AS MEMÓRIAS DE JOÃO ALMINO: um romance sobre a liberdade e a felicidade.
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Por Diego Mendes Sousa*
Publicado por DCP em 07/02/2021
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Há tempos venho acompanhando a ascendência romanesca do universo artístico de João Almino (1950-). É espantosa a sua criatividade, tecida com a estilística e a estética de um clássico.
Não à toa, o romancista gaúcho Moacyr Scliar dissera que João Almino está “entre os melhores autores de nosso país. O Brasil está resumido em suas páginas, que são verdadeiramente antológicas.”.
Até o presente ano apocalíptico de 2021, a sua trajetória literária já agrupa sete romances (número cabalístico), sendo o seu livro de estreia: “Ideias para onde passar o fim do mundo” (Editora Brasiliense, 1987, e em segunda edição pela Record, de 2002), um dos aicebergues da sua produção.
Esta obra, apesar de publicada 34 anos atrás, é de uma atualidade impressionante.
Aparenta-me ter sido escrita nas sombras das incertezas de 2020, não apenas pelo agudo título utópico, mas também pela ampla temática realista, que abarca racismo, feminismo, sexualidade, machismo, mudanças climáticas e naturais, revoluções, guerras, conflitos entre a ciência e a política, democracia, que são tônicas do hodierno e caras à nossa existência em sociedade.
João Almino criou uma peça definitiva, em que o misticismo, a inteligência e a loucura formam os liames para a aventura humana, alicerçados também na distopia, nos desencontros das personagens, que estruturam a sua narrativa fecunda e diáfana.
Brasília, a menina dos olhos de João Almino, passou a ser o cenário mágico das suas reflexões.
De maneira perspicaz, esse nordestino norte rio-grandense de Mossoró, trouxe para si a reinvenção de uma cidade inaugural: “Brasília entrara há muitos anos na história, querendo lançar o país no futuro.”.
Na realidade, Brasília ingressou total e ferozmente nas histórias de João Almino e o alçou a um alto plano meritório de ser o definitivo narrador da capital do Brasil, “berço esplêndido da nova humanidade”, como atestam as fortes iluminações neste exemplar “Ideias para onde passar o fim do mundo” e em outros registros da sua lavra, como “Samba-enredo” (1994), “As cinco estações do amor” (2001), “O livro das emoções” (2008), “Cidade-livre” (2010), “Enigmas da primavera” (2015) e “Entre facas, algodão” (2017).
“Ideias para onde passar o fim do mundo” possui uma ficção instigante e intrigante. É uma estória múltipla, onde há capítulos inesperados, revestidos de epifania e de erotismo.
A presença de um narrador fantasma parece nublar o tempo. Inesperadamente, Brasília é Paris ou Paris é Brasília. As ruas do Planalto Central se confundem com os bulevares parisienses. E a atmosfera brasiliense é um presságio para a fuga.
O excelentíssimo senhor presidente do Brasil é negro e se chama Paulo Antônio Fernandes, “filho adotivo de um general e primeiro negro da história do país a ser presidente.”.
Paulo Antônio Fernandes não é a personagem mais importante, como tudo levará a crer. O principal elemento do romance é uma fotografia e o desenredo subsequente, que passa a ser também fruto da imaginação do leitor.
Tudo se assemelha ao desconexo, como relâmpagos assustadores e barulhentos. As estórias são paralelas. O fantasma é um perdido fabulador e escreve um roteiro cinematográfico.
A mulher do fantasma, de repente, é a romancista que reescreve as estórias criadas. Tudo está estagnado, como sonhos em frangalhos, palavras enganosas e desejos irrealizados: “o essencial, o fundamental, o mágico a gente alcança sem querer.”.
Em uma linguagem poética e lúcida, alinhada a uma riqueza verbal deslumbrante e lírica, João Almino nos oferta um verdadeiro ensaio filosófico e sociológico sobre a liberdade e a felicidade.
Berenice, Tõezinho, Zé Maria, Eva, Tita (Joana), Cadu, Íris, Madalena, Silvinha, Mário são símbolos e signos, mitografias de uma época de ilusões. São seres inesquecíveis, paralisantes, contemplativos e insondáveis.
Conhecedor da tradição e reformulador da técnica, João Almino é um mestre na arte de transfigurar as estações e de projetar as memórias do futuro.
“Ideias para onde passar o fim do mundo” é uma música repartida, estonteante, um réquiem, um testemunho.
*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense. Admirador da vivacidade inventiva de João Almino.
Fragmentos do romance de João Almino
escolhidos por Diego Mendes Sousa
Morto, começo rendendo homenagem ao velho Machado. Não me interessa saber se começo do começo ou do fim. Não quero narrar minha morte. Não me chamo Brás Cubas. Não escrevi minhas memórias. Nem dedico meu roteiro de cinema ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver. Não é aos vermes que pertence o futuro. Sou dos que nele continuam a acreditar.
Por isso
aos ratos
meus rabiscos.
Deles é o futuro do mundo, já daqui a cinquenta milhões de anos, segundo a teoria da evolução das espécies. Tanto mais que sou brasiliense. Não tenha você dúvida de que a Brasília pertence o futuro da humanidade, futuro desta história, pois em nenhuma outra parte haverá ratos maiores, mais belos, mais desenvolvidos que os daqui. Os ratos e as plantas secas do Planalto sobreviverão. E com eles Brasília.
……….
Às vezes a gente deve ir até o fim da intensidade que tem dentro de si – era o que pensava – senão acaba sentindo como se morresse. Tinha, portanto, que fugir, como um dia tinha fugido de casa de seus pais. Não precisava de médicos nem de hospital. Recuperava-se pela própria vontade de viver.
E, caminhando ao longo dos eixos de Brasília, foi até àquela enorme multidão, que chegava até o setor comercial, vinda dos lados da rodoviária e da Esplanada. Íris quis ver o que era. Tanta gente olhando para cima, procurando sinal do céu. Depois, viu também que tinha gente olhando para baixo. Chegou-se, cruzou a rodoviária e foi ter com a pirâmide do Teatro Nacional. Havia um mundo de gente, sem começo nem fim.
……….
Associou o que acontecia à visão de dom Bosco. As riquezas fabulosas que ele profetizara para essa nova civilização que surgiria do Planalto Central não tinham sido descobertas. Agora lhe ocorria que essas riquezas aflorariam provavelmente após um bombardeio nuclear, mesmo que longe do Brasil. Ninguém, a não ser ela, percebia também que um enorme planeta de uma estrela longínqua se aproximava pouco a pouco da Terra.
(…)
Ao contrário de outros lugares, onde o povo começava a sair às ruas para protestar contra a possibilidade de uma guerra, em Brasília a população já se conformava com a inevitabilidade da catástrofe universal, para a qual se preparava silenciosamente. Grupos de pessoas construíam por conta própria abrigos em pontos estratégicos.
……….
O filme já não tinha mais sentido. Terminada a história, concluído o incidente de Paulo Antônio, tendo “os outros” ocupado o cenário, já não havia por que insistir nos contos destes que aqui foram reunidos aleatoriamente, a partir de uma fotografia amarelada pelo tempo.
Mas os personagens não se contentariam com tão curta e insignificante passagem pela história. Se fracassaram, se não entenderam os fatos inusitados e surpreendentes, se saíram de cena, querem ao menos ter a oportunidade de explicar o que ocasionou tudo isso. Contudo, que posso eu fazer, se, depois da publicação, este é o único espaço que você me dá, Silvinha querida, para preparar minha defesa e a de meus personagens?
Não se importe, com você não me zango. Até ponho música de fundo enquanto você narra: Bill Evans, “New Conversations”,
“I love my wife.”
……….
Aqui decidi eu mesma, Silvinha, tomar a palavra, pois sou a verdadeira responsável por este livro, ou melhor, esta psicografia. A história é dele, do narrador, Mário Camargo de Castro, que falava com você até agora. Mas fantasma nenhum consegue materializar uma escritura. Ele me pediu que o fizesse, e eu a transcrevi literalmente, como os que transcreveram as mensagens do Alcorão.
Como você já sabe, tive minha parte de responsabilidade, e não só por ter me cabido a feitura final do livro. A foto a partir da qual Mário começou a montar a história, eu mesma lhe havia mostrado, em nosso passeio parisiense.
Além disso, não é só por acaso que ocupo o centro da foto, corpo fino em meus dezessete anos – olho com orgulho, agora que o tempo me transformou tanto, não me eliminando, espero, a beleza.
……….
Escrevo estas precisões porque sei que você, por ser exigente e amante do realismo, pode desejar conhecer o destino dos personagens, mesmo após a história. Não preciso inventar nada.
……….
Claro, a objetividade é uma expressão subjetiva de quem pensa retratar os fatos e as coisas como eles são. Por isso este conto é subjetivo-objetivo. A objetividade que Mário podia ter em relação a esses fatos não passava de uma média das histórias que lhe contaram ou que lera na imprensa ou de uma interpretação pessoal dessas histórias. Ele não tinha memória dos fatos. Salvo para aquilo em que eu estava diretamente envolvida, tampouco tinha eu. Minha memória própria, devo confessar, é como a do Brasil: uma mistura de memórias alheias.
……….
A eternidade, ora, a eternidade… ele dizia, a eternidade é o lugar que a gente ocupa no centro do tempo. A gente vai para trás até o começo do tempo, tentando se lembrar de tudo o que aconteceu. E a gente projeta para o futuro, até o momento da felicidade congelada, a que não tem mais para onde mudar, a morte perfeita. A morte é como uma fotografia. Morrer é ficar como se está, guardar tudo o que se é, não perder nem ganhar nada, não sofrer nunca mais, não chorar nunca mais, nunca mais rir.
……….
Como fantasmas, ele preferia continuar vivendo no Planalto. Ali o céu era mais alto, o espaço era mesmo infinito e as pessoas perdiam a noção da época em que viviam. Mário tinha ali mais ar para respirar e mais céus para voar. E havia mais gente desejosa de receber espíritos que em qualquer outra parte. Como fantasma, portanto, ali ele ia ficando, pois ali também nascera.
……….
Tenho razões para, depois de morta, e a título de posfácio, assumir plenamente minha condição de narradora e relegar Mário à de meu personagem. Ele pode ter concluído a pesquisa, jamais o livro. Se ele havia se encarnado em mim, se eu estava imbuída do espírito dele, nada disso invalida o fato incontestável de que o livro é meu, pois o estilo é meu, juntei as palavras como quis. Espírito não dita nada, a gente é que capta o que quer e só vê aquilo em que acredita. Por isso posso dizer – e repito – que, se cabe a você compor o romance e se a tentativa de roteiro de cinema era de Mário, este livro é meu, exclusivamente meu.
……….
Você, portanto, não me acredite: sou espécie de nova heroína, pura ficção; pura fantasia; ou… puro fantasma!
Melhor que me dedicar ao que realmente me interessa: vou tratar do problema da minha reencarnação.
Ponto final: vou reescrever tudo.
Para Brasília, mais que para Paris, a frase é aplicável: “Nunca há um fim para o Plano Piloto e a memória de cada pessoa que viveu ali difere da de qualquer outra.”
E aqui interrompo para beber água. Você me espere, que eu volto já.