Às margens de Brasília. Sobre Cidade Livre, de João Almino

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TRÓPICO, 14 de agosto de 2010

dossiê
LITERATURA

Às margens de Brasília
Por Thiago Blumenthal

O escritor João Almino lança “Cidade Livre” e explica por que a capital federal recebeu tão pouca atenção da literatura

Quarenta e um meses para ser construída. Cinquenta anos de idade celebrados recentemente. Cidade mais levantada do mundo, para Guimarães Rosa. Capital da esperança, para o escritor André Malraux, que a visitou em 1959. Além da esperança, a fé no futuro, nos dizeres do cineasta Frank Capra naquele mesmo ano. A capital brasileira, palco de uma construção grandiosa e corajosa, já recebeu muitos atributos desde a sua formação, do projeto à inauguração, da cristalização do símbolo que hoje é para o Brasil ao impacto causado no mundo.

Menos célebre, no entanto, é a história da Cidade Livre, designação anterior do Núcleo Bandeirante (hoje uma cidade-satélite de Brasília), uma cidade que, desde o seu início, era fadada à destruição, quando a capital estivesse de fato concluída.

Palco da união de candangos de todas as partes do Brasil, seu destino de certo modo descartável lhe deu uma feição de filme de faroeste, ou, nos dizeres do jornal “O Globo”, em 1958, “uma cidade licenciosa e imoral”.

É esse desregramento moral da cidade ligada à construção da capital que serve de pivô ao novo romance de João Almino, “Cidade Livre”. Muitas vezes chamado de “o romancista de Brasília”, título que, apesar de honrá-lo, o autor aceita com reservas, Almino se vale dos cenários provisórios e quase precários da Cidade Livre para reconstruir a construção da capital brasileira por um viés subjetivo.

À maneira dos folhetins, o narrador (também chamado João) conta, em um blog, suas lembranças da infância na Cidade Livre e, por extensão, em Brasília. Como em um romance em construção, o narrador pondera sobre quais informações deve ali compartilhar e muitas vezes usa os comentários em seu blog (nunca transcritos na narrativa) para tratar também da sua própria matéria narrativa. Por exemplo, “Se incluo esses detalhes aqui é apenas para satisfazer o meu seguidor do blog (…). Talvez elimine essas informações quando fizer uma releitura”, diz ele, questionando-se como deveria tratar daquele assunto, se com mais ou se com menos detalhes.

Há diversas pausas discursivas, em que o relato é interrompido para comentar qualquer curiosidade ou fato importante referente ao blog e aos seus seguidores/leitores.

As referências ao mundo online e ao modo de leitura nessa mídia, como a Wikipedia e os leitores que gostam de ler tudo apressadamente, pontuam o enredo com uma aproximação ao leitor, não só aquele ficcional (o seguidor X do blog), mas o leitor de fato, que tem o livro em mãos.

Mais do que esse diálogo travado com os leitores do blog, há também um outro, de dimensões e desdobramentos maiores e mais complexos, que é o diálogo com o próprio escritor, João Almino, a quem o narrador agradece a revisão do livro.

Há um efeito humorístico quando o narrador discorda da revisão feita por Almino: “Discordo neste ponto de vista da revisão do João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem para o Planalto Central. Corto tudo o que ele acrescentou e mantenho meu texto original”, diz o narrador, que novamente se debruça sobre o próprio texto (e também sobre sua própria memória).

“Livre” porque isentava os comerciantes locais de pagarem seus impostos, a cidade que depois seria satélite da capital antevê o futuro no Planalto Central. Aquela mistura de concreto cheio de formas modernistas com o pragmatismo selvagem dos empreiteiros (o pai do narrador fez dinheiro e fama vendendo imóveis na região) se unia ao motivo do misticismo da “Cidade Eclética que deve ser a Nova Jerusalém”.

Personagens que fazem parte da memória do narrador, como Valdivino (mais visto como ” idealista” do que um operário) e as tias, são o gancho para que motivos políticos, religiosos e sociais sejam, não desvendados, mas observados pelo filtro sempre obscuro e impreciso da memória.

Dividido em sete partes, ou seja, sete noites de conversa com o pai, que ajuda o narrador a se lembrar dos fatos, “Cidade Livre” tem prefácio de Benjamin Abdala Junior, que analisa como a ficção de João Almino busca recuperar o que não ocorreu, mas o que poderia ter ocorrido.

Na linha de uma metaficção historiográfica, o romance usa estratégias bastante modernas para recontar um determinado período histórico de um país ou povo: fatos que não ocorreram na realidade, declarações que jamais foram publicadas, não servem para desmentir a história, mas para reavaliá-la, como diz a ensaísta Linda Hutcheon. Assim, o material histórico é transmutado para um mundo ficcional, com novo status.

Nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, o escritor e diplomata João Almino iniciou seu percurso ficcional na década de 80, com “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, o primeiro de uma série de romances sobre Brasília.

Autor também de livros de história e filosofia política, Almino doutorou-se em Paris, sob orientação do cientista político Claude Lefort, e já lecionou nas universidades de Berkeley e Stanford.

Em entrevista a Trópico, o autor fala da questão autoral, posta em xeque no romance, sobre a influência e o impacto das novas mídias, mas especialmente sobre Brasília que, hoje com 50 anos (celebrados no dia 21 de abril), pouco é retratada na literatura brasileira.

*

O senhor, tido por muitos críticos como o “romancista de Brasília”, retorna à capital neste novo romance, mas com o olhar voltado para fundações periféricas da Cidade Livre. De onde partiu essa idéia de estabelecer o foco partindo do periférico?

João Almino: O que interessa mais para minha literatura é a história não oficial, o olhar oblíquo e através das frestas, a perspectiva menos usual ou mesmo inusitada e o marginal e periférico.

No período escolhido para a trama deste novo romance, Brasília ainda não tinha vida, seus primeiros prédios e suas primeiras vias apenas começavam a tomar forma, enquanto a Cidade Livre já estava povoada de histórias, de sonhos, incertezas, angústias, misticismo, paixões e alegrias. Um bom material para o ficcionista.

Como o senhor trata a questão autoral no texto? Há mais humor ou reflexão literária no fato de estabelecer o “João Almino” como revisor (do qual o narrador muitas vezes discorda) do livro?

Almino: As duas coisas, espero. O João Almino revisor serve para marcar, para o leitor, uma distância entre, de um lado, o narrador, que é autor do livro-blog, e aquele cujo nome vem estampado no capa do livro impresso. Mas serve também para introduzir mais uma camada de leitura, com piscadelas de olho para o leitor.

Em determinado momento, o narrador diz que o João Almino havia sugerido a composição de um “um denso romance regionalista em busca da terra prometida”. Trata-se de um truque humorístico da ficção ou o senhor de fato chegou a pensar nisso?

Almino: Os ingredientes estavam todos lá, pois infelizmente nada havia mudado radicalmente desde que nos anos 30 Graciliano Ramos e outros haviam escrito seus romances. Mas não caberia rever uma decisão que tomei quando comecei a escrever minha ficção, ainda em meados dos anos 80: a de preferir cursar um caminho virgem a repetir de maneira pobre o que já havia sido feito tão bem. É muito provável que esse João Almino revisor não passe de um personagem fictício.

Como se deu essa aproximação com as mídias online, a linguagem do blog e a maneira como ele funciona, com seguidores, comentários, etc.?

Almino: Dei continuidade a um interesse que desenvolvi, desde meu primeiro romance, em estabelecer um diálogo entre a literatura e outros meios de expressão, através da própria literatura.

No primeiro romance, “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, trata-se de um diálogo com o cinema. Em “Samba-Enredo”, com uma máquina de inteligência artificial, que é a narradora, em primeira pessoa, da história. Em “As Cinco Estações do Amor”, a narração é feita num presente contínuo, como se uma câmara alerta e vigilante não se desprendesse da narradora. Em “O Livro das Emoções”, trata-se de um diálogo com a fotografia. Agora, é com o blog.

Em todos os casos, há uma tomada de partido pela palavra e pela literatura, e cuido para que os personagens, com suas biografias e emoções, tenham vida, sejam diferentes entre si, sejam percebidos como pessoas de carne e osso e sobretudo não sejam vistos como um subproduto das formas de expressão artística, nem asfixiados pela metalinguagem, como às vezes pode ocorrer nas narrativas que se tornaram conhecidas como pós-modernas. O blog cria contrapontos e permite introduzir alguns elementos de humor no texto.

Há um pouco de Proust no relato do romance e na maneira como a memória é utilizada e reutilizada. Há até alguns pontos temáticos comuns com o livro “Em Busca do Tempo Perdido”, como a presença marcante das tias na infância do narrador. Como o relato proustiano influenciou o seu romance?

Almino: Continuo achando “Em Busca do Tempo Perdido” uma das mais importantes obras literárias do século XX e, já por três vezes, antes de ler outros tantos livros que me atraem, tomo a decisão reler o de Proust. Portanto é um texto que, de alguma maneira, me é familiar. Contudo, não creio que tenha me apropriado dele neste romance, pelo menos não de maneira consciente.

Há uma diferença básica entre meu processo e o do grande narrador que foi Marcel Proust: a memória de meu personagem é principalmente memória inventada. Entre os ingredientes de minha “madeleine”, incluíram-se leituras, histórias ouvidas, crônicas da época e pura imaginação.

Pode-se dizer, contudo, que, enquanto a narradora, em primeira pessoa, de meu romance “As Cinco Estações do Amor” fazia em vão um esforço antiproustiano para esquecer tudo e começar do zero, meus narradores de “O Livro das Emoções” e de “Cidade Livre” fazem o percurso contrário e proustiano de tentar recuperar a memória perdida. No caso de “Cidade Livre”, a memória do narrador é alimentada por vários diálogos –com seu pai, com suas tias, com o revisor e com os blogueiros.

Em que medida a sua atividade acadêmica, e especialmente o seu doutorado com o professor Claude Lefort, afetam a sua ficção?

Almino: Apenas na medida em que, tendo a filosofia sempre me interessado, pode ser que, sem que jamais esteja no primeiro plano, algo do pensamento de um ou outro filósofo apareça nas entrelinhas de uma reflexão ou mesmo de um diálogo.

O que distingue, no aspecto formal, esse último romance dos últimos publicados, que também focalizam “períodos fundadores”?

Almino: É possível dizer que um dos temas recorrentes no conjunto de meus romances seja o da fundação, da criação e do novo, vistos não apenas como o que são de fato, mas também como símbolo e como ilusão.

A história de “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo” se passa no ano zero. A de “Samba-Enredo” num momento de caos extremo, em meio ao desfile carnavalesco, no qual tudo é possível e as narrativas podem caminhar em múltimas direções. “As Cinco Estações do Amor” descreve um instante de criação literária e de revolução interior. “O Livro das Emoções” gira em torno da ideia do instante fotográfico, em que se cristaliza a emoção.

Agora era chegado o momento de tratar da questão da fundação pela ótica da construção mesma da cidade, com seus elementos de esperança e entusiasmo, e também com seus dramas e frustrações.

As técnicas são radicalmente diferentes entre um romance e outro, em parte em razão da escolha dos narradores: um fantasma, uma máquina, uma mulher em primeira pessoa, um fotógrafo cego e, no novo romance, um narrador que, para construir a história, dialoga com outros e consigo mesmo.

Brasília completou seus 50 anos, mas, tirando sua faceta política, ainda não deixou uma marca na literatura brasileira como cenário. Por quê?

Almino: É que a literatura é menos visível do que a arquitetura e mais silenciosa e solitária do que o rock, por exemplo. Leva mais tempo para ser percebida, entendida e assimilada. Mas estou certo de que pouco a pouco também na literatura ela vai deixar a sua marca.

Como o senhor encara o título de “o romancista de Brasília”?

Almino: Depois de várias cobranças, decidi aceitar humildemente o título, com ressalvas. A mais importante é a de que outros romancistas de Brasília há e haverá. A outra, que tem a ver com a primeira, é de que muitas Brasílias ficcionais são possíveis.
A minha é fruto de minha história, de minhas percepções e de meus interesses: é uma Brasília dos subterrâneos e periferias da cidade, de seu cotidiano, da diversidade daqueles que a habitam, e é também uma determinada ideia de Brasil, uma mistura de brasis, um mito que acompanhou toda a história do Brasil independente, bem como uma parte de um projeto que não é apenas brasileiro, porque se inscreve, no plano urbanístico e arquitetônico, no âmbito do modernismo europeu dos anos 40 e 50. É cenário, personagem, realidade, ilusão, sonho e metáfora.
Tenho dito também que uma literatura não se define por uma cidade, pois na mesma cidade podem-se conceber ficções mais distintas entre si do que ficções advindas de dois continentes distantes um do outro.
Minha literatura não é enraizada; não faço literatura regionalista nem uma ficção marcada fundamentalmente pela paisagem local ou pela dimensão antropológica ou sociológica do meio. Por outro lado, por que não situar histórias numa cidade de carga simbólica tão grande como é Brasília?

O livro:
Cidade Livre, de João Almino. Ed. Record, 240 págs., R$ 39,90. Publicado em 14/8/2010
.
Thiago Blumenthal
É jornalista e mestre em literatura.

TRÓPICO, 14 de agosto de 2010

dossiê
LITERATURA

Às margens de Brasília
Por Thiago Blumenthal

O escritor João Almino lança “Cidade Livre” e explica por que a capital federal recebeu tão pouca atenção da literatura

Quarenta e um meses para ser construída. Cinquenta anos de idade celebrados recentemente. Cidade mais levantada do mundo, para Guimarães Rosa. Capital da esperança, para o escritor André Malraux, que a visitou em 1959. Além da esperança, a fé no futuro, nos dizeres do cineasta Frank Capra naquele mesmo ano. A capital brasileira, palco de uma construção grandiosa e corajosa, já recebeu muitos atributos desde a sua formação, do projeto à inauguração, da cristalização do símbolo que hoje é para o Brasil ao impacto causado no mundo.

Menos célebre, no entanto, é a história da Cidade Livre, designação anterior do Núcleo Bandeirante (hoje uma cidade-satélite de Brasília), uma cidade que, desde o seu início, era fadada à destruição, quando a capital estivesse de fato concluída.

Palco da união de candangos de todas as partes do Brasil, seu destino de certo modo descartável lhe deu uma feição de filme de faroeste, ou, nos dizeres do jornal “O Globo”, em 1958, “uma cidade licenciosa e imoral”.

É esse desregramento moral da cidade ligada à construção da capital que serve de pivô ao novo romance de João Almino, “Cidade Livre”. Muitas vezes chamado de “o romancista de Brasília”, título que, apesar de honrá-lo, o autor aceita com reservas, Almino se vale dos cenários provisórios e quase precários da Cidade Livre para reconstruir a construção da capital brasileira por um viés subjetivo.

À maneira dos folhetins, o narrador (também chamado João) conta, em um blog, suas lembranças da infância na Cidade Livre e, por extensão, em Brasília. Como em um romance em construção, o narrador pondera sobre quais informações deve ali compartilhar e muitas vezes usa os comentários em seu blog (nunca transcritos na narrativa) para tratar também da sua própria matéria narrativa. Por exemplo, “Se incluo esses detalhes aqui é apenas para satisfazer o meu seguidor do blog (…). Talvez elimine essas informações quando fizer uma releitura”, diz ele, questionando-se como deveria tratar daquele assunto, se com mais ou se com menos detalhes.

Há diversas pausas discursivas, em que o relato é interrompido para comentar qualquer curiosidade ou fato importante referente ao blog e aos seus seguidores/leitores.

As referências ao mundo online e ao modo de leitura nessa mídia, como a Wikipedia e os leitores que gostam de ler tudo apressadamente, pontuam o enredo com uma aproximação ao leitor, não só aquele ficcional (o seguidor X do blog), mas o leitor de fato, que tem o livro em mãos.

Mais do que esse diálogo travado com os leitores do blog, há também um outro, de dimensões e desdobramentos maiores e mais complexos, que é o diálogo com o próprio escritor, João Almino, a quem o narrador agradece a revisão do livro.

Há um efeito humorístico quando o narrador discorda da revisão feita por Almino: “Discordo neste ponto de vista da revisão do João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem para o Planalto Central. Corto tudo o que ele acrescentou e mantenho meu texto original”, diz o narrador, que novamente se debruça sobre o próprio texto (e também sobre sua própria memória).

“Livre” porque isentava os comerciantes locais de pagarem seus impostos, a cidade que depois seria satélite da capital antevê o futuro no Planalto Central. Aquela mistura de concreto cheio de formas modernistas com o pragmatismo selvagem dos empreiteiros (o pai do narrador fez dinheiro e fama vendendo imóveis na região) se unia ao motivo do misticismo da “Cidade Eclética que deve ser a Nova Jerusalém”.

Personagens que fazem parte da memória do narrador, como Valdivino (mais visto como ” idealista” do que um operário) e as tias, são o gancho para que motivos políticos, religiosos e sociais sejam, não desvendados, mas observados pelo filtro sempre obscuro e impreciso da memória.

Dividido em sete partes, ou seja, sete noites de conversa com o pai, que ajuda o narrador a se lembrar dos fatos, “Cidade Livre” tem prefácio de Benjamin Abdala Junior, que analisa como a ficção de João Almino busca recuperar o que não ocorreu, mas o que poderia ter ocorrido.

Na linha de uma metaficção historiográfica, o romance usa estratégias bastante modernas para recontar um determinado período histórico de um país ou povo: fatos que não ocorreram na realidade, declarações que jamais foram publicadas, não servem para desmentir a história, mas para reavaliá-la, como diz a ensaísta Linda Hutcheon. Assim, o material histórico é transmutado para um mundo ficcional, com novo status.

Nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, o escritor e diplomata João Almino iniciou seu percurso ficcional na década de 80, com “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, o primeiro de uma série de romances sobre Brasília.

Autor também de livros de história e filosofia política, Almino doutorou-se em Paris, sob orientação do cientista político Claude Lefort, e já lecionou nas universidades de Berkeley e Stanford.

Em entrevista a Trópico, o autor fala da questão autoral, posta em xeque no romance, sobre a influência e o impacto das novas mídias, mas especialmente sobre Brasília que, hoje com 50 anos (celebrados no dia 21 de abril), pouco é retratada na literatura brasileira.

*

O senhor, tido por muitos críticos como o “romancista de Brasília”, retorna à capital neste novo romance, mas com o olhar voltado para fundações periféricas da Cidade Livre. De onde partiu essa idéia de estabelecer o foco partindo do periférico?

João Almino: O que interessa mais para minha literatura é a história não oficial, o olhar oblíquo e através das frestas, a perspectiva menos usual ou mesmo inusitada e o marginal e periférico.

No período escolhido para a trama deste novo romance, Brasília ainda não tinha vida, seus primeiros prédios e suas primeiras vias apenas começavam a tomar forma, enquanto a Cidade Livre já estava povoada de histórias, de sonhos, incertezas, angústias, misticismo, paixões e alegrias. Um bom material para o ficcionista.

Como o senhor trata a questão autoral no texto? Há mais humor ou reflexão literária no fato de estabelecer o “João Almino” como revisor (do qual o narrador muitas vezes discorda) do livro?

Almino: As duas coisas, espero. O João Almino revisor serve para marcar, para o leitor, uma distância entre, de um lado, o narrador, que é autor do livro-blog, e aquele cujo nome vem estampado no capa do livro impresso. Mas serve também para introduzir mais uma camada de leitura, com piscadelas de olho para o leitor.

Em determinado momento, o narrador diz que o João Almino havia sugerido a composição de um “um denso romance regionalista em busca da terra prometida”. Trata-se de um truque humorístico da ficção ou o senhor de fato chegou a pensar nisso?

Almino: Os ingredientes estavam todos lá, pois infelizmente nada havia mudado radicalmente desde que nos anos 30 Graciliano Ramos e outros haviam escrito seus romances. Mas não caberia rever uma decisão que tomei quando comecei a escrever minha ficção, ainda em meados dos anos 80: a de preferir cursar um caminho virgem a repetir de maneira pobre o que já havia sido feito tão bem. É muito provável que esse João Almino revisor não passe de um personagem fictício.

Como se deu essa aproximação com as mídias online, a linguagem do blog e a maneira como ele funciona, com seguidores, comentários, etc.?

Almino: Dei continuidade a um interesse que desenvolvi, desde meu primeiro romance, em estabelecer um diálogo entre a literatura e outros meios de expressão, através da própria literatura.

No primeiro romance, “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, trata-se de um diálogo com o cinema. Em “Samba-Enredo”, com uma máquina de inteligência artificial, que é a narradora, em primeira pessoa, da história. Em “As Cinco Estações do Amor”, a narração é feita num presente contínuo, como se uma câmara alerta e vigilante não se desprendesse da narradora. Em “O Livro das Emoções”, trata-se de um diálogo com a fotografia. Agora, é com o blog.

Em todos os casos, há uma tomada de partido pela palavra e pela literatura, e cuido para que os personagens, com suas biografias e emoções, tenham vida, sejam diferentes entre si, sejam percebidos como pessoas de carne e osso e sobretudo não sejam vistos como um subproduto das formas de expressão artística, nem asfixiados pela metalinguagem, como às vezes pode ocorrer nas narrativas que se tornaram conhecidas como pós-modernas. O blog cria contrapontos e permite introduzir alguns elementos de humor no texto.

Há um pouco de Proust no relato do romance e na maneira como a memória é utilizada e reutilizada. Há até alguns pontos temáticos comuns com o livro “Em Busca do Tempo Perdido”, como a presença marcante das tias na infância do narrador. Como o relato proustiano influenciou o seu romance?

Almino: Continuo achando “Em Busca do Tempo Perdido” uma das mais importantes obras literárias do século XX e, já por três vezes, antes de ler outros tantos livros que me atraem, tomo a decisão reler o de Proust. Portanto é um texto que, de alguma maneira, me é familiar. Contudo, não creio que tenha me apropriado dele neste romance, pelo menos não de maneira consciente.

Há uma diferença básica entre meu processo e o do grande narrador que foi Marcel Proust: a memória de meu personagem é principalmente memória inventada. Entre os ingredientes de minha “madeleine”, incluíram-se leituras, histórias ouvidas, crônicas da época e pura imaginação.

Pode-se dizer, contudo, que, enquanto a narradora, em primeira pessoa, de meu romance “As Cinco Estações do Amor” fazia em vão um esforço antiproustiano para esquecer tudo e começar do zero, meus narradores de “O Livro das Emoções” e de “Cidade Livre” fazem o percurso contrário e proustiano de tentar recuperar a memória perdida. No caso de “Cidade Livre”, a memória do narrador é alimentada por vários diálogos –com seu pai, com suas tias, com o revisor e com os blogueiros.

Em que medida a sua atividade acadêmica, e especialmente o seu doutorado com o professor Claude Lefort, afetam a sua ficção?

Almino: Apenas na medida em que, tendo a filosofia sempre me interessado, pode ser que, sem que jamais esteja no primeiro plano, algo do pensamento de um ou outro filósofo apareça nas entrelinhas de uma reflexão ou mesmo de um diálogo.

O que distingue, no aspecto formal, esse último romance dos últimos publicados, que também focalizam “períodos fundadores”?

Almino: É possível dizer que um dos temas recorrentes no conjunto de meus romances seja o da fundação, da criação e do novo, vistos não apenas como o que são de fato, mas também como símbolo e como ilusão.

A história de “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo” se passa no ano zero. A de “Samba-Enredo” num momento de caos extremo, em meio ao desfile carnavalesco, no qual tudo é possível e as narrativas podem caminhar em múltimas direções. “As Cinco Estações do Amor” descreve um instante de criação literária e de revolução interior. “O Livro das Emoções” gira em torno da ideia do instante fotográfico, em que se cristaliza a emoção.

Agora era chegado o momento de tratar da questão da fundação pela ótica da construção mesma da cidade, com seus elementos de esperança e entusiasmo, e também com seus dramas e frustrações.

As técnicas são radicalmente diferentes entre um romance e outro, em parte em razão da escolha dos narradores: um fantasma, uma máquina, uma mulher em primeira pessoa, um fotógrafo cego e, no novo romance, um narrador que, para construir a história, dialoga com outros e consigo mesmo.

Brasília completou seus 50 anos, mas, tirando sua faceta política, ainda não deixou uma marca na literatura brasileira como cenário. Por quê?

Almino: É que a literatura é menos visível do que a arquitetura e mais silenciosa e solitária do que o rock, por exemplo. Leva mais tempo para ser percebida, entendida e assimilada. Mas estou certo de que pouco a pouco também na literatura ela vai deixar a sua marca.

Como o senhor encara o título de “o romancista de Brasília”?

Almino: Depois de várias cobranças, decidi aceitar humildemente o título, com ressalvas. A mais importante é a de que outros romancistas de Brasília há e haverá. A outra, que tem a ver com a primeira, é de que muitas Brasílias ficcionais são possíveis.
A minha é fruto de minha história, de minhas percepções e de meus interesses: é uma Brasília dos subterrâneos e periferias da cidade, de seu cotidiano, da diversidade daqueles que a habitam, e é também uma determinada ideia de Brasil, uma mistura de brasis, um mito que acompanhou toda a história do Brasil independente, bem como uma parte de um projeto que não é apenas brasileiro, porque se inscreve, no plano urbanístico e arquitetônico, no âmbito do modernismo europeu dos anos 40 e 50. É cenário, personagem, realidade, ilusão, sonho e metáfora.
Tenho dito também que uma literatura não se define por uma cidade, pois na mesma cidade podem-se conceber ficções mais distintas entre si do que ficções advindas de dois continentes distantes um do outro.
Minha literatura não é enraizada; não faço literatura regionalista nem uma ficção marcada fundamentalmente pela paisagem local ou pela dimensão antropológica ou sociológica do meio. Por outro lado, por que não situar histórias numa cidade de carga simbólica tão grande como é Brasília?

O livro:
Cidade Livre, de João Almino. Ed. Record, 240 págs., R$ 39,90. Publicado em 14/8/2010
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Thiago Blumenthal
É jornalista e mestre em literatura.

TRÓPICO, 14 de agosto de 2010

dossiê
LITERATURA

Às margens de Brasília
Por Thiago Blumenthal

O escritor João Almino lança “Cidade Livre” e explica por que a capital federal recebeu tão pouca atenção da literatura

Quarenta e um meses para ser construída. Cinquenta anos de idade celebrados recentemente. Cidade mais levantada do mundo, para Guimarães Rosa. Capital da esperança, para o escritor André Malraux, que a visitou em 1959. Além da esperança, a fé no futuro, nos dizeres do cineasta Frank Capra naquele mesmo ano. A capital brasileira, palco de uma construção grandiosa e corajosa, já recebeu muitos atributos desde a sua formação, do projeto à inauguração, da cristalização do símbolo que hoje é para o Brasil ao impacto causado no mundo.

Menos célebre, no entanto, é a história da Cidade Livre, designação anterior do Núcleo Bandeirante (hoje uma cidade-satélite de Brasília), uma cidade que, desde o seu início, era fadada à destruição, quando a capital estivesse de fato concluída.

Palco da união de candangos de todas as partes do Brasil, seu destino de certo modo descartável lhe deu uma feição de filme de faroeste, ou, nos dizeres do jornal “O Globo”, em 1958, “uma cidade licenciosa e imoral”.

É esse desregramento moral da cidade ligada à construção da capital que serve de pivô ao novo romance de João Almino, “Cidade Livre”. Muitas vezes chamado de “o romancista de Brasília”, título que, apesar de honrá-lo, o autor aceita com reservas, Almino se vale dos cenários provisórios e quase precários da Cidade Livre para reconstruir a construção da capital brasileira por um viés subjetivo.

À maneira dos folhetins, o narrador (também chamado João) conta, em um blog, suas lembranças da infância na Cidade Livre e, por extensão, em Brasília. Como em um romance em construção, o narrador pondera sobre quais informações deve ali compartilhar e muitas vezes usa os comentários em seu blog (nunca transcritos na narrativa) para tratar também da sua própria matéria narrativa. Por exemplo, “Se incluo esses detalhes aqui é apenas para satisfazer o meu seguidor do blog (…). Talvez elimine essas informações quando fizer uma releitura”, diz ele, questionando-se como deveria tratar daquele assunto, se com mais ou se com menos detalhes.

Há diversas pausas discursivas, em que o relato é interrompido para comentar qualquer curiosidade ou fato importante referente ao blog e aos seus seguidores/leitores.

As referências ao mundo online e ao modo de leitura nessa mídia, como a Wikipedia e os leitores que gostam de ler tudo apressadamente, pontuam o enredo com uma aproximação ao leitor, não só aquele ficcional (o seguidor X do blog), mas o leitor de fato, que tem o livro em mãos.

Mais do que esse diálogo travado com os leitores do blog, há também um outro, de dimensões e desdobramentos maiores e mais complexos, que é o diálogo com o próprio escritor, João Almino, a quem o narrador agradece a revisão do livro.

Há um efeito humorístico quando o narrador discorda da revisão feita por Almino: “Discordo neste ponto de vista da revisão do João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem para o Planalto Central. Corto tudo o que ele acrescentou e mantenho meu texto original”, diz o narrador, que novamente se debruça sobre o próprio texto (e também sobre sua própria memória).

“Livre” porque isentava os comerciantes locais de pagarem seus impostos, a cidade que depois seria satélite da capital antevê o futuro no Planalto Central. Aquela mistura de concreto cheio de formas modernistas com o pragmatismo selvagem dos empreiteiros (o pai do narrador fez dinheiro e fama vendendo imóveis na região) se unia ao motivo do misticismo da “Cidade Eclética que deve ser a Nova Jerusalém”.

Personagens que fazem parte da memória do narrador, como Valdivino (mais visto como ” idealista” do que um operário) e as tias, são o gancho para que motivos políticos, religiosos e sociais sejam, não desvendados, mas observados pelo filtro sempre obscuro e impreciso da memória.

Dividido em sete partes, ou seja, sete noites de conversa com o pai, que ajuda o narrador a se lembrar dos fatos, “Cidade Livre” tem prefácio de Benjamin Abdala Junior, que analisa como a ficção de João Almino busca recuperar o que não ocorreu, mas o que poderia ter ocorrido.

Na linha de uma metaficção historiográfica, o romance usa estratégias bastante modernas para recontar um determinado período histórico de um país ou povo: fatos que não ocorreram na realidade, declarações que jamais foram publicadas, não servem para desmentir a história, mas para reavaliá-la, como diz a ensaísta Linda Hutcheon. Assim, o material histórico é transmutado para um mundo ficcional, com novo status.

Nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, o escritor e diplomata João Almino iniciou seu percurso ficcional na década de 80, com “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, o primeiro de uma série de romances sobre Brasília.

Autor também de livros de história e filosofia política, Almino doutorou-se em Paris, sob orientação do cientista político Claude Lefort, e já lecionou nas universidades de Berkeley e Stanford.

Em entrevista a Trópico, o autor fala da questão autoral, posta em xeque no romance, sobre a influência e o impacto das novas mídias, mas especialmente sobre Brasília que, hoje com 50 anos (celebrados no dia 21 de abril), pouco é retratada na literatura brasileira.

*

O senhor, tido por muitos críticos como o “romancista de Brasília”, retorna à capital neste novo romance, mas com o olhar voltado para fundações periféricas da Cidade Livre. De onde partiu essa idéia de estabelecer o foco partindo do periférico?

João Almino: O que interessa mais para minha literatura é a história não oficial, o olhar oblíquo e através das frestas, a perspectiva menos usual ou mesmo inusitada e o marginal e periférico.

No período escolhido para a trama deste novo romance, Brasília ainda não tinha vida, seus primeiros prédios e suas primeiras vias apenas começavam a tomar forma, enquanto a Cidade Livre já estava povoada de histórias, de sonhos, incertezas, angústias, misticismo, paixões e alegrias. Um bom material para o ficcionista.

Como o senhor trata a questão autoral no texto? Há mais humor ou reflexão literária no fato de estabelecer o “João Almino” como revisor (do qual o narrador muitas vezes discorda) do livro?

Almino: As duas coisas, espero. O João Almino revisor serve para marcar, para o leitor, uma distância entre, de um lado, o narrador, que é autor do livro-blog, e aquele cujo nome vem estampado no capa do livro impresso. Mas serve também para introduzir mais uma camada de leitura, com piscadelas de olho para o leitor.

Em determinado momento, o narrador diz que o João Almino havia sugerido a composição de um “um denso romance regionalista em busca da terra prometida”. Trata-se de um truque humorístico da ficção ou o senhor de fato chegou a pensar nisso?

Almino: Os ingredientes estavam todos lá, pois infelizmente nada havia mudado radicalmente desde que nos anos 30 Graciliano Ramos e outros haviam escrito seus romances. Mas não caberia rever uma decisão que tomei quando comecei a escrever minha ficção, ainda em meados dos anos 80: a de preferir cursar um caminho virgem a repetir de maneira pobre o que já havia sido feito tão bem. É muito provável que esse João Almino revisor não passe de um personagem fictício.

Como se deu essa aproximação com as mídias online, a linguagem do blog e a maneira como ele funciona, com seguidores, comentários, etc.?

Almino: Dei continuidade a um interesse que desenvolvi, desde meu primeiro romance, em estabelecer um diálogo entre a literatura e outros meios de expressão, através da própria literatura.

No primeiro romance, “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, trata-se de um diálogo com o cinema. Em “Samba-Enredo”, com uma máquina de inteligência artificial, que é a narradora, em primeira pessoa, da história. Em “As Cinco Estações do Amor”, a narração é feita num presente contínuo, como se uma câmara alerta e vigilante não se desprendesse da narradora. Em “O Livro das Emoções”, trata-se de um diálogo com a fotografia. Agora, é com o blog.

Em todos os casos, há uma tomada de partido pela palavra e pela literatura, e cuido para que os personagens, com suas biografias e emoções, tenham vida, sejam diferentes entre si, sejam percebidos como pessoas de carne e osso e sobretudo não sejam vistos como um subproduto das formas de expressão artística, nem asfixiados pela metalinguagem, como às vezes pode ocorrer nas narrativas que se tornaram conhecidas como pós-modernas. O blog cria contrapontos e permite introduzir alguns elementos de humor no texto.

Há um pouco de Proust no relato do romance e na maneira como a memória é utilizada e reutilizada. Há até alguns pontos temáticos comuns com o livro “Em Busca do Tempo Perdido”, como a presença marcante das tias na infância do narrador. Como o relato proustiano influenciou o seu romance?

Almino: Continuo achando “Em Busca do Tempo Perdido” uma das mais importantes obras literárias do século XX e, já por três vezes, antes de ler outros tantos livros que me atraem, tomo a decisão reler o de Proust. Portanto é um texto que, de alguma maneira, me é familiar. Contudo, não creio que tenha me apropriado dele neste romance, pelo menos não de maneira consciente.

Há uma diferença básica entre meu processo e o do grande narrador que foi Marcel Proust: a memória de meu personagem é principalmente memória inventada. Entre os ingredientes de minha “madeleine”, incluíram-se leituras, histórias ouvidas, crônicas da época e pura imaginação.

Pode-se dizer, contudo, que, enquanto a narradora, em primeira pessoa, de meu romance “As Cinco Estações do Amor” fazia em vão um esforço antiproustiano para esquecer tudo e começar do zero, meus narradores de “O Livro das Emoções” e de “Cidade Livre” fazem o percurso contrário e proustiano de tentar recuperar a memória perdida. No caso de “Cidade Livre”, a memória do narrador é alimentada por vários diálogos –com seu pai, com suas tias, com o revisor e com os blogueiros.

Em que medida a sua atividade acadêmica, e especialmente o seu doutorado com o professor Claude Lefort, afetam a sua ficção?

Almino: Apenas na medida em que, tendo a filosofia sempre me interessado, pode ser que, sem que jamais esteja no primeiro plano, algo do pensamento de um ou outro filósofo apareça nas entrelinhas de uma reflexão ou mesmo de um diálogo.

O que distingue, no aspecto formal, esse último romance dos últimos publicados, que também focalizam “períodos fundadores”?

Almino: É possível dizer que um dos temas recorrentes no conjunto de meus romances seja o da fundação, da criação e do novo, vistos não apenas como o que são de fato, mas também como símbolo e como ilusão.

A história de “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo” se passa no ano zero. A de “Samba-Enredo” num momento de caos extremo, em meio ao desfile carnavalesco, no qual tudo é possível e as narrativas podem caminhar em múltimas direções. “As Cinco Estações do Amor” descreve um instante de criação literária e de revolução interior. “O Livro das Emoções” gira em torno da ideia do instante fotográfico, em que se cristaliza a emoção.

Agora era chegado o momento de tratar da questão da fundação pela ótica da construção mesma da cidade, com seus elementos de esperança e entusiasmo, e também com seus dramas e frustrações.

As técnicas são radicalmente diferentes entre um romance e outro, em parte em razão da escolha dos narradores: um fantasma, uma máquina, uma mulher em primeira pessoa, um fotógrafo cego e, no novo romance, um narrador que, para construir a história, dialoga com outros e consigo mesmo.

Brasília completou seus 50 anos, mas, tirando sua faceta política, ainda não deixou uma marca na literatura brasileira como cenário. Por quê?

Almino: É que a literatura é menos visível do que a arquitetura e mais silenciosa e solitária do que o rock, por exemplo. Leva mais tempo para ser percebida, entendida e assimilada. Mas estou certo de que pouco a pouco também na literatura ela vai deixar a sua marca.

Como o senhor encara o título de “o romancista de Brasília”?

Almino: Depois de várias cobranças, decidi aceitar humildemente o título, com ressalvas. A mais importante é a de que outros romancistas de Brasília há e haverá. A outra, que tem a ver com a primeira, é de que muitas Brasílias ficcionais são possíveis.
A minha é fruto de minha história, de minhas percepções e de meus interesses: é uma Brasília dos subterrâneos e periferias da cidade, de seu cotidiano, da diversidade daqueles que a habitam, e é também uma determinada ideia de Brasil, uma mistura de brasis, um mito que acompanhou toda a história do Brasil independente, bem como uma parte de um projeto que não é apenas brasileiro, porque se inscreve, no plano urbanístico e arquitetônico, no âmbito do modernismo europeu dos anos 40 e 50. É cenário, personagem, realidade, ilusão, sonho e metáfora.
Tenho dito também que uma literatura não se define por uma cidade, pois na mesma cidade podem-se conceber ficções mais distintas entre si do que ficções advindas de dois continentes distantes um do outro.
Minha literatura não é enraizada; não faço literatura regionalista nem uma ficção marcada fundamentalmente pela paisagem local ou pela dimensão antropológica ou sociológica do meio. Por outro lado, por que não situar histórias numa cidade de carga simbólica tão grande como é Brasília?

O livro:
Cidade Livre, de João Almino. Ed. Record, 240 págs., R$ 39,90. Publicado em 14/8/2010
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Thiago Blumenthal
É jornalista e mestre em literatura.

TRÓPICO, 14 de agosto de 2010

dossiê
LITERATURA

Às margens de Brasília
Por Thiago Blumenthal

O escritor João Almino lança “Cidade Livre” e explica por que a capital federal recebeu tão pouca atenção da literatura

Quarenta e um meses para ser construída. Cinquenta anos de idade celebrados recentemente. Cidade mais levantada do mundo, para Guimarães Rosa. Capital da esperança, para o escritor André Malraux, que a visitou em 1959. Além da esperança, a fé no futuro, nos dizeres do cineasta Frank Capra naquele mesmo ano. A capital brasileira, palco de uma construção grandiosa e corajosa, já recebeu muitos atributos desde a sua formação, do projeto à inauguração, da cristalização do símbolo que hoje é para o Brasil ao impacto causado no mundo.

Menos célebre, no entanto, é a história da Cidade Livre, designação anterior do Núcleo Bandeirante (hoje uma cidade-satélite de Brasília), uma cidade que, desde o seu início, era fadada à destruição, quando a capital estivesse de fato concluída.

Palco da união de candangos de todas as partes do Brasil, seu destino de certo modo descartável lhe deu uma feição de filme de faroeste, ou, nos dizeres do jornal “O Globo”, em 1958, “uma cidade licenciosa e imoral”.

É esse desregramento moral da cidade ligada à construção da capital que serve de pivô ao novo romance de João Almino, “Cidade Livre”. Muitas vezes chamado de “o romancista de Brasília”, título que, apesar de honrá-lo, o autor aceita com reservas, Almino se vale dos cenários provisórios e quase precários da Cidade Livre para reconstruir a construção da capital brasileira por um viés subjetivo.

À maneira dos folhetins, o narrador (também chamado João) conta, em um blog, suas lembranças da infância na Cidade Livre e, por extensão, em Brasília. Como em um romance em construção, o narrador pondera sobre quais informações deve ali compartilhar e muitas vezes usa os comentários em seu blog (nunca transcritos na narrativa) para tratar também da sua própria matéria narrativa. Por exemplo, “Se incluo esses detalhes aqui é apenas para satisfazer o meu seguidor do blog (…). Talvez elimine essas informações quando fizer uma releitura”, diz ele, questionando-se como deveria tratar daquele assunto, se com mais ou se com menos detalhes.

Há diversas pausas discursivas, em que o relato é interrompido para comentar qualquer curiosidade ou fato importante referente ao blog e aos seus seguidores/leitores.

As referências ao mundo online e ao modo de leitura nessa mídia, como a Wikipedia e os leitores que gostam de ler tudo apressadamente, pontuam o enredo com uma aproximação ao leitor, não só aquele ficcional (o seguidor X do blog), mas o leitor de fato, que tem o livro em mãos.

Mais do que esse diálogo travado com os leitores do blog, há também um outro, de dimensões e desdobramentos maiores e mais complexos, que é o diálogo com o próprio escritor, João Almino, a quem o narrador agradece a revisão do livro.

Há um efeito humorístico quando o narrador discorda da revisão feita por Almino: “Discordo neste ponto de vista da revisão do João Almino, que introduziu sonhos demais na nossa viagem para o Planalto Central. Corto tudo o que ele acrescentou e mantenho meu texto original”, diz o narrador, que novamente se debruça sobre o próprio texto (e também sobre sua própria memória).

“Livre” porque isentava os comerciantes locais de pagarem seus impostos, a cidade que depois seria satélite da capital antevê o futuro no Planalto Central. Aquela mistura de concreto cheio de formas modernistas com o pragmatismo selvagem dos empreiteiros (o pai do narrador fez dinheiro e fama vendendo imóveis na região) se unia ao motivo do misticismo da “Cidade Eclética que deve ser a Nova Jerusalém”.

Personagens que fazem parte da memória do narrador, como Valdivino (mais visto como ” idealista” do que um operário) e as tias, são o gancho para que motivos políticos, religiosos e sociais sejam, não desvendados, mas observados pelo filtro sempre obscuro e impreciso da memória.

Dividido em sete partes, ou seja, sete noites de conversa com o pai, que ajuda o narrador a se lembrar dos fatos, “Cidade Livre” tem prefácio de Benjamin Abdala Junior, que analisa como a ficção de João Almino busca recuperar o que não ocorreu, mas o que poderia ter ocorrido.

Na linha de uma metaficção historiográfica, o romance usa estratégias bastante modernas para recontar um determinado período histórico de um país ou povo: fatos que não ocorreram na realidade, declarações que jamais foram publicadas, não servem para desmentir a história, mas para reavaliá-la, como diz a ensaísta Linda Hutcheon. Assim, o material histórico é transmutado para um mundo ficcional, com novo status.

Nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, o escritor e diplomata João Almino iniciou seu percurso ficcional na década de 80, com “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, o primeiro de uma série de romances sobre Brasília.

Autor também de livros de história e filosofia política, Almino doutorou-se em Paris, sob orientação do cientista político Claude Lefort, e já lecionou nas universidades de Berkeley e Stanford.

Em entrevista a Trópico, o autor fala da questão autoral, posta em xeque no romance, sobre a influência e o impacto das novas mídias, mas especialmente sobre Brasília que, hoje com 50 anos (celebrados no dia 21 de abril), pouco é retratada na literatura brasileira.

*

O senhor, tido por muitos críticos como o “romancista de Brasília”, retorna à capital neste novo romance, mas com o olhar voltado para fundações periféricas da Cidade Livre. De onde partiu essa idéia de estabelecer o foco partindo do periférico?

João Almino: O que interessa mais para minha literatura é a história não oficial, o olhar oblíquo e através das frestas, a perspectiva menos usual ou mesmo inusitada e o marginal e periférico.

No período escolhido para a trama deste novo romance, Brasília ainda não tinha vida, seus primeiros prédios e suas primeiras vias apenas começavam a tomar forma, enquanto a Cidade Livre já estava povoada de histórias, de sonhos, incertezas, angústias, misticismo, paixões e alegrias. Um bom material para o ficcionista.

Como o senhor trata a questão autoral no texto? Há mais humor ou reflexão literária no fato de estabelecer o “João Almino” como revisor (do qual o narrador muitas vezes discorda) do livro?

Almino: As duas coisas, espero. O João Almino revisor serve para marcar, para o leitor, uma distância entre, de um lado, o narrador, que é autor do livro-blog, e aquele cujo nome vem estampado no capa do livro impresso. Mas serve também para introduzir mais uma camada de leitura, com piscadelas de olho para o leitor.

Em determinado momento, o narrador diz que o João Almino havia sugerido a composição de um “um denso romance regionalista em busca da terra prometida”. Trata-se de um truque humorístico da ficção ou o senhor de fato chegou a pensar nisso?

Almino: Os ingredientes estavam todos lá, pois infelizmente nada havia mudado radicalmente desde que nos anos 30 Graciliano Ramos e outros haviam escrito seus romances. Mas não caberia rever uma decisão que tomei quando comecei a escrever minha ficção, ainda em meados dos anos 80: a de preferir cursar um caminho virgem a repetir de maneira pobre o que já havia sido feito tão bem. É muito provável que esse João Almino revisor não passe de um personagem fictício.

Como se deu essa aproximação com as mídias online, a linguagem do blog e a maneira como ele funciona, com seguidores, comentários, etc.?

Almino: Dei continuidade a um interesse que desenvolvi, desde meu primeiro romance, em estabelecer um diálogo entre a literatura e outros meios de expressão, através da própria literatura.

No primeiro romance, “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo”, trata-se de um diálogo com o cinema. Em “Samba-Enredo”, com uma máquina de inteligência artificial, que é a narradora, em primeira pessoa, da história. Em “As Cinco Estações do Amor”, a narração é feita num presente contínuo, como se uma câmara alerta e vigilante não se desprendesse da narradora. Em “O Livro das Emoções”, trata-se de um diálogo com a fotografia. Agora, é com o blog.

Em todos os casos, há uma tomada de partido pela palavra e pela literatura, e cuido para que os personagens, com suas biografias e emoções, tenham vida, sejam diferentes entre si, sejam percebidos como pessoas de carne e osso e sobretudo não sejam vistos como um subproduto das formas de expressão artística, nem asfixiados pela metalinguagem, como às vezes pode ocorrer nas narrativas que se tornaram conhecidas como pós-modernas. O blog cria contrapontos e permite introduzir alguns elementos de humor no texto.

Há um pouco de Proust no relato do romance e na maneira como a memória é utilizada e reutilizada. Há até alguns pontos temáticos comuns com o livro “Em Busca do Tempo Perdido”, como a presença marcante das tias na infância do narrador. Como o relato proustiano influenciou o seu romance?

Almino: Continuo achando “Em Busca do Tempo Perdido” uma das mais importantes obras literárias do século XX e, já por três vezes, antes de ler outros tantos livros que me atraem, tomo a decisão reler o de Proust. Portanto é um texto que, de alguma maneira, me é familiar. Contudo, não creio que tenha me apropriado dele neste romance, pelo menos não de maneira consciente.

Há uma diferença básica entre meu processo e o do grande narrador que foi Marcel Proust: a memória de meu personagem é principalmente memória inventada. Entre os ingredientes de minha “madeleine”, incluíram-se leituras, histórias ouvidas, crônicas da época e pura imaginação.

Pode-se dizer, contudo, que, enquanto a narradora, em primeira pessoa, de meu romance “As Cinco Estações do Amor” fazia em vão um esforço antiproustiano para esquecer tudo e começar do zero, meus narradores de “O Livro das Emoções” e de “Cidade Livre” fazem o percurso contrário e proustiano de tentar recuperar a memória perdida. No caso de “Cidade Livre”, a memória do narrador é alimentada por vários diálogos –com seu pai, com suas tias, com o revisor e com os blogueiros.

Em que medida a sua atividade acadêmica, e especialmente o seu doutorado com o professor Claude Lefort, afetam a sua ficção?

Almino: Apenas na medida em que, tendo a filosofia sempre me interessado, pode ser que, sem que jamais esteja no primeiro plano, algo do pensamento de um ou outro filósofo apareça nas entrelinhas de uma reflexão ou mesmo de um diálogo.

O que distingue, no aspecto formal, esse último romance dos últimos publicados, que também focalizam “períodos fundadores”?

Almino: É possível dizer que um dos temas recorrentes no conjunto de meus romances seja o da fundação, da criação e do novo, vistos não apenas como o que são de fato, mas também como símbolo e como ilusão.

A história de “Ideias Para Onde Passar o Fim do Mundo” se passa no ano zero. A de “Samba-Enredo” num momento de caos extremo, em meio ao desfile carnavalesco, no qual tudo é possível e as narrativas podem caminhar em múltimas direções. “As Cinco Estações do Amor” descreve um instante de criação literária e de revolução interior. “O Livro das Emoções” gira em torno da ideia do instante fotográfico, em que se cristaliza a emoção.

Agora era chegado o momento de tratar da questão da fundação pela ótica da construção mesma da cidade, com seus elementos de esperança e entusiasmo, e também com seus dramas e frustrações.

As técnicas são radicalmente diferentes entre um romance e outro, em parte em razão da escolha dos narradores: um fantasma, uma máquina, uma mulher em primeira pessoa, um fotógrafo cego e, no novo romance, um narrador que, para construir a história, dialoga com outros e consigo mesmo.

Brasília completou seus 50 anos, mas, tirando sua faceta política, ainda não deixou uma marca na literatura brasileira como cenário. Por quê?

Almino: É que a literatura é menos visível do que a arquitetura e mais silenciosa e solitária do que o rock, por exemplo. Leva mais tempo para ser percebida, entendida e assimilada. Mas estou certo de que pouco a pouco também na literatura ela vai deixar a sua marca.

Como o senhor encara o título de “o romancista de Brasília”?

Almino: Depois de várias cobranças, decidi aceitar humildemente o título, com ressalvas. A mais importante é a de que outros romancistas de Brasília há e haverá. A outra, que tem a ver com a primeira, é de que muitas Brasílias ficcionais são possíveis.
A minha é fruto de minha história, de minhas percepções e de meus interesses: é uma Brasília dos subterrâneos e periferias da cidade, de seu cotidiano, da diversidade daqueles que a habitam, e é também uma determinada ideia de Brasil, uma mistura de brasis, um mito que acompanhou toda a história do Brasil independente, bem como uma parte de um projeto que não é apenas brasileiro, porque se inscreve, no plano urbanístico e arquitetônico, no âmbito do modernismo europeu dos anos 40 e 50. É cenário, personagem, realidade, ilusão, sonho e metáfora.
Tenho dito também que uma literatura não se define por uma cidade, pois na mesma cidade podem-se conceber ficções mais distintas entre si do que ficções advindas de dois continentes distantes um do outro.
Minha literatura não é enraizada; não faço literatura regionalista nem uma ficção marcada fundamentalmente pela paisagem local ou pela dimensão antropológica ou sociológica do meio. Por outro lado, por que não situar histórias numa cidade de carga simbólica tão grande como é Brasília?

O livro:
Cidade Livre, de João Almino. Ed. Record, 240 págs., R$ 39,90. Publicado em 14/8/2010
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Thiago Blumenthal
É jornalista e mestre em literatura.