Como reconstituir a construção de Brasília, pelo viés subjetivo? Há as marcas dos registros históricos, que podem muitas vezes escamotear possíveis sentidos das mediações dos atores envolvidos. E, mais, apagar marcas subjetivas que potencializaram suas atitudes, cujos registros, quando existem, são fragmentados, dispersos. Cidade Livre, de João Almino, vê-se, assim, diante de um desafio, que é próprio do conhecimento que vem da literatura: pela ficção, recuperar também o que não ocorreu, mas que poderia ter acontecido, no entorno dos fatos históricos. Vale-se de um narrador que mescla sua visão imatura de menino com o amadurecimento do adulto, que escreve décadas depois, em 2010, recorrendo inclusive aos participantes de um blog. São fingimentos literários, que oscilam entre passado e presente, de maneira a associarem-se, ainda, à antiga técnica da narrativa folhetinesca, que serve hoje de base para as telenovelas. Um narrador que constrói sua memória, por sua vez, através da sobreposição de imagens acumuladas pela observação, que admite serem através de pequenas “frestas”. Não apenas das portas e paredes, mas também da recolha parcial das notícias, acontecimentos observados e depoimentos individuais, anotados ou não.
A leitura de Cidade Livre leva à percepção de como foi problemática a construção da cidade mais levantada do mundo – uma das epígrafes ao romance, extraída de um dos contos de Guimarães Rosa. Implica também inferir a potencialidade subjetiva dos atores motivados por sua construção. Sonho diurno, para muitos, isto é, a vontade que leva a se acreditar na possibilidade de sua realização, com respaldo em projetos. E também sonhos noturnos, o avesso impulsionado pelo que falta e que leva a essa inclinação para o futuro. Importa, segundo o narrador do romance, é a vontade dos idealizadores e empreendedores do grande projeto de construção da cidade mais levantada do mundo. São tais vontades “férreas”, que fazem “o barco deslizar sobre as águas e chegar a algum porto, mesmo que não seja o que havíamos calculado”.
João Almino faz questão de preservar ambiguidades inerentes aos fluxos da vida, e entra nessas águas valendo-se de matérias e perspectivas diversificadas, tanto em sua elaboração formal como nos fatos relatados, ficcionais ou históricos. Quaisquer analogias entre eles conformam unidades (cambiantes) a recobrir matérias que são heterogêneas. Quando o narrador procura resgatar tais unidades pela memória, busca princípios de inteligibilidade para fatos e pessoas, mas os desenhos da vida representada ficcionalmente não deixam de destacar a heterogeneidade de suas facetas, mais claras ou obscuras, amplas ou restritas, conforme os ângulos ou a dimensão das “frestas”, que canalizam suas observações.
É assim, a partir das “frestas” da história de Brasília ou das estórias do romance, que as linhas inicialmente claras do projeto de construção da cidade embaralham-se. Silêncios ou superposições entre as vozes das personagens tornam múltiplas, contraditórias, tanto as unidades narrativas ou as de suas identificações psicossociais. Unidades abertas, que têm como horizonte a imagem de uma cidade livre, o que implica pluralidade. A identidade vista no plural, como mutiplicidade de caracteres. “Cidade Livre” – é de se recordar – foi a designação anterior do Núcleo Bandeirante, uma cidade provisória destinada a ser destruída quando do término da construção da capital brasileira. Desde suas origens, aponta João Almino, Brasília se via embalada por sonhos de liberdade individual (o desejo de se atingir “catedrais” simbólicas) e também aspirações coletivas – a mítica Brasília, que vem dos projetos do Império, ou a “Cidade de Z”, que apresenta traços similares aos do sonho de Dom Bosco.
Pelas margens, são relatados fatos históricos e culturais da formação dessa cidade e o destino antevisto para o Núcleo Bandeirante será revertido. A “Cidade Livre” não foi destruída, mas não deixou de se tornar cidade satélite. A partir do conceito de vizinhança – tópico do sentido de construção da cidade moderna -, o narrador periférico amplia o sentido de familiaridade. Órfão, ele estatui como seus valores familiares e, depois, político-sociais, um parentesco mais amplo – um “barco”, a ser movido pela ação dos “ventos”. Na óptica das margens, o porto a que se pretendia chegar veio a mostrar-se outro, de forma análoga à ação de tantos atores políticos movidos pela imagem de Brasília, desde José Bonifácio até Juscelino Kubitschek. Todos, e não apenas uma das personagens andarilhas, nômades, do romance, pretendiam construir catedrais simbólicas, levantadas a partir do nada em termos de recursos, sobre o vazio do cerrado.
Mesclam-se, na efabulação de Cidade Livre, o concreto das linhas da cidade modernista, que levam às aspirações de um Oscar Niemeyer ou Lúcio Costa, ao pragmatismo predador de certos empreiteiros e, ainda, como corolário recessivo de uma situação adversa, à evanescência mística, nos jardins da salvação. Poder-se-ia situar a construção da cidade como correlata à imagem do avião de seu Plano Piloto, que aterrissa no planalto desconsiderando seu entorno – a natureza do cerrado, descrita pelo narrador, ou as relações sociais a que deu origem. O sonho, enunciado pelo narrador, direciona-se no sentido da aspiração de que a paisagem se torne verde e as relações sociais mais libertas, sem estereótipos.
A leitura do romance de João Almino ainda permite perceber os impactos da construção da nova capital, ao interiorizar o desenvolvimento do país, e também a reação de personalidades do mundo político e cultural que por lá passaram. Entre elas, Aldous Huxley mereceu particular referência. Preocupado com os autoritários determinismos biológicos e psicossociais de sua época (o fascismo, viveu na Itália), ele veio a se abrir para outras formas de percepção ou maneiras de ser, para além das formas marcadas do cotidiano. Essas atitudes do escritor inglês (da contração do “admirável mundo novo” à descontração das “portas da percepção”) desenham inclinações análogas àquelas da imagem de uma Brasília cosmopolita, híbrida, com uma discursividade múltipla e horizontes abertos ao mundo, que João Almino nos apresenta, sem deixar de situá-la – e por isso mesmo – como um dos pontos de encontro do hibridismo cultural brasileiro.
Benjamin Abdala Junior
Como reconstituir a construção de Brasília, pelo viés subjetivo? Há as marcas dos registros históricos, que podem muitas vezes escamotear possíveis sentidos das mediações dos atores envolvidos. E, mais, apagar marcas subjetivas que potencializaram suas atitudes, cujos registros, quando existem, são fragmentados, dispersos. Cidade Livre, de João Almino, vê-se, assim, diante de um desafio, que é próprio do conhecimento que vem da literatura: pela ficção, recuperar também o que não ocorreu, mas que poderia ter acontecido, no entorno dos fatos históricos. Vale-se de um narrador que mescla sua visão imatura de menino com o amadurecimento do adulto, que escreve décadas depois, em 2010, recorrendo inclusive aos participantes de um blog. São fingimentos literários, que oscilam entre passado e presente, de maneira a associarem-se, ainda, à antiga técnica da narrativa folhetinesca, que serve hoje de base para as telenovelas. Um narrador que constrói sua memória, por sua vez, através da sobreposição de imagens acumuladas pela observação, que admite serem através de pequenas “frestas”. Não apenas das portas e paredes, mas também da recolha parcial das notícias, acontecimentos observados e depoimentos individuais, anotados ou não.
A leitura de Cidade Livre leva à percepção de como foi problemática a construção da cidade mais levantada do mundo – uma das epígrafes ao romance, extraída de um dos contos de Guimarães Rosa. Implica também inferir a potencialidade subjetiva dos atores motivados por sua construção. Sonho diurno, para muitos, isto é, a vontade que leva a se acreditar na possibilidade de sua realização, com respaldo em projetos. E também sonhos noturnos, o avesso impulsionado pelo que falta e que leva a essa inclinação para o futuro. Importa, segundo o narrador do romance, é a vontade dos idealizadores e empreendedores do grande projeto de construção da cidade mais levantada do mundo. São tais vontades “férreas”, que fazem “o barco deslizar sobre as águas e chegar a algum porto, mesmo que não seja o que havíamos calculado”.
João Almino faz questão de preservar ambiguidades inerentes aos fluxos da vida, e entra nessas águas valendo-se de matérias e perspectivas diversificadas, tanto em sua elaboração formal como nos fatos relatados, ficcionais ou históricos. Quaisquer analogias entre eles conformam unidades (cambiantes) a recobrir matérias que são heterogêneas. Quando o narrador procura resgatar tais unidades pela memória, busca princípios de inteligibilidade para fatos e pessoas, mas os desenhos da vida representada ficcionalmente não deixam de destacar a heterogeneidade de suas facetas, mais claras ou obscuras, amplas ou restritas, conforme os ângulos ou a dimensão das “frestas”, que canalizam suas observações.
É assim, a partir das “frestas” da história de Brasília ou das estórias do romance, que as linhas inicialmente claras do projeto de construção da cidade embaralham-se. Silêncios ou superposições entre as vozes das personagens tornam múltiplas, contraditórias, tanto as unidades narrativas ou as de suas identificações psicossociais. Unidades abertas, que têm como horizonte a imagem de uma cidade livre, o que implica pluralidade. A identidade vista no plural, como mutiplicidade de caracteres. “Cidade Livre” – é de se recordar – foi a designação anterior do Núcleo Bandeirante, uma cidade provisória destinada a ser destruída quando do término da construção da capital brasileira. Desde suas origens, aponta João Almino, Brasília se via embalada por sonhos de liberdade individual (o desejo de se atingir “catedrais” simbólicas) e também aspirações coletivas – a mítica Brasília, que vem dos projetos do Império, ou a “Cidade de Z”, que apresenta traços similares aos do sonho de Dom Bosco.
Pelas margens, são relatados fatos históricos e culturais da formação dessa cidade e o destino antevisto para o Núcleo Bandeirante será revertido. A “Cidade Livre” não foi destruída, mas não deixou de se tornar cidade satélite. A partir do conceito de vizinhança – tópico do sentido de construção da cidade moderna -, o narrador periférico amplia o sentido de familiaridade. Órfão, ele estatui como seus valores familiares e, depois, político-sociais, um parentesco mais amplo – um “barco”, a ser movido pela ação dos “ventos”. Na óptica das margens, o porto a que se pretendia chegar veio a mostrar-se outro, de forma análoga à ação de tantos atores políticos movidos pela imagem de Brasília, desde José Bonifácio até Juscelino Kubitschek. Todos, e não apenas uma das personagens andarilhas, nômades, do romance, pretendiam construir catedrais simbólicas, levantadas a partir do nada em termos de recursos, sobre o vazio do cerrado.
Mesclam-se, na efabulação de Cidade Livre, o concreto das linhas da cidade modernista, que levam às aspirações de um Oscar Niemeyer ou Lúcio Costa, ao pragmatismo predador de certos empreiteiros e, ainda, como corolário recessivo de uma situação adversa, à evanescência mística, nos jardins da salvação. Poder-se-ia situar a construção da cidade como correlata à imagem do avião de seu Plano Piloto, que aterrissa no planalto desconsiderando seu entorno – a natureza do cerrado, descrita pelo narrador, ou as relações sociais a que deu origem. O sonho, enunciado pelo narrador, direciona-se no sentido da aspiração de que a paisagem se torne verde e as relações sociais mais libertas, sem estereótipos.
A leitura do romance de João Almino ainda permite perceber os impactos da construção da nova capital, ao interiorizar o desenvolvimento do país, e também a reação de personalidades do mundo político e cultural que por lá passaram. Entre elas, Aldous Huxley mereceu particular referência. Preocupado com os autoritários determinismos biológicos e psicossociais de sua época (o fascismo, viveu na Itália), ele veio a se abrir para outras formas de percepção ou maneiras de ser, para além das formas marcadas do cotidiano. Essas atitudes do escritor inglês (da contração do “admirável mundo novo” à descontração das “portas da percepção”) desenham inclinações análogas àquelas da imagem de uma Brasília cosmopolita, híbrida, com uma discursividade múltipla e horizontes abertos ao mundo, que João Almino nos apresenta, sem deixar de situá-la – e por isso mesmo – como um dos pontos de encontro do hibridismo cultural brasileiro.
Como reconstituir a construção de Brasília, pelo viés subjetivo? Há as marcas dos registros históricos, que podem muitas vezes escamotear possíveis sentidos das mediações dos atores envolvidos. E, mais, apagar marcas subjetivas que potencializaram suas atitudes, cujos registros, quando existem, são fragmentados, dispersos. Cidade Livre, de João Almino, vê-se, assim, diante de um desafio, que é próprio do conhecimento que vem da literatura: pela ficção, recuperar também o que não ocorreu, mas que poderia ter acontecido, no entorno dos fatos históricos. Vale-se de um narrador que mescla sua visão imatura de menino com o amadurecimento do adulto, que escreve décadas depois, em 2010, recorrendo inclusive aos participantes de um blog. São fingimentos literários, que oscilam entre passado e presente, de maneira a associarem-se, ainda, à antiga técnica da narrativa folhetinesca, que serve hoje de base para as telenovelas. Um narrador que constrói sua memória, por sua vez, através da sobreposição de imagens acumuladas pela observação, que admite serem através de pequenas “frestas”. Não apenas das portas e paredes, mas também da recolha parcial das notícias, acontecimentos observados e depoimentos individuais, anotados ou não.
A leitura de Cidade Livre leva à percepção de como foi problemática a construção da cidade mais levantada do mundo – uma das epígrafes ao romance, extraída de um dos contos de Guimarães Rosa. Implica também inferir a potencialidade subjetiva dos atores motivados por sua construção. Sonho diurno, para muitos, isto é, a vontade que leva a se acreditar na possibilidade de sua realização, com respaldo em projetos. E também sonhos noturnos, o avesso impulsionado pelo que falta e que leva a essa inclinação para o futuro. Importa, segundo o narrador do romance, é a vontade dos idealizadores e empreendedores do grande projeto de construção da cidade mais levantada do mundo. São tais vontades “férreas”, que fazem “o barco deslizar sobre as águas e chegar a algum porto, mesmo que não seja o que havíamos calculado”.
João Almino faz questão de preservar ambiguidades inerentes aos fluxos da vida, e entra nessas águas valendo-se de matérias e perspectivas diversificadas, tanto em sua elaboração formal como nos fatos relatados, ficcionais ou históricos. Quaisquer analogias entre eles conformam unidades (cambiantes) a recobrir matérias que são heterogêneas. Quando o narrador procura resgatar tais unidades pela memória, busca princípios de inteligibilidade para fatos e pessoas, mas os desenhos da vida representada ficcionalmente não deixam de destacar a heterogeneidade de suas facetas, mais claras ou obscuras, amplas ou restritas, conforme os ângulos ou a dimensão das “frestas”, que canalizam suas observações.
É assim, a partir das “frestas” da história de Brasília ou das estórias do romance, que as linhas inicialmente claras do projeto de construção da cidade embaralham-se. Silêncios ou superposições entre as vozes das personagens tornam múltiplas, contraditórias, tanto as unidades narrativas ou as de suas identificações psicossociais. Unidades abertas, que têm como horizonte a imagem de uma cidade livre, o que implica pluralidade. A identidade vista no plural, como mutiplicidade de caracteres. “Cidade Livre” – é de se recordar – foi a designação anterior do Núcleo Bandeirante, uma cidade provisória destinada a ser destruída quando do término da construção da capital brasileira. Desde suas origens, aponta João Almino, Brasília se via embalada por sonhos de liberdade individual (o desejo de se atingir “catedrais” simbólicas) e também aspirações coletivas – a mítica Brasília, que vem dos projetos do Império, ou a “Cidade de Z”, que apresenta traços similares aos do sonho de Dom Bosco.
Pelas margens, são relatados fatos históricos e culturais da formação dessa cidade e o destino antevisto para o Núcleo Bandeirante será revertido. A “Cidade Livre” não foi destruída, mas não deixou de se tornar cidade satélite. A partir do conceito de vizinhança – tópico do sentido de construção da cidade moderna -, o narrador periférico amplia o sentido de familiaridade. Órfão, ele estatui como seus valores familiares e, depois, político-sociais, um parentesco mais amplo – um “barco”, a ser movido pela ação dos “ventos”. Na óptica das margens, o porto a que se pretendia chegar veio a mostrar-se outro, de forma análoga à ação de tantos atores políticos movidos pela imagem de Brasília, desde José Bonifácio até Juscelino Kubitschek. Todos, e não apenas uma das personagens andarilhas, nômades, do romance, pretendiam construir catedrais simbólicas, levantadas a partir do nada em termos de recursos, sobre o vazio do cerrado.
Mesclam-se, na efabulação de Cidade Livre, o concreto das linhas da cidade modernista, que levam às aspirações de um Oscar Niemeyer ou Lúcio Costa, ao pragmatismo predador de certos empreiteiros e, ainda, como corolário recessivo de uma situação adversa, à evanescência mística, nos jardins da salvação. Poder-se-ia situar a construção da cidade como correlata à imagem do avião de seu Plano Piloto, que aterrissa no planalto desconsiderando seu entorno – a natureza do cerrado, descrita pelo narrador, ou as relações sociais a que deu origem. O sonho, enunciado pelo narrador, direciona-se no sentido da aspiração de que a paisagem se torne verde e as relações sociais mais libertas, sem estereótipos.
A leitura do romance de João Almino ainda permite perceber os impactos da construção da nova capital, ao interiorizar o desenvolvimento do país, e também a reação de personalidades do mundo político e cultural que por lá passaram. Entre elas, Aldous Huxley mereceu particular referência. Preocupado com os autoritários determinismos biológicos e psicossociais de sua época (o fascismo, viveu na Itália), ele veio a se abrir para outras formas de percepção ou maneiras de ser, para além das formas marcadas do cotidiano. Essas atitudes do escritor inglês (da contração do “admirável mundo novo” à descontração das “portas da percepção”) desenham inclinações análogas àquelas da imagem de uma Brasília cosmopolita, híbrida, com uma discursividade múltipla e horizontes abertos ao mundo, que João Almino nos apresenta, sem deixar de situá-la – e por isso mesmo – como um dos pontos de encontro do hibridismo cultural brasileiro.
Como reconstituir a construção de Brasília, pelo viés subjetivo? Há as marcas dos registros históricos, que podem muitas vezes escamotear possíveis sentidos das mediações dos atores envolvidos. E, mais, apagar marcas subjetivas que potencializaram suas atitudes, cujos registros, quando existem, são fragmentados, dispersos. Cidade Livre, de João Almino, vê-se, assim, diante de um desafio, que é próprio do conhecimento que vem da literatura: pela ficção, recuperar também o que não ocorreu, mas que poderia ter acontecido, no entorno dos fatos históricos. Vale-se de um narrador que mescla sua visão imatura de menino com o amadurecimento do adulto, que escreve décadas depois, em 2010, recorrendo inclusive aos participantes de um blog. São fingimentos literários, que oscilam entre passado e presente, de maneira a associarem-se, ainda, à antiga técnica da narrativa folhetinesca, que serve hoje de base para as telenovelas. Um narrador que constrói sua memória, por sua vez, através da sobreposição de imagens acumuladas pela observação, que admite serem através de pequenas “frestas”. Não apenas das portas e paredes, mas também da recolha parcial das notícias, acontecimentos observados e depoimentos individuais, anotados ou não.
A leitura de Cidade Livre leva à percepção de como foi problemática a construção da cidade mais levantada do mundo – uma das epígrafes ao romance, extraída de um dos contos de Guimarães Rosa. Implica também inferir a potencialidade subjetiva dos atores motivados por sua construção. Sonho diurno, para muitos, isto é, a vontade que leva a se acreditar na possibilidade de sua realização, com respaldo em projetos. E também sonhos noturnos, o avesso impulsionado pelo que falta e que leva a essa inclinação para o futuro. Importa, segundo o narrador do romance, é a vontade dos idealizadores e empreendedores do grande projeto de construção da cidade mais levantada do mundo. São tais vontades “férreas”, que fazem “o barco deslizar sobre as águas e chegar a algum porto, mesmo que não seja o que havíamos calculado”.
João Almino faz questão de preservar ambiguidades inerentes aos fluxos da vida, e entra nessas águas valendo-se de matérias e perspectivas diversificadas, tanto em sua elaboração formal como nos fatos relatados, ficcionais ou históricos. Quaisquer analogias entre eles conformam unidades (cambiantes) a recobrir matérias que são heterogêneas. Quando o narrador procura resgatar tais unidades pela memória, busca princípios de inteligibilidade para fatos e pessoas, mas os desenhos da vida representada ficcionalmente não deixam de destacar a heterogeneidade de suas facetas, mais claras ou obscuras, amplas ou restritas, conforme os ângulos ou a dimensão das “frestas”, que canalizam suas observações.
É assim, a partir das “frestas” da história de Brasília ou das estórias do romance, que as linhas inicialmente claras do projeto de construção da cidade embaralham-se. Silêncios ou superposições entre as vozes das personagens tornam múltiplas, contraditórias, tanto as unidades narrativas ou as de suas identificações psicossociais. Unidades abertas, que têm como horizonte a imagem de uma cidade livre, o que implica pluralidade. A identidade vista no plural, como mutiplicidade de caracteres. “Cidade Livre” – é de se recordar – foi a designação anterior do Núcleo Bandeirante, uma cidade provisória destinada a ser destruída quando do término da construção da capital brasileira. Desde suas origens, aponta João Almino, Brasília se via embalada por sonhos de liberdade individual (o desejo de se atingir “catedrais” simbólicas) e também aspirações coletivas – a mítica Brasília, que vem dos projetos do Império, ou a “Cidade de Z”, que apresenta traços similares aos do sonho de Dom Bosco.
Pelas margens, são relatados fatos históricos e culturais da formação dessa cidade e o destino antevisto para o Núcleo Bandeirante será revertido. A “Cidade Livre” não foi destruída, mas não deixou de se tornar cidade satélite. A partir do conceito de vizinhança – tópico do sentido de construção da cidade moderna -, o narrador periférico amplia o sentido de familiaridade. Órfão, ele estatui como seus valores familiares e, depois, político-sociais, um parentesco mais amplo – um “barco”, a ser movido pela ação dos “ventos”. Na óptica das margens, o porto a que se pretendia chegar veio a mostrar-se outro, de forma análoga à ação de tantos atores políticos movidos pela imagem de Brasília, desde José Bonifácio até Juscelino Kubitschek. Todos, e não apenas uma das personagens andarilhas, nômades, do romance, pretendiam construir catedrais simbólicas, levantadas a partir do nada em termos de recursos, sobre o vazio do cerrado.
Mesclam-se, na efabulação de Cidade Livre, o concreto das linhas da cidade modernista, que levam às aspirações de um Oscar Niemeyer ou Lúcio Costa, ao pragmatismo predador de certos empreiteiros e, ainda, como corolário recessivo de uma situação adversa, à evanescência mística, nos jardins da salvação. Poder-se-ia situar a construção da cidade como correlata à imagem do avião de seu Plano Piloto, que aterrissa no planalto desconsiderando seu entorno – a natureza do cerrado, descrita pelo narrador, ou as relações sociais a que deu origem. O sonho, enunciado pelo narrador, direciona-se no sentido da aspiração de que a paisagem se torne verde e as relações sociais mais libertas, sem estereótipos.
A leitura do romance de João Almino ainda permite perceber os impactos da construção da nova capital, ao interiorizar o desenvolvimento do país, e também a reação de personalidades do mundo político e cultural que por lá passaram. Entre elas, Aldous Huxley mereceu particular referência. Preocupado com os autoritários determinismos biológicos e psicossociais de sua época (o fascismo, viveu na Itália), ele veio a se abrir para outras formas de percepção ou maneiras de ser, para além das formas marcadas do cotidiano. Essas atitudes do escritor inglês (da contração do “admirável mundo novo” à descontração das “portas da percepção”) desenham inclinações análogas àquelas da imagem de uma Brasília cosmopolita, híbrida, com uma discursividade múltipla e horizontes abertos ao mundo, que João Almino nos apresenta, sem deixar de situá-la – e por isso mesmo – como um dos pontos de encontro do hibridismo cultural brasileiro.