Enigmas da Primavera, entrevista de João Almino a Juliana Krapp

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ENIGMAS DA PRIMAVERA

João Almino

Entrevista a Juliana Krapp

Desde que estreou na ficção, em 1987, com Ideias para onde passar o fim do mundo, o potiguar João Almino tem chamado a atenção da crítica pelo estilo inovador e envolvente que imprime à sua obra. Os romances que produziu desde então compõem o chamado “Quinteto de Brasília”: histórias nas quais a capital federal é não apenas cenário, mas sim “laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais”, como afirma João Cezar de Castro Rocha.

Enigmas da primavera também transcorre, em parte, na cidade planejada. Mas desta vez o leitor segue também por Madri e Granada, e ainda pelas fábulas e histórias do mundo árabe, no encalço de Majnun, o jovem protagonista deste novo romance. Instável e romântico, contraditório e imprevisível, Majnun encarna as idiossincrasias de nosso tempo. Com isso, João Almino consolida algo raro entre os ficcionistas: encara a atualidade, enquanto aborda a sensação de vazio, as tentações da tirania, a intolerância. A Primavera Árabe e os protestos de julho de 2013, os indignados europeus e os arroubos do fundamentalismo islâmico se enovelam numa trama densa e sedutora, que lança luz ao estilo singular deste diplomata e escritor, que já ganhou prêmios como o Casa de las Américas 2003 e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura 2011.

Com Enigmas da primavera, o senhor reinventa a sua literatura. É o que afirma João Cezar de Castro Rocha, em prefácio ao livro. Como se deu essa reinvenção?

João Cezar de Castro Rocha é um excelente crítico, que acompanha meu trabalho há muito tempo. Se ele diz que neste caso houve uma reinvenção, devo acreditar nele.

Mas também acredito que cada livro meu é diferente do anterior, quanto à técnica e à linguagem. Tento não me repetir, porque para mim a ficção é sempre aventura, busca e invenção e porque os temas, histórias e perguntas de cada romance exigem sua forma específica.

Este novo romance dá cores, por meio da ficção, a vários temas do noticiário dos últimos dois anos, como os protestos de 2013, no Brasil, e o recrutamento de jovens de diversas nacionalidades pelo fundamentalismo islâmico. O senhor já tinha o enredo delineado quando começou a escrever o livro? Como as notícias foram alimentando a ficção?

Sua observação é perspicaz. O livro pode ser lido como um diário do período que vai de 2011 a 2013 e parte da pergunta: onde pulsa o coração do cotidiano? Cheguei a Madri em meio aos protestos dos indignados. Acompanhei pelos jornais o Occupy Wall Street em Nova York, o que acontecia no Oriente Médio. Lia os jornais brasileiros. O personagem eu já tinha (criar personagens é quase sempre por onde começo). Que tal usar a linguagem literária para retratar sua desorientação e busca de identidade nesse mundo imerso em incerteza, crise e também esperança? O material que me interessava eram as emoções e expectativas do dia a dia e a apreensão subjetiva dos fatos. Gostaria que o tratamento literário permitisse que, dentro de 50 anos, fosse possível ler o romance com interesse, que ele continuasse atual, como é atual hoje ler sobre os acontecimentos de 1848 em A Educação Sentimental de Flaubert ou da Primeira Guerra Mundial em Proust (embora no caso de Flaubert a escrita do romance tenha se dado anos depois dos acontecimentos). Para falar de autores contemporâneos, é possível ler Sábado, de Ian McEwan, sem ficar preso ao presente da narrativa, embora o tempo da feitura do romance quase coincidisse com o dos acontecimentos políticos narrados, os protestos em Londres contra a invasão americana do Iraque.

São raros os escritores que ousam tomar como matéria-prima o presente imediato. O quanto a literatura pode ser um veículo poderoso para apreender e analisar o presente, tão veloz?

Talvez este seja um dos meus temas, o presente e o instante presente. Tenho um livro intitulado A idade do presente, e o instantaneísmo era a ideologia da personagem principal e narradora de As cinco estações do amor. Cada um de meus romances tratou, a seu modo, do presente e, espero, não se desatualizaram por isso: Ideias para onde passar o fim do mundo retrata de alguma forma os dilemas morais e políticos dos anos oitenta. Samba-enredo trata, entre outros temas, do desenvolvimento da internet, das redes eletrônicas e do mundo virtual nos anos noventa. As cinco estações do amor enfoca a passagem do milênio. O livro das emoções, escrito da perspectiva de 2022, relata o presente dos anos 10 do nosso século 21. Cidade Livre reescreve a euforia e as promessas de um Brasil desenvolvido, que seria em poucos anos, segundo JK, a quinta potência do mundo, no momento em que se vivia no Brasil uma nova onda de esperança. Em nenhum desses casos, o romance abraça as perspectivas mais aparentes do presente, porque a literatura não pode, a meu ver, abdicar de sua função crítica. Ela deve ser capaz de se distanciar do seu objeto de interesse para vê-lo sob a ótica de uma história longa e, portanto, para vê-lo melhor.

O mundo árabe é muito presente neste novo romance. Qual a sua relação com o tema?

Vivi no Líbano na época da guerra civil (que os libaneses chamavam eufemisticamente de “os acontecimentos”), de 1980 a 1982, e até hoje tenho amigos dessa época. Fiz leituras do Corão e do Islã para melhor construir alguns personagens do novo romance. A Espanha, onde morei durante os últimos três anos e nove meses, foi muito influenciada pela cultura árabe. Pode-se escrever toda uma história alternativa do país pondo a ênfase não na chamada reconquista, na contrarreforma ou na tradição católica, mas sim nas contribuições árabes à cultura europeia, via Península Ibérica. A história da resistência e da queda de Granada é fascinante, e a ela recorri para construir parte da narrativa. Posso acrescentar ainda que o Nordeste do Brasil, onde nasci e cresci, também foi muito influenciado pela cultura árabe, preservada desde o início de nossa colonização ibérica, como fica claro através da música.

Majnun, protagonista de Enigmas da primavera, vive uma rotina monótona e um bocado medíocre, mas deseja uma reviravolta. Ele é, de certa forma, parecido à Ana de As cinco estações do amor?

Não tinha pensado nessa possibilidade, mas a comparação faz sentido. Você tem razão em dizer que ambos desejam uma reviravolta. Também é possível estabelecer contrastes. Ana vive uma revolução interior, enquanto Majnun, indeciso, deseja uma conversão religiosa e uma reviravolta social. Em As cinco estações do amor, Ana vive a desilusão no início do ocaso de sua vida, exaurida de suas experiências amorosas e antes de reinventar a utopia como aquilo que lhe está mais próximo. Em Enigmas da primavera, Majnun é um jovem enfadado com seu cotidiano que busca preencher seu vazio nas redes sociais. Tem todo um futuro pela frente, que em vez de alimentar sua utopia, o faz mergulhar inicialmente num pensamento antiutópico, já que flerta com a volta a um passado que nunca vivenciou. O final de sua história se abre, contudo, para um novo caminho, o que permite, uma vez mais, estabelecermos pontos de contato entre os dois romances. Num e noutro caso, os caminhos levarão os personagens principais a algum recomeço surpreendente.

Uma espécie de tensão entre desesperança e combatividade perpassa as histórias de seus romances, de diferentes formas. Como esses temas foram se transformando ao longo do tempo?

Não falaria de desesperança, mas de desilusão. E perder ilusões não é necessariamente um mal. Os ideais revolucionários das décadas de 60 e 70 desembocaram num certo conformismo e num realismo pragmático, mas ao mesmo tempo mantiveram acesas aspirações que servem de farol para o avanço das fronteiras do possível. Essa tensão a que você se refere resulta de uma interrogação: se a realidade é inadmissível, como pensar a pós-utopia? Ou como reinventar a utopia? Há mais de uma resposta, e uma delas, presente no novo livro, leva ao terror: o desejo de controle completo sobre o presente e sobre o futuro, sobre o social, de eliminação do outro, do diferente. O islamismo radical, inspirado em Muhammad ibn Abd al-Wahhab ou em Sayyid Qutb, está distante do Islã inventor da tolerância no dizer de Lévy-Strauss. Estamos diante de um novo fenômeno do totalitarismo.

Majnun quer escrever um ensaio sobre a tolerância — muito embora ele próprio não pareça muito habilidoso em lidar com as diferenças. “Tolerância” é palavra-chave para tentar compreender as idiossincrasias de nosso tempo?

Creio que sim. Majnun é contraditório e instável como o tempo em que vive. Quer aprender com os indignados e alimenta novos ideais revolucionários, ao mesmo tempo em que tenta escrever seu ensaio sobre a tolerância no Islã. Quer se converter ao Islã e frequenta sites radicais. Em termos históricos, no final da Idade Média, vamos verificar que os cristãos eram mais intolerantes que os muçulmanos na Península Ibérica e também que a liberdade e o embrião das práticas democráticas não estavam de um lado nem do outro, mas nas cidades de fronteira onde se formavam assembleias para a decisão de questões de interesse público. A tolerância não começou com Locke ou Voltaire, aliás citado por personagem do livro. Tem uma longa história, a leste e a oeste. Não é um valor estritamente ocidental.

Um personagem afirma que “o Ocidente não existe.”

O ocidentalismo é uma ideologia simétrica ao orientalismo de que falava Edward Saïd e serve a interesses conservadores em toda a parte. Sobretudo é errôneo em termos históricos confundir o Ocidente com a tolerância e ideais liberais e democráticos. Alguns dos piores exemplos de tirania e a experiência totalitária existiram na Europa, ou seja, no coração do chamado Ocidente. E isso sem falar de experiências mais antigas. Enquanto o imperador muçulmano e mongol da Índia, Akbar, escrevia sobre a tolerância religiosa, Giordano Bruno era queimado em 1600 pela inquisição no Campo dei Fiori em Roma, como bem lembraram Amartya Sen e Sergio Paulo Rouanet. Hoje em dia a civilização é uma só. Ela é um processo. Sempre está em construção. Uma das previsões de Marx se concretizou, e o capitalismo atingiu todo o mundo. A revolução tecnológica também é um fenômeno mundial. Estou de acordo com meu personagem: o Ocidente não existe. O chamado Ocidente e seus valores são o resultado de contribuições de várias culturas, não apenas judaico-cristãs e greco-romanas, também de outras, sobretudo das culturas provenientes do mundo árabe, da Índia e da China. O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade.

Vendo o neto produzir cartazes para as manifestações de 2013, um de seus personagens indaga: “se o movimento não é político, que sentido tem?”. “O de outra política”, responde o rapaz. E o senhor: acredita no surgimento de uma nova política?

Existem mecanismos novos de comunicação e de circulação de ideias, como as redes sociais, que podem estar a serviço da política, em suas várias manifestações. É preciso reconhecer também a crise da representação política em várias partes do mundo. Mas o desejo de criação de uma nova política já estava presente na França de maio de 1968. É também o que buscaram muitos ecologistas ao defenderem que não estavam à esquerda nem à direita, e sim na frente. Entendo o impulso contemporâneo dos jovens do meu romance, mas a nova política, para ser consequente, acaba por se estruturar em moldes semelhantes aos das organizações políticas existentes e, na melhor das hipóteses, por aumentar o leque da representação política, servindo, portanto, a sua renovação e atualização.

Em sua produção literária sempre foram muito marcantes elementos de inovação, certo experimentalismo. Como essa busca pelo novo se encaixa em seu trabalho atual?

Creio que algo experimentais, do ponto de vista da forma, foram apenas os dois primeiros romances, Ideias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo. Foram, por exemplo, os que mais fizeram uso da digressão e da fragmentação. É bem verdade que houve em todos os cinco que precederam Enigmas da primavera o uso de recursos técnicos destinados a lidar com os tempos da narrativa e a produzir deslocamentos ou desfamiliarização, através principalmente da ótica desconcertante dos narradores. Em Enigmas da primavera, pela primeira vez utilizo um narrador em terceira pessoa e uma narrativa absolutamente linear. Se eu eliminasse os títulos dos capítulos, seria possível ler todo o texto de maneira corrida. Apesar disso, não tento recriar o romance do século 19. É meu novo experimento.

O senhor viveu em Madri, como diplomata, nos últimos anos. Não à toa, é na cidade espanhola que se passa grande parte do enredo de Enigmas da primavera. Perscrutar as cidades é parte essencial de sua literatura?

Essencial eu não diria. Muito do que eu penso, do que questiono, das histórias que imagino poderia situar-se em mais de uma geografia ou em geografia nenhuma. Quando comecei a viajar pelo mundo, o que aconteceu antes da publicação do primeiro romance, imaginava quatro opções para situar minhas histórias: fazê-las se passar no Nordeste onde nasci; situá-las em lugar nenhum ou imaginário; usar como cenário as cidades onde morava ou inventar minha cidade concreta que pudesse absorver o conjunto de minhas vivências, leituras e observações. A solução foi mista. Inventei minha Brasília e me interessei por sua geografia e por sua história, para dar mais verossimilhança a meus relatos. Incluí o Nordeste em várias de minhas histórias. E algumas cidades onde morei, como Paris ou São Francisco, aparecem em meus romances. Mas nenhuma delas ocupa tanto espaço nos meus romances quanto agora Madri e a Espanha em Enigmas da primavera.

Levando isso em conta: já existe alguma cidade, além de Brasília, candidata a integrar um novo romance?

Sim, uma cidade imaginária do interior do Rio Grande do Norte, não longe de Mossoró, onde nasci.

ENIGMAS DA PRIMAVERA

João Almino

Entrevista a Juliana Krapp

Desde que estreou na ficção, em 1987, com Ideias para onde passar o fim do mundo, o potiguar João Almino tem chamado a atenção da crítica pelo estilo inovador e envolvente que imprime à sua obra. Os romances que produziu desde então compõem o chamado “Quinteto de Brasília”: histórias nas quais a capital federal é não apenas cenário, mas sim “laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais”, como afirma João Cezar de Castro Rocha.

Enigmas da primavera também transcorre, em parte, na cidade planejada. Mas desta vez o leitor segue também por Madri e Granada, e ainda pelas fábulas e histórias do mundo árabe, no encalço de Majnun, o jovem protagonista deste novo romance. Instável e romântico, contraditório e imprevisível, Majnun encarna as idiossincrasias de nosso tempo. Com isso, João Almino consolida algo raro entre os ficcionistas: encara a atualidade, enquanto aborda a sensação de vazio, as tentações da tirania, a intolerância. A Primavera Árabe e os protestos de julho de 2013, os indignados europeus e os arroubos do fundamentalismo islâmico se enovelam numa trama densa e sedutora, que lança luz ao estilo singular deste diplomata e escritor, que já ganhou prêmios como o Casa de las Américas 2003 e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura 2011.

Com Enigmas da primavera, o senhor reinventa a sua literatura. É o que afirma João Cezar de Castro Rocha, em prefácio ao livro. Como se deu essa reinvenção?

João Cezar de Castro Rocha é um excelente crítico, que acompanha meu trabalho há muito tempo. Se ele diz que neste caso houve uma reinvenção, devo acreditar nele.

Mas também acredito que cada livro meu é diferente do anterior, quanto à técnica e à linguagem. Tento não me repetir, porque para mim a ficção é sempre aventura, busca e invenção e porque os temas, histórias e perguntas de cada romance exigem sua forma específica.

Este novo romance dá cores, por meio da ficção, a vários temas do noticiário dos últimos dois anos, como os protestos de 2013, no Brasil, e o recrutamento de jovens de diversas nacionalidades pelo fundamentalismo islâmico. O senhor já tinha o enredo delineado quando começou a escrever o livro? Como as notícias foram alimentando a ficção?

Sua observação é perspicaz. O livro pode ser lido como um diário do período que vai de 2011 a 2013 e parte da pergunta: onde pulsa o coração do cotidiano? Cheguei a Madri em meio aos protestos dos indignados. Acompanhei pelos jornais o Occupy Wall Street em Nova York, o que acontecia no Oriente Médio. Lia os jornais brasileiros. O personagem eu já tinha (criar personagens é quase sempre por onde começo). Que tal usar a linguagem literária para retratar sua desorientação e busca de identidade nesse mundo imerso em incerteza, crise e também esperança? O material que me interessava eram as emoções e expectativas do dia a dia e a apreensão subjetiva dos fatos. Gostaria que o tratamento literário permitisse que, dentro de 50 anos, fosse possível ler o romance com interesse, que ele continuasse atual, como é atual hoje ler sobre os acontecimentos de 1848 em A Educação Sentimental de Flaubert ou da Primeira Guerra Mundial em Proust (embora no caso de Flaubert a escrita do romance tenha se dado anos depois dos acontecimentos). Para falar de autores contemporâneos, é possível ler Sábado, de Ian McEwan, sem ficar preso ao presente da narrativa, embora o tempo da feitura do romance quase coincidisse com o dos acontecimentos políticos narrados, os protestos em Londres contra a invasão americana do Iraque.

São raros os escritores que ousam tomar como matéria-prima o presente imediato. O quanto a literatura pode ser um veículo poderoso para apreender e analisar o presente, tão veloz?

Talvez este seja um dos meus temas, o presente e o instante presente. Tenho um livro intitulado A idade do presente, e o instantaneísmo era a ideologia da personagem principal e narradora de As cinco estações do amor. Cada um de meus romances tratou, a seu modo, do presente e, espero, não se desatualizaram por isso: Ideias para onde passar o fim do mundo retrata de alguma forma os dilemas morais e políticos dos anos oitenta. Samba-enredo trata, entre outros temas, do desenvolvimento da internet, das redes eletrônicas e do mundo virtual nos anos noventa. As cinco estações do amor enfoca a passagem do milênio. O livro das emoções, escrito da perspectiva de 2022, relata o presente dos anos 10 do nosso século 21. Cidade Livre reescreve a euforia e as promessas de um Brasil desenvolvido, que seria em poucos anos, segundo JK, a quinta potência do mundo, no momento em que se vivia no Brasil uma nova onda de esperança. Em nenhum desses casos, o romance abraça as perspectivas mais aparentes do presente, porque a literatura não pode, a meu ver, abdicar de sua função crítica. Ela deve ser capaz de se distanciar do seu objeto de interesse para vê-lo sob a ótica de uma história longa e, portanto, para vê-lo melhor.

O mundo árabe é muito presente neste novo romance. Qual a sua relação com o tema?

Vivi no Líbano na época da guerra civil (que os libaneses chamavam eufemisticamente de “os acontecimentos”), de 1980 a 1982, e até hoje tenho amigos dessa época. Fiz leituras do Corão e do Islã para melhor construir alguns personagens do novo romance. A Espanha, onde morei durante os últimos três anos e nove meses, foi muito influenciada pela cultura árabe. Pode-se escrever toda uma história alternativa do país pondo a ênfase não na chamada reconquista, na contrarreforma ou na tradição católica, mas sim nas contribuições árabes à cultura europeia, via Península Ibérica. A história da resistência e da queda de Granada é fascinante, e a ela recorri para construir parte da narrativa. Posso acrescentar ainda que o Nordeste do Brasil, onde nasci e cresci, também foi muito influenciado pela cultura árabe, preservada desde o início de nossa colonização ibérica, como fica claro através da música.

Majnun, protagonista de Enigmas da primavera, vive uma rotina monótona e um bocado medíocre, mas deseja uma reviravolta. Ele é, de certa forma, parecido à Ana de As cinco estações do amor?

Não tinha pensado nessa possibilidade, mas a comparação faz sentido. Você tem razão em dizer que ambos desejam uma reviravolta. Também é possível estabelecer contrastes. Ana vive uma revolução interior, enquanto Majnun, indeciso, deseja uma conversão religiosa e uma reviravolta social. Em As cinco estações do amor, Ana vive a desilusão no início do ocaso de sua vida, exaurida de suas experiências amorosas e antes de reinventar a utopia como aquilo que lhe está mais próximo. Em Enigmas da primavera, Majnun é um jovem enfadado com seu cotidiano que busca preencher seu vazio nas redes sociais. Tem todo um futuro pela frente, que em vez de alimentar sua utopia, o faz mergulhar inicialmente num pensamento antiutópico, já que flerta com a volta a um passado que nunca vivenciou. O final de sua história se abre, contudo, para um novo caminho, o que permite, uma vez mais, estabelecermos pontos de contato entre os dois romances. Num e noutro caso, os caminhos levarão os personagens principais a algum recomeço surpreendente.

Uma espécie de tensão entre desesperança e combatividade perpassa as histórias de seus romances, de diferentes formas. Como esses temas foram se transformando ao longo do tempo?

Não falaria de desesperança, mas de desilusão. E perder ilusões não é necessariamente um mal. Os ideais revolucionários das décadas de 60 e 70 desembocaram num certo conformismo e num realismo pragmático, mas ao mesmo tempo mantiveram acesas aspirações que servem de farol para o avanço das fronteiras do possível. Essa tensão a que você se refere resulta de uma interrogação: se a realidade é inadmissível, como pensar a pós-utopia? Ou como reinventar a utopia? Há mais de uma resposta, e uma delas, presente no novo livro, leva ao terror: o desejo de controle completo sobre o presente e sobre o futuro, sobre o social, de eliminação do outro, do diferente. O islamismo radical, inspirado em Muhammad ibn Abd al-Wahhab ou em Sayyid Qutb, está distante do Islã inventor da tolerância no dizer de Lévy-Strauss. Estamos diante de um novo fenômeno do totalitarismo.

Majnun quer escrever um ensaio sobre a tolerância — muito embora ele próprio não pareça muito habilidoso em lidar com as diferenças. “Tolerância” é palavra-chave para tentar compreender as idiossincrasias de nosso tempo?

Creio que sim. Majnun é contraditório e instável como o tempo em que vive. Quer aprender com os indignados e alimenta novos ideais revolucionários, ao mesmo tempo em que tenta escrever seu ensaio sobre a tolerância no Islã. Quer se converter ao Islã e frequenta sites radicais. Em termos históricos, no final da Idade Média, vamos verificar que os cristãos eram mais intolerantes que os muçulmanos na Península Ibérica e também que a liberdade e o embrião das práticas democráticas não estavam de um lado nem do outro, mas nas cidades de fronteira onde se formavam assembleias para a decisão de questões de interesse público. A tolerância não começou com Locke ou Voltaire, aliás citado por personagem do livro. Tem uma longa história, a leste e a oeste. Não é um valor estritamente ocidental.

Um personagem afirma que “o Ocidente não existe.”

O ocidentalismo é uma ideologia simétrica ao orientalismo de que falava Edward Saïd e serve a interesses conservadores em toda a parte. Sobretudo é errôneo em termos históricos confundir o Ocidente com a tolerância e ideais liberais e democráticos. Alguns dos piores exemplos de tirania e a experiência totalitária existiram na Europa, ou seja, no coração do chamado Ocidente. E isso sem falar de experiências mais antigas. Enquanto o imperador muçulmano e mongol da Índia, Akbar, escrevia sobre a tolerância religiosa, Giordano Bruno era queimado em 1600 pela inquisição no Campo dei Fiori em Roma, como bem lembraram Amartya Sen e Sergio Paulo Rouanet. Hoje em dia a civilização é uma só. Ela é um processo. Sempre está em construção. Uma das previsões de Marx se concretizou, e o capitalismo atingiu todo o mundo. A revolução tecnológica também é um fenômeno mundial. Estou de acordo com meu personagem: o Ocidente não existe. O chamado Ocidente e seus valores são o resultado de contribuições de várias culturas, não apenas judaico-cristãs e greco-romanas, também de outras, sobretudo das culturas provenientes do mundo árabe, da Índia e da China. O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade.

Vendo o neto produzir cartazes para as manifestações de 2013, um de seus personagens indaga: “se o movimento não é político, que sentido tem?”. “O de outra política”, responde o rapaz. E o senhor: acredita no surgimento de uma nova política?

Existem mecanismos novos de comunicação e de circulação de ideias, como as redes sociais, que podem estar a serviço da política, em suas várias manifestações. É preciso reconhecer também a crise da representação política em várias partes do mundo. Mas o desejo de criação de uma nova política já estava presente na França de maio de 1968. É também o que buscaram muitos ecologistas ao defenderem que não estavam à esquerda nem à direita, e sim na frente. Entendo o impulso contemporâneo dos jovens do meu romance, mas a nova política, para ser consequente, acaba por se estruturar em moldes semelhantes aos das organizações políticas existentes e, na melhor das hipóteses, por aumentar o leque da representação política, servindo, portanto, a sua renovação e atualização.

Em sua produção literária sempre foram muito marcantes elementos de inovação, certo experimentalismo. Como essa busca pelo novo se encaixa em seu trabalho atual?

Creio que algo experimentais, do ponto de vista da forma, foram apenas os dois primeiros romances, Ideias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo. Foram, por exemplo, os que mais fizeram uso da digressão e da fragmentação. É bem verdade que houve em todos os cinco que precederam Enigmas da primavera o uso de recursos técnicos destinados a lidar com os tempos da narrativa e a produzir deslocamentos ou desfamiliarização, através principalmente da ótica desconcertante dos narradores. Em Enigmas da primavera, pela primeira vez utilizo um narrador em terceira pessoa e uma narrativa absolutamente linear. Se eu eliminasse os títulos dos capítulos, seria possível ler todo o texto de maneira corrida. Apesar disso, não tento recriar o romance do século 19. É meu novo experimento.

O senhor viveu em Madri, como diplomata, nos últimos anos. Não à toa, é na cidade espanhola que se passa grande parte do enredo de Enigmas da primavera. Perscrutar as cidades é parte essencial de sua literatura?

Essencial eu não diria. Muito do que eu penso, do que questiono, das histórias que imagino poderia situar-se em mais de uma geografia ou em geografia nenhuma. Quando comecei a viajar pelo mundo, o que aconteceu antes da publicação do primeiro romance, imaginava quatro opções para situar minhas histórias: fazê-las se passar no Nordeste onde nasci; situá-las em lugar nenhum ou imaginário; usar como cenário as cidades onde morava ou inventar minha cidade concreta que pudesse absorver o conjunto de minhas vivências, leituras e observações. A solução foi mista. Inventei minha Brasília e me interessei por sua geografia e por sua história, para dar mais verossimilhança a meus relatos. Incluí o Nordeste em várias de minhas histórias. E algumas cidades onde morei, como Paris ou São Francisco, aparecem em meus romances. Mas nenhuma delas ocupa tanto espaço nos meus romances quanto agora Madri e a Espanha em Enigmas da primavera.

Levando isso em conta: já existe alguma cidade, além de Brasília, candidata a integrar um novo romance?

Sim, uma cidade imaginária do interior do Rio Grande do Norte, não longe de Mossoró, onde nasci.

ENIGMAS DA PRIMAVERA

João Almino

Entrevista a Juliana Krapp

Desde que estreou na ficção, em 1987, com Ideias para onde passar o fim do mundo, o potiguar João Almino tem chamado a atenção da crítica pelo estilo inovador e envolvente que imprime à sua obra. Os romances que produziu desde então compõem o chamado “Quinteto de Brasília”: histórias nas quais a capital federal é não apenas cenário, mas sim “laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais”, como afirma João Cezar de Castro Rocha.

Enigmas da primavera também transcorre, em parte, na cidade planejada. Mas desta vez o leitor segue também por Madri e Granada, e ainda pelas fábulas e histórias do mundo árabe, no encalço de Majnun, o jovem protagonista deste novo romance. Instável e romântico, contraditório e imprevisível, Majnun encarna as idiossincrasias de nosso tempo. Com isso, João Almino consolida algo raro entre os ficcionistas: encara a atualidade, enquanto aborda a sensação de vazio, as tentações da tirania, a intolerância. A Primavera Árabe e os protestos de julho de 2013, os indignados europeus e os arroubos do fundamentalismo islâmico se enovelam numa trama densa e sedutora, que lança luz ao estilo singular deste diplomata e escritor, que já ganhou prêmios como o Casa de las Américas 2003 e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura 2011.

Com Enigmas da primavera, o senhor reinventa a sua literatura. É o que afirma João Cezar de Castro Rocha, em prefácio ao livro. Como se deu essa reinvenção?

João Cezar de Castro Rocha é um excelente crítico, que acompanha meu trabalho há muito tempo. Se ele diz que neste caso houve uma reinvenção, devo acreditar nele.

Mas também acredito que cada livro meu é diferente do anterior, quanto à técnica e à linguagem. Tento não me repetir, porque para mim a ficção é sempre aventura, busca e invenção e porque os temas, histórias e perguntas de cada romance exigem sua forma específica.

Este novo romance dá cores, por meio da ficção, a vários temas do noticiário dos últimos dois anos, como os protestos de 2013, no Brasil, e o recrutamento de jovens de diversas nacionalidades pelo fundamentalismo islâmico. O senhor já tinha o enredo delineado quando começou a escrever o livro? Como as notícias foram alimentando a ficção?

Sua observação é perspicaz. O livro pode ser lido como um diário do período que vai de 2011 a 2013 e parte da pergunta: onde pulsa o coração do cotidiano? Cheguei a Madri em meio aos protestos dos indignados. Acompanhei pelos jornais o Occupy Wall Street em Nova York, o que acontecia no Oriente Médio. Lia os jornais brasileiros. O personagem eu já tinha (criar personagens é quase sempre por onde começo). Que tal usar a linguagem literária para retratar sua desorientação e busca de identidade nesse mundo imerso em incerteza, crise e também esperança? O material que me interessava eram as emoções e expectativas do dia a dia e a apreensão subjetiva dos fatos. Gostaria que o tratamento literário permitisse que, dentro de 50 anos, fosse possível ler o romance com interesse, que ele continuasse atual, como é atual hoje ler sobre os acontecimentos de 1848 em A Educação Sentimental de Flaubert ou da Primeira Guerra Mundial em Proust (embora no caso de Flaubert a escrita do romance tenha se dado anos depois dos acontecimentos). Para falar de autores contemporâneos, é possível ler Sábado, de Ian McEwan, sem ficar preso ao presente da narrativa, embora o tempo da feitura do romance quase coincidisse com o dos acontecimentos políticos narrados, os protestos em Londres contra a invasão americana do Iraque.

São raros os escritores que ousam tomar como matéria-prima o presente imediato. O quanto a literatura pode ser um veículo poderoso para apreender e analisar o presente, tão veloz?

Talvez este seja um dos meus temas, o presente e o instante presente. Tenho um livro intitulado A idade do presente, e o instantaneísmo era a ideologia da personagem principal e narradora de As cinco estações do amor. Cada um de meus romances tratou, a seu modo, do presente e, espero, não se desatualizaram por isso: Ideias para onde passar o fim do mundo retrata de alguma forma os dilemas morais e políticos dos anos oitenta. Samba-enredo trata, entre outros temas, do desenvolvimento da internet, das redes eletrônicas e do mundo virtual nos anos noventa. As cinco estações do amor enfoca a passagem do milênio. O livro das emoções, escrito da perspectiva de 2022, relata o presente dos anos 10 do nosso século 21. Cidade Livre reescreve a euforia e as promessas de um Brasil desenvolvido, que seria em poucos anos, segundo JK, a quinta potência do mundo, no momento em que se vivia no Brasil uma nova onda de esperança. Em nenhum desses casos, o romance abraça as perspectivas mais aparentes do presente, porque a literatura não pode, a meu ver, abdicar de sua função crítica. Ela deve ser capaz de se distanciar do seu objeto de interesse para vê-lo sob a ótica de uma história longa e, portanto, para vê-lo melhor.

O mundo árabe é muito presente neste novo romance. Qual a sua relação com o tema?

Vivi no Líbano na época da guerra civil (que os libaneses chamavam eufemisticamente de “os acontecimentos”), de 1980 a 1982, e até hoje tenho amigos dessa época. Fiz leituras do Corão e do Islã para melhor construir alguns personagens do novo romance. A Espanha, onde morei durante os últimos três anos e nove meses, foi muito influenciada pela cultura árabe. Pode-se escrever toda uma história alternativa do país pondo a ênfase não na chamada reconquista, na contrarreforma ou na tradição católica, mas sim nas contribuições árabes à cultura europeia, via Península Ibérica. A história da resistência e da queda de Granada é fascinante, e a ela recorri para construir parte da narrativa. Posso acrescentar ainda que o Nordeste do Brasil, onde nasci e cresci, também foi muito influenciado pela cultura árabe, preservada desde o início de nossa colonização ibérica, como fica claro através da música.

Majnun, protagonista de Enigmas da primavera, vive uma rotina monótona e um bocado medíocre, mas deseja uma reviravolta. Ele é, de certa forma, parecido à Ana de As cinco estações do amor?

Não tinha pensado nessa possibilidade, mas a comparação faz sentido. Você tem razão em dizer que ambos desejam uma reviravolta. Também é possível estabelecer contrastes. Ana vive uma revolução interior, enquanto Majnun, indeciso, deseja uma conversão religiosa e uma reviravolta social. Em As cinco estações do amor, Ana vive a desilusão no início do ocaso de sua vida, exaurida de suas experiências amorosas e antes de reinventar a utopia como aquilo que lhe está mais próximo. Em Enigmas da primavera, Majnun é um jovem enfadado com seu cotidiano que busca preencher seu vazio nas redes sociais. Tem todo um futuro pela frente, que em vez de alimentar sua utopia, o faz mergulhar inicialmente num pensamento antiutópico, já que flerta com a volta a um passado que nunca vivenciou. O final de sua história se abre, contudo, para um novo caminho, o que permite, uma vez mais, estabelecermos pontos de contato entre os dois romances. Num e noutro caso, os caminhos levarão os personagens principais a algum recomeço surpreendente.

Uma espécie de tensão entre desesperança e combatividade perpassa as histórias de seus romances, de diferentes formas. Como esses temas foram se transformando ao longo do tempo?

Não falaria de desesperança, mas de desilusão. E perder ilusões não é necessariamente um mal. Os ideais revolucionários das décadas de 60 e 70 desembocaram num certo conformismo e num realismo pragmático, mas ao mesmo tempo mantiveram acesas aspirações que servem de farol para o avanço das fronteiras do possível. Essa tensão a que você se refere resulta de uma interrogação: se a realidade é inadmissível, como pensar a pós-utopia? Ou como reinventar a utopia? Há mais de uma resposta, e uma delas, presente no novo livro, leva ao terror: o desejo de controle completo sobre o presente e sobre o futuro, sobre o social, de eliminação do outro, do diferente. O islamismo radical, inspirado em Muhammad ibn Abd al-Wahhab ou em Sayyid Qutb, está distante do Islã inventor da tolerância no dizer de Lévy-Strauss. Estamos diante de um novo fenômeno do totalitarismo.

Majnun quer escrever um ensaio sobre a tolerância — muito embora ele próprio não pareça muito habilidoso em lidar com as diferenças. “Tolerância” é palavra-chave para tentar compreender as idiossincrasias de nosso tempo?

Creio que sim. Majnun é contraditório e instável como o tempo em que vive. Quer aprender com os indignados e alimenta novos ideais revolucionários, ao mesmo tempo em que tenta escrever seu ensaio sobre a tolerância no Islã. Quer se converter ao Islã e frequenta sites radicais. Em termos históricos, no final da Idade Média, vamos verificar que os cristãos eram mais intolerantes que os muçulmanos na Península Ibérica e também que a liberdade e o embrião das práticas democráticas não estavam de um lado nem do outro, mas nas cidades de fronteira onde se formavam assembleias para a decisão de questões de interesse público. A tolerância não começou com Locke ou Voltaire, aliás citado por personagem do livro. Tem uma longa história, a leste e a oeste. Não é um valor estritamente ocidental.

Um personagem afirma que “o Ocidente não existe.”

O ocidentalismo é uma ideologia simétrica ao orientalismo de que falava Edward Saïd e serve a interesses conservadores em toda a parte. Sobretudo é errôneo em termos históricos confundir o Ocidente com a tolerância e ideais liberais e democráticos. Alguns dos piores exemplos de tirania e a experiência totalitária existiram na Europa, ou seja, no coração do chamado Ocidente. E isso sem falar de experiências mais antigas. Enquanto o imperador muçulmano e mongol da Índia, Akbar, escrevia sobre a tolerância religiosa, Giordano Bruno era queimado em 1600 pela inquisição no Campo dei Fiori em Roma, como bem lembraram Amartya Sen e Sergio Paulo Rouanet. Hoje em dia a civilização é uma só. Ela é um processo. Sempre está em construção. Uma das previsões de Marx se concretizou, e o capitalismo atingiu todo o mundo. A revolução tecnológica também é um fenômeno mundial. Estou de acordo com meu personagem: o Ocidente não existe. O chamado Ocidente e seus valores são o resultado de contribuições de várias culturas, não apenas judaico-cristãs e greco-romanas, também de outras, sobretudo das culturas provenientes do mundo árabe, da Índia e da China. O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade.

Vendo o neto produzir cartazes para as manifestações de 2013, um de seus personagens indaga: “se o movimento não é político, que sentido tem?”. “O de outra política”, responde o rapaz. E o senhor: acredita no surgimento de uma nova política?

Existem mecanismos novos de comunicação e de circulação de ideias, como as redes sociais, que podem estar a serviço da política, em suas várias manifestações. É preciso reconhecer também a crise da representação política em várias partes do mundo. Mas o desejo de criação de uma nova política já estava presente na França de maio de 1968. É também o que buscaram muitos ecologistas ao defenderem que não estavam à esquerda nem à direita, e sim na frente. Entendo o impulso contemporâneo dos jovens do meu romance, mas a nova política, para ser consequente, acaba por se estruturar em moldes semelhantes aos das organizações políticas existentes e, na melhor das hipóteses, por aumentar o leque da representação política, servindo, portanto, a sua renovação e atualização.

Em sua produção literária sempre foram muito marcantes elementos de inovação, certo experimentalismo. Como essa busca pelo novo se encaixa em seu trabalho atual?

Creio que algo experimentais, do ponto de vista da forma, foram apenas os dois primeiros romances, Ideias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo. Foram, por exemplo, os que mais fizeram uso da digressão e da fragmentação. É bem verdade que houve em todos os cinco que precederam Enigmas da primavera o uso de recursos técnicos destinados a lidar com os tempos da narrativa e a produzir deslocamentos ou desfamiliarização, através principalmente da ótica desconcertante dos narradores. Em Enigmas da primavera, pela primeira vez utilizo um narrador em terceira pessoa e uma narrativa absolutamente linear. Se eu eliminasse os títulos dos capítulos, seria possível ler todo o texto de maneira corrida. Apesar disso, não tento recriar o romance do século 19. É meu novo experimento.

O senhor viveu em Madri, como diplomata, nos últimos anos. Não à toa, é na cidade espanhola que se passa grande parte do enredo de Enigmas da primavera. Perscrutar as cidades é parte essencial de sua literatura?

Essencial eu não diria. Muito do que eu penso, do que questiono, das histórias que imagino poderia situar-se em mais de uma geografia ou em geografia nenhuma. Quando comecei a viajar pelo mundo, o que aconteceu antes da publicação do primeiro romance, imaginava quatro opções para situar minhas histórias: fazê-las se passar no Nordeste onde nasci; situá-las em lugar nenhum ou imaginário; usar como cenário as cidades onde morava ou inventar minha cidade concreta que pudesse absorver o conjunto de minhas vivências, leituras e observações. A solução foi mista. Inventei minha Brasília e me interessei por sua geografia e por sua história, para dar mais verossimilhança a meus relatos. Incluí o Nordeste em várias de minhas histórias. E algumas cidades onde morei, como Paris ou São Francisco, aparecem em meus romances. Mas nenhuma delas ocupa tanto espaço nos meus romances quanto agora Madri e a Espanha em Enigmas da primavera.

Levando isso em conta: já existe alguma cidade, além de Brasília, candidata a integrar um novo romance?

Sim, uma cidade imaginária do interior do Rio Grande do Norte, não longe de Mossoró, onde nasci.

ENIGMAS DA PRIMAVERA

João Almino

Entrevista a Juliana Krapp

Desde que estreou na ficção, em 1987, com Ideias para onde passar o fim do mundo, o potiguar João Almino tem chamado a atenção da crítica pelo estilo inovador e envolvente que imprime à sua obra. Os romances que produziu desde então compõem o chamado “Quinteto de Brasília”: histórias nas quais a capital federal é não apenas cenário, mas sim “laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais”, como afirma João Cezar de Castro Rocha.

Enigmas da primavera também transcorre, em parte, na cidade planejada. Mas desta vez o leitor segue também por Madri e Granada, e ainda pelas fábulas e histórias do mundo árabe, no encalço de Majnun, o jovem protagonista deste novo romance. Instável e romântico, contraditório e imprevisível, Majnun encarna as idiossincrasias de nosso tempo. Com isso, João Almino consolida algo raro entre os ficcionistas: encara a atualidade, enquanto aborda a sensação de vazio, as tentações da tirania, a intolerância. A Primavera Árabe e os protestos de julho de 2013, os indignados europeus e os arroubos do fundamentalismo islâmico se enovelam numa trama densa e sedutora, que lança luz ao estilo singular deste diplomata e escritor, que já ganhou prêmios como o Casa de las Américas 2003 e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura 2011.

Com Enigmas da primavera, o senhor reinventa a sua literatura. É o que afirma João Cezar de Castro Rocha, em prefácio ao livro. Como se deu essa reinvenção?

João Cezar de Castro Rocha é um excelente crítico, que acompanha meu trabalho há muito tempo. Se ele diz que neste caso houve uma reinvenção, devo acreditar nele.

Mas também acredito que cada livro meu é diferente do anterior, quanto à técnica e à linguagem. Tento não me repetir, porque para mim a ficção é sempre aventura, busca e invenção e porque os temas, histórias e perguntas de cada romance exigem sua forma específica.

Este novo romance dá cores, por meio da ficção, a vários temas do noticiário dos últimos dois anos, como os protestos de 2013, no Brasil, e o recrutamento de jovens de diversas nacionalidades pelo fundamentalismo islâmico. O senhor já tinha o enredo delineado quando começou a escrever o livro? Como as notícias foram alimentando a ficção?

Sua observação é perspicaz. O livro pode ser lido como um diário do período que vai de 2011 a 2013 e parte da pergunta: onde pulsa o coração do cotidiano? Cheguei a Madri em meio aos protestos dos indignados. Acompanhei pelos jornais o Occupy Wall Street em Nova York, o que acontecia no Oriente Médio. Lia os jornais brasileiros. O personagem eu já tinha (criar personagens é quase sempre por onde começo). Que tal usar a linguagem literária para retratar sua desorientação e busca de identidade nesse mundo imerso em incerteza, crise e também esperança? O material que me interessava eram as emoções e expectativas do dia a dia e a apreensão subjetiva dos fatos. Gostaria que o tratamento literário permitisse que, dentro de 50 anos, fosse possível ler o romance com interesse, que ele continuasse atual, como é atual hoje ler sobre os acontecimentos de 1848 em A Educação Sentimental de Flaubert ou da Primeira Guerra Mundial em Proust (embora no caso de Flaubert a escrita do romance tenha se dado anos depois dos acontecimentos). Para falar de autores contemporâneos, é possível ler Sábado, de Ian McEwan, sem ficar preso ao presente da narrativa, embora o tempo da feitura do romance quase coincidisse com o dos acontecimentos políticos narrados, os protestos em Londres contra a invasão americana do Iraque.

São raros os escritores que ousam tomar como matéria-prima o presente imediato. O quanto a literatura pode ser um veículo poderoso para apreender e analisar o presente, tão veloz?

Talvez este seja um dos meus temas, o presente e o instante presente. Tenho um livro intitulado A idade do presente, e o instantaneísmo era a ideologia da personagem principal e narradora de As cinco estações do amor. Cada um de meus romances tratou, a seu modo, do presente e, espero, não se desatualizaram por isso: Ideias para onde passar o fim do mundo retrata de alguma forma os dilemas morais e políticos dos anos oitenta. Samba-enredo trata, entre outros temas, do desenvolvimento da internet, das redes eletrônicas e do mundo virtual nos anos noventa. As cinco estações do amor enfoca a passagem do milênio. O livro das emoções, escrito da perspectiva de 2022, relata o presente dos anos 10 do nosso século 21. Cidade Livre reescreve a euforia e as promessas de um Brasil desenvolvido, que seria em poucos anos, segundo JK, a quinta potência do mundo, no momento em que se vivia no Brasil uma nova onda de esperança. Em nenhum desses casos, o romance abraça as perspectivas mais aparentes do presente, porque a literatura não pode, a meu ver, abdicar de sua função crítica. Ela deve ser capaz de se distanciar do seu objeto de interesse para vê-lo sob a ótica de uma história longa e, portanto, para vê-lo melhor.

O mundo árabe é muito presente neste novo romance. Qual a sua relação com o tema?

Vivi no Líbano na época da guerra civil (que os libaneses chamavam eufemisticamente de “os acontecimentos”), de 1980 a 1982, e até hoje tenho amigos dessa época. Fiz leituras do Corão e do Islã para melhor construir alguns personagens do novo romance. A Espanha, onde morei durante os últimos três anos e nove meses, foi muito influenciada pela cultura árabe. Pode-se escrever toda uma história alternativa do país pondo a ênfase não na chamada reconquista, na contrarreforma ou na tradição católica, mas sim nas contribuições árabes à cultura europeia, via Península Ibérica. A história da resistência e da queda de Granada é fascinante, e a ela recorri para construir parte da narrativa. Posso acrescentar ainda que o Nordeste do Brasil, onde nasci e cresci, também foi muito influenciado pela cultura árabe, preservada desde o início de nossa colonização ibérica, como fica claro através da música.

Majnun, protagonista de Enigmas da primavera, vive uma rotina monótona e um bocado medíocre, mas deseja uma reviravolta. Ele é, de certa forma, parecido à Ana de As cinco estações do amor?

Não tinha pensado nessa possibilidade, mas a comparação faz sentido. Você tem razão em dizer que ambos desejam uma reviravolta. Também é possível estabelecer contrastes. Ana vive uma revolução interior, enquanto Majnun, indeciso, deseja uma conversão religiosa e uma reviravolta social. Em As cinco estações do amor, Ana vive a desilusão no início do ocaso de sua vida, exaurida de suas experiências amorosas e antes de reinventar a utopia como aquilo que lhe está mais próximo. Em Enigmas da primavera, Majnun é um jovem enfadado com seu cotidiano que busca preencher seu vazio nas redes sociais. Tem todo um futuro pela frente, que em vez de alimentar sua utopia, o faz mergulhar inicialmente num pensamento antiutópico, já que flerta com a volta a um passado que nunca vivenciou. O final de sua história se abre, contudo, para um novo caminho, o que permite, uma vez mais, estabelecermos pontos de contato entre os dois romances. Num e noutro caso, os caminhos levarão os personagens principais a algum recomeço surpreendente.

Uma espécie de tensão entre desesperança e combatividade perpassa as histórias de seus romances, de diferentes formas. Como esses temas foram se transformando ao longo do tempo?

Não falaria de desesperança, mas de desilusão. E perder ilusões não é necessariamente um mal. Os ideais revolucionários das décadas de 60 e 70 desembocaram num certo conformismo e num realismo pragmático, mas ao mesmo tempo mantiveram acesas aspirações que servem de farol para o avanço das fronteiras do possível. Essa tensão a que você se refere resulta de uma interrogação: se a realidade é inadmissível, como pensar a pós-utopia? Ou como reinventar a utopia? Há mais de uma resposta, e uma delas, presente no novo livro, leva ao terror: o desejo de controle completo sobre o presente e sobre o futuro, sobre o social, de eliminação do outro, do diferente. O islamismo radical, inspirado em Muhammad ibn Abd al-Wahhab ou em Sayyid Qutb, está distante do Islã inventor da tolerância no dizer de Lévy-Strauss. Estamos diante de um novo fenômeno do totalitarismo.

Majnun quer escrever um ensaio sobre a tolerância — muito embora ele próprio não pareça muito habilidoso em lidar com as diferenças. “Tolerância” é palavra-chave para tentar compreender as idiossincrasias de nosso tempo?

Creio que sim. Majnun é contraditório e instável como o tempo em que vive. Quer aprender com os indignados e alimenta novos ideais revolucionários, ao mesmo tempo em que tenta escrever seu ensaio sobre a tolerância no Islã. Quer se converter ao Islã e frequenta sites radicais. Em termos históricos, no final da Idade Média, vamos verificar que os cristãos eram mais intolerantes que os muçulmanos na Península Ibérica e também que a liberdade e o embrião das práticas democráticas não estavam de um lado nem do outro, mas nas cidades de fronteira onde se formavam assembleias para a decisão de questões de interesse público. A tolerância não começou com Locke ou Voltaire, aliás citado por personagem do livro. Tem uma longa história, a leste e a oeste. Não é um valor estritamente ocidental.

Um personagem afirma que “o Ocidente não existe.”

O ocidentalismo é uma ideologia simétrica ao orientalismo de que falava Edward Saïd e serve a interesses conservadores em toda a parte. Sobretudo é errôneo em termos históricos confundir o Ocidente com a tolerância e ideais liberais e democráticos. Alguns dos piores exemplos de tirania e a experiência totalitária existiram na Europa, ou seja, no coração do chamado Ocidente. E isso sem falar de experiências mais antigas. Enquanto o imperador muçulmano e mongol da Índia, Akbar, escrevia sobre a tolerância religiosa, Giordano Bruno era queimado em 1600 pela inquisição no Campo dei Fiori em Roma, como bem lembraram Amartya Sen e Sergio Paulo Rouanet. Hoje em dia a civilização é uma só. Ela é um processo. Sempre está em construção. Uma das previsões de Marx se concretizou, e o capitalismo atingiu todo o mundo. A revolução tecnológica também é um fenômeno mundial. Estou de acordo com meu personagem: o Ocidente não existe. O chamado Ocidente e seus valores são o resultado de contribuições de várias culturas, não apenas judaico-cristãs e greco-romanas, também de outras, sobretudo das culturas provenientes do mundo árabe, da Índia e da China. O que divide o mundo não são os pontos cardeais, mas a miséria e a riqueza, o acesso ou não ao conhecimento e à tecnologia, a tirania e a liberdade.

Vendo o neto produzir cartazes para as manifestações de 2013, um de seus personagens indaga: “se o movimento não é político, que sentido tem?”. “O de outra política”, responde o rapaz. E o senhor: acredita no surgimento de uma nova política?

Existem mecanismos novos de comunicação e de circulação de ideias, como as redes sociais, que podem estar a serviço da política, em suas várias manifestações. É preciso reconhecer também a crise da representação política em várias partes do mundo. Mas o desejo de criação de uma nova política já estava presente na França de maio de 1968. É também o que buscaram muitos ecologistas ao defenderem que não estavam à esquerda nem à direita, e sim na frente. Entendo o impulso contemporâneo dos jovens do meu romance, mas a nova política, para ser consequente, acaba por se estruturar em moldes semelhantes aos das organizações políticas existentes e, na melhor das hipóteses, por aumentar o leque da representação política, servindo, portanto, a sua renovação e atualização.

Em sua produção literária sempre foram muito marcantes elementos de inovação, certo experimentalismo. Como essa busca pelo novo se encaixa em seu trabalho atual?

Creio que algo experimentais, do ponto de vista da forma, foram apenas os dois primeiros romances, Ideias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo. Foram, por exemplo, os que mais fizeram uso da digressão e da fragmentação. É bem verdade que houve em todos os cinco que precederam Enigmas da primavera o uso de recursos técnicos destinados a lidar com os tempos da narrativa e a produzir deslocamentos ou desfamiliarização, através principalmente da ótica desconcertante dos narradores. Em Enigmas da primavera, pela primeira vez utilizo um narrador em terceira pessoa e uma narrativa absolutamente linear. Se eu eliminasse os títulos dos capítulos, seria possível ler todo o texto de maneira corrida. Apesar disso, não tento recriar o romance do século 19. É meu novo experimento.

O senhor viveu em Madri, como diplomata, nos últimos anos. Não à toa, é na cidade espanhola que se passa grande parte do enredo de Enigmas da primavera. Perscrutar as cidades é parte essencial de sua literatura?

Essencial eu não diria. Muito do que eu penso, do que questiono, das histórias que imagino poderia situar-se em mais de uma geografia ou em geografia nenhuma. Quando comecei a viajar pelo mundo, o que aconteceu antes da publicação do primeiro romance, imaginava quatro opções para situar minhas histórias: fazê-las se passar no Nordeste onde nasci; situá-las em lugar nenhum ou imaginário; usar como cenário as cidades onde morava ou inventar minha cidade concreta que pudesse absorver o conjunto de minhas vivências, leituras e observações. A solução foi mista. Inventei minha Brasília e me interessei por sua geografia e por sua história, para dar mais verossimilhança a meus relatos. Incluí o Nordeste em várias de minhas histórias. E algumas cidades onde morei, como Paris ou São Francisco, aparecem em meus romances. Mas nenhuma delas ocupa tanto espaço nos meus romances quanto agora Madri e a Espanha em Enigmas da primavera.

Levando isso em conta: já existe alguma cidade, além de Brasília, candidata a integrar um novo romance?

Sim, uma cidade imaginária do interior do Rio Grande do Norte, não longe de Mossoró, onde nasci.