Quinto romance de João Almino narrado na capital mescla evocações históricas com imaginação
Uma das principais virtudes da ficção literária é conseguir saltar as barreiras que a separam da história oficial. Isso acontece somente com as obras-primas e os grandes escritores. O diplomata João Almino, em seu quinto livro de paisagens brasilienses, escreve uma narrativa que alia a pesquisa histórica à imaginação de um ficcionista delicado, que caminha com segurança entre fato e invenção. Trata-se de Cidade livre, romance situado no período de fundação da capital federal, ainda que a Cidade Livre (hoje chamada de Núcleo Bandeirante) concentre boa parte da dramaticidade que envolve os personagens, conectados emocionalmente ao lugar.
Apesar da recorrência de Brasília em seus livros, Almino não considera sua obra uma literatura de Brasília. “A ideia da transferência da capital acompanhou toda a história do Brasil independente. Em Brasília está de alguma forma todo o Brasil. E, finalmente, como em qualquer outra cidade, em Brasília acontecem boas histórias. Por que não partir delas para criar uma ficção que tenha a cidade como cenário?”, explica.
O novo livro simula uma narrativa desenvolvida a partir de postagens de blog, redigida pelo personagem João. “O blog dá um toque contemporâneo a essa imersão no passado e permite acrescentar, aqui e ali, um elemento de humor, com piscadelas de olho para o leitor”, indica. Ele relata, em sete capítulos, o conteúdo de sete noites de conversas com o pai adotivo, à beira da morte, “entre quatro paredes de um branco sujo”.
O João ficcional mistura memórias da Cidade Livre, da criação de Brasília, e do relacionamento ora tempestuoso, ora amoroso, com o pai adotivo, Moacyr, as tias Francisca e Matilde e, finalmente, o enigmático Valdivino. Almino brinca consigo mesmo quando, logo na introdução, o narrador agradece “a revisão de João Almino” e revela que “foi dele o incentivo para que eu começasse a escrever esta história” — em outras páginas, o tom é de crítica. As histórias reproduzidas e contadas por João datam de 1956, quando se mudou de Ceres (Goiás) para o planalto central, a 1960, ano da inauguração, e muitas informações foram retiradas dos cadernos Avante, anotações de seu pai, ávido por coletar frases das personalidades que visitavam a região, como o escritor inglês Aldous Huxley e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. João escreve em tom melancólico, buscando reparar a relação com o pai — mesmo depois de morto, destroçada pelo suposto envolvimento dele na morte de Valdivino.
A descrição detalhada da Cidade Livre, do cerrado e dos eventos que precederam a inauguração da capital são tão verossímeis que João Almino parece ter, de fato, vivido o que escreveu. Mas tudo é consequência de investigação do passado e, obviamente, de muita imaginação. “Carreguei um pouco mais na pesquisa histórica, baseando-me em conversas e em muitas leituras, tendo o cuidado de inseri-la naturalmente nos diálogos e na descrição do cotidiano dos personagens. Mas o livro está longe de ser um romance histórico”, ele diz, comparando a técnica do atual livro com a dos anteriores, Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008), todos realizados com inspiração na capital federal.
Apesar da cor e dos costumes locais, desvelados por Almino em enormes parágrafos descritivos, Cidade livre é uma narrativa de sentimentos humanos, marcada pela diversidade brasiliense.
Trecho do livro Cidade live
“Brasília é um romance digno de ser contado”, a frase que retirei de um dos vários cadernos enterrados por Moacyr Ribeiro, meu pai, dentro de uma caixa no dia seguinte à inauguração da cidade, foi pronunciada numa época em que papai colecionava frases dos visitantes estrangeiros da cidade em construção. A capa do caderno trazia uma paisagem em verde, amarelo e azul, cortada em vermelho pela palavra “Avante”, com belas palmeiras e cinco garotos em disparada explorando o território e sabendo para onde iam, todos de chapéu de massa e lencinho vermelho, meias três-quartos, camisa de mangas compridas enroladas acima dos cotovelos, cinto largo, cada um com seu cantil de água, e o do meio empunhando uma bandeira do Brasil de haste pontiaguda pronta para ser fincada no futuro, dois riscos finos embaixo e outro, grosso, abaixo daqueles, no canto direito, onde papai escrevera “construção de Brasília 1956-1960”, e nas duas linhas finais “comentários de personalidades mundiais”.
Em seu estado e já com oitenta e dois anos, papai, quando esquecia de um detalhe, inventava outros e até fabricava datas precisas, mas eu mesmo também fui testemunha de muita coisa quando morei na Cidade Livre dos seis aos dez anos de idade, antes de me mudar com tia Francisca para uma das casinhas da W-3 Sul no Plano Piloto, e podia, portanto, completar e corrigir a memória de papai com a minha, bastando, para começar a construir a história, preencher as frases secas que ouvia dele com sol poeira, lágrimas e medo, e também com tudo o mais com que se devia fazer uma história da Cidade Livre: com máquinas e tratores, com betoneiras, escavadeiras, motoniveladoras, rolos Tander, usinas volumétricas, guindastes, com estacas Franki perfurando o chão, com simples tábuas de madeira e também com noites, bares e prostitutas. Uma história que eu podia contar como epopeia de homens e máquinas criando uma nova cidade, candangos, muitos candangos, sobretudo homens que chegavam sem suas mulheres com a esperança de serem fichados nas empresas construtoras, trazendo malas de madeira ou trouxas, um caneco de alumínio e uma faca presos no cinturão, como era o hábito de Valdivino.”
Quinto romance de João Almino narrado na capital mescla evocações históricas com imaginação
Uma das principais virtudes da ficção literária é conseguir saltar as barreiras que a separam da história oficial. Isso acontece somente com as obras-primas e os grandes escritores. O diplomata João Almino, em seu quinto livro de paisagens brasilienses, escreve uma narrativa que alia a pesquisa histórica à imaginação de um ficcionista delicado, que caminha com segurança entre fato e invenção. Trata-se de Cidade livre, romance situado no período de fundação da capital federal, ainda que a Cidade Livre (hoje chamada de Núcleo Bandeirante) concentre boa parte da dramaticidade que envolve os personagens, conectados emocionalmente ao lugar.
Apesar da recorrência de Brasília em seus livros, Almino não considera sua obra uma literatura de Brasília. “A ideia da transferência da capital acompanhou toda a história do Brasil independente. Em Brasília está de alguma forma todo o Brasil. E, finalmente, como em qualquer outra cidade, em Brasília acontecem boas histórias. Por que não partir delas para criar uma ficção que tenha a cidade como cenário?”, explica.
O novo livro simula uma narrativa desenvolvida a partir de postagens de blog, redigida pelo personagem João. “O blog dá um toque contemporâneo a essa imersão no passado e permite acrescentar, aqui e ali, um elemento de humor, com piscadelas de olho para o leitor”, indica. Ele relata, em sete capítulos, o conteúdo de sete noites de conversas com o pai adotivo, à beira da morte, “entre quatro paredes de um branco sujo”.
O João ficcional mistura memórias da Cidade Livre, da criação de Brasília, e do relacionamento ora tempestuoso, ora amoroso, com o pai adotivo, Moacyr, as tias Francisca e Matilde e, finalmente, o enigmático Valdivino. Almino brinca consigo mesmo quando, logo na introdução, o narrador agradece “a revisão de João Almino” e revela que “foi dele o incentivo para que eu começasse a escrever esta história” — em outras páginas, o tom é de crítica. As histórias reproduzidas e contadas por João datam de 1956, quando se mudou de Ceres (Goiás) para o planalto central, a 1960, ano da inauguração, e muitas informações foram retiradas dos cadernos Avante, anotações de seu pai, ávido por coletar frases das personalidades que visitavam a região, como o escritor inglês Aldous Huxley e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. João escreve em tom melancólico, buscando reparar a relação com o pai — mesmo depois de morto, destroçada pelo suposto envolvimento dele na morte de Valdivino.
A descrição detalhada da Cidade Livre, do cerrado e dos eventos que precederam a inauguração da capital são tão verossímeis que João Almino parece ter, de fato, vivido o que escreveu. Mas tudo é consequência de investigação do passado e, obviamente, de muita imaginação. “Carreguei um pouco mais na pesquisa histórica, baseando-me em conversas e em muitas leituras, tendo o cuidado de inseri-la naturalmente nos diálogos e na descrição do cotidiano dos personagens. Mas o livro está longe de ser um romance histórico”, ele diz, comparando a técnica do atual livro com a dos anteriores, Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008), todos realizados com inspiração na capital federal.
Apesar da cor e dos costumes locais, desvelados por Almino em enormes parágrafos descritivos, Cidade livre é uma narrativa de sentimentos humanos, marcada pela diversidade brasiliense.
Trecho do livro Cidade live
“Brasília é um romance digno de ser contado”, a frase que retirei de um dos vários cadernos enterrados por Moacyr Ribeiro, meu pai, dentro de uma caixa no dia seguinte à inauguração da cidade, foi pronunciada numa época em que papai colecionava frases dos visitantes estrangeiros da cidade em construção. A capa do caderno trazia uma paisagem em verde, amarelo e azul, cortada em vermelho pela palavra “Avante”, com belas palmeiras e cinco garotos em disparada explorando o território e sabendo para onde iam, todos de chapéu de massa e lencinho vermelho, meias três-quartos, camisa de mangas compridas enroladas acima dos cotovelos, cinto largo, cada um com seu cantil de água, e o do meio empunhando uma bandeira do Brasil de haste pontiaguda pronta para ser fincada no futuro, dois riscos finos embaixo e outro, grosso, abaixo daqueles, no canto direito, onde papai escrevera “construção de Brasília 1956-1960”, e nas duas linhas finais “comentários de personalidades mundiais”.
Em seu estado e já com oitenta e dois anos, papai, quando esquecia de um detalhe, inventava outros e até fabricava datas precisas, mas eu mesmo também fui testemunha de muita coisa quando morei na Cidade Livre dos seis aos dez anos de idade, antes de me mudar com tia Francisca para uma das casinhas da W-3 Sul no Plano Piloto, e podia, portanto, completar e corrigir a memória de papai com a minha, bastando, para começar a construir a história, preencher as frases secas que ouvia dele com sol poeira, lágrimas e medo, e também com tudo o mais com que se devia fazer uma história da Cidade Livre: com máquinas e tratores, com betoneiras, escavadeiras, motoniveladoras, rolos Tander, usinas volumétricas, guindastes, com estacas Franki perfurando o chão, com simples tábuas de madeira e também com noites, bares e prostitutas. Uma história que eu podia contar como epopeia de homens e máquinas criando uma nova cidade, candangos, muitos candangos, sobretudo homens que chegavam sem suas mulheres com a esperança de serem fichados nas empresas construtoras, trazendo malas de madeira ou trouxas, um caneco de alumínio e uma faca presos no cinturão, como era o hábito de Valdivino.”
Quinto romance de João Almino narrado na capital mescla evocações históricas com imaginação
Uma das principais virtudes da ficção literária é conseguir saltar as barreiras que a separam da história oficial. Isso acontece somente com as obras-primas e os grandes escritores. O diplomata João Almino, em seu quinto livro de paisagens brasilienses, escreve uma narrativa que alia a pesquisa histórica à imaginação de um ficcionista delicado, que caminha com segurança entre fato e invenção. Trata-se de Cidade livre, romance situado no período de fundação da capital federal, ainda que a Cidade Livre (hoje chamada de Núcleo Bandeirante) concentre boa parte da dramaticidade que envolve os personagens, conectados emocionalmente ao lugar.
Apesar da recorrência de Brasília em seus livros, Almino não considera sua obra uma literatura de Brasília. “A ideia da transferência da capital acompanhou toda a história do Brasil independente. Em Brasília está de alguma forma todo o Brasil. E, finalmente, como em qualquer outra cidade, em Brasília acontecem boas histórias. Por que não partir delas para criar uma ficção que tenha a cidade como cenário?”, explica.
O novo livro simula uma narrativa desenvolvida a partir de postagens de blog, redigida pelo personagem João. “O blog dá um toque contemporâneo a essa imersão no passado e permite acrescentar, aqui e ali, um elemento de humor, com piscadelas de olho para o leitor”, indica. Ele relata, em sete capítulos, o conteúdo de sete noites de conversas com o pai adotivo, à beira da morte, “entre quatro paredes de um branco sujo”.
O João ficcional mistura memórias da Cidade Livre, da criação de Brasília, e do relacionamento ora tempestuoso, ora amoroso, com o pai adotivo, Moacyr, as tias Francisca e Matilde e, finalmente, o enigmático Valdivino. Almino brinca consigo mesmo quando, logo na introdução, o narrador agradece “a revisão de João Almino” e revela que “foi dele o incentivo para que eu começasse a escrever esta história” — em outras páginas, o tom é de crítica. As histórias reproduzidas e contadas por João datam de 1956, quando se mudou de Ceres (Goiás) para o planalto central, a 1960, ano da inauguração, e muitas informações foram retiradas dos cadernos Avante, anotações de seu pai, ávido por coletar frases das personalidades que visitavam a região, como o escritor inglês Aldous Huxley e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. João escreve em tom melancólico, buscando reparar a relação com o pai — mesmo depois de morto, destroçada pelo suposto envolvimento dele na morte de Valdivino.
A descrição detalhada da Cidade Livre, do cerrado e dos eventos que precederam a inauguração da capital são tão verossímeis que João Almino parece ter, de fato, vivido o que escreveu. Mas tudo é consequência de investigação do passado e, obviamente, de muita imaginação. “Carreguei um pouco mais na pesquisa histórica, baseando-me em conversas e em muitas leituras, tendo o cuidado de inseri-la naturalmente nos diálogos e na descrição do cotidiano dos personagens. Mas o livro está longe de ser um romance histórico”, ele diz, comparando a técnica do atual livro com a dos anteriores, Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008), todos realizados com inspiração na capital federal.
Apesar da cor e dos costumes locais, desvelados por Almino em enormes parágrafos descritivos, Cidade livre é uma narrativa de sentimentos humanos, marcada pela diversidade brasiliense.
Trecho do livro Cidade live
“Brasília é um romance digno de ser contado”, a frase que retirei de um dos vários cadernos enterrados por Moacyr Ribeiro, meu pai, dentro de uma caixa no dia seguinte à inauguração da cidade, foi pronunciada numa época em que papai colecionava frases dos visitantes estrangeiros da cidade em construção. A capa do caderno trazia uma paisagem em verde, amarelo e azul, cortada em vermelho pela palavra “Avante”, com belas palmeiras e cinco garotos em disparada explorando o território e sabendo para onde iam, todos de chapéu de massa e lencinho vermelho, meias três-quartos, camisa de mangas compridas enroladas acima dos cotovelos, cinto largo, cada um com seu cantil de água, e o do meio empunhando uma bandeira do Brasil de haste pontiaguda pronta para ser fincada no futuro, dois riscos finos embaixo e outro, grosso, abaixo daqueles, no canto direito, onde papai escrevera “construção de Brasília 1956-1960”, e nas duas linhas finais “comentários de personalidades mundiais”.
Em seu estado e já com oitenta e dois anos, papai, quando esquecia de um detalhe, inventava outros e até fabricava datas precisas, mas eu mesmo também fui testemunha de muita coisa quando morei na Cidade Livre dos seis aos dez anos de idade, antes de me mudar com tia Francisca para uma das casinhas da W-3 Sul no Plano Piloto, e podia, portanto, completar e corrigir a memória de papai com a minha, bastando, para começar a construir a história, preencher as frases secas que ouvia dele com sol poeira, lágrimas e medo, e também com tudo o mais com que se devia fazer uma história da Cidade Livre: com máquinas e tratores, com betoneiras, escavadeiras, motoniveladoras, rolos Tander, usinas volumétricas, guindastes, com estacas Franki perfurando o chão, com simples tábuas de madeira e também com noites, bares e prostitutas. Uma história que eu podia contar como epopeia de homens e máquinas criando uma nova cidade, candangos, muitos candangos, sobretudo homens que chegavam sem suas mulheres com a esperança de serem fichados nas empresas construtoras, trazendo malas de madeira ou trouxas, um caneco de alumínio e uma faca presos no cinturão, como era o hábito de Valdivino.”
Quinto romance de João Almino narrado na capital mescla evocações históricas com imaginação
Uma das principais virtudes da ficção literária é conseguir saltar as barreiras que a separam da história oficial. Isso acontece somente com as obras-primas e os grandes escritores. O diplomata João Almino, em seu quinto livro de paisagens brasilienses, escreve uma narrativa que alia a pesquisa histórica à imaginação de um ficcionista delicado, que caminha com segurança entre fato e invenção. Trata-se de Cidade livre, romance situado no período de fundação da capital federal, ainda que a Cidade Livre (hoje chamada de Núcleo Bandeirante) concentre boa parte da dramaticidade que envolve os personagens, conectados emocionalmente ao lugar.
Apesar da recorrência de Brasília em seus livros, Almino não considera sua obra uma literatura de Brasília. “A ideia da transferência da capital acompanhou toda a história do Brasil independente. Em Brasília está de alguma forma todo o Brasil. E, finalmente, como em qualquer outra cidade, em Brasília acontecem boas histórias. Por que não partir delas para criar uma ficção que tenha a cidade como cenário?”, explica.
O novo livro simula uma narrativa desenvolvida a partir de postagens de blog, redigida pelo personagem João. “O blog dá um toque contemporâneo a essa imersão no passado e permite acrescentar, aqui e ali, um elemento de humor, com piscadelas de olho para o leitor”, indica. Ele relata, em sete capítulos, o conteúdo de sete noites de conversas com o pai adotivo, à beira da morte, “entre quatro paredes de um branco sujo”.
O João ficcional mistura memórias da Cidade Livre, da criação de Brasília, e do relacionamento ora tempestuoso, ora amoroso, com o pai adotivo, Moacyr, as tias Francisca e Matilde e, finalmente, o enigmático Valdivino. Almino brinca consigo mesmo quando, logo na introdução, o narrador agradece “a revisão de João Almino” e revela que “foi dele o incentivo para que eu começasse a escrever esta história” — em outras páginas, o tom é de crítica. As histórias reproduzidas e contadas por João datam de 1956, quando se mudou de Ceres (Goiás) para o planalto central, a 1960, ano da inauguração, e muitas informações foram retiradas dos cadernos Avante, anotações de seu pai, ávido por coletar frases das personalidades que visitavam a região, como o escritor inglês Aldous Huxley e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. João escreve em tom melancólico, buscando reparar a relação com o pai — mesmo depois de morto, destroçada pelo suposto envolvimento dele na morte de Valdivino.
A descrição detalhada da Cidade Livre, do cerrado e dos eventos que precederam a inauguração da capital são tão verossímeis que João Almino parece ter, de fato, vivido o que escreveu. Mas tudo é consequência de investigação do passado e, obviamente, de muita imaginação. “Carreguei um pouco mais na pesquisa histórica, baseando-me em conversas e em muitas leituras, tendo o cuidado de inseri-la naturalmente nos diálogos e na descrição do cotidiano dos personagens. Mas o livro está longe de ser um romance histórico”, ele diz, comparando a técnica do atual livro com a dos anteriores, Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001) e O livro das emoções (2008), todos realizados com inspiração na capital federal.
Apesar da cor e dos costumes locais, desvelados por Almino em enormes parágrafos descritivos, Cidade livre é uma narrativa de sentimentos humanos, marcada pela diversidade brasiliense.
Trecho do livro Cidade live
“Brasília é um romance digno de ser contado”, a frase que retirei de um dos vários cadernos enterrados por Moacyr Ribeiro, meu pai, dentro de uma caixa no dia seguinte à inauguração da cidade, foi pronunciada numa época em que papai colecionava frases dos visitantes estrangeiros da cidade em construção. A capa do caderno trazia uma paisagem em verde, amarelo e azul, cortada em vermelho pela palavra “Avante”, com belas palmeiras e cinco garotos em disparada explorando o território e sabendo para onde iam, todos de chapéu de massa e lencinho vermelho, meias três-quartos, camisa de mangas compridas enroladas acima dos cotovelos, cinto largo, cada um com seu cantil de água, e o do meio empunhando uma bandeira do Brasil de haste pontiaguda pronta para ser fincada no futuro, dois riscos finos embaixo e outro, grosso, abaixo daqueles, no canto direito, onde papai escrevera “construção de Brasília 1956-1960”, e nas duas linhas finais “comentários de personalidades mundiais”.
Em seu estado e já com oitenta e dois anos, papai, quando esquecia de um detalhe, inventava outros e até fabricava datas precisas, mas eu mesmo também fui testemunha de muita coisa quando morei na Cidade Livre dos seis aos dez anos de idade, antes de me mudar com tia Francisca para uma das casinhas da W-3 Sul no Plano Piloto, e podia, portanto, completar e corrigir a memória de papai com a minha, bastando, para começar a construir a história, preencher as frases secas que ouvia dele com sol poeira, lágrimas e medo, e também com tudo o mais com que se devia fazer uma história da Cidade Livre: com máquinas e tratores, com betoneiras, escavadeiras, motoniveladoras, rolos Tander, usinas volumétricas, guindastes, com estacas Franki perfurando o chão, com simples tábuas de madeira e também com noites, bares e prostitutas. Uma história que eu podia contar como epopeia de homens e máquinas criando uma nova cidade, candangos, muitos candangos, sobretudo homens que chegavam sem suas mulheres com a esperança de serem fichados nas empresas construtoras, trazendo malas de madeira ou trouxas, um caneco de alumínio e uma faca presos no cinturão, como era o hábito de Valdivino.”