Autobiografia

Jornal de Letras, Lisboa, 12 de janeiro de 2011, p.12

Autobiografias

João Almino, Vida cigana

Como o presente reescreve o passado e as histórias sempre se refazem, uma autobiografia é só o que rememoramos agora e, se deve caber em determinado número de caracteres, é uma pequena seleção do que rememoramos. Apesar disso, vistos de distintas formas, certos elementos de nossa biografia teimam em permanecer nas manifestações de nossas lembranças.

Minha literatura está cheia de biografias e memórias inventadas, e, se nunca havia feito autobiografia, foi por boas razões. O leitor exigente que me imaginava personagem de romance pode abandonar a leitura deste texto imediatamente, pois o que eu poderia contar de heróico, dramático ou apaixonante? Já o leitor capaz de associar sua curiosidade a uma dose de paciência, certo de que esta história não passará de duas páginas, pode querer saber que passei minha infância em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Morava próximo ao centro, a poucas quadras do mercado central e da Catedral de Santa Luzia, numa época em que a cidade era relativamente pequena. Tanto assim que não havia por que temer atravessá-la a pé, sozinho, quando passava os domingos na casa de meus primos, no Alto da Conceição.

Parte dos brinquedos nós mesmos inventávamos. Carteiras de cigarro se transformavam em notas de dinheiro depositadas numa instituição financeira situada embaixo da mesa da sala. Disputava, em jogos, castanhas de caju. Esculpia com canivete meus cavalos de pau. Comprados em loja, não muito mais do que bolas de gude, um ou outro caminhão de madeira no natal, uma metralhadora de plástico após uma ida ao dentista ou lança-perfumes também de plástico durante os carnavais. Brincávamos nas ruas, nas calçadas, ou então me deitava no parapeito da varanda para ver as normalistas passarem. A cidade tinha orgulho de ser a segunda a libertar os escravos, e uma vez por ano eu entrava na fila para cumprimentar um ex-escravo de noventa anos, sentado num banco de praça.

Entre os fatos marcantes, destaco o de estar vivo, e não porque tenha escapado das bombas de Beirute quando lá vivi por dois anos em plena guerra, mas sim porque uma de minhas irmãs me salvou duas vezes: de um carro quase em frente à casa e de um forte choque elétrico, quando eu, aos três anos, com vocação científica precoce, desmontava um interruptor de luz.

Se tenho um lado sertanejo, vem de minha mãe. No sertão do Ceará, meu avô tinha uma fazenda, onde eu andava a cavalo e apostava corridas de cem metros. Era o lugar da liberdade, de rios secos no verão e de enchentes no inverno; de paisagens e histórias que caberiam num romance de José Lins do Rego. Andava de pés descalços e chegava das férias de joelhos ralados. Colhi algodão, debulhei feijão, e de noite, no escuro das calçadas, as histórias de alma me davam medo.

Tive sorte: vivi cercado de mulheres, o que, convenhamos, torna a vida menos monótona e mais divertida, cheia de histórias para contar, pois em geral suas conversas são mais ricas e emocionantes do que as de rodas masculinas. Com quatro irmãs e várias primas, não era raro ser convidado para ser padrinho de batismo de bonecas ou então o padre a oficiar o batismo. Meu único irmão, dezesseis anos mais velho, saiu de casa cedo para estudar. Com a morte de meu pai, quando eu tinha doze anos, fiquei eu, o caçula, em casa com minhas quatro irmãs e minha mãe.

Mudamo-nos então para os arredores de Fortaleza. Por essa época eu já não pensava em ser padre, mas sim arquiteto, jornalista, psicólogo e, como era bom em matemática, fui incentivado por meus professores a me preparar para engenharia. Mudei a tempo: estudei direito, administração e economia, concluindo o primeiro. O interesse pela pintura substituí pela fotografia, à qual me dedico um pouco até hoje; deixei a escrita de poesia para ser leitor de poesia, e o convívio com poetas me levou a envolver-me na elaboração de antologias. De forma insistente, havia a literatura e a diplomacia, carreiras que julgava compatíveis uma com a outra, talvez pela admiração que tinha por alguns diplomatas escritores, como João Cabral, Vinicius e Guimarães Rosa.

Queria sair do Ceará, morar no Rio, e o caminho mais certo passava pelo Instituto Rio Branco. No Rio sobrevivi dando aulas de inglês, o que já fazia em Fortaleza, onde dirigia um curso de línguas. Financiei minha viagem com um prêmio de um concurso nacional sobre direito de autor e mais a venda de um pequeno terreno que meu pai me deixou de herança e aluguei um quarto num apartamento do Catete.

Na hora de fazer mestrado, encaminhei-me para a sociologia, porque queria ler Marx e os marxistas franceses, alguns dos quais vim a encontrar na França anos depois, quando acompanhei e senti bem dentro de mim a chamada crise do marxismo na segunda metade dos anos setenta. Fiz meu doutorado em Paris numa época ainda marcada pelo marxismo e também pelo espírito de 68 e a cultura hippie, dos quais não fugi. Sartre ainda era vivo, frequentei as aulas de Foucault no Collège de France e seu seminário restrito, aulas esparsas de Barthes e de Bourdieu, mas o que mais me atraiu foi o grupo da antiga revista Socialisme ou Barbarie. Com Lefort, meu diretor de tese, aprendi não apenas a ler criticamente Maquiavel e Marx, mas também a respeitar algumas ideias liberais e conservadoras, de Tocqueville, Burke ou Aron, e descobri que os direitos humanos, os direitos sindicais, a liberdade de organização e de expressão não eram direitos burgueses: eram fundamentais para existência da sociedade. Daí surgiu Os Democratas Autoritários, que creio ter ajudado a lançar o debate sobre uma Assembléia Constituinte.

Mas o melhor de Paris foi que conheci minha mulher, Bia Wouk, que ali vivia como artista plástica. Eu morava na Notre Dame des Champs e frequentava o café Le Select, onde algumas páginas de meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, foram escritas. O interesse pela literatura vinha de antes. Havia me acompanhado praticamente durante toda a minha vida. Com nove anos tive a ideia de escrever um livro e mostrei a meu pai cerca de cinquenta páginas escritas num caderno de escola. Acho que foi o entusiasmo dele com minha escrita meu primeiro grande incentivo para que crescesse aquele germe que pouco a pouco foi tomando conta de mim. Ele também me incutiu o gosto pela leitura. Nunca tinha freqüentado escola, foi um autodidata, mas lia muito. Numa pequena estante, dedicava uma meia prateleira a alguns livros de romancistas regionalistas do Nordeste, e várias a livros de história do Brasil.

Com minha história e por causa de minhas primeiras leituras, teria me enveredado pela literatura regionalista nordestina não fosse o desejo, mais forte, de não repetir o que já estava feito. Em 1985 o Brasil entrava numa nova fase política, e a literatura precisava renovar-se. Achei que Brasília, por ser cidade nova, sem tradição nem história dissociada do mito modernizador de seu projeto, se prestaria a uma literatura desenraizada, que retratasse as identidades múltiplas, cambiantes e em aberto e espelhasse algo que tenho chamado de universalismo descentrado. Daí surgiram os demais romances: Samba-Enredo, As Cinco Estações do Amor, O Livro das Emoções e o recém-publicado Cidade Livre. No lugar de histórias que me seguissem mundo afora, trouxe os lugares por onde passei àquele ponto de referência. Em Brasília, onde residi em três ocasiões e por um período total de dez anos, coloquei também o Nordeste e o mundo – ou pelo menos o mundo daquelas muitas andanças propiciadas pela diplomacia, carreira que também abracei e à qual dediquei muito de meu tempo e de minhas energias: além de Paris, Beirute, México, de onde voltamos em 1985 ao Brasil no momento da democratização, época em que nasceu nossa primeira filha, Letícia, hoje arquiteta; Washington, onde nasceu nossa filha mais nova, Elisa, que tudo indica se encaminha para uma carreira literária; São Francisco, Lisboa, Londres, Miami e Chicago. Sempre com o pé na estrada, portanto; vida cigana.

Algumas dessas cidades me propiciaram o convívio com a vida universitária. Dei aulas, de filosofia ou literatura, para continuar aprendendo: na Universidade de Brasília, Instituto Rio Branco, UNAM, Berkeley, Stanford e Universidade de Chicago, o que me levou a publicar, ao lado dos romances, livros de ensaios filosóficos ou literários. Entre os primeiros estão o O segredo e a informação e A idade do presente, e o mais recente é um livrinho sobre Machado: O diabrete angélico e o pavão.

Em meio a tantos interesses e lugares, a literatura tem sido minha companhia mais fiel, por ser igualmente companheira na alegria e na tristeza, na esperança e no desespero, na tranquilidade e na angústia. Escrevo ficção todos os dias. Publicar é fundamental, ter leitores também, mas o mais importante mesmo é escrever, como quem tem de fazer exercício físico diariamente, pois no meu caso a escrita é uma forma de organização do caos da vida.

Jornal de Letras, Lisbon, january 12, 2011, p.12

Autobiografias

João Almino, Vida cigana

Como o presente reescreve o passado e as histórias sempre se refazem, uma autobiografia é só o que rememoramos agora e, se deve caber em determinado número de caracteres, é uma pequena seleção do que rememoramos. Apesar disso, vistos de distintas formas, certos elementos de nossa biografia teimam em permanecer nas manifestações de nossas lembranças.

Minha literatura está cheia de biografias e memórias inventadas, e, se nunca havia feito autobiografia, foi por boas razões. O leitor exigente que me imaginava personagem de romance pode abandonar a leitura deste texto imediatamente, pois o que eu poderia contar de heróico, dramático ou apaixonante? Já o leitor capaz de associar sua curiosidade a uma dose de paciência, certo de que esta história não passará de duas páginas, pode querer saber que passei minha infância em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Morava próximo ao centro, a poucas quadras do mercado central e da Catedral de Santa Luzia, numa época em que a cidade era relativamente pequena. Tanto assim que não havia por que temer atravessá-la a pé, sozinho, quando passava os domingos na casa de meus primos, no Alto da Conceição.

Parte dos brinquedos nós mesmos inventávamos. Carteiras de cigarro se transformavam em notas de dinheiro depositadas numa instituição financeira situada embaixo da mesa da sala. Disputava, em jogos, castanhas de caju. Esculpia com canivete meus cavalos de pau. Comprados em loja, não muito mais do que bolas de gude, um ou outro caminhão de madeira no natal, uma metralhadora de plástico após uma ida ao dentista ou lança-perfumes também de plástico durante os carnavais. Brincávamos nas ruas, nas calçadas, ou então me deitava no parapeito da varanda para ver as normalistas passarem. A cidade tinha orgulho de ser a segunda a libertar os escravos, e uma vez por ano eu entrava na fila para cumprimentar um ex-escravo de noventa anos, sentado num banco de praça.

Entre os fatos marcantes, destaco o de estar vivo, e não porque tenha escapado das bombas de Beirute quando lá vivi por dois anos em plena guerra, mas sim porque uma de minhas irmãs me salvou duas vezes: de um carro quase em frente à casa e de um forte choque elétrico, quando eu, aos três anos, com vocação científica precoce, desmontava um interruptor de luz.

Se tenho um lado sertanejo, vem de minha mãe. No sertão do Ceará, meu avô tinha uma fazenda, onde eu andava a cavalo e apostava corridas de cem metros. Era o lugar da liberdade, de rios secos no verão e de enchentes no inverno; de paisagens e histórias que caberiam num romance de José Lins do Rego. Andava de pés descalços e chegava das férias de joelhos ralados. Colhi algodão, debulhei feijão, e de noite, no escuro das calçadas, as histórias de alma me davam medo.

Tive sorte: vivi cercado de mulheres, o que, convenhamos, torna a vida menos monótona e mais divertida, cheia de histórias para contar, pois em geral suas conversas são mais ricas e emocionantes do que as de rodas masculinas. Com quatro irmãs e várias primas, não era raro ser convidado para ser padrinho de batismo de bonecas ou então o padre a oficiar o batismo. Meu único irmão, dezesseis anos mais velho, saiu de casa cedo para estudar. Com a morte de meu pai, quando eu tinha doze anos, fiquei eu, o caçula, em casa com minhas quatro irmãs e minha mãe.

Mudamo-nos então para os arredores de Fortaleza. Por essa época eu já não pensava em ser padre, mas sim arquiteto, jornalista, psicólogo e, como era bom em matemática, fui incentivado por meus professores a me preparar para engenharia. Mudei a tempo: estudei direito, administração e economia, concluindo o primeiro. O interesse pela pintura substituí pela fotografia, à qual me dedico um pouco até hoje; deixei a escrita de poesia para ser leitor de poesia, e o convívio com poetas me levou a envolver-me na elaboração de antologias. De forma insistente, havia a literatura e a diplomacia, carreiras que julgava compatíveis uma com a outra, talvez pela admiração que tinha por alguns diplomatas escritores, como João Cabral, Vinicius e Guimarães Rosa.

Queria sair do Ceará, morar no Rio, e o caminho mais certo passava pelo Instituto Rio Branco. No Rio sobrevivi dando aulas de inglês, o que já fazia em Fortaleza, onde dirigia um curso de línguas. Financiei minha viagem com um prêmio de um concurso nacional sobre direito de autor e mais a venda de um pequeno terreno que meu pai me deixou de herança e aluguei um quarto num apartamento do Catete.

Na hora de fazer mestrado, encaminhei-me para a sociologia, porque queria ler Marx e os marxistas franceses, alguns dos quais vim a encontrar na França anos depois, quando acompanhei e senti bem dentro de mim a chamada crise do marxismo na segunda metade dos anos setenta. Fiz meu doutorado em Paris numa época ainda marcada pelo marxismo e também pelo espírito de 68 e a cultura hippie, dos quais não fugi. Sartre ainda era vivo, frequentei as aulas de Foucault no Collège de France e seu seminário restrito, aulas esparsas de Barthes e de Bourdieu, mas o que mais me atraiu foi o grupo da antiga revista Socialisme ou Barbarie. Com Lefort, meu diretor de tese, aprendi não apenas a ler criticamente Maquiavel e Marx, mas também a respeitar algumas ideias liberais e conservadoras, de Tocqueville, Burke ou Aron, e descobri que os direitos humanos, os direitos sindicais, a liberdade de organização e de expressão não eram direitos burgueses: eram fundamentais para existência da sociedade. Daí surgiu Os Democratas Autoritários, que creio ter ajudado a lançar o debate sobre uma Assembléia Constituinte.

Mas o melhor de Paris foi que conheci minha mulher, Bia Wouk, que ali vivia como artista plástica. Eu morava na Notre Dame des Champs e frequentava o café Le Select, onde algumas páginas de meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, foram escritas. O interesse pela literatura vinha de antes. Havia me acompanhado praticamente durante toda a minha vida. Com nove anos tive a ideia de escrever um livro e mostrei a meu pai cerca de cinquenta páginas escritas num caderno de escola. Acho que foi o entusiasmo dele com minha escrita meu primeiro grande incentivo para que crescesse aquele germe que pouco a pouco foi tomando conta de mim. Ele também me incutiu o gosto pela leitura. Nunca tinha freqüentado escola, foi um autodidata, mas lia muito. Numa pequena estante, dedicava uma meia prateleira a alguns livros de romancistas regionalistas do Nordeste, e várias a livros de história do Brasil.

Com minha história e por causa de minhas primeiras leituras, teria me enveredado pela literatura regionalista nordestina não fosse o desejo, mais forte, de não repetir o que já estava feito. Em 1985 o Brasil entrava numa nova fase política, e a literatura precisava renovar-se. Achei que Brasília, por ser cidade nova, sem tradição nem história dissociada do mito modernizador de seu projeto, se prestaria a uma literatura desenraizada, que retratasse as identidades múltiplas, cambiantes e em aberto e espelhasse algo que tenho chamado de universalismo descentrado. Daí surgiram os demais romances: Samba-Enredo, As Cinco Estações do Amor, O Livro das Emoções e o recém-publicado Cidade Livre. No lugar de histórias que me seguissem mundo afora, trouxe os lugares por onde passei àquele ponto de referência. Em Brasília, onde residi em três ocasiões e por um período total de dez anos, coloquei também o Nordeste e o mundo – ou pelo menos o mundo daquelas muitas andanças propiciadas pela diplomacia, carreira que também abracei e à qual dediquei muito de meu tempo e de minhas energias: além de Paris, Beirute, México, de onde voltamos em 1985 ao Brasil no momento da democratização, época em que nasceu nossa primeira filha, Letícia, hoje arquiteta; Washington, onde nasceu nossa filha mais nova, Elisa, que tudo indica se encaminha para uma carreira literária; São Francisco, Lisboa, Londres, Miami e Chicago. Sempre com o pé na estrada, portanto; vida cigana.

Algumas dessas cidades me propiciaram o convívio com a vida universitária. Dei aulas, de filosofia ou literatura, para continuar aprendendo: na Universidade de Brasília, Instituto Rio Branco, UNAM, Berkeley, Stanford e Universidade de Chicago, o que me levou a publicar, ao lado dos romances, livros de ensaios filosóficos ou literários. Entre os primeiros estão o O segredo e a informação e A idade do presente, e o mais recente é um livrinho sobre Machado: O diabrete angélico e o pavão.

Em meio a tantos interesses e lugares, a literatura tem sido minha companhia mais fiel, por ser igualmente companheira na alegria e na tristeza, na esperança e no desespero, na tranquilidade e na angústia. Escrevo ficção todos os dias. Publicar é fundamental, ter leitores também, mas o mais importante mesmo é escrever, como quem tem de fazer exercício físico diariamente, pois no meu caso a escrita é uma forma de organização do caos da vida.

Jornal de Letras, Lisboa, 12 de enero de 2011, p.12

Autobiografias

João Almino, Vida cigana

Como o presente reescreve o passado e as histórias sempre se refazem, uma autobiografia é só o que rememoramos agora e, se deve caber em determinado número de caracteres, é uma pequena seleção do que rememoramos. Apesar disso, vistos de distintas formas, certos elementos de nossa biografia teimam em permanecer nas manifestações de nossas lembranças.

Minha literatura está cheia de biografias e memórias inventadas, e, se nunca havia feito autobiografia, foi por boas razões. O leitor exigente que me imaginava personagem de romance pode abandonar a leitura deste texto imediatamente, pois o que eu poderia contar de heróico, dramático ou apaixonante? Já o leitor capaz de associar sua curiosidade a uma dose de paciência, certo de que esta história não passará de duas páginas, pode querer saber que passei minha infância em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Morava próximo ao centro, a poucas quadras do mercado central e da Catedral de Santa Luzia, numa época em que a cidade era relativamente pequena. Tanto assim que não havia por que temer atravessá-la a pé, sozinho, quando passava os domingos na casa de meus primos, no Alto da Conceição.

Parte dos brinquedos nós mesmos inventávamos. Carteiras de cigarro se transformavam em notas de dinheiro depositadas numa instituição financeira situada embaixo da mesa da sala. Disputava, em jogos, castanhas de caju. Esculpia com canivete meus cavalos de pau. Comprados em loja, não muito mais do que bolas de gude, um ou outro caminhão de madeira no natal, uma metralhadora de plástico após uma ida ao dentista ou lança-perfumes também de plástico durante os carnavais. Brincávamos nas ruas, nas calçadas, ou então me deitava no parapeito da varanda para ver as normalistas passarem. A cidade tinha orgulho de ser a segunda a libertar os escravos, e uma vez por ano eu entrava na fila para cumprimentar um ex-escravo de noventa anos, sentado num banco de praça.

Entre os fatos marcantes, destaco o de estar vivo, e não porque tenha escapado das bombas de Beirute quando lá vivi por dois anos em plena guerra, mas sim porque uma de minhas irmãs me salvou duas vezes: de um carro quase em frente à casa e de um forte choque elétrico, quando eu, aos três anos, com vocação científica precoce, desmontava um interruptor de luz.

Se tenho um lado sertanejo, vem de minha mãe. No sertão do Ceará, meu avô tinha uma fazenda, onde eu andava a cavalo e apostava corridas de cem metros. Era o lugar da liberdade, de rios secos no verão e de enchentes no inverno; de paisagens e histórias que caberiam num romance de José Lins do Rego. Andava de pés descalços e chegava das férias de joelhos ralados. Colhi algodão, debulhei feijão, e de noite, no escuro das calçadas, as histórias de alma me davam medo.

Tive sorte: vivi cercado de mulheres, o que, convenhamos, torna a vida menos monótona e mais divertida, cheia de histórias para contar, pois em geral suas conversas são mais ricas e emocionantes do que as de rodas masculinas. Com quatro irmãs e várias primas, não era raro ser convidado para ser padrinho de batismo de bonecas ou então o padre a oficiar o batismo. Meu único irmão, dezesseis anos mais velho, saiu de casa cedo para estudar. Com a morte de meu pai, quando eu tinha doze anos, fiquei eu, o caçula, em casa com minhas quatro irmãs e minha mãe.

Mudamo-nos então para os arredores de Fortaleza. Por essa época eu já não pensava em ser padre, mas sim arquiteto, jornalista, psicólogo e, como era bom em matemática, fui incentivado por meus professores a me preparar para engenharia. Mudei a tempo: estudei direito, administração e economia, concluindo o primeiro. O interesse pela pintura substituí pela fotografia, à qual me dedico um pouco até hoje; deixei a escrita de poesia para ser leitor de poesia, e o convívio com poetas me levou a envolver-me na elaboração de antologias. De forma insistente, havia a literatura e a diplomacia, carreiras que julgava compatíveis uma com a outra, talvez pela admiração que tinha por alguns diplomatas escritores, como João Cabral, Vinicius e Guimarães Rosa.

Queria sair do Ceará, morar no Rio, e o caminho mais certo passava pelo Instituto Rio Branco. No Rio sobrevivi dando aulas de inglês, o que já fazia em Fortaleza, onde dirigia um curso de línguas. Financiei minha viagem com um prêmio de um concurso nacional sobre direito de autor e mais a venda de um pequeno terreno que meu pai me deixou de herança e aluguei um quarto num apartamento do Catete.

Na hora de fazer mestrado, encaminhei-me para a sociologia, porque queria ler Marx e os marxistas franceses, alguns dos quais vim a encontrar na França anos depois, quando acompanhei e senti bem dentro de mim a chamada crise do marxismo na segunda metade dos anos setenta. Fiz meu doutorado em Paris numa época ainda marcada pelo marxismo e também pelo espírito de 68 e a cultura hippie, dos quais não fugi. Sartre ainda era vivo, frequentei as aulas de Foucault no Collège de France e seu seminário restrito, aulas esparsas de Barthes e de Bourdieu, mas o que mais me atraiu foi o grupo da antiga revista Socialisme ou Barbarie. Com Lefort, meu diretor de tese, aprendi não apenas a ler criticamente Maquiavel e Marx, mas também a respeitar algumas ideias liberais e conservadoras, de Tocqueville, Burke ou Aron, e descobri que os direitos humanos, os direitos sindicais, a liberdade de organização e de expressão não eram direitos burgueses: eram fundamentais para existência da sociedade. Daí surgiu Os Democratas Autoritários, que creio ter ajudado a lançar o debate sobre uma Assembléia Constituinte.

Mas o melhor de Paris foi que conheci minha mulher, Bia Wouk, que ali vivia como artista plástica. Eu morava na Notre Dame des Champs e frequentava o café Le Select, onde algumas páginas de meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, foram escritas. O interesse pela literatura vinha de antes. Havia me acompanhado praticamente durante toda a minha vida. Com nove anos tive a ideia de escrever um livro e mostrei a meu pai cerca de cinquenta páginas escritas num caderno de escola. Acho que foi o entusiasmo dele com minha escrita meu primeiro grande incentivo para que crescesse aquele germe que pouco a pouco foi tomando conta de mim. Ele também me incutiu o gosto pela leitura. Nunca tinha freqüentado escola, foi um autodidata, mas lia muito. Numa pequena estante, dedicava uma meia prateleira a alguns livros de romancistas regionalistas do Nordeste, e várias a livros de história do Brasil.

Com minha história e por causa de minhas primeiras leituras, teria me enveredado pela literatura regionalista nordestina não fosse o desejo, mais forte, de não repetir o que já estava feito. Em 1985 o Brasil entrava numa nova fase política, e a literatura precisava renovar-se. Achei que Brasília, por ser cidade nova, sem tradição nem história dissociada do mito modernizador de seu projeto, se prestaria a uma literatura desenraizada, que retratasse as identidades múltiplas, cambiantes e em aberto e espelhasse algo que tenho chamado de universalismo descentrado. Daí surgiram os demais romances: Samba-Enredo, As Cinco Estações do Amor, O Livro das Emoções e o recém-publicado Cidade Livre. No lugar de histórias que me seguissem mundo afora, trouxe os lugares por onde passei àquele ponto de referência. Em Brasília, onde residi em três ocasiões e por um período total de dez anos, coloquei também o Nordeste e o mundo – ou pelo menos o mundo daquelas muitas andanças propiciadas pela diplomacia, carreira que também abracei e à qual dediquei muito de meu tempo e de minhas energias: além de Paris, Beirute, México, de onde voltamos em 1985 ao Brasil no momento da democratização, época em que nasceu nossa primeira filha, Letícia, hoje arquiteta; Washington, onde nasceu nossa filha mais nova, Elisa, que tudo indica se encaminha para uma carreira literária; São Francisco, Lisboa, Londres, Miami e Chicago. Sempre com o pé na estrada, portanto; vida cigana.

Algumas dessas cidades me propiciaram o convívio com a vida universitária. Dei aulas, de filosofia ou literatura, para continuar aprendendo: na Universidade de Brasília, Instituto Rio Branco, UNAM, Berkeley, Stanford e Universidade de Chicago, o que me levou a publicar, ao lado dos romances, livros de ensaios filosóficos ou literários. Entre os primeiros estão o O segredo e a informação e A idade do presente, e o mais recente é um livrinho sobre Machado: O diabrete angélico e o pavão.

Em meio a tantos interesses e lugares, a literatura tem sido minha companhia mais fiel, por ser igualmente companheira na alegria e na tristeza, na esperança e no desespero, na tranquilidade e na angústia. Escrevo ficção todos os dias. Publicar é fundamental, ter leitores também, mas o mais importante mesmo é escrever, como quem tem de fazer exercício físico diariamente, pois no meu caso a escrita é uma forma de organização do caos da vida.

Jornal de Letras, Lisbonne, le 12 janvier 2011, p.12

Autobiografias

João Almino, Vida cigana

Como o presente reescreve o passado e as histórias sempre se refazem, uma autobiografia é só o que rememoramos agora e, se deve caber em determinado número de caracteres, é uma pequena seleção do que rememoramos. Apesar disso, vistos de distintas formas, certos elementos de nossa biografia teimam em permanecer nas manifestações de nossas lembranças.

Minha literatura está cheia de biografias e memórias inventadas, e, se nunca havia feito autobiografia, foi por boas razões. O leitor exigente que me imaginava personagem de romance pode abandonar a leitura deste texto imediatamente, pois o que eu poderia contar de heróico, dramático ou apaixonante? Já o leitor capaz de associar sua curiosidade a uma dose de paciência, certo de que esta história não passará de duas páginas, pode querer saber que passei minha infância em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Morava próximo ao centro, a poucas quadras do mercado central e da Catedral de Santa Luzia, numa época em que a cidade era relativamente pequena. Tanto assim que não havia por que temer atravessá-la a pé, sozinho, quando passava os domingos na casa de meus primos, no Alto da Conceição.

Parte dos brinquedos nós mesmos inventávamos. Carteiras de cigarro se transformavam em notas de dinheiro depositadas numa instituição financeira situada embaixo da mesa da sala. Disputava, em jogos, castanhas de caju. Esculpia com canivete meus cavalos de pau. Comprados em loja, não muito mais do que bolas de gude, um ou outro caminhão de madeira no natal, uma metralhadora de plástico após uma ida ao dentista ou lança-perfumes também de plástico durante os carnavais. Brincávamos nas ruas, nas calçadas, ou então me deitava no parapeito da varanda para ver as normalistas passarem. A cidade tinha orgulho de ser a segunda a libertar os escravos, e uma vez por ano eu entrava na fila para cumprimentar um ex-escravo de noventa anos, sentado num banco de praça.

Entre os fatos marcantes, destaco o de estar vivo, e não porque tenha escapado das bombas de Beirute quando lá vivi por dois anos em plena guerra, mas sim porque uma de minhas irmãs me salvou duas vezes: de um carro quase em frente à casa e de um forte choque elétrico, quando eu, aos três anos, com vocação científica precoce, desmontava um interruptor de luz.

Se tenho um lado sertanejo, vem de minha mãe. No sertão do Ceará, meu avô tinha uma fazenda, onde eu andava a cavalo e apostava corridas de cem metros. Era o lugar da liberdade, de rios secos no verão e de enchentes no inverno; de paisagens e histórias que caberiam num romance de José Lins do Rego. Andava de pés descalços e chegava das férias de joelhos ralados. Colhi algodão, debulhei feijão, e de noite, no escuro das calçadas, as histórias de alma me davam medo.

Tive sorte: vivi cercado de mulheres, o que, convenhamos, torna a vida menos monótona e mais divertida, cheia de histórias para contar, pois em geral suas conversas são mais ricas e emocionantes do que as de rodas masculinas. Com quatro irmãs e várias primas, não era raro ser convidado para ser padrinho de batismo de bonecas ou então o padre a oficiar o batismo. Meu único irmão, dezesseis anos mais velho, saiu de casa cedo para estudar. Com a morte de meu pai, quando eu tinha doze anos, fiquei eu, o caçula, em casa com minhas quatro irmãs e minha mãe.

Mudamo-nos então para os arredores de Fortaleza. Por essa época eu já não pensava em ser padre, mas sim arquiteto, jornalista, psicólogo e, como era bom em matemática, fui incentivado por meus professores a me preparar para engenharia. Mudei a tempo: estudei direito, administração e economia, concluindo o primeiro. O interesse pela pintura substituí pela fotografia, à qual me dedico um pouco até hoje; deixei a escrita de poesia para ser leitor de poesia, e o convívio com poetas me levou a envolver-me na elaboração de antologias. De forma insistente, havia a literatura e a diplomacia, carreiras que julgava compatíveis uma com a outra, talvez pela admiração que tinha por alguns diplomatas escritores, como João Cabral, Vinicius e Guimarães Rosa.

Queria sair do Ceará, morar no Rio, e o caminho mais certo passava pelo Instituto Rio Branco. No Rio sobrevivi dando aulas de inglês, o que já fazia em Fortaleza, onde dirigia um curso de línguas. Financiei minha viagem com um prêmio de um concurso nacional sobre direito de autor e mais a venda de um pequeno terreno que meu pai me deixou de herança e aluguei um quarto num apartamento do Catete.

Na hora de fazer mestrado, encaminhei-me para a sociologia, porque queria ler Marx e os marxistas franceses, alguns dos quais vim a encontrar na França anos depois, quando acompanhei e senti bem dentro de mim a chamada crise do marxismo na segunda metade dos anos setenta. Fiz meu doutorado em Paris numa época ainda marcada pelo marxismo e também pelo espírito de 68 e a cultura hippie, dos quais não fugi. Sartre ainda era vivo, frequentei as aulas de Foucault no Collège de France e seu seminário restrito, aulas esparsas de Barthes e de Bourdieu, mas o que mais me atraiu foi o grupo da antiga revista Socialisme ou Barbarie. Com Lefort, meu diretor de tese, aprendi não apenas a ler criticamente Maquiavel e Marx, mas também a respeitar algumas ideias liberais e conservadoras, de Tocqueville, Burke ou Aron, e descobri que os direitos humanos, os direitos sindicais, a liberdade de organização e de expressão não eram direitos burgueses: eram fundamentais para existência da sociedade. Daí surgiu Os Democratas Autoritários, que creio ter ajudado a lançar o debate sobre uma Assembléia Constituinte.

Mas o melhor de Paris foi que conheci minha mulher, Bia Wouk, que ali vivia como artista plástica. Eu morava na Notre Dame des Champs e frequentava o café Le Select, onde algumas páginas de meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, foram escritas. O interesse pela literatura vinha de antes. Havia me acompanhado praticamente durante toda a minha vida. Com nove anos tive a ideia de escrever um livro e mostrei a meu pai cerca de cinquenta páginas escritas num caderno de escola. Acho que foi o entusiasmo dele com minha escrita meu primeiro grande incentivo para que crescesse aquele germe que pouco a pouco foi tomando conta de mim. Ele também me incutiu o gosto pela leitura. Nunca tinha freqüentado escola, foi um autodidata, mas lia muito. Numa pequena estante, dedicava uma meia prateleira a alguns livros de romancistas regionalistas do Nordeste, e várias a livros de história do Brasil.

Com minha história e por causa de minhas primeiras leituras, teria me enveredado pela literatura regionalista nordestina não fosse o desejo, mais forte, de não repetir o que já estava feito. Em 1985 o Brasil entrava numa nova fase política, e a literatura precisava renovar-se. Achei que Brasília, por ser cidade nova, sem tradição nem história dissociada do mito modernizador de seu projeto, se prestaria a uma literatura desenraizada, que retratasse as identidades múltiplas, cambiantes e em aberto e espelhasse algo que tenho chamado de universalismo descentrado. Daí surgiram os demais romances: Samba-Enredo, As Cinco Estações do Amor, O Livro das Emoções e o recém-publicado Cidade Livre. No lugar de histórias que me seguissem mundo afora, trouxe os lugares por onde passei àquele ponto de referência. Em Brasília, onde residi em três ocasiões e por um período total de dez anos, coloquei também o Nordeste e o mundo – ou pelo menos o mundo daquelas muitas andanças propiciadas pela diplomacia, carreira que também abracei e à qual dediquei muito de meu tempo e de minhas energias: além de Paris, Beirute, México, de onde voltamos em 1985 ao Brasil no momento da democratização, época em que nasceu nossa primeira filha, Letícia, hoje arquiteta; Washington, onde nasceu nossa filha mais nova, Elisa, que tudo indica se encaminha para uma carreira literária; São Francisco, Lisboa, Londres, Miami e Chicago. Sempre com o pé na estrada, portanto; vida cigana.

Algumas dessas cidades me propiciaram o convívio com a vida universitária. Dei aulas, de filosofia ou literatura, para continuar aprendendo: na Universidade de Brasília, Instituto Rio Branco, UNAM, Berkeley, Stanford e Universidade de Chicago, o que me levou a publicar, ao lado dos romances, livros de ensaios filosóficos ou literários. Entre os primeiros estão o O segredo e a informação e A idade do presente, e o mais recente é um livrinho sobre Machado: O diabrete angélico e o pavão.

Em meio a tantos interesses e lugares, a literatura tem sido minha companhia mais fiel, por ser igualmente companheira na alegria e na tristeza, na esperança e no desespero, na tranquilidade e na angústia. Escrevo ficção todos os dias. Publicar é fundamental, ter leitores também, mas o mais importante mesmo é escrever, como quem tem de fazer exercício físico diariamente, pois no meu caso a escrita é uma forma de organização do caos da vida.