Cidade Livre de João Almino:
um romance fundacional do novo Brasil urbano[1]
Alamir Aquino Corrêa (UEL)
ABSTRACT: Based on Doris Sommer’s construct of foundational fictions (1991), I find a new nation-building narrative moment in the Brazilian novel history. In the framework of the role of Brasília in the design of a new nation, integrated by roads all leading to the center of the country, we find novels like Esdras do Nascimento’s O Ventre da Baleia, Márcio Souza’s A Ordem do Dia and Oswaldo França Junior’s Jorge, um brasileiro. Recently, João Almino has published Cidade Livre, a behind-the-scenes making of about the construction of a libertarian city, however tainted with corruption, lust and greed. I take his novel as a hardcore proposition of a new nation dreamed and built by mingled politicians, social climbers and common folks. I want to show Cidade Livre as having the elements proposed by Sommer as proper to a foundational narrative, and as a reading of Brazil as we know it today.
Fruto de uma longa história política acerca de sua criação, a cidade de Brasília permanece singular por sua conformação: população ainda em boa parte imigrante, planejamento urbano eficaz embora transformado em razão das ingerências políticas próprias de uma colonização desordenada, relativa juventude histórica enquanto cidade, centro político nacional, síntese simbólica moderna do país. Os dados geopolítico-econômicos a organizam como uma das cidades mais caras do mundo e ao mesmo tempo uma das detentoras do “prêmio” da maior desigualdade social. Nesse contexto, não assombra o fato de ser motivo de várias incursões literárias de natureza histórico-crítica, como se pode encontrar nos romances de Esdras do Nascimento (O Ventre da Baleia), Márcio Souza (A Ordem do Dia) e Oswaldo França Junior (Jorge, um brasileiro). Não só nas obras de vários poetas e contistas, Brasília encontra eco de seu traçado urbano e de sua população encantada com sua beleza arquitetônica na produção musical da Legião Urbana. Esse retrato da capital do Brasil tem sido “retocado” pela ficção recente de João Almino, através do seu Quinteto de Brasília, de onde sobressai o seu recentíssimo e premiado Cidade Livre.
Da mesma maneira que enfrentei em outro momento a ficção de Samuel Rawet, em busca da explicação da cidade onde cresci, ler esse romance de Almino tornou-se outro grave desafio. As razões são várias e a principal delas é o seu traço memorialístico de um tempo anterior à efetivação da cidade – o tempo em que outros eram os responsáveis por seu desenho e vivência. Cidade Livre é o romance da proto-história mais recente de Brasília, é o relato ficcional de sua construção, é o tracejar folhetinesco da fotografia difusa de uma uniformidade impossível. As linhas retas e curvas da cidade-capital se perdem nessa memória incompleta, nesse museu daqueles sem-nome que construíram Brasília, nesse romance de uma cidade que não deveria ter continuado a ser, a Cidade Livre. Nesse ligeiro recorte do romance, encontro muito mais do que esperaria, por sinalizar a ficção de João Almino mais do que o seu fingimento – Cidade Livre torna-se, por sua técnica, seu olhar e sua articulação, um romance fundacional de um novo Brasil.
O romancista e sua técnica
João Almino tem acumulado indicações e prêmios literários de alto quilate. Sua fortuna crítica, em face muito moderna, está amealhada já em seu sítio (http://www.joaoalmino.com). Mesmo que descontada a faceta diplomática, que lhe permite conviver em vários centros culturais estrangeiros importantes e ter natural e boa recepção em tais círculos, e os prefácios escritos por nomes importantes da crítica literária brasileira como Alcir Pécora, Benjamin Abdala Júnior, Jorge Schwartz, Silviano Santiago e Walnice Nogueira Galvão, a crítica tem recebido sua obra em veículos importantes como o Luso-Brazilian Review e a Tempo Brasileiro e em capítulos de livros de Denilson Lopes, João Luís Lafetá e José Luís Jobim. No caso específico de Cidade Livre, há um comentário bastante elogioso de Walnice Galvão, um prefácio de Benjamin Abadala Júnior e o prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, entregue ao escritor por Regina Zilbermann, presidente do júri. A última grande conquista desse romance é ter sido indicado entre os dez melhores romances do Prêmio Jabuti de 2011 e entre as dez obras finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa. Ainda que haja reservas quanto a indicações e prêmios, como aconteceu em 2010 em relação ao “Livro do Ano” do Prêmio Jabuti, a trajetória de sucesso de Cidade Livre em vários certames lhe dá, com certeza, o reconhecimento precoce de sua qualidade.
A técnica que está a granjear elogios talvez esteja fundada naquela premissa sobre a qualidade do escritor estabelecida por Machado de Assis ao escrever “Instinto de Nacionalidade” em 1873: “[o] que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (1985, 3: 804). E quais são os vários artifícios dessa técnica? O uso de uma intimidade entre narrador e leitor, tão ao modo das redes sociais, recuperando a proximidade folhetinesca entre o escritor e o leitor do século XIX (reconhecida na introdução do romance), nesse caso filiando-se aos mais complexos narradores da literatura brasileira (Brás Cubas, Bento Santiago, Paulo Honório e Riobaldo) no trato com seus interlocutores; a intentada utilização do formato do blog denuncia sua contemporaneidade, o seu estar em nosso tempo, e também reconhece a sua dificuldade ao lamentar a falta de interação entre o blogueiro e seus leitores: “este é o único parágrafo que vocês, leitores do blog, comentaram” (CL 17[2]) e “o blog não serviu para nada, nenhum seguidor, nenhum comentário útil” (CL 22); a ansiada publicação em papel/livro daquilo que, mesmo que fictício, se torna depois texto de um blog, logo virtual, no revés utilizado pela trajetória de muitos novos autores; o viés cinematográfico encontrável em boa parte da literatura brasileira contemporânea, por vezes prenunciando o roteiro fílmico:
Para dar vida à história, bastava eu me transpor para um dia de minha infância, me imaginar no meio de uma avenida da Cidade Livre, e então veria minhas tias desfilando suas formas e trejeitos. Valdivino sentando em frente a uma mesinha escrevendo cartas, papai conversando na porta de um bar, uma menina de tranças e olhos negros andando de bicicleta, Tufão me seguindo, e veria o colorido das lojas, dos prédios de madeira, carros gordinhos e pretos estacionados na lateral com seus pneus exibindo círculos brancos, e então subiria um cheiro de gasolina, de óleo, de monturos e bostas de cavalo, e apareceriam em tela grande e colorida histórias de crimes, pecados, desesperos e grandes futuros. (CL 24-25)
Na edição de As Cinco Estações do Amor (2003), há um ensaio do professor Pedro Meira Monteiro (Princeton University), onde ele afirma logo no início que “[t]alvez o mais forte traço da literatura de João Almino seja o exercício metanarrativo, as experimentações e a exposição das vozes de onde se crê emanar a história contada”, sendo que essa frase também se encontra no seu ensaio “Todo instante: A ficção de João Almino” sobre o “Quarteto de Brasília” (2010: 62). Essa característica está mantida em Cidade Livre, na mistura dos vários possíveis escritores da história narrada, desde o pai (Moacyr Ribeiro) que corrige a memória do filho (JA), um escritor, um amigo, os poucos seguidores do blog e até a fictícia/real intervenção da pessoa João Almino. Essa qualidade técnica parece ter um longo trajeto em João Almino, a recuperar e reiterar o passado literário em língua portuguesa. Na introdução de The Five Seasons of Love, K. David Jackson (Yale University) aponta uma linha do romance urbano seguida por Almino, a acompanhar Machado de Assis, Eça de Queirós, Oswald de Andrade e Clarice Lispector (2008: v). Recentemente, José Luís Jobim (2011) enfatizou a filiação de Almino a Machado de Assis, por diversas circunstâncias intertextuais entre O Livro das Emoções (2008) e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Salta-me aos olhos outra filiação, talvez mais apropriada a Cidade Livre, relato de uma relação pai-filho estremecida em determinado momento, recuperada ao fim da vida do pai, postergado por seis meses para que o luto pudesse acalmar as emoções. O jogo metanarrativo, inclusive no seu trato com os leitores, encontra semelhança grande com dois capítulos iniciais de São Bernardo de Graciliano Ramos: Paulo Honório quer publicar seu romance com um pseudônimo e “JA” (em nítida brincadeira com o próprio nome do autor) quer manter o anonimato. Em determinado instante, o narrador diz: “Agora, tantos meses depois das sete noites que passei com ele e da sétima noite, a de sua morte, me pergunto se não fui eu mesmo seu assassino” (CL 20); de forma parecida, Paulo Honório escreve: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos… Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu” (Ramos 1977: 170). Aliás, Brás Cubas, Bento Santiago, Paulo Honório e Cadu (de O Livro das Emoções) se encontram ao fim, escrutinado seu passado, sem filhos ou sem qualquer emoção por eles.
O olhar para o passado
A grande novidade de Cidade Livre é tratar da construção de Brasília a partir do núcleo habitacional provisório à época, que acabou se tornando a cidade satélite do Núcleo Bandeirante. Ao fazer isso, o escritor João Almino desloca o foco de interesse para a proto-história, na qual estão presentes e atuantes o pano de fundo menor, os bastidores, o making of de Brasília. Curiosidades ponteiam a narrativa, trazendo certo ar cívico de visita histórica à capital do país: a construção do Catetinho (em singela homenagem ao Palácio do Catete no Rio de Janeiro) em outubro de 1956 (CL 38-39), a distribuição dos lotes das embaixadas estrangeiras (CL 66), a inauguração da cidade acompanhada pela transmissão radiofônica e o desfile no Eixo Rodoviário Sul (CL 81-84), os pratos preferidos do presidente Juscelino Kubitschek (CL 103), as similitudes entre Brasília e Paris (CL 115).
Ao falar da história dos desconhecidos, dos ínfimos e dos “sem-nome”, o narrador em vários momentos aproveita para dar luz a um espaço perdido no tempo, aquele do cerrado antes encontrável na ficção regionalista de Afonso Arinos em Pelo Sertão (1902). Animais, plantas e cursos de água preenchem as lacunas do texto, marcando-o com uma espécie de descrição do ecossistema da região, mencionando pássaros, insetos, mamíferos, “árvores tortuosas e garranchudas”, os rios São Bartolomeu e Descoberto e o córrego Capão da Onça (CL 87-88), as várias flores amareladas e de centro amarelo, além do ipê-branco e daquelas de tons de violeta: roxinha, arnica e corda-de-viola (CL 93).
As suas personagens transitam na tessitura menos saliente, mais periférica, mais satélite do poder. Embora haja o registro das visitas de personalidades importantes da construção de Brasília ou de ilustres estrangeiros a partir de uma memória fictícia ou real, a trama narrativa se concentra em um jogo de personagens menores, ainda que não desça ao nível do operariado que deu substância ao sonho de uma capital futurista. Nas relações sociais de Brasília, há um contexto de valorização dos pioneiros que encontra respaldo nos vários testemunhos de Cidade Livre e em especial na memória do narrador e de seu pai, como acontece em várias cidades brasileiras surgidas no século XX. Recentemente, a descoberta de mensagens deixadas nas paredes pelos operários, em área debaixo da laje superior na Câmara de Deputados, singularizou um grafite a lápis do operário José Silva Guerra, que deixou uma mensagem desesperada pela redenção futura do país: “Que os homens de amanhã que aqui vierem, tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra. Duraleques ce de Lequis. José Silva Guerra. 22/4/59”. Essa descoberta virou notícia repetida e reiterada nos vários canais informativos brasileiros, no contexto aparentemente inabalável da impunidade dos grandes e dos poderosos, especialmente por conta da alusão ao norteamento latino dura lex sed lex que poucas vezes no Brasil tem tido eficácia nas classes mais favorecidas
O romance de João Almino trabalha nesse caminho, ao dar vozes a inúmeras testemunhas, até mesmo aquelas que pouco se lembram, na busca da reconstrução da verdade, explicando as nuanças fluidas da sua própria memória, a determinar uma correção de rumo. O narrador maduro visita o passado vivido pelo narrador jovem, no contato com as tias, com o pai, com outras testemunhas, para deslindar o que lhe parece desconexo e impróprio: “vivi na dúvida e precisava, antes que ele morresse, de uma confirmação sobre o que de fato aconteceu” (CL 20). Novamente, a narrativa de Machado encontra eco em Cidade Livre, especialmente através dos narradores de Dom Casmurro, “Uns braços” e “Missa do Galo”. Essa dúvida sobre o fato presenciado e vivido circunstancialmente por vários narradores/testemunhas está no fulcro da confiabilidade da narrativa, que em essência busca tecer o pano de fundo da história da cidade. O “disse-me” testemunhal ganha ares de verdade a reorganizar o mundo: “O conhecimento de Lucrécia não era infundado, papai pensou, alguém tinha-lhe dito que JK fizera uma visita ao Egito em 1930 e comentara entre amigos que a admiração que sentira por Akhenaton na mocidade poderia ter alimentado seu ideal de construir Brasília” (CL 131).
Em inúmeros momentos, o narrador usa dessa visita ao passado através de múltiplos olhares, colhendo as rédeas ao pontear dúvidas, enxertos e fabricações, como a narração pelo pai do episódio do acidente de Bernardo Sayão em avião “enganchado na copa de uma árvore”; mas o narrador adverte: “Não duvido, contudo, que aqui se revele o lado mitômano de papai e que a verdadeira fonte dessa história tenha sido JK num de seus livros, onde encontrei a mesma versão” (CL 147), ou a explicação dos dizeres de Aldous Huxley sobre Brasília obtidos por Miguel Andrade e não pelo pai do narrador e tampouco transmitidos como telegrama como sugeriam os jornais (CL 170-172). Nesse pormenor, o romance serve como uma reescrita talvez confiável da história da cidade que mudou o país; pelo menos, soa como outra verdade, mais palatável, apesar da sua ficcionalidade e dos erros possíveis da memória.
A construção de um novo Brasil
Doris Sommer estabelece em Foundational Fictions (1991), em larga leitura de romances latino-americanos (inclusive O Guarani e Iracema de José de Alencar), o conceito do romance fundacional como aquela ficção representativa da situação nacional e/ou dos projetos idealizados do futuro do país, como se percebe claramente na visão de Juscelino Kubitschek e na heroicização de Bernardo Sayão no romance de João Almino. Os mecanismos do desejo e do erotismo a matizar as buscas do poder dão as tintas necessárias para marcar o ideário de construção das novas nações, ainda que haja um forte vetor de dominação étnica e de gênero. A proposta de Sommer junta os aspectos políticos com aqueles de formulação literária, como se o estado ou a nação não pudesse desprezar o lado mítico proporcionado pela escrita literária. Nesse particular, uma nova nação depende da construção de suas raízes, ainda que de forma fictícia ou ficcional, para efetivar a unificação do seu projeto político. Interessantemente, exemplos recentes da mistura entre literatura e política podem ser encontrados na formação das literaturas nacionais africanas. Da mesma maneira, tem sido interessante observar uma vontade de autoafirmação de governantes ao buscarem não só a sua confirmação de humanistas nas letras (e mais recentemente nas credenciais acadêmicas do doctor honoris causa), mas também uma sintonia com o pensamento mais elaborado das elites.
O fato mais singelo é que a América Latina (vista ao sul dos Estados Unidos) tem sido marcada por discursos de sua herança multigenética e multicultural (Lund 2006, na esteira de várias outros pensadores como Richard Graham e Nestor García Canclini). Talvez esse aspecto seja o mais problemático, na tentativa de construção de uma identidade nacional, especialmente em um país continental. Recentes posicionamentos têm discutido quem somos e como somos especialmente para os estrangeiros (Reis 1988; Tesser 2001) e como passado a ser prezado (Kothe 1997: 18). A tônica geral de tais discursos é aquela do amor heterossexual, por vezes explicado por simples pendor faceiro do colonizador, desprovido de seu papel dominador, como sobeja nas ideias de Gilberto Freyre sobre o lusotropicalismo; anote-se que a ficção sobre a dominação portuguesa em Cabo Verde e em Angola desmistifica ou destrói tal postura, pelo menos parcialmente. Voltando ao aspecto das relações amorosas esperadas entre homens e mulheres, há de se observar que geralmente o homem é europeu e a mulher é nativa ou imigrada à força.
Isso posto, trago para o bojo da discussão as ideias de Thomas Beebee (2009), em seu artigo sobre “The Geopolitics of Amazônia in Souza’s Fiction”, sobre o controle do território nacional (NTC) e a construção de uma identidade brasileira. Ao longo do artigo, com base na leitura da ficção de Márcio Souza, Beebee elabora uma compreensão ficcional do país que parece estar distante ou separado da Amazônia ou vice versa. Souza, nesse caso, aponta a frágil ligação do Brasil com os brasileiros, ou seja, um país que embora tenha força sobre o seu território não consegue estabelecer uma unidade nacional. E aqui, parece-me estar a qualidade fundacional de Cidade Livre, pois organiza 55 anos depois as bases de compreensão do projeto que se implementou com a construção de Brasília.
O romance de João Almino visita o passado, elabora sua fábula na proto-história da capital federal, mesclando personagens de vários pontos do país, a imiscuírem-se sem pejo nas articulações necessárias para tornar concreto o sonho visionário do passado (através de José Bonifácio de Andrada e Silva, um founding father ou patriarca) – a permitir que o país saísse de sua cristalização litorânea. Brasília representa o salto para o futuro, o projeto dos “cinquenta anos em cinco” de Juscelino Kubitschek. E através da mudança da capital federal do Rio de Janeiro para o Planalto Central que são abertas as fronteiras de ocupação maior do território nacional. A rodovia Belém-Brasília (com o inexplicável desvio por Goiânia, exceto feito aos interesses políticos locais) trazia a região norte para o restante do país, isto é, as regiões sul e sudeste. A ditadura militar na gestão de Emílio Garrastazu Médici, no seu natural compasso bélico-ocupacionista, cria depois a Rodovia Transamazônica (BR-230), a rodovia que ligava o nada a coisa nenhuma. O projeto político de unificação nacional só foi possível através da realização do sonho de Brasília, “uma civitas e não uma urbs” como quis Lúcio Costa no seu documento-proposta vencedor do concurso de construção da nova capital (Braga 2010: 164).
Estão registradas em Cidade Livre várias figuras importantes da política e da cultura, algo já apontado por vários resenhistas, assumindo por vezes um ar de crônica da cidade, especialmente dos seus momentos de iniciação (visita de dignitários políticos e literários, credenciamento de embaixadores). E como fio condutor desse processo está o pai do narrador, Moacyr, figura de pequena importância embora com título universitário, cavador de lugares e de negociatas, intentando marcar a história da cidade com o seu Livro de Ouro, mas consciente de sua pequenez, falso escriba, um aventuroso Alexandre de Graciliano Ramos: “papai reconheceu que seu êxito como anotador de visitas foi ínfimo e provisório (…) Dedicara-se, então, ainda mais, às vendas de terrenos e comodatos e, com os lucros obtidos, investira maciçamente na sua sociedade com Paulão” (CL 177).
A rememorar boa parte da exploração portuguesa das suas colônias, os procedimentos de ganho ludibriavam também o Estado, que investia também sem lastro; as artimanhas de corrupção e de enriquecimento ilícito parecem vigorar eternamente no Brasil, inclusive enquanto valor ético no “rouba, mas faz” e na pedincheira que nos marca desde a Carta a El-Rey Dom Manuel sobre o Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha. Essas manobras financeiras estão reproduzidas no envolvimento erótico entre o engenheiro Roberto Gonçalves e Matilde, a tia do narrador, até certo ponto reproduzindo o conflito de um ideário bucólico em face da modernidade urbana. A criação do país, ocupado territorialmente, depende desse convencimento erótico de uma por outro. Sinaliza por outro lado a tenacidade de Kubitscheck no afrontamento daqueles desafeitos à mudança. Ali, no romance, reproduz João Almino os vários processos de sedução dos atores políticos nacionais, algo que ainda hoje encontra respaldo em certos órgãos governamentais ou mesmo na recente mudança de unidades bancárias para São Paulo.
Naquilo que marca profundamente o constructo proposto por Sommer, vê-se na obra de Almino uma rede de relações amorosas a envolver em vários e por vezes simultâneos momentos as personagens nomeadas ou mais identificadas do romance: a convivência do pai Moacyr com a tia Francisca; Moacyr com a prostituta Lucrécia depois profetisa Íris Quelemém; esta encontra também em Valdivino momentos de amor e com Paulão, o sócio de Moacyr; o narrador sonhando com a Tia Matilde, que se casa com o engenheiro Roberto, e ela falsa tia e ele, estudante revolucionário, vivem um momento de deslize. Não faltam nesses momentos as poções mágicas, os sonhos, os devaneios, bem como as histórias antigas, o passado de Lucrécia em Salvador.
Há também de se registrar o lado místico, confluindo nas diversas seitas e caravanas religiosas a buscar Brasília, justificando um passado milenar, envolvendo a construção de catedrais e de templos diversos, como se a capital fosse o fim e o início de tudo, o centro do país, a síntese universal da comunhão dos povos. Esses valores, redentores, a eliminar o passado, a justificar as ações de todos, ecoam nas ações e nos pensamentos das personagens, prevalecendo antes o desejo, a luxúria, a cobiça, depois substituídos pela mudança, pela ansiada perenidade do novo centro. A felicidade futura justificaria todos os erros do passado, no ideário proposto pelo romance e que parece ser abraçado pelas nações que buscam construir-se através do esquecimento dos deslizes morais e dos crimes. A correção do presente nem sempre parece ser a melhor saída, por impedir, diminuir ou evitar o lucro e o sucesso dos indivíduos:
Valdivino se rebelou contra sua própria situação, contra o fato de não poder possuir Íris e de presenciar o que Paulão fazia com ela. Estava ameaçando revelar aos membros da comunidade que Íris o seduzira ainda criança. Isso nem ela nem Paulão podiam admitir. Para Íris, seria o fim do Jardim da Salvação. Para Paulão, o fim de uma fonte de dinheiro.
(…)
Nosso passado se esconde atrás de muros às vezes impenetráveis e se revela ao acaso, aqui e ali, quando o evocamos por meio de um indício, de uma palavra, de um cheiro, de um gosto, de um detalhe qualquer, como quem olha uma paisagem através de furos na parede. (CL 230-232)
Sommer diz que os romances fundacionais se caracterizam por um horizonte auspicioso, de consolidação e de crescimento nacionais (1991: 6-7). Depois do momento redentor, quando certas cenas são explicadas e há a recuperação dos vícios do passado, inclusive com a morte de Moacyr, velho e na prisão, a trama narrativa deslindada se torna marcada pelo tom confessional e filosófico do narrador:
e foi de uma vontade como a de Sayão, de um vendo e de uma força, que as palavras com as quais pude rememorar aqueles tempos foram surgindo, uma a uma, arrancadas do silêncio e de um vazio profundo, como criação que brota do zero, da incerteza, da ignorância, da dívida, da culpa, daquilo que nos falta. Eu não queria dizer nada, pois a memória nada quer dizer, apenas diz em meio ao esquecimento e ao que procura ocultar, e por isso não há o que interpretar – as palavras, como as lembranças, são o que são e nada mais. (CL 237)
E a esperança se faz no futuro, cuja semente estava no passado, com o vigor de uma profecia: “Esse menino vai dar muito trabalho! Havia um vento forte (…). Ainda era a estação das chuvas (…) e uma liga de barro vermelho encardia nossas botas e sapatos naquelas extensões que um dia, quem sabe, seriam verdes” (CL 238).
Obras citadas
Almino, João. Cidade Livre. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Assis, Machado de. Obra completa. 3 vols. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
Beebee, Thomas O. “The Geopolitics of Amazônia in Souza’s Fiction ” CLCWeb: Comparative Literature and Culture (September 2009) 11.3. Disponível em http://docs.lib.purdue.edu/clcweb/vol11/iss3/4.
Braga, Milton. O Concurso de Brasília: Sete Projetos para uma Capital. São Paulo: Cosacnaify, 2010.
Jackson, K. David. “Introduction: Writing the Futuristic City: Brasília’s Five Seasons of Love”. João Almino. The Five Seasons of Love. New York: Host publications, 2008. pp. i-xi.
Jobim, José Luís. “João Almino, o crítico como romancista.” Carmem Lúcia Negreiros Figueiredo et alii, orgs. Crítica e literatura. Rio de Janeiro/Belém do Pará: De Letras/Universidade Federal do Pará, 2011. pp. 11-26.
Kothe, Flávio. O Cânone Colonial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
Lund, Joshua. The Impure Imagination: Toward a Critical Hybridity in Latin American Writing. Minneapolis: U of Minnesota P, 2006.
Monteiro, Pedro Meira. “Todo instante: A ficção de João Almino.” Luso-Brazilian Review: 47.1. (2010), pp. 61-70.
Ramos, Graciliano. São Bernardo. 28ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1977.
Reis, Roberto. “Who’s afraid of (Luso-)Brazilian Literature?” World Literature Today 62.2 (Spring, 1988): 231-234.
Sommer, Doris. Foundational Fictions: The National Romances in Latin America. Berkeley: U of California P, 1991.
Tesser, Carmen Chaves. “A Postcolonial Reading of a Colonised Malandro”. Brower, Keith H., Earl E. Fitz & Enrique Martínez-Vidal, eds. Jorge Amado: New Critical Essays. Latin American Studies 21. New York: Routledge, 2001. 221-230.
[1] Apresentado, com apoio da CAPES, em formato de comunicação na sessão “Reimagining the Nation: New Foundational Fictions”, durante a 2012 MLA Convention, realizada em Seattle de 5 a 8 de janeiro de 2012.
[2] Nota Bene: as citações textuais do romance serão documentadas por CL seguida do número da página.