Contos, crônicas e crítica literária de Alder Teixeira
Sexta-feira, 22 de abril de 2022
Conheci a obra de João Almino, há muitos anos, pelas mãos do poeta Dimas Macedo. Não há exagero quando afirmo que essa leitura dividiu águas em minha relação com a literatura, quer na perspectiva do leitor, quer na perspectiva do escritor.
Ler o romance “Entre facas, algodão”, por exemplo, de 2017, um dos últimos livros do ficcionista de Mossoró, foi uma experiência impactante, mesmo estando eu um tanto mais familiarizado com sua obra.
Ainda quando trata com motivos já muito explorados na prosa de ficção, como é o caso, João Almino surpreende como escritor. Há tamanha força humana no livro, tão grande verdade humana, insisto, que traga o leitor e estabelece uma sensação de cumplicidade que, a um só tempo, faz doer e encanta. Só grande criadores conseguem provocar essa experiência estética no leitor. Que belo ficcionista é João Almino.
Falemos um pouco do romance.
Em sua estrutura, devo evidenciar, o livro não traz novidades, uma vez que a narrativa se desenvolve em forma de diário, lembrando um certo Lúcio Cardoso, do incontornável “Crônica da Casa Assassinada”, ou mesmo, mais recentemente, Chico Buarque de Holanda, de “Essa Gente”. Como os dois, “Entre Facas, Algodão” leva o leitor a acompanhar a história a partir do diário do protagonista (em Cardoso, de várias personagens), um homem de 70 anos que se separa da mulher e decide deixar Taguatinga, onde mora, para reconstruir sua vida num exercício de memória afetiva que o devolve à infância e ao ‘topos’ de origem de sua trajetória.
Assim, longe dos filhos, revive das experiências mais dolorosas, a exemplo do que presenciou ainda menino, o assassinato do pai (“sangue, muito sangue”), às ternas lembranças das brincadeiras infantis com amigos — tudo, no entanto, pelo prisma de uma sensibilidade poética que revela o hábil manuseio de linguagem e a fina capacidade de tirar sentimento e verdade de fatos os mais contraditórios.
Homem dos tempos modernos, é explícita a referência recorrente aos meios da tecnologia contemporânea, o WhatsApp e o computador, por exemplo, a personagem trabalha a construção do texto memorialístico com uma simplicidade às vezes rude, às vezes delicada, o que revela o uso da oralidade como recurso potencialmente refinado na perspectiva da criação literária.
Mas o enredo, articulado com maestria, embora transmitido com leveza estilística notável, e num ritmo que confere certa tranquilidade, é fortíssimo do ponto de vista dramático e traz à superfície a violência de um tema recorrente na história dos homens: a atávica cultura da vingança, pois é preciso vingar a morte do pai, como um Hamlet dos tempos atuais.
O romance traz, no entanto, a beleza de estilo que salta dos mínimos detalhes a cada página, como ocorre quando, amparando-se num fato real, o arrombamento do açude Orós, estabelece uma relação imagética com o despertar da paixão adolescente, “… e, quando a vi [Clarice], meu coração disparou feito açude arrombado”. Ou quando, da janela do avião que o traz de volta ao Nordeste, olhando as chapadas, reflete sobre o passado que reconstrói a sua identidade, “… deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza”, arrematando com a certeira ponderação: “… A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu.”
Mais que erigir um romance que transita do clássico para o popular com a naturalidade de um mestre, João Almino demonstra como ser um talentoso contador de história sem abrir mão de produzir arte. Arte da melhor qualidade.
Recomendo.