e revólver apontam e atiram tinta e balas. (As “facas afiadas” ficam por enquanto no inconsciente do relato. Só serão desrecalcadas no capítulo final.) Caneta e revólver pertencem, portanto, ao “tempo dos assassinos” (Artur Rimbaud), e se equiparam, respectivamente, no trabalho do balanço da vida pessoal e na vivência cotidiana dos cidadãos nas metrópoles. Durante o percurso de As cinco estações do amor, caneta e revólver estarão atuando lado a lado dos variadíssimos personagens e, na qualidade de co-partícipes do relato, serão os legítimos responsáveis pela lenta e rocambolesca composição do não-sei-bem-o-quê, que compete à narradora, tomada pela música do CD, significar. No relato, impera, portanto, o medo, de que falam a paranóia pervagante, a canção “Alvorada voraz”, na voz de Paulo Ricardo, e antigos poemas de Carlos Drummond. No poema “Nosso tempo”, Drummond resumiu a atualidade: “Tempo de cinco sentidos / num só”. Há perigo em revirar o passado. O perigo ronda os dias atuais dos cidadãos da antiga e pacata Brasília. [4]

A insegurança – na selva do asfalto e diante da vida passada e futura – é a chave-mestra do relato “em ponta de agulha”. Por isso, ao escarafunchar os documentos, cartas e anotações que atestariam a favor dos dias vividos inutilmente, a narradora conclui com palavras ainda inspiradas pelos versos em epígrafe: “É então que desenvolvo a teoria do instantaneísmo, cuja premissa é simples: a realidade, feita de matéria e espírito, é o instante presente. A verdade só existe completamente no instante” (50).

No projeto teórico de relato, a verdade esculpida pelo espírito do instante despreza o ensinamento clássico da cadeia aritmética para se confundir com o zero absoluto da escrita ficcional assassina. Não há número inteiro negativo que precede o zero [-1]; não há número inteiro positivo que o sucede [1]. A vida não se escorregou no despenhadeiro. A grandeza da utopia não alvoroçará a mente. O relato escrito à caneta e/ou com o revólver tem de fazer o valor nulo aritmético significar. Diz o texto: “Quero captar o instante, começar do zero. […] Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. Comigo é freqüente: ver a mesma coisa como promessa de céu ou de inferno. Num piscar de olhos, o claro vira escuro” (50/51). [5]

No projeto teórico de relato, tal como exposto pela narradora, o zero da escrita da vida não conduz à inação nem ao silêncio. É um indecidível [6] (céu/inferno, claro/escuro). O zero é palavra e é promessa de começo – ou de novo olhar, se o leitor se lembrar do modo como se dá o processo de conversão ao catolicismo na poesia de Murilo Mendes – [7] para a vida e seu relato.

O indecidível temporal e temático se sobrepôs ao indecidível no plano da narradora e dos personagens homossexuais, que vinham acompanhando o leitor desde as páginas iniciais. O forte de Ana/Diana – como foi anunciado – é o indecidível de personae. Desde o primeiro capítulo ela se desdobra em “Diana, a aventureira; Ana, a recatada. Diana, a corajosa; Ana, a que sofria os estragos da coragem” (23). [8] Ainda se sobrepôs ao indecidível de gênero [gender], como é o caso de Norberto/Berta, que propiciou a crise, a revelação e o relato de Ana/Diana.

Bissexual na juventude (é pai dum filho), Norberto foi progressivamente se assumindo como homossexual, até se apresentar como Berta, o traveco. Sem a indispensável identidade feminina nos documentos, Berta espera reaparecer em Brasília, ocupando o lugar vazio deixado por Helena, a amiga e guerrilheira assassinada no Araguaia pela repressão militar e dada pela ditadura como desaparecida (68/9). Frustrada em seu intento de clonagem, Berta acaba por comprar documentos falsos num cartório de Goiás. A partir da metade do romance, Norberto é Mona Habib, uma libanesa cuja família tinha regressado à terra natal (121). As sucessivas e a definitiva metamorfose identitária de Norberto desgostam Ana/Diana, sua melhor e mais íntima amiga. Em reviravolta sentimental e amorosa, passa a se sentir agredida pelas imaginações pecaminosas e as farolices sexuais desenvolvidas pelo traveco na vida noturna de Brasília.

Diana/Ana reencontra no passado o ditado da consciência moral conservadora, recupera-o para liberá-lo em atitude imprevista. Enxota Berta de casa.

Salientamos a mudança brusca no comportamento sentimental e amoroso de Diana/Ana para chamar a atenção para uma reviravolta definitiva no relato. Ao meio dele, o principal drama trabalhado não é mais as contínuas e intermináveis transformações por que vem passando a nova Ana/Diana, operadas pela destruição de anotações pessoais e de documentos antigos, que atestavam sobre o equívoco e a inutilidade da vida vivida. O principal conflito de As cinco estações do amor passa a residir no modo como o projeto teórico de relato – imaginado no parágrafo de abertura, com o respaldo dos versos de João Cabral – se contradiz com o retorno intempestivo, inconveniente e agressivo de sentimentos e emoções intolerantes (para dizer o mínimo) que – o leitor acredita – tinham sido sepultados por Ana/Diana na bolacha de vinil.

O microssulco romanesco do cotidiano é representado pelos valores do passado e por palavras tão homofóbicas e inquisitoriais quanto as escritas na papelada antiga, que estava sendo jogada na lata de lixo da história pessoal, ou sendo queimada. O projeto teórico de relato se transforma em outro para que a vida continue a mesma de ontem e se abra para um futuro previsível. Assim como, em virtude da repressão militar, o projeto teórico de guerrilha dos anos 1960 se distanciara gradativamente das boas intenções revolucionárias, o projeto teórico de relato, em virtude da atitude repressiva de Diana/Ana às portas do novo milênio, se distancia da vida a ser vivida em ponta de agulha. Apesar da entrega à dança do instante, a mente e a alma de Ana/Diana voltaram a ser bloqueadas, agora pela força imperiosa do neoconservadorismo finissecular.

O revólver comanda a escrita à caneta do relato.

A personagem-narradora cede, pois, o lugar de destaque a Berta, que passa a ganhar os contornos de única e verdadeira heroína do relato teórico e a autêntica deflagradora dos dramas assassinos e absurdos de quem decide viver a vida em ponta de agulha. Se a carta postada em São Francisco provocara crise e revelação em Ana/Diana, a presença ao vivo e em cores de Berta na vida social brasiliense tensiona a armação balbuciante da amizade amorosa que por ela diz nutrir. A narradora-personagem instituiu a possibilidade e agora desconstitui a realização do amor platônico entre mulheres que foram além da diferença biológica. Para que deixar aflorar no relato libertário o prazer apaixonante do sexo entre homem e mulher que não segue a ordenação papai-mamãe? [9]

Berta não se deixa confundir pelas boas intenções pseudo-amorosas e revolucionárias de Ana, sua hospedeira e melhor amiga, e de seu relato, entregue ao leitor como work in progress. Desperta Diana, a corajosa, do sono letárgico em que passara a viver nos momentos de apaziguamento de Ana, a recatada, e, sem papas na língua, lhe joga na cara: “Você tem preconceito contra gente como eu. Não acredita que só estou interessada em encontrar alguém que me ame. Acha que fico mudando de homem a torto e a direito” (124). Apenas Chicão, outro homossexual do grupo de inúteis, finca-pé nas boas intenções revolucionárias do projeto teórico de vida, questionando a atitude arrogante e arbitrária de Diana, que passa a obscurecer e a escurecer o relato cristalino em ponta de agulha. Leia-se o diálogo entre Diana e Chicão, em seguida à saída de Berta da casa que a acolhera:

_Berta só levou uma mala pequena, com parte do guarda-roupa. Não deve tardar a voltar, pelo menos pra buscar suas coisas. Só me assustou não encontrar o revólver sobre o guarda-roupa – informo [Diana informa] a Chicão.

_Pode ser que nunca mais volte – ele joga na minha cara seu realismo cru (125).

Sem a presença de Berta (“Espero que Berta reapareça para o reencontro dos inúteis”, 143) e com a presença à última hora de Carlos, viúvo, vizinho e paquera, o aguardado réveillon do milênio – apesar do champanhe que escorre das mil e uma garrafas como água de torneira – transcorre num clima de agua fiestas, como dizem nossos hermanos. “Abrimos mais garrafas de champanhe. Ouvem-se as explosões dos fogos. É meia-noite, começo do novo ano, do novo século, do novo milênio. _Gente, que emoção! – exclama Marcelo, acordando de um cochilo”. Só a atitude de Marcelo (amante de Chicão) traduz a falsidade íntima que governa a dupla comemoração frustrada: o desânimo que o tinha abatido e levado ao sono é interrompido pela explosão dos fogos de artifício lá fora, nas ruas da cidade.

A culpa e o remorso – valores passadistas por excelência em relato de ponta de agulha – irrompem no ambiente aparentemente festivo e fazem o projeto teórico de relato se esboroar nas migalhas da intolerância. Ao entregar a condução da própria vida e do relato à corajosa Diana, observa Ana: “Berta, que me cobrou a convocação deste encontro, sequer deu notícias. Não quer enfrentar o olhar dos velhos amigos […]. Não, a razão é outra, entendo Berta: não tem motivos para aparecer, depois do que aconteceu entre nós duas” (146). Páginas adiante, retorna a ausência violentamente presente de Berta: “Faltou Berta. Talvez ela tenha querido simplesmente cortar o contato conosco. Sou a culpada de sua ausência. Ofendi-a por causa de meus preconceitos. Chicão sacou bem, tenho de admitir. Sobretudo faltou a elevação, a epifania, que ultrapassasse a banalização do cotidiano […]. Chicão está certo, vai continuar tudo igual” (157, grifo meu). [10]

Perdidos os valores presentes do indecidível, a banalização e a mesmice imperam no comportamento cotidiano de Ana/Diana e corroem o projeto teórico de livro. Não houve começo nem novo olhar. A banalização e a mesmice imperam e irão destruir o próprio livro, que, aliás, tinha passado a ser escrito em computador – e não mais à caneta e com revólver. Imperam e desviam de seu norte a vida que, ao se narrar, seria vivida em ponta de agulha. As teclas do computador são mais eficientes na corrosão das palavras do que a caneta-revólver que atirava balas pela página e a cidade. Não é por outra razão que caneta-revólver se metamorfoseia numa tesoura, que também escreve, mas apunhala. As palavras do relato saem “feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante”. No dia primeiro de janeiro de 2000, um sábado, um garoto de programa, à saída da boate, dá sessenta tesouradas em Norberto/Berta/Helena/Mona Habib. (O assassinato abriga tantas ressonâncias e significados simbólicos, que entrego à imaginação crítica do leitor a tarefa de enumerá-los e de analisá-los.)

Fracassou o projeto teórico de relato. Perdeu o leme da auto-análise em ponta de agulha para se redefinir pela narrativa minuciosa – diria: realista – dum amontoado infinito de fatos policialescos e trágicos. Os acontecimentos são tantos e paralelos e sucessivos, que o leitor, ao se extraviar da proposta inicial de relato, se adentra por um universo melodramático desatinado e frenético, em que a narradora-personagem não conduz mais o dia-a-dia. O cotidiano de Ana/Diana e dos demais personagens passa a ser conduzido e controlado pelos acontecimentos que sua intolerância, contra a própria vontade, tinha deflagrado. Culpa e remorso não são suficientes para preencher a falta que ama.

Confessa Ana, reafirmando o estrago causado por Diana: “Berta era uma parte importante de mim. Sem ela sou apenas uma metade” (164). Quer refugiar-se no ascetismo monástico e abandonar de vez qualquer veleidade de prazer. Pensa em entrar para o convento. A morte iminente domina seus passos e suas leituras de poemas. (O romancista deu adeus aos versos em epígrafe de João Cabral.) Angustiada, busca a vacina contra a melancolia. Observa: Berta “tinha guiado meu último ano, criado a expectativa do reencontro do milênio e indiretamente me levado a tentar revolucionar a minha vida com a destruição de meus papéis e a composição do relato ainda não concluído” (167). Pé cá pé lá, em ausência presente e em silêncio tumular, Berta é responsável pelas mudanças inevitáveis no projeto teórico de vida e de relato. Ela guia Ana/Diana à destruição do computador, [11] entregando-lhe – de volta e em troca das tesouradas – o revólver com a função de caneta. Leva Diana a se suicidar, destruindo pelo fogo os papéis e a casa, de onde tinha sido expulsa.

Anota a narradora: “Minha alma está morta, falta agora matar meu corpo” (169). Continuemos a ler: “Alcanço o revólver, aponto-o para o meu ouvido e disparo. Quando recobro a consciência, vejo um crucifixo no alto da parede branca na minha frente” (171). O fogo ateado nos documentos e papéis pessoais se alastrara pela casa, atingira a garagem, onde explodira o carro. O relato de palavras e silêncio, incendiado, vira cinzas, e se abre para a imagem do crucifixo na parede do hospital, símbolo já anunciado pela culpa e o remorso. Instala-se o clima de quarta-feira de cinzas, que é paródico do projeto teórico de vida.

De cinzas, o relato se deixa recobrir por páginas de grande sensibilidade, onde se agigantam o amor demonstrado pelos familiares e a amizade dos antigos amigos inúteis. A nova bolacha de vinil rodopia pelo prato do toca-discos como o poema “Ash-Wednesday”, de T. S. Eliot, cuja leitura seria recomendável, e emite os acordes de marcha fúnebre das boas intenções revolucionárias da tolerância cristã. As “aventuras da solidão” (título do primeiro capítulo) perdem terreno para as “paixões de suicidas” (título do quarto), que despertam a solidariedade nos que são semelhantes e próximos. A presença/ausência de Berta serve de pano de fundo para a quarta-feira-de-cinzas, e não é paródica do projeto teórico de relato: “Foi sua chegada [de Norberto/Berta] que me abriu para uma vida nova; foi sua morte que me levou ao abismo. Ela atravessa minha vida, dividindo-a em duas”.

Dividindo-a em três, corrige o leitor atento, que se apoiou no texto: “Que das cinzas cresça um galho novo de mim – trêmulo, frágil, mais disposto a viver” (183). Das cinzas renasce uma Ana/Diana amorosa à antiga, atenta aos reclamos da amizade e sensível ao amor desprovido das loucuras que tinha vivenciado com Cadu. O apaziguamento interior pelo suicídio é a forma autêntica da derrota frente à presença ultrajante e inexorável de Berta e dos fogos de artifício a saudar o novo milênio. Ele é a forma de culpa-remorso que o personagem auto-injeta (self inflict) para se salvar. Ana/Diana se fez duplamente vítima e, como Fênix, renasce das cinzas para o crucifixo na parede.

A quinta estação [12] do amor tem lugar em Taimbé, cidade natal de Ana, para onde retorna em busca da necessária e indispensável paz de espírito. O antigo projeto teórico deu em nada, ou melhor, dera origem a um “livro de pedra”. Dele Ana se desfaz, com o intuito de recomeçar uma experiência de vida centrada “na história de uma criança velha, eu mesma, que se revolta porque o mundo mudou ao seu redor” (184). Acarinhada pelas mãos do mundo, recebe a visita de Carlos – seu salvador – em Taimbé. Ele a salva pela segunda vez, pois com ele vem a se casar.

A narradora-personagem tem que refazer a teoria do instantaneísmo: “As coisas evoluem em muitas direções, mas há momentos em que um conjunto delas se apresenta harmoniosamente a uma perspectiva inesperada. Às vezes, olhando numa direção nova, a gente descobre que a confusão se arruma” (188). A linearidade dos sucessivos instantes de vida, proporcionada pela ponta de agulha em contato com o microssulco “do espírito do instante presente”, cede lugar a um amontoado de fatos – coisas que evoluem em múltiplas direções -, que passa a ser organizado por entroncamentos inesperados. Para se chegar ao fim da vida, a baldeação é o modo de percurso do novo relato. Perde-se também o sentido do indecidível: “Agora me recuso a pensar que tudo é nada. Perco a certeza de que é melhor viver de perguntas e indecisão, prever que tudo é imprevisível, determinar que tudo é indeterminado” (188).

Na verdade, a nova face da vida íntima de Ana/Diana prima pelo disfarce: “Puxo fumo escondida de Carlos”. A partir do gesto-atitude solitário e sub-reptício de fumar um baseado, brotam as muitas direções pelas quais as coisas evoluem e conduzem Ana/Diana e Carlos, seu marido, à beira do Lago Paranoá e de volta à casa. Decorrente do disfarce do baseado, que lhe fora dado de presente por Cadu, surge o corpo lânguido e sensual de Berta, que conduz o casal pelo périplo brasiliense. Retomo a citação: “Puxo fumo escondida de Carlos. Depois lhe proponho um passeio a pé, me lembrando das caminhadas com Berta, ela com as mãos na cintura, requebrando na minha frente e de Vera, pedindo nosso conselho sobre a medida certa para seus gestos de mulher” (194). Carlos inexiste sentimental e amorosamente. De volta à casa, Ana/Diana – tomada pelo gosto de Cadu e a lembrança de Berta, insistamos – é levada a usar pela última vez o revólver. Reencontra um dos assassinos da amiga, que sempre a tinha ameaçado também. Ao se defender, vinga com o revólver e as palavras a morte de Mona Habib.

[…] o canalha vem na minha direção, aviso que não se aproxime, ele nem liga, continua vindo, então dou um primeiro tiro, acerto-o na altura do peito, dou um segundo, outra vez acerto-o, é como se seguisse com toda a segurança a direção da bala, como se tivesse controle sobre ela, não erro pontaria, o terceiro tiro fere-o na cabeça, ele cai, dou um quarto, talvez fatal, bem de perto, também na cabeça, e, por fim, com o cano do revólver do sem-vergonha, revejo num flash minha tentativa de suicídio e dou mais um, o último e quinto tiro (195).

Se a insegurança causada pelo medo fora uma das chaves-mestras a abrir as portas temáticas do projeto teórico de livro, cuja representação simbólica era o zero absoluto, [13] a fatalidade nos afrontamentos interpessoais é sua sucessora e tem como mediação simbólica os meneios e as piruetas dramáticas originadas pela compra e o uso do revólver – sempre o mesmo e sempre fatal.

Ana/Diana, narradora-personagem, e Norberto/Berta, principal protagonista, são acidentais. O revólver é a figura dramática dominante em As cinco estações do amor. Percorre-o de fio a pavio, de maneira contraditória e muitas vezes paradoxal. A narradora conclui que o relato “é definitivo não porque [ele] substitui todos os outros, como eu quis um dia, mas porque é precário; quando termina, é inteiramente o passado deste instante e pode ser guardado intacto, como um retrato, para sempre” (199). Permanece a pergunta insidiosa que, pela negação de seu poder de fogo, dera origem ao projeto teórico de relato e que, ao final, vem selar seu fracasso: “qual presente existe sem a dor da ausência?” (198)

“… forjam as armações / farsas e jogos / armas de fogo / um corte exposto / em seu rosto amor…”

Silviano Santiago

[1] Minha alusão à metáfora de Drummond não é gratuita. Ao poema citado seguem-se, em Claro enigma, “Remissão”, “A ingaia ciência” e “Legado”. Os quatro poemas, em particular o terceiro, levam o leitor a trilhar o percurso propriamente poético – no caso, elegíaco – da prosa de As cinco estações do amor e o compromisso da narradora-personagem, natural de Taimbé, Minas Gerais, com o melhor da literatura de seu estado. Do poema “A ingaia ciência”, cito esta estrofe como exemplo: “A madureza essa terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela […]”. Tampouco o leitor deveria descartar semelhanças do romance com um dos clássicos da mineiridade, que é Encontro marcado (1956), de Fernando Sabino. Embora a situação dramática seja aparentada, a trama de As cinco estações do amor se desenvolve de maneira diferente. Esses exemplos são trazidos para mostrar que há um modo comum (mineiro?) de se pensar a experiência da vida.
[2] Não se deve confundir a idéia de começo, como a que reapresento aqui, com passagem tardia do romance, em que também se fala de começo. Cito a passagem: “Um dos [gatinhos] amarelinhos nasce com as patas brancas. Estou feliz. É como se minha vida tivesse um novo começo, com a chegada dos gatinhos e de Norberto” (72). Começo, nessa frase, guarda um peso sentimental alheio à proposta teórica de livro/vida que estará sendo desenvolvida ao largo do romance.
[3] O número de página da citação vem e continuará a vir logo depois dela e entre parênteses.
[4] O revólver que Ana/Diana possui e carrega na bolsa, além de ser referência contínua em todo o relato, como se verá, é também símbolo da impunidade reinante em Brasília. Leia-se, por exemplo, este trecho: “Penso nos crimes que marcaram a história desta cidade, desde o seqüestro e a morte banal, nunca esclarecidos, da menina Ana Lídia, já há muitos anos, até mais recentemente o incêndio de um índio por garotos que queriam apenas se divertir” (37).
[5] Na conferência que dará na Universidade de Brasília, a convite do colega Jeremias, a professora aposentada de História terá a oportunidade de esclarecer o que entende filosoficamente por instantaneísmo: “Defendo meu ismo: a aceleração do tempo não nos deixa outra saída senão a do instantaneísmo. Não me refiro à paisagem ideal, em que predominam a quietude e o repouso, mas ao instante em movimento, como numa pintura de Klee, ou ao movimento no instante, ao imediatamente visível e ao sentido com causa e produto instantâneos da ação. ‘Não fujamos do instante’, conclamo a platéia, pondo naquelas palavras toda a minha garra” (93). Essa reflexão, que se complementa pela “teoria do pêndulo bêbado” (112/113), será retomada no capítulo IV, momento em que, terminado o longo período de abstinência sexual, Diana (e não mais Ana) se entrega totalmente a Cadu: “Tento lhe explicar [a Cadu], da forma mais simples que consigo, que este momento com ele me ilumina sobre o sentido do instantaneísmo” (140). Após a transa, confessa: “Estou abandonada neste barco da paixão” (141).
[6] Para a noção de indécidable (indecidível), v. Jacques Derrida, “La pharmacie de Platon” em Dissémination (1973).
[7] Murilo Mendes, outro poeta mineiro, e seu poema “Meu novo olhar” (1934) se encaixam bem aqui: “Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagem / e não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas, / mas se dilata à vista da musa bela e serena, / a que me conduzirá ao amor essencial”.
[8] À p. 10, anota a narradora: “Diana é meu lado avesso, que sempre morou dentro de mim. Eu devia ter sido registrada como Ana, nome escolhido de comum acordo por meus pais. Mas Diana foi o primeiro nome que mamãe quis me dar […]”.
[9] Com Cadu, Ana/Diana experimenta o coito anal: “Meu prazer envolve com um anel espesso seu sexo duro, que sinto como punhal dançarino, aço de tesão que sobe por minhas nádegas, cava meu rego, explora meu outro buraco, chafurda no meu mais fundo” (137).
[10] Bem mais adiante no relato se lerá o mea-culpa que dará continuidade ao remorso: “Sou mesmo uma filha-da-puta pequeno-burguesa. A culpa é minha. Chicão tinha razão de falar de meu moralismo. Em vez de dar carinho a Berta, de retribuir seus cuidados, a fiz fugir de casa. [….] Joguei-a aos leões” (164/165).
[11] Ao saber da morte de Berta, a narradora toma “a decisão de jogar no lixo [seu] computador portátil, onde escrevia o relato definitivo, que já não faz mais sentido […]” (169).
[12] Acreditamos que “estação” remete inicialmente à experiência rimbaldiana de Une saison en enfer, para em seguida se apoiar nas estações que compõem a via-sacra, a Paixão de Cristo. Os dois sentidos – o primeiro nitidamente hedonista e o segundo de inspiração cristã – se entrelaçam, com predomínio do segundo, no último capítulo do romance. Não é por coincidência que empresta o título ao romance.
[13] A forma mais terrível de medo fora despertada pela radicalidade do projeto teórico de livro. Cf. pelo seu oposto: “O texto definitivo, vivo e único […] não pode ser um zero” (199).

Todos se lembram das cidades-fantasmas da mineração, entrevistas nos faroestes do cinema ou na literatura das Minas Gerais. Brasília é uma cidade-fantasma às avessas. Ela acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada no planalto pelo imaginário dos arquitetos, pelo concreto das construtoras e pelo trabalho dos pedreiros. Uma cidade-fantasma às avessas é antibíblica, réplica leiga que é de Sodoma. Dá-se à luz no momento em que os casulos vazios bauhaus passam a ser ocupados por migrantes. Ao contrário do que mostra o silêncio asséptico dos cartões-postais, que só retratam o monumental, Brasília é rasteira e barulhenta. Humana demasiadamente humana. Uma cidade à medida do amor e da amizade, e não do Poder nela encalacrado.

A Brasília de carne e osso é matéria para ficcionistas, poetas e músicos pop. Com a Trilogia de Brasília, de que vamos ler agora As cinco estações do amor, João Almino define-se como o mais completo “autor” de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali aportaram. São essas vozes que o ouvido afinado de João Almino vem surpreendendo. Capta-as com a sua implacável kodak romanesca. Imagens instantaneístas da revolução que não houve, do homem novo que deveria ter sido, do fim do mundo que não chega, da passagem do milênio que se comemora, para quê?

O último volume da trilogia preocupa-se com os migrantes que não mais o quiseram ser. Fincaram pé na poeira para sempre, transformando-se no grupo felliniano de “Os inúteis”. As cinco estações do amor detém-se nas histórias frustradas desses remanescentes da geração pós-68. Pensaram que na cidade do futuro estava o futuro da humanidade. A ação desse novo e extraordinário romance de João Almino se passa hoje, nos primeiros dias do novo século, do novo milênio. Fecha-se a cortina do passado.

Segundo o romancista, a utopia está hoje na redefinição das relações possíveis entre as pessoas. João Almino mói no áspero. Amor e amizade. Sexo e sensualidade. Desejo e violência. Daí o naipe de personagens, que tanto aponta para as transformações revolucionárias que deveriam ter sido quanto para as mutações comportamentais que estão sendo. Ex-guerrilheiros convivem com homossexuais e travestis, jovens criminosos contrastam com a maturidade (in)conformada.

Se Brasília é a cidade-fantasma que anunciava o fim da metáfora do Brasil como país também fantasma, As cinco estações do amor redefine a nação brasileira como algo que esteve para ser inventado pelos homens. No novo milênio, os casulos vazios bauhaus não têm mais a forma de cubos e esferas. Página virada pelos inúteis. Temos hoje os casulos vazios da terra improdutiva. “Pratico o pessimismo como método”, afirma o romancista e pensador João Almino.

Atenção: pessimismo não se confunde com derrotismo.

Todos se lembram das cidades-fantasmas da mineração, entrevistas nos faroestes do cinema ou na literatura das Minas Gerais. Brasília é uma cidade-fantasma às avessas. Ela acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada no planalto pelo imaginário dos arquitetos, pelo concreto das construtoras e pelo trabalho dos pedreiros. Uma cidade-fantasma às avessas é antibíblica, réplica leiga que é de Sodoma. Dá-se à luz no momento em que os casulos vazios bauhaus passam a ser ocupados por migrantes. Ao contrário do que mostra o silêncio asséptico dos cartões-postais, que só retratam o monumental, Brasília é rasteira e barulhenta. Humana demasiadamente humana. Uma cidade à medida do amor e da amizade, e não do Poder nela encalacrado.

A Brasília de carne e osso é matéria para ficcionistas, poetas e músicos pop. Com a Trilogia de Brasília, de que vamos ler agora As cinco estações do amor, João Almino define-se como o mais completo “autor” de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali aportaram. São essas vozes que o ouvido afinado de João Almino vem surpreendendo. Capta-as com a sua implacável kodak romanesca. Imagens instantaneístas da revolução que não houve, do homem novo que deveria ter sido, do fim do mundo que não chega, da passagem do milênio que se comemora, para quê?

O último volume da trilogia preocupa-se com os migrantes que não mais o quiseram ser. Fincaram pé na poeira para sempre, transformando-se no grupo felliniano de “Os inúteis”. As cinco estações do amor detém-se nas histórias frustradas desses remanescentes da geração pós-68. Pensaram que na cidade do futuro estava o futuro da humanidade. A ação desse novo e extraordinário romance de João Almino se passa hoje, nos primeiros dias do novo século, do novo milênio. Fecha-se a cortina do passado.

Segundo o romancista, a utopia está hoje na redefinição das relações possíveis entre as pessoas. João Almino mói no áspero. Amor e amizade. Sexo e sensualidade. Desejo e violência. Daí o naipe de personagens, que tanto aponta para as transformações revolucionárias que deveriam ter sido quanto para as mutações comportamentais que estão sendo. Ex-guerrilheiros convivem com homossexuais e travestis, jovens criminosos contrastam com a maturidade (in)conformada.

Se Brasília é a cidade-fantasma que anunciava o fim da metáfora do Brasil como país também fantasma, As cinco estações do amor redefine a nação brasileira como algo que esteve para ser inventado pelos homens. No novo milênio, os casulos vazios bauhaus não têm mais a forma de cubos e esferas. Página virada pelos inúteis. Temos hoje os casulos vazios da terra improdutiva. “Pratico o pessimismo como método”, afirma o romancista e pensador João Almino.

Atenção: pessimismo não se confunde com derrotismo.

É luminoso o parágrafo que abre As cinco estações do amor (2001), o premiado romance de João Almino. Na idade madura, enxergam-se melhor os fatos da vida depois de dois dias de “crise e revelação”. Aquela é motor desta, e ambas são sucessivamente despertadas na mente da narradora-personagem por uma carta postada em São Francisco, na Califórnia. A carta vem assinada por um/a antigo/a amigo/a (a indefinição no gênero do/a remetente se impõe). Crise e revelação repercutem numa dessas tardes quentes de Brasília, em que os olhos, a imaginação e o coração renovados da destinatária da carta descortinam a paisagem da vida vivida, a espelhar a esterilidade da recordação que não mais fecunda os dias presentes e futuros. O primeiro parágrafo do romance diz ainda: “Há erros que só aparecem com a experiência, quando já não conseguimos corrigi-los”.

A carta enviada de São Francisco chega às mãos de Ana/Diana, narradora-personagem de As cinco estações do amor, no dia em que completa 55 anos. Ela é professora aposentada de História, da Universidade de Brasília. Na carta, Norberto – ou Berta, como passou a se chamar depois da cirurgia transexual, da maquiagem pesada e do guarda-roupa novo – anuncia a próxima chegada à capital federal e, em lembrança do compromisso assumido trinta anos atrás pelo “grupo de inúteis”, de que fizeram parte, convoca os sobreviventes para se reunirem no dia 31 de dezembro de 1999 à noite, uma sexta-feira. Dispersos pelo Brasil e o mundo, os coroas se reuniriam em Brasília para o réveillon do milênio. Durante o jantar comemorativo, fariam o balanço das respectivas vidas, em conformidade com o acordo selado em histórica viagem mística pelo Jardim da Salvação.

Em crise de descobertas, Ana/Diana se dá conta de que os dias passados se foram definitivamente e, por isso, inexiste a oportunidade de remendar os enganos e equívocos da vida vivida, que passa a se lhe afigurar como vazia. Por os fatos antigos não serem passíveis de remendo na ocasião em que revelam o que verdadeiramente significam, ela tampouco dispõe de instrumentos que poderiam “evitar o que vai acontecer”. Braços cruzados, Ana/Diana se entrega ao instante presente e à exploração de sua plenitude. Por um lado, aprende a conviver com os erros passados e com a impossibilidade de transformá-los em algo de positivo. Por outro lado, acata os dias futuros tal como formatados não só pelos antigos enganos, como também pela crise e a revelação deflagradas pela carta de Norberto, o velho companheiro de inutilidades e hoje travesti assumido. Colocada contra a parede do século, que se vai, e do milênio, que se anuncia no reencontro com os antigos companheiros, Ana/Diana é a primeira do grupo a se impor o balanço subjetivo e geracional como tarefa diária. Esta exige uma mudança drástica de comportamento, de vida.

À voz castrada da experiência, João Almino tinha contraposto – em epígrafe tomada ao poeta João Cabral de Melo Neto – o refúgio na ladainha do cotidiano. Ela reza que a vida se nos apresenta em alternativas insalubres ou redentoras – ou se mata o tempo, ou se o vivencia à flor da pele. Ou se tem a coragem de dar como perdido o tempo passado, em atitude radical e anti-proustiana, ou – como orienta João Cabral – se toma carona na vida “enquanto [o tempo] ocorre, ao vivo”. Ao matar o passado e a vida futura com uma cajadada só, a narradora recorre ao subterfúgio da imaginação, essa “falsa demente”, como a apelidou corretamente Carlos Drummond de Andrade no poema “Dissolução”. [1] A falsa demente incita o ser humano – como aconselham os versos em epígrafe – a viver “em ponta de agulha […], viver a agulha de um só instante, plenamente”.

Quando me adentrei pelo primeiro parágrafo do romance de João Almino e reli os versos de João Cabral no lugar que passaram a ocupar, não consegui desvencilhar-me da imagem dum long play silencioso, em 33 1/3 RPM (rotações por minuto), depositado num prato de toca-discos. Ali estavam as duas raízes teóricas que, imbricadas, explicitavam o “commencement” (para retomar o conceito clássico de Roland Barthes) [2] da magnífica prosa que iria ler. O long play viria a soar – e que belo som mobiliaria o espaço interior do romance e invadiria o ambiente da leitura! – se deixasse seu microssulco espiralado ser ferido, desperto e aguçado pela agulha de vitrola do cotidiano.

Ao caminhar pelo microssulco da borda externa para o centro do vinil, a agulha vibra, e as vibrações são transformadas nos sinais elétricos da prosa de As cinco estações do amor. “Viver a agulha de um só instante, plenamente” – como prenuncia a epígrafe. (Por associação de idéias, ou por ser Brasília uma das capitais da música pop brasileira, relembro o som da guitarra de Fernando Deluqui e a voz de Paulo Ricardo, da banda RPM. Ele começa a cantar “Alvorada Voraz”: “Na virada do século / Alvorada Voraz / nos aguardam exércitos / […] a face do mal / um grito de horror / um fato normal / um êxtase de dor / E medo de tudo / Medo do nada / Medo da vida / Assim engatilhada / fardas e força / forjam as armações / farsas e jogos / armas de fogo / um corte exposto / em seu rosto amor…”.)

Lidas as primeiras páginas do romance, sinto-me reconfortado. A agulha da vitrola cabralina tinha atendido ao comando dado pelo botão de controle, perdão, pelo primeiro parágrafo. Passa a vibrar, e os sinais elétricos, ao explodirem no alto-falante da página, enunciam as palavras e o silêncio gravados no microssulco espiralado. Palavras e silêncio encaminham o leitor da borda (da epígrafe e do primeiro parágrafo) para o eixo de rotação da trama romanesca – o pino central do toca-discos, de onde a narradora comanda a ação. Ana/Diana é finissecular e, em evidente desprezo pela tecnologia old-fashioned da bolacha de vinil (evocada pelo prefaciador, imerso em recordações), confessa a preferência pela varredura feita por raio laser:

Ligo o som, ouço o CD animado que Jeremias me deu de presente e até danço sozinha, como uma louca, para comemorar um não-sei-bem-o-quê que desbloqueia minha mente e minha alma (53). [3]

A carta de Norberto/Berta já tinha sido assimilada pela louca professora aposentada. Às vésperas do novo milênio, sua mente e alma são desbloqueadas pela dança solitária. Ao som do CD, Ana/Diana comemora algo – o projeto de balanço do vivido? o começo da vida? o resto da vida? – desprovido, ainda, de significado. Compete-lhe, pela escrita, dar sentido ao que se lhe apresenta como informe: “É aí que me vem a idéia de escrever o relato. Minha versão do balanço de vida prometido para o encontro [decidido no Jardim da Salvação trinta anos atrás e agendado de São Francisco por Norberto/Berta]” (46).

Crise e revelação, ponta de agulha e microssulco – respectivamente, alicerce temático e alicerce teórico do relato de Ana/Diana – abafam a presença do passado no presente e obstruem a entrada do futuro conivente e esperançoso. Sem história, nem rumo, a professora aposentada de História caminha para a varanda da vida, de onde pretende descortinar a plenitude do instante presente. Esclarece: “Não será um diário, mas um livro do meu presente em movimento, em que as fronteiras entre passado e futuro estão apagadas. Um presente em movimento até o fim dos meus dias” (50). Contraditória ou paradoxalmente, o balanço da vivência – o relato de uma vida vivida e por viver – estará sendo escrito “em ponta de agulha” pela narradora. Ana/Diana passa a viver – e a escrever palavras – “no instante finíssimo em que ocorre”. Na brecha aberta pelo presente, não se bebe saber na fonte da memória ou da experiência; nela imersos, corpo e alma não flutuam gloriosamente nas águas da utopia.

Em linguagem que lembra os mestres Carlos Drummond e João Cabral, a narradora deseja “que elas [as palavras] saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante” (54). Antes, já tinha mencionado o instrumento de que está se valendo para “esculpir o espírito do instante”: “Tomo de uma caneta como se fosse o revólver que comprei. Aponto-a para o papel, disposta a atirar” (48).

No ano de 1999, em Brasília e por toda parte no mundo globalizado, a escrita ficcional é mortífera. Caneta e revólver apontam e atiram tinta e balas. (As “facas afiadas” ficam por enquanto no inconsciente do relato. Só serão desrecalcadas no capítulo final.) Caneta e revólver pertencem, portanto, ao “tempo dos assassinos” (Artur Rimbaud), e se equiparam, respectivamente, no trabalho do balanço da vida pessoal e na vivência cotidiana dos cidadãos nas metrópoles. Durante o percurso de As cinco estações do amor, caneta e revólver estarão atuando lado a lado dos variadíssimos personagens e, na qualidade de co-partícipes do relato, serão os legítimos responsáveis pela lenta e rocambolesca composição do não-sei-bem-o-quê, que compete à narradora, tomada pela música do CD, significar. No relato, impera, portanto, o medo, de que falam a paranóia pervagante, a canção “Alvorada voraz”, na voz de Paulo Ricardo, e antigos poemas de Carlos Drummond. No poema “Nosso tempo”, Drummond resumiu a atualidade: “Tempo de cinco sentidos / num só”. Há perigo em revirar o passado. O perigo ronda os dias atuais dos cidadãos da antiga e pacata Brasília. [4]

A insegurança – na selva do asfalto e diante da vida passada e futura – é a chave-mestra do relato “em ponta de agulha”. Por isso, ao escarafunchar os documentos, cartas e anotações que atestariam a favor dos dias vividos inutilmente, a narradora conclui com palavras ainda inspiradas pelos versos em epígrafe: “É então que desenvolvo a teoria do instantaneísmo, cuja premissa é simples: a realidade, feita de matéria e espírito, é o instante presente. A verdade só existe completamente no instante” (50).

No projeto teórico de relato, a verdade esculpida pelo espírito do instante despreza o ensinamento clássico da cadeia aritmética para se confundir com o zero absoluto da escrita ficcional assassina. Não há número inteiro negativo que precede o zero [-1]; não há número inteiro positivo que o sucede [1]. A vida não se escorregou no despenhadeiro. A grandeza da utopia não alvoroçará a mente. O relato escrito à caneta e/ou com o revólver tem de fazer o valor nulo aritmético significar. Diz o texto: “Quero captar o instante, começar do zero. […] Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. Comigo é freqüente: ver a mesma coisa como promessa de céu ou de inferno. Num piscar de olhos, o claro vira escuro” (50/51). [5]

No projeto teórico de relato, tal como exposto pela narradora, o zero da escrita da vida não conduz à inação nem ao silêncio. É um indecidível [6] (céu/inferno, claro/escuro). O zero é palavra e é promessa de começo – ou de novo olhar, se o leitor se lembrar do modo como se dá o processo de conversão ao catolicismo na poesia de Murilo Mendes – [7] para a vida e seu relato.

O indecidível temporal e temático se sobrepôs ao indecidível no plano da narradora e dos personagens homossexuais, que vinham acompanhando o leitor desde as páginas iniciais. O forte de Ana/Diana – como foi anunciado – é o indecidível de personae. Desde o primeiro capítulo ela se desdobra em “Diana, a aventureira; Ana, a recatada. Diana, a corajosa; Ana, a que sofria os estragos da coragem” (23). [8] Ainda se sobrepôs ao indecidível de gênero [gender], como é o caso de Norberto/Berta, que propiciou a crise, a revelação e o relato de Ana/Diana.

Bissexual na juventude (é pai dum filho), Norberto foi progressivamente se assumindo como homossexual, até se apresentar como Berta, o traveco. Sem a indispensável identidade feminina nos documentos, Berta espera reaparecer em Brasília, ocupando o lugar vazio deixado por Helena, a amiga e guerrilheira assassinada no Araguaia pela repressão militar e dada pela ditadura como desaparecida (68/9). Frustrada em seu intento de clonagem, Berta acaba por comprar documentos falsos num cartório de Goiás. A partir da metade do romance, Norberto é Mona Habib, uma libanesa cuja família tinha regressado à terra natal (121). As sucessivas e a definitiva metamorfose identitária de Norberto desgostam Ana/Diana, sua melhor e mais íntima amiga. Em reviravolta sentimental e amorosa, passa a se sentir agredida pelas imaginações pecaminosas e as farolices sexuais desenvolvidas pelo traveco na vida noturna de Brasília.

Diana/Ana reencontra no passado o ditado da consciência moral conservadora, recupera-o para liberá-lo em atitude imprevista. Enxota Berta de casa.

Salientamos a mudança brusca no comportamento sentimental e amoroso de Diana/Ana para chamar a atenção para uma reviravolta definitiva no relato. Ao meio dele, o principal drama trabalhado não é mais as contínuas e intermináveis transformações por que vem passando a nova Ana/Diana, operadas pela destruição de anotações pessoais e de documentos antigos, que atestavam sobre o equívoco e a inutilidade da vida vivida. O principal conflito de As cinco estações do amor passa a residir no modo como o projeto teórico de relato – imaginado no parágrafo de abertura, com o respaldo dos versos de João Cabral – se contradiz com o retorno intempestivo, inconveniente e agressivo de sentimentos e emoções intolerantes (para dizer o mínimo) que – o leitor acredita – tinham sido sepultados por Ana/Diana na bolacha de vinil.

O microssulco romanesco do cotidiano é representado pelos valores do passado e por palavras tão homofóbicas e inquisitoriais quanto as escritas na papelada antiga, que estava sendo jogada na lata de lixo da história pessoal, ou sendo queimada. O projeto teórico de relato se transforma em outro para que a vida continue a mesma de ontem e se abra para um futuro previsível. Assim como, em virtude da repressão militar, o projeto teórico de guerrilha dos anos 1960 se distanciara gradativamente das boas intenções revolucionárias, o projeto teórico de relato, em virtude da atitude repressiva de Diana/Ana às portas do novo milênio, se distancia da vida a ser vivida em ponta de agulha. Apesar da entrega à dança do instante, a mente e a alma de Ana/Diana voltaram a ser bloqueadas, agora pela força imperiosa do neoconservadorismo finissecular.

O revólver comanda a escrita à caneta do relato.

A personagem-narradora cede, pois, o lugar de destaque a Berta, que passa a ganhar os contornos de única e verdadeira heroína do relato teórico e a autêntica deflagradora dos dramas assassinos e absurdos de quem decide viver a vida em ponta de agulha. Se a carta postada em São Francisco provocara crise e revelação em Ana/Diana, a presença ao vivo e em cores de Berta na vida social brasiliense tensiona a armação balbuciante da amizade amorosa que por ela diz nutrir. A narradora-personagem instituiu a possibilidade e agora desconstitui a realização do amor platônico entre mulheres que foram além da diferença biológica. Para que deixar aflorar no relato libertário o prazer apaixonante do sexo entre homem e mulher que não segue a ordenação papai-mamãe? [9]

Berta não se deixa confundir pelas boas intenções pseudo-amorosas e revolucionárias de Ana, sua hospedeira e melhor amiga, e de seu relato, entregue ao leitor como work in progress. Desperta Diana, a corajosa, do sono letárgico em que passara a viver nos momentos de apaziguamento de Ana, a recatada, e, sem papas na língua, lhe joga na cara: “Você tem preconceito contra gente como eu. Não acredita que só estou interessada em encontrar alguém que me ame. Acha que fico mudando de homem a torto e a direito” (124). Apenas Chicão, outro homossexual do grupo de inúteis, finca-pé nas boas intenções revolucionárias do projeto teórico de vida, questionando a atitude arrogante e arbitrária de Diana, que passa a obscurecer e a escurecer o relato cristalino em ponta de agulha. Leia-se o diálogo entre Diana e Chicão, em seguida à saída de Berta da casa que a acolhera:

_Berta só levou uma mala pequena, com parte do guarda-roupa. Não deve tardar a voltar, pelo menos pra buscar suas coisas. Só me assustou não encontrar o revólver sobre o guarda-roupa – informo [Diana informa] a Chicão.

_Pode ser que nunca mais volte – ele joga na minha cara seu realismo cru (125).

Sem a presença de Berta (“Espero que Berta reapareça para o reencontro dos inúteis”, 143) e com a presença à última hora de Carlos, viúvo, vizinho e paquera, o aguardado réveillon do milênio – apesar do champanhe que escorre das mil e uma garrafas como água de torneira – transcorre num clima de agua fiestas, como dizem nossos hermanos. “Abrimos mais garrafas de champanhe. Ouvem-se as explosões dos fogos. É meia-noite, começo do novo ano, do novo século, do novo milênio. _Gente, que emoção! – exclama Marcelo, acordando de um cochilo”. Só a atitude de Marcelo (amante de Chicão) traduz a falsidade íntima que governa a dupla comemoração frustrada: o desânimo que o tinha abatido e levado ao sono é interrompido pela explosão dos fogos de artifício lá fora, nas ruas da cidade.

A culpa e o remorso – valores passadistas por excelência em relato de ponta de agulha – irrompem no ambiente aparentemente festivo e fazem o projeto teórico de relato se esboroar nas migalhas da intolerância. Ao entregar a condução da própria vida e do relato à corajosa Diana, observa Ana: “Berta, que me cobrou a convocação deste encontro, sequer deu notícias. Não quer enfrentar o olhar dos velhos amigos […]. Não, a razão é outra, entendo Berta: não tem motivos para aparecer, depois do que aconteceu entre nós duas” (146). Páginas adiante, retorna a ausência violentamente presente de Berta: “Faltou Berta. Talvez ela tenha querido simplesmente cortar o contato conosco. Sou a culpada de sua ausência. Ofendi-a por causa de meus preconceitos. Chicão sacou bem, tenho de admitir. Sobretudo faltou a elevação, a epifania, que ultrapassasse a banalização do cotidiano […]. Chicão está certo, vai continuar tudo igual” (157, grifo meu). [10]

Perdidos os valores presentes do indecidível, a banalização e a mesmice imperam no comportamento cotidiano de Ana/Diana e corroem o projeto teórico de livro. Não houve começo nem novo olhar. A banalização e a mesmice imperam e irão destruir o próprio livro, que, aliás, tinha passado a ser escrito em computador – e não mais à caneta e com revólver. Imperam e desviam de seu norte a vida que, ao se narrar, seria vivida em ponta de agulha. As teclas do computador são mais eficientes na corrosão das palavras do que a caneta-revólver que atirava balas pela página e a cidade. Não é por outra razão que caneta-revólver se metamorfoseia numa tesoura, que também escreve, mas apunhala. As palavras do relato saem “feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante”. No dia primeiro de janeiro de 2000, um sábado, um garoto de programa, à saída da boate, dá sessenta tesouradas em Norberto/Berta/Helena/Mona Habib. (O assassinato abriga tantas ressonâncias e significados simbólicos, que entrego à imaginação crítica do leitor a tarefa de enumerá-los e de analisá-los.)

Fracassou o projeto teórico de relato. Perdeu o leme da auto-análise em ponta de agulha para se redefinir pela narrativa minuciosa – diria: realista – dum amontoado infinito de fatos policialescos e trágicos. Os acontecimentos são tantos e paralelos e sucessivos, que o leitor, ao se extraviar da proposta inicial de relato, se adentra por um universo melodramático desatinado e frenético, em que a narradora-personagem não conduz mais o dia-a-dia. O cotidiano de Ana/Diana e dos demais personagens passa a ser conduzido e controlado pelos acontecimentos que sua intolerância, contra a própria vontade, tinha deflagrado. Culpa e remorso não são suficientes para preencher a falta que ama.

Confessa Ana, reafirmando o estrago causado por Diana: “Berta era uma parte importante de mim. Sem ela sou apenas uma metade” (164). Quer refugiar-se no ascetismo monástico e abandonar de vez qualquer veleidade de prazer. Pensa em entrar para o convento. A morte iminente domina seus passos e suas leituras de poemas. (O romancista deu adeus aos versos em epígrafe de João Cabral.) Angustiada, busca a vacina contra a melancolia. Observa: Berta “tinha guiado meu último ano, criado a expectativa do reencontro do milênio e indiretamente me levado a tentar revolucionar a minha vida com a destruição de meus papéis e a composição do relato ainda não concluído” (167). Pé cá pé lá, em ausência presente e em silêncio tumular, Berta é responsável pelas mudanças inevitáveis no projeto teórico de vida e de relato. Ela guia Ana/Diana à destruição do computador, [11] entregando-lhe – de volta e em troca das tesouradas – o revólver com a função de caneta. Leva Diana a se suicidar, destruindo pelo fogo os papéis e a casa, de onde tinha sido expulsa.

Anota a narradora: “Minha alma está morta, falta agora matar meu corpo” (169). Continuemos a ler: “Alcanço o revólver, aponto-o para o meu ouvido e disparo. Quando recobro a consciência, vejo um crucifixo no alto da parede branca na minha frente” (171). O fogo ateado nos documentos e papéis pessoais se alastrara pela casa, atingira a garagem, onde explodira o carro. O relato de palavras e silêncio, incendiado, vira cinzas, e se abre para a imagem do crucifixo na parede do hospital, símbolo já anunciado pela culpa e o remorso. Instala-se o clima de quarta-feira de cinzas, que é paródico do projeto teórico de vida.

De cinzas, o relato se deixa recobrir por páginas de grande sensibilidade, onde se agigantam o amor demonstrado pelos familiares e a amizade dos antigos amigos inúteis. A nova bolacha de vinil rodopia pelo prato do toca-discos como o poema “Ash-Wednesday”, de T. S. Eliot, cuja leitura seria recomendável, e emite os acordes de marcha fúnebre das boas intenções revolucionárias da tolerância cristã. As “aventuras da solidão” (título do primeiro capítulo) perdem terreno para as “paixões de suicidas” (título do quarto), que despertam a solidariedade nos que são semelhantes e próximos. A presença/ausência de Berta serve de pano de fundo para a quarta-feira-de-cinzas, e não é paródica do projeto teórico de relato: “Foi sua chegada [de Norberto/Berta] que me abriu para uma vida nova; foi sua morte que me levou ao abismo. Ela atravessa minha vida, dividindo-a em duas”.

Dividindo-a em três, corrige o leitor atento, que se apoiou no texto: “Que das cinzas cresça um galho novo de mim – trêmulo, frágil, mais disposto a viver” (183). Das cinzas renasce uma Ana/Diana amorosa à antiga, atenta aos reclamos da amizade e sensível ao amor desprovido das loucuras que tinha vivenciado com Cadu. O apaziguamento interior pelo suicídio é a forma autêntica da derrota frente à presença ultrajante e inexorável de Berta e dos fogos de artifício a saudar o novo milênio. Ele é a forma de culpa-remorso que o personagem auto-injeta (self inflict) para se salvar. Ana/Diana se fez duplamente vítima e, como Fênix, renasce das cinzas para o crucifixo na parede.

A quinta estação [12] do amor tem lugar em Taimbé, cidade natal de Ana, para onde retorna em busca da necessária e indispensável paz de espírito. O antigo projeto teórico deu em nada, ou melhor, dera origem a um “livro de pedra”. Dele Ana se desfaz, com o intuito de recomeçar uma experiência de vida centrada “na história de uma criança velha, eu mesma, que se revolta porque o mundo mudou ao seu redor” (184). Acarinhada pelas mãos do mundo, recebe a visita de Carlos – seu salvador – em Taimbé. Ele a salva pela segunda vez, pois com ele vem a se casar.

A narradora-personagem tem que refazer a teoria do instantaneísmo: “As coisas evoluem em muitas direções, mas há momentos em que um conjunto delas se apresenta harmoniosamente a uma perspectiva inesperada. Às vezes, olhando numa direção nova, a gente descobre que a confusão se arruma” (188). A linearidade dos sucessivos instantes de vida, proporcionada pela ponta de agulha em contato com o microssulco “do espírito do instante presente”, cede lugar a um amontoado de fatos – coisas que evoluem em múltiplas direções -, que passa a ser organizado por entroncamentos inesperados. Para se chegar ao fim da vida, a baldeação é o modo de percurso do novo relato. Perde-se também o sentido do indecidível: “Agora me recuso a pensar que tudo é nada. Perco a certeza de que é melhor viver de perguntas e indecisão, prever que tudo é imprevisível, determinar que tudo é indeterminado” (188).

Na verdade, a nova face da vida íntima de Ana/Diana prima pelo disfarce: “Puxo fumo escondida de Carlos”. A partir do gesto-atitude solitário e sub-reptício de fumar um baseado, brotam as muitas direções pelas quais as coisas evoluem e conduzem Ana/Diana e Carlos, seu marido, à beira do Lago Paranoá e de volta à casa. Decorrente do disfarce do baseado, que lhe fora dado de presente por Cadu, surge o corpo lânguido e sensual de Berta, que conduz o casal pelo périplo brasiliense. Retomo a citação: “Puxo fumo escondida de Carlos. Depois lhe proponho um passeio a pé, me lembrando das caminhadas com Berta, ela com as mãos na cintura, requebrando na minha frente e de Vera, pedindo nosso conselho sobre a medida certa para seus gestos de mulher” (194). Carlos inexiste sentimental e amorosamente. De volta à casa, Ana/Diana – tomada pelo gosto de Cadu e a lembrança de Berta, insistamos – é levada a usar pela última vez o revólver. Reencontra um dos assassinos da amiga, que sempre a tinha ameaçado também. Ao se defender, vinga com o revólver e as palavras a morte de Mona Habib.

[…] o canalha vem na minha direção, aviso que não se aproxime, ele nem liga, continua vindo, então dou um primeiro tiro, acerto-o na altura do peito, dou um segundo, outra vez acerto-o, é como se seguisse com toda a segurança a direção da bala, como se tivesse controle sobre ela, não erro pontaria, o terceiro tiro fere-o na cabeça, ele cai, dou um quarto, talvez fatal, bem de perto, também na cabeça, e, por fim, com o cano do revólver do sem-vergonha, revejo num flash minha tentativa de suicídio e dou mais um, o último e quinto tiro (195).

Se a insegurança causada pelo medo fora uma das chaves-mestras a abrir as portas temáticas do projeto teórico de livro, cuja representação simbólica era o zero absoluto, [13] a fatalidade nos afrontamentos interpessoais é sua sucessora e tem como mediação simbólica os meneios e as piruetas dramáticas originadas pela compra e o uso do revólver – sempre o mesmo e sempre fatal.

Ana/Diana, narradora-personagem, e Norberto/Berta, principal protagonista, são acidentais. O revólver é a figura dramática dominante em As cinco estações do amor. Percorre-o de fio a pavio, de maneira contraditória e muitas vezes paradoxal. A narradora conclui que o relato “é definitivo não porque [ele] substitui todos os outros, como eu quis um dia, mas porque é precário; quando termina, é inteiramente o passado deste instante e pode ser guardado intacto, como um retrato, para sempre” (199). Permanece a pergunta insidiosa que, pela negação de seu poder de fogo, dera origem ao projeto teórico de relato e que, ao final, vem selar seu fracasso: “qual presente existe sem a dor da ausência?” (198)

“… forjam as armações / farsas e jogos / armas de fogo / um corte exposto / em seu rosto amor…”

Silviano Santiago

[1] Minha alusão à metáfora de Drummond não é gratuita. Ao poema citado seguem-se, em Claro enigma, “Remissão”, “A ingaia ciência” e “Legado”. Os quatro poemas, em particular o terceiro, levam o leitor a trilhar o percurso propriamente poético – no caso, elegíaco – da prosa de As cinco estações do amor e o compromisso da narradora-personagem, natural de Taimbé, Minas Gerais, com o melhor da literatura de seu estado. Do poema “A ingaia ciência”, cito esta estrofe como exemplo: “A madureza essa terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela […]”. Tampouco o leitor deveria descartar semelhanças do romance com um dos clássicos da mineiridade, que é Encontro marcado (1956), de Fernando Sabino. Embora a situação dramática seja aparentada, a trama de As cinco estações do amor se desenvolve de maneira diferente. Esses exemplos são trazidos para mostrar que há um modo comum (mineiro?) de se pensar a experiência da vida.
[2] Não se deve confundir a idéia de começo, como a que reapresento aqui, com passagem tardia do romance, em que também se fala de começo. Cito a passagem: “Um dos [gatinhos] amarelinhos nasce com as patas brancas. Estou feliz. É como se minha vida tivesse um novo começo, com a chegada dos gatinhos e de Norberto” (72). Começo, nessa frase, guarda um peso sentimental alheio à proposta teórica de livro/vida que estará sendo desenvolvida ao largo do romance.
[3] O número de página da citação vem e continuará a vir logo depois dela e entre parênteses.
[4] O revólver que Ana/Diana possui e carrega na bolsa, além de ser referência contínua em todo o relato, como se verá, é também símbolo da impunidade reinante em Brasília. Leia-se, por exemplo, este trecho: “Penso nos crimes que marcaram a história desta cidade, desde o seqüestro e a morte banal, nunca esclarecidos, da menina Ana Lídia, já há muitos anos, até mais recentemente o incêndio de um índio por garotos que queriam apenas se divertir” (37).
[5] Na conferência que dará na Universidade de Brasília, a convite do colega Jeremias, a professora aposentada de História terá a oportunidade de esclarecer o que entende filosoficamente por instantaneísmo: “Defendo meu ismo: a aceleração do tempo não nos deixa outra saída senão a do instantaneísmo. Não me refiro à paisagem ideal, em que predominam a quietude e o repouso, mas ao instante em movimento, como numa pintura de Klee, ou ao movimento no instante, ao imediatamente visível e ao sentido com causa e produto instantâneos da ação. ‘Não fujamos do instante’, conclamo a platéia, pondo naquelas palavras toda a minha garra” (93). Essa reflexão, que se complementa pela “teoria do pêndulo bêbado” (112/113), será retomada no capítulo IV, momento em que, terminado o longo período de abstinência sexual, Diana (e não mais Ana) se entrega totalmente a Cadu: “Tento lhe explicar [a Cadu], da forma mais simples que consigo, que este momento com ele me ilumina sobre o sentido do instantaneísmo” (140). Após a transa, confessa: “Estou abandonada neste barco da paixão” (141).
[6] Para a noção de indécidable (indecidível), v. Jacques Derrida, “La pharmacie de Platon” em Dissémination (1973).
[7] Murilo Mendes, outro poeta mineiro, e seu poema “Meu novo olhar” (1934) se encaixam bem aqui: “Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagem / e não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas, / mas se dilata à vista da musa bela e serena, / a que me conduzirá ao amor essencial”.
[8] À p. 10, anota a narradora: “Diana é meu lado avesso, que sempre morou dentro de mim. Eu devia ter sido registrada como Ana, nome escolhido de comum acordo por meus pais. Mas Diana foi o primeiro nome que mamãe quis me dar […]”.
[9] Com Cadu, Ana/Diana experimenta o coito anal: “Meu prazer envolve com um anel espesso seu sexo duro, que sinto como punhal dançarino, aço de tesão que sobe por minhas nádegas, cava meu rego, explora meu outro buraco, chafurda no meu mais fundo” (137).
[10] Bem mais adiante no relato se lerá o mea-culpa que dará continuidade ao remorso: “Sou mesmo uma filha-da-puta pequeno-burguesa. A culpa é minha. Chicão tinha razão de falar de meu moralismo. Em vez de dar carinho a Berta, de retribuir seus cuidados, a fiz fugir de casa. [….] Joguei-a aos leões” (164/165).
[11] Ao saber da morte de Berta, a narradora toma “a decisão de jogar no lixo [seu] computador portátil, onde escrevia o relato definitivo, que já não faz mais sentido […]” (169).
[12] Acreditamos que “estação” remete inicialmente à experiência rimbaldiana de Une saison en enfer, para em seguida se apoiar nas estações que compõem a via-sacra, a Paixão de Cristo. Os dois sentidos – o primeiro nitidamente hedonista e o segundo de inspiração cristã – se entrelaçam, com predomínio do segundo, no último capítulo do romance. Não é por coincidência que empresta o título ao romance.
[13] A forma mais terrível de medo fora despertada pela radicalidade do projeto teórico de livro. Cf. pelo seu oposto: “O texto definitivo, vivo e único […] não pode ser um zero” (199).