Brasília é cenário do romance originalmente lançado em 2001: ‘Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente’, diz a protagonista
Por Ubiratan Brasil Especial para O GLOBO
29/03/2025 03h30
A literatura regional brasileira tradicionalmente retrata as formas de vida das áreas mais ao leste do país, mas, nos últimos anos, autores do Centro-Oeste vêm trazendo a região ao centro da literatura nacional. Livros recentes mostram cultura, história e paisagem ainda raras na escrita literária. Não é possível, no entanto, inserir nessa categoria a obra do escritor e diplomata João Almino, membro da Academia Brasileira de Letras, porque seu foco está em Brasília, a capital federal que é a soma de todas as representações regionais. Lá, seu olhar tem mais liberdade para fugir das tradições literárias, do esperado, dos estereótipos, dos regionalismos e dos enraizamentos.
É o que se observa em “As cinco estações do amor”, agora em nova edição. Lançado em 2001, formou então uma trilogia involuntária com os volumes “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1983) e “Samba-enredo” (1994). Para Almino, a cidade, como outras, tem muito a oferecer à criação literária, mas o espaço não é determinante em sua obra, o que seria apenas em um naturalismo regionalista. Mesmo assim, é inegável seu fascínio pelo caleidoscópio político e social que se espalha pela cidade prestes a completar 65 anos.
O livro acompanha a delicada situação vivida por Ana, professora aposentada de História, da Universidade de Brasília. No dia em que comemora 55 anos, ela recebe uma carta de um velho amigo, Norberto, agora autodenominado Berta, depois de uma cirurgia transexual, anunciando seu retorno à cidade. O motivo é a realização do compromisso assumido 30 anos antes pelo “grupo de inúteis”, do qual fizeram parte, para juntos passarem a noite de 31 de dezembro de 1999, o réveillon do milênio. Na verdade, Ana busca “um sentido para o vazio do Planalto Central”, como ela mesmo descreve.
É por meio das inúmeras frustrações vividas pela personagem que o autor, morador de Brasília por contingência da diplomacia, avalia a lenta deterioração física e social. “A Brasília do meu sonho de futuro morreu. Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente”, observa Ana, em um trecho. “Tudo em Brasília se dá à vista de imediato. Nos céus limpos e na luz generosa, os olhos alcançam longe não somente o horizonte, também o limite entre cidade e campo. Traçados previsíveis, curvas esperadas”, diz, em outro.
Crítica à impunidade
Preocupada com o índice crescente de assaltos na região onde mora, Ana compra um revólver, que carrega na bolsa. O detalhe revela uma crítica à impunidade que imobiliza a cidade, alvo de violações tanto políticas quanto policiais. “Penso nos crimes que marcaram a história desta cidade, desde o sequestro e a morte banal, nunca esclarecidos, da menina Ana Lídia, já há muitos anos, até mais recentemente o incêndio de um índio por garotos que queriam apenas se divertir”, diz o texto. A arma ganha também uma função metafórica, quando Ana decide escrever um diário sobre seu passado: “Tomo de uma caneta como se fosse o revólver que comprei. Aponto-a para o papel, disposta a atirar.”
Fascinado pelo funcionamento da vida social brasiliense, Almino busca a cumplicidade do leitor para observar seus personagens como sendo de carne e osso, além de compartilhar suas dores, tragédias, medos, paixões, esperanças, desejos ou alegrias.
Nascido em Mossoró (RN), o escritor viveu em 18 cidades, incluindo o Rio de Janeiro, onde estudou no Instituto Rio Branco, além de várias cidades pelo mundo, já como diplomata. Ele diz que Brasília é uma cidade como nenhuma outra pelo que representou no imaginário de políticos (como José Bonifácio ou o militar e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen) e até Machado de Assis, e também uma cidade como qualquer outra, com seus dramas, desilusões, tragédias e também esperanças. Uma espécie de ideia do Brasil e metáfora do mundo moderno, com todos os seus problemas.
Assim, “As cinco estações do amor” traz uma memória revista, decantada, ressignificada, como observa Adriana Lisboa no texto da orelha da obra. Mais de 20 anos depois de escrito o livro (em cuja nova edição Almino diz ter eliminado alguns adjetivos desnecessários e introduzido personagens secundários), Lisboa destaca apropriadamente uma frase que continua atual: “A realidade que desconhecemos é sempre maior que todos os sonhos que sonhamos.”
Em tempo: o lançamento será no próximo dia 3, quinta-feira, às 19h, na Travessa de Ipanema (Rua Visconde de Pirajá 572).
Ubiratan Brasil é jornalista
‘As cinco estações do amor’
Autor: João Almino. Editora: Record. Páginas: 240. Preço: R$ 69,90. Cotação: ótimo.
