ENTRE FACAS, ALGODÃO DONDE UN OSCURO RÍO PIERDE EL NOMBRE (traducción y notas de Pablo Rocca)

/

  1. Taguatinga, Setor A Norte, QNA 32

31 de março

Clarice havia mandado uma mensagem pelo Facebook.

O que ela quer contigo? Patrícia me perguntou, mais amarga do que nunca, nós dois sentados numa poltrona da sala.

Caía uma chuva torrencial.

Você leu. Sabe tanto quanto eu.

Eu tinha esquecido de sair do Facebook. Patrícia aproveitou pra vasculhar minhas mensagens. Inadmissível!

Não, não li. Só vi que foi ela que lhe escreveu.

Duvido. Deve ter visto que ela não quer nada comigo. Só me deu uma dica.

Dica de quê?

Saco! Patrícia querer me controlar. Podia ter-lhe dito a verdade, se é que ela não sabia. Pouco me custava. A mensagem de Clarice nada tinha de pessoal. Nada que denotasse afeto entre nós. Absolutamente nada! Quase mensagem comercial. Soube por meu amigo Arnaldo de meu interesse em comprar um terreno nas redondezas e me passou a dica. Também me informou seu e-mail e número do celular. Só isso.

Não interessa, respondi.

Interessa, sim. Acha que esqueci o que essa perua representa pra ti?

Agressão gratuita. Como me arrependi de contar tudo. Falar de meu passado. Entrar em minúcias logo sobre Clarice! Sou mesmo um idiota, um imbecil!

Ou fui. Era lá no comecinho, quando achávamos que, como estávamos apaixonados e o mundo não faria sentido se não estivéssemos juntos, tínhamos que abrir nossos corações e contar tudo, absolutamente tudo. Sinceridade total. Respeito à verdade, que não podia ter qualquer remendo. Patrícia nunca esqueceu o menor detalhe sobre Clarice.

Ainda chovia. Os relâmpagos clareavam as janelas. Os trovões ribombavam sem parar, querendo dramatizar nossa discussão.

Não representa bulhufas. O terreno que está à venda, sim. É o que eu quero. Eu, entende? Onde passei minha infância.

Na mensagem Clarice diz que minha casa foi destruída. Mas o terreno à venda ainda preserva a antiga casa-grande da fazenda do pai dela, o Riacho Negro. E como o Riacho Negro me traz recordações! Se não leu, Patrícia adivinhou o que dizia a mensagem, pois perguntou:

E por que ela não compra?

Irritado, respondi, porque quer que eu compre.

Ah, é isso, né? A sem-vergonha quer que tu vá morar perto dela.

Como sabia que Clarice morava perto do terreno? Isso a mensagem não dizia. A verdade é que, se eu comprar o terreno, serei quase vizinho de Clarice.

Não. Eu é que quero morar perto dela. Eu é que quero, entendeu?, respondi, irônico, elevando a voz.

Posso saber por quê? Nem precisa me responder, já entendi tudo, disse, sem considerar minha ironia.

Pensando bem, não há mesmo ironia. Me dá enorme prazer ser vizinho de Clarice.

Porque sim, respondi.

Pois então compre a merda do terreno e se afunde nele, Patrícia berrou. Vá logo, seu bosta. Eu sabia que não podia confiar em você!

Meu casamento com Patrícia sobreviveu a infidelidades, e esse assunto boboca não devia ter provocado tanta zanga.

Pois é o que vou fazer, me flagrei dizendo, só porque uma provocação leva a outra e mais outra.

Descarado! Saia já de casa, gritou ainda mais alto.

Não era pra tanto, mas a arenga continuou por horas, em gritos insensatos, gota d’água para nossa separação sempre adiada. Basta dizer que, sem se importar com a chuva, Patrícia jogou minhas roupas pela janela. Um sapato caiu do outro lado da rua, na calçada em frente, e encheu-se de água.

Não desisti. Debaixo de chuva, juntei todas as coisas, sem medo do ridículo perante os vizinhos, e voltei pra casa. Patrícia tentou me agredir fisicamente. Só me defendi, não queria parar na delegacia. Depois me tranquei num quarto. Decidi que sairia de casa, mas não enxotado. Patrícia não insistiu, apenas deixou de falar comigo, no que lhe correspondi. Se não me expulsava, eu estava no lucro.

1º de abril

Não é mentira, apesar do primeiro de abril: vendo à minha volta, meu casamento com Patrícia não é dos piores. Temos muito em comum. Conversávamos, o que nem todo casal pode dizer. Nos beijávamos, feito notável depois de décadas de casamento. E os ciúmes de Patrícia são prova de que ainda me ama.

Só não tenho os mesmos ciúmes que ela porque há muito deixou de cantar nos bares e hoje não vejo rival à minha altura entre seus colegas dos Correios. Não tinha a menor intenção de me separar dela. Mas a briga cresceu feito suflê fora de meu controle. Não tem mais jeito. Me fez acreditar que é melhor mesmo voltar pro Nordeste.

Vou responder a Clarice. Pedir detalhes sobre o vendedor do terreno. Se conseguir negociar bom preço, pergunto se ela aceita que lhe passe uma procuração pra que cuide da transação no cartório de Várzea Pacífica.

Abril, Páscoa

Clarice me deu o número do vendedor. Depois de negociar com ele os termos da compra, liguei pro celular dela, achei melhor conversar. Aceitou que lhe faça a procuração. Não tocamos no assunto mais pessoal. Perguntei por Miguel, seu irmão. Está bem, fora as dificuldades nos negócios. Passa a maior parte do tempo viajando.

Pensei em tanta coisa antes de ligar… Em perguntar se ela se lembra de tal ou qual momento, como se sente vivendo sozinha numa fazenda, se alguma vez pensou em mim… Meus sentimentos ficaram embotados. Mas foi possível perceber emoção na sua voz. Sobretudo registrei bem o que disse:

Que bom que você está voltando.

Escavando sob meus pés, encontro muitas lembranças dela. Os sonhos têm memória. A Clarice do futuro — acho que existe, apesar de tudo — tem muito da Clarice do passado.

Se não me engano, foi em 58, plena seca, quando pela primeira vez senti por ela algo parecido com o amor. Não quero falar demais, porque não tenho certeza e não me lembro direito. Era muito pequeno. Podia ser naquele ano ou em qualquer outro que o rame-rame era o mesmo, morcegos voando de madrugada, árvores peladas, o verde só nas folhagens dos juazeiros, nos xiquexiques e mandacarus, carcaças de animais pelos caminhos de terra poeirenta exalando bafo quente, o sol queimando e secando o mundo, dentro de mim tudo seco. Em poucas palavras, o de sempre, agora cruzado por algum caminhão-pipa e à espera da transposição do Rio São Francisco.

Ou talvez tenha sido inverno, pois me lembro do açude com água, o verde das árvores espinhentas e baixas, verde-claro e brilhoso, a roça atrás do açude também verde, e eu acordava cedo para ir ao curral ordenhar as vacas. Não sei direito, me desculpe quem vier a ler isto. Ou, ora bolas, não me desculpo, pois não devo me desculpar de minhas contradições se são as meras contradições do sertão, seco ou molhado, contradições que hoje ainda existem. Quando seco, a paisagem cinza, realçada por pedras e caveiras, digo sem nenhum exagero. Quando molhado, molhado demais, assustando a gente e causando desastres.

21 de abril

Feriado, fiquei em casa. Achei que Patrícia ia querer me perturbar. Me ignorou, pelo menos até agora. Fico tranquilo para continuar estas anotações sobre meus tempos do Riacho Negro, de Várzea Pacífica, aquela época em que Clarice foi tão importante pra mim. Um dia, quem sabe, mostro estas páginas a ela.

Pode ser até que não me lembre propriamente. Que a realidade daquele passado esteja só na minha imaginação. Devo estar misturando várias secas e várias enchentes. Então, sim, por essa confusão devo me desculpar com quem vier a ler estas anotações, feitas assim rapidamente sem preocupação com estilo ou vocabulário.

Olho meu passado não com orgulho, mas com resignação. Muitas das turbulências que me atormentavam se apaziguaram. O que me despertava paixão agora está arquivado na memória como fotos num álbum de páginas amareladas pelo tempo. Algumas dessas fotos, cobertas de fungo. Outras, tão coladas entre si que, quando a gente tenta despregá-las, se rasgam deixando brancos.

Clarice é exceção. Minha lembrança dela é nítida como a fotografia bem guardada no fundo de uma de minhas gavetas em que ela olha pra mim com olhar que sinto ser apaixonado e até hoje transmite vibrações por meu corpo.

Recupero pedaços de mim para criar esta história contraditória e verdadeira, que me atormenta. Por isso tenho que pôr pra fora. Como contraditórios e verdadeiros, além do sertão, eram mamãe, que me punia e me protegia, e meu padrinho, pai de Clarice, severo e carinhoso. Eu aceitava as mudanças de humor deles como aceitava mudanças de humor da natureza. Achava normais minhas alegrias e tristezas.

No inverno a chuva cobria o campo verde, o chão ficava marcado com o barro das botas, as conversas e risos se prolongavam no alpendre da casa-grande de meus padrinhos, os aboios se animavam no campo, as muriçocas me picavam na nossa casa de tijolo aparente e vermelho, eu me enrolava na rede e envolvia o rosto com o lençol, deixando só o nariz de fora e ouvindo os pingos bater nas telhas.

Já na seca, o sol impiedoso castigava a fazenda do Riacho Negro e me cegava a vista. A poeira açoitava os campos cinzentos, de árvores despojadas, o açude minguado, as cacimbas sem água, as pessoas zonzas cozinhando irritação no calor, e o curral vazio, o gado tangido para o Piauí.

Nisso pode ser que de novo misture tempos, me desculpem, a seca de um ano com o verão prolongado de outro. Mas não invento nada, no máximo é a memória que me trai aqui e ali, coisa da idade, aos setenta anos a memória falha. O que é certo é que as paisagens da secura traziam sempre as mesmas árvores calcinadas, a mesma ruína cinzenta e a mesma irritação. Acho que são sobretudo elas, as paisagens da secura, que marcam os sertanejos feito eu.

1º de maio

Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos. Prefiro me concentrar nas minhas anotações. Procurei lá no fundo minhas memórias mais antigas.

Deve haver outras lá atrás, mas as que me chegaram logo foram as de um dia em que, deitado numa ponta do parapeito da casa-grande de meu padrinho, pai de Clarice, com 6 anos, eu ouvia o rádio a pilha Hitachi, novidade que acabava de chegar no Riacho Negro, alegrando o alpendre com forrós interrompidos pelos chiados da má transmissão. O rádio movido a bateria carregada por cata-vento, desligado. Noutra ponta do parapeito, a avó de Clarice, Dona Leopolda, gorda, de rosto redondo, bochechudo, metida num vestido florido até o meio da canela, fazia cigarro cortando com faca afiada o fumo de corda enquanto fumava cachimbo, soltando baforadas. Uma rede branca, sem ninguém, balançava no alpendre movida pelo nordeste que chegava forte. Da varanda se via um quarto separado da casa e, pela porta, selas e cabrestos, couros espichados, baús no chão e gibões pendurados nos tornos de rede. Talvez seja minha memória de um dia. Ou talvez, o que é mais provável, de muitos dias que se repetiam iguaizinhos, sem tirar nem pôr.

Arnaldo, um preto mais preto e dois anos mais velho do que eu, que hoje também mora perto da fazendola que quero comprar e com quem já me comuniquei, me chamou para ir ao açude buscar água. Ele morava com o pai, Seu Rodolfo, a mãe, Dona Vitória, e um magote de irmãos, na fazenda vizinha, do irmão de meu padrinho, que eu chamava de titio. Íamos com Quinquim, buchudo de lombrigas, mas magricela com cor de leite azedo, que, abestado, enrolava a língua e só tinha dois amigos: eu e o jumento Cinzento. Cinzento conhecia o caminho do açude, ia na frente. Todos os dias buscava água. Às vezes voltava só, nem precisava da gente, e ficava esperando até que a gente chegasse para esvaziar as caçambas.

Eu considerava Arnaldo meu superior, e com razão. Ele conhecia o nome de todas as rezes — vacas e bezerros —, sabia ajudar Quinquim com as caçambas d’água e enchia os quatro potes de barro que repousavam sobre o estrado de madeira do alpendre da casa-grande — hoje, me diz Arnaldo, substituídos pela cisterna. Embaixo deles depositávamos réstias de alho, cebola, panelas de barro e mochilas de sal. Para ali de manhã cedo trazíamos os potes de leite, que num canto da cozinha seriam mudados em queijo de coalho ou coalhada. Ali colocávamos os cachos de bananas para amadurecer, as bananas baba-de-boi, maçã, prata e casca verde que à medida que amadureciam exalavam seu cheiro. Meu padrinho, pai de Clarice, dizia para colocar as bananas verdes junto das mais maduras para amadurecerem depressa. Eu e Arnaldo às vezes roubávamos bananas-prata quando começavam a ficar amarelas e as comíamos quando descíamos com Cinzento para o açude.

Há coisas, já disse, que não me lembro direito, me desculpem. Não sei se foi neste dia ou noutro, a muda que morava na fazenda do tio de Clarice que eu chamava de titio tomava banho nua no açude. Surda, não ouvia o barulho dos nossos passos, meus e de Arnaldo. Se nos via, fingia que não nos via, e nós fingíamos não dar fé de seu fingimento. Não era a primeira vez. Embora mangássemos dela quando fazia caretas e barulhos incompreensíveis com a língua, era a principal atração da caminhada. Contávamos a Miguel, o irmão de Clarice, exagerando na beleza das coxas, da bunda e dos peitos, e ele ficava cheio de inveja. Só não conseguíamos dizer que era bonita de rosto, ainda que o cabelo louro, liso e comprido enfeitasse suas costas, pois, nisso concordávamos, a feiura de seu rosto assustava.

2 de maio

Um dia peguei uma aposta com Arnaldo na corrida — dia especial por uma razão simples: tem a ver com Clarice, de quem, afinal de contas, queria falar. Arnaldo corria mais rápido que eu. Me senti derrotado. Caí e ralei meus joelhos. Foi o fim do mundo. Ou melhor, seu começo.

O sol nos encandeava com desenhos amarelos. Projetava pra dentro da casa-grande os pilares do alpendre, marcando o chão e os potes de barro com sombras negras e violentas. Daquele dia perdura em mim até hoje um sentimento de drama e esperança.

De drama: de que a noite que caía me despojava de seu manto protetor; de que eu sempre tropeçaria sobre as pedras da ladeira; de que o horizonte nunca deixaria de ser incerto; de que, perdido, não encontraria o caminho.

De esperança: de que alguém me salvaria do desastre. Do alto da ladeira, joelhos ralados nas pedras, vendo o sangue, eu também via a casa-grande e, na frente, Clarice, que veio em meu socorro.

Uma guiné gasguita voava no terreiro com medo dos vaqueiros encourados. Então chegou um magote de ciganos, visitantes que a cada dois ou três meses passavam tangendo tropas de burros, mulas e cavalos carregados de bugigangas. Juntaram-se embaixo do pé de tamarindo do terreiro.

Vende este cavalo? Cadê o ferrão?, perguntava meu padrinho, o pai de Clarice, com voz raivosamente fina e minúcias de atenção, desconfiado dos ciganos, sem dar fé do sangue nos meus joelhos.

Eu não tinha dinheiro e queria comprar um presente para Clarice. Por gestos, um dos ciganos me deu a entender que eu poderia pagar depois. Escolhi um anel certamente de ouro e pedra falsos, que dei de presente a Clarice quando o sol já se escondia envergonhado e as galinhas se aquietavam no poleiro.

De noite — pode ter sido nesse dia e, se não foi, juntei com outro, sua prolongação natural — havia uma fogueira enorme, feita de muitas carradas de lenha, em frente à casa-grande. Devia ser junho, quem sabe dia 24, festa de São João. As labaredas iluminavam rostos risonhos, às vezes de gargalhadas escancaradas, gente dando volta em torno da fogueira, assando milho verde. No alpendre da casa, a brincadeira era outra, séria: joguei gotas da vela derretida num copo d’água, e a cera formou uma letra cê, cê de Clarice. A felicidade.

Naquela época falava-se em roubos de moça para se casar, e me contaram que um roubo tinha acontecido em Várzea Pacífica. O rapaz roubava a moça, e as famílias tinham a obrigação de fazer o casamento. Imaginava-me, então, chegando a cavalo numa das janelas da casa-grande e levando Clarice na garupa. Será que ela toparia?

Hoje falei com Arnaldo. Faz muitos anos que não nos vemos, mas sempre que nos falamos é como se tivéssemos nos encontrado ontem. Vamos nos comunicar por WhatsApp, ele propôs. Um sujeito que ele conhece está vendendo um carro de segunda mão. Vendo o meu aqui em Taguatinga para comprar esse outro quando chegar a Várzea Pacífica, se ainda estiver à venda. Comprar sem ver é que não.

Levo para a fazenda uma técnica de plantio direto do algodão com a introdução de culturas rotativas. Já consultei uma lista de empresas de energia solar fotovoltaica da região de Fortaleza, pois vou, sim, instalar placas de energia solar, pelo menos para as necessidades da casa principal, que não será a casa-grande, mas a minha própria, moderna e confortável. E vou aprimorar o sistema precário de irrigação, que existe há alguns anos. De novidade, há dois poços artesianos na propriedade, e a casa já tem cisterna, Arnaldo me disse.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.

Parto dentro de uma semana, está tudo certo. Fujo da secura que começa. Não tem caído pingo d’água neste planalto.

Clarice me enviou a escritura do terreno que comprei por procuração. Arrumei minhas coisas e despachei há exatamente treze dias uma pequena mudança, que Arnaldo vai receber e acomodar na casa da fazenda. Encarreguei-o também de comprar sementes de algodão para o plantio, quando eu chegar.

2. Voo Brasília-Fortaleza

1º de junho

O avião subiu faz pouco. Voo Brasília-Fortaleza. Agora que Patrícia me deixou, deixo Taguatinga. Digo que foi ela que me deixou, embora seja eu que parti, pois a iniciativa foi dela, não há dúvida.

Teve razão e coragem. Eu não teria nem uma coisa nem outra. Mas fico matutando se o medo às vezes é que tem razão. A despedida foi dura e fria.

Seja feliz, ela disse, como se dissesse que se foda.

Você também, respondi.

A separação foi amigável, e muita coisa ainda tem que ser decidida. Ela ficou com a maior parte dos bens, inclusive a casa, mas não exige dinheiro. Combinamos que vamos formalizar o divórcio, porém não começamos a cuidar dos papéis. Sugeri aguardar um pouco, testar como vamos nos sentir com a separação.

Não tem volta, foi categórica.

Olhando as chapadas pela janela do avião — será a Mantiqueira? —, deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza. Que talvez queira encontrar futuro no passado, tenho de admitir. A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu.

Às vezes fica difícil traçar a fronteira entre lembrança e imaginação. Às vezes a realidade se impõe às duas. Às vezes a fazenda que pertencia a meu padrinho me traz más lembranças. A fazenda ficava a três léguas de Várzea Pacífica, que, quando eu era criança, nem várzea nem pacífica era. Ali a vegetação secava no verão — isso imagino que ainda acontece — e, por qualquer coisa, armava-se o maior cu de boi. Assassinatos a todo tempo. Terríveis assassinatos! A mais terrível de todas as lembranças me chega por tabela, lembrança de lembranças. Papai assassinado a peixeiradas. Ainda vejo o sangue saindo de sua barriga, esguichado, desparramando-se pelo chão.

Lembranças mesmo, quando tenho, são vagas, de gritos, portas batendo, eu correndo por um descampado sem fim. Eu seguia caminhos sinuosos e esburacados ouvindo choros fortes de mulher, acho que de mamãe, de vovó. Finalmente chegamos ao lugar de chão ondulado e marcado por cruzes, onde, ao lado de um buraco sem fim, foi depositado o caixão que não sei se vi ou imaginei, em madeira lisa e pintada de preto. O montículo de terra ali ao lado me parecia uma montanha também infindável, montanha que eu não conseguia escalar. Lágrimas ainda caem de meus olhos pelo que não vi, me desculpo uma vez mais com quem tem paciência de continuar me lendo.

Como posso me lembrar direito? Tinha só dois anos. Sei da violência do assassinato de papai pelos relatos que ouvi anos depois. Mais de vinte peixeiradas, sangue escorrendo pela calçada. Sangue, muito sangue, um vermelho que mancha todas as minhas lembranças.

Sempre pensava naquele crime quando assistia à morte das novilhas no curral, vendo as machadadas, a carne esfolada e o sangue escrevendo garranchos no tapete de estrume, preto e fofo.

O assassino, preso, nunca admitiu o crime. Sujeitinho nojento, filho da puta. Não há dúvida: teve uma rixa com papai por uma migalhice — papai se recusou a pagar por um gibão de couro malfeito — e era assassino confesso de outras quatro vítimas. Cabra ranzinza, irritadiço, que batia na mulher aos murros. A filha, de tanto levar chibatada, enlouqueceu, foi o que me contou há muitos anos Arnaldo, aquele meu amigo de infância com quem troco mensagens por WhatsApp.

Li uma vez que é somente nos vivos que os mortos existem, assim como será apenas nos vivos que estas anotações podem sobreviver depois de minha morte. Papai é um morto que vive em mim. Por que ainda quero vingar sua morte depois de tanto tempo? A verdade é que quero. Aparece cada vez mais como necessidade, necessidade de um velho, necessidade cada vez mais urgente, como se me faltasse o que preciso fazer para me sentir completo.

Só de pensar que posso me encontrar com o assassino, o sangue sobe à cabeça. À medida que os dias passam, vejo que me sobra pouco tempo para cumprir minha missão. Claro que não foi só por causa de Clarice que comprei o terreno. Volto pra perto do desgraçado, o filho da puta. Saiu da prisão há vários anos. Nunca o procurei, mas hoje sei que, se o encontrar, eu o mato. Tenho de matá-lo. Não me importa nada passar o resto da vida na cadeia. Quem lamentaria? Meus três filhos, sei que não. Talvez minha irmã Zuleide… Falo tão pouco com ela! Na verdade, faz dois anos que não a vejo. Para Patrícia, preso ou não, tanto faz, deve estar contente de se livrar de mim. E, se eu morrer, será minha morte gloriosa, pelo melhor dos objetivos, me entendam ou não. Trago na bagagem um revólver.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.[:en]

  1. Taguatinga, Setor A Norte, QNA 32

31 de março

Clarice havia mandado uma mensagem pelo Facebook.

O que ela quer contigo? Patrícia me perguntou, mais amarga do que nunca, nós dois sentados numa poltrona da sala.

Caía uma chuva torrencial.

Você leu. Sabe tanto quanto eu.

Eu tinha esquecido de sair do Facebook. Patrícia aproveitou pra vasculhar minhas mensagens. Inadmissível!

Não, não li. Só vi que foi ela que lhe escreveu.

Duvido. Deve ter visto que ela não quer nada comigo. Só me deu uma dica.

Dica de quê?

Saco! Patrícia querer me controlar. Podia ter-lhe dito a verdade, se é que ela não sabia. Pouco me custava. A mensagem de Clarice nada tinha de pessoal. Nada que denotasse afeto entre nós. Absolutamente nada! Quase mensagem comercial. Soube por meu amigo Arnaldo de meu interesse em comprar um terreno nas redondezas e me passou a dica. Também me informou seu e-mail e número do celular. Só isso.

Não interessa, respondi.

Interessa, sim. Acha que esqueci o que essa perua representa pra ti?

Agressão gratuita. Como me arrependi de contar tudo. Falar de meu passado. Entrar em minúcias logo sobre Clarice! Sou mesmo um idiota, um imbecil!

Ou fui. Era lá no comecinho, quando achávamos que, como estávamos apaixonados e o mundo não faria sentido se não estivéssemos juntos, tínhamos que abrir nossos corações e contar tudo, absolutamente tudo. Sinceridade total. Respeito à verdade, que não podia ter qualquer remendo. Patrícia nunca esqueceu o menor detalhe sobre Clarice.

Ainda chovia. Os relâmpagos clareavam as janelas. Os trovões ribombavam sem parar, querendo dramatizar nossa discussão.

Não representa bulhufas. O terreno que está à venda, sim. É o que eu quero. Eu, entende? Onde passei minha infância.

Na mensagem Clarice diz que minha casa foi destruída. Mas o terreno à venda ainda preserva a antiga casa-grande da fazenda do pai dela, o Riacho Negro. E como o Riacho Negro me traz recordações! Se não leu, Patrícia adivinhou o que dizia a mensagem, pois perguntou:

E por que ela não compra?

Irritado, respondi, porque quer que eu compre.

Ah, é isso, né? A sem-vergonha quer que tu vá morar perto dela.

Como sabia que Clarice morava perto do terreno? Isso a mensagem não dizia. A verdade é que, se eu comprar o terreno, serei quase vizinho de Clarice.

Não. Eu é que quero morar perto dela. Eu é que quero, entendeu?, respondi, irônico, elevando a voz.

Posso saber por quê? Nem precisa me responder, já entendi tudo, disse, sem considerar minha ironia.

Pensando bem, não há mesmo ironia. Me dá enorme prazer ser vizinho de Clarice.

Porque sim, respondi.

Pois então compre a merda do terreno e se afunde nele, Patrícia berrou. Vá logo, seu bosta. Eu sabia que não podia confiar em você!

Meu casamento com Patrícia sobreviveu a infidelidades, e esse assunto boboca não devia ter provocado tanta zanga.

Pois é o que vou fazer, me flagrei dizendo, só porque uma provocação leva a outra e mais outra.

Descarado! Saia já de casa, gritou ainda mais alto.

Não era pra tanto, mas a arenga continuou por horas, em gritos insensatos, gota d’água para nossa separação sempre adiada. Basta dizer que, sem se importar com a chuva, Patrícia jogou minhas roupas pela janela. Um sapato caiu do outro lado da rua, na calçada em frente, e encheu-se de água.

Não desisti. Debaixo de chuva, juntei todas as coisas, sem medo do ridículo perante os vizinhos, e voltei pra casa. Patrícia tentou me agredir fisicamente. Só me defendi, não queria parar na delegacia. Depois me tranquei num quarto. Decidi que sairia de casa, mas não enxotado. Patrícia não insistiu, apenas deixou de falar comigo, no que lhe correspondi. Se não me expulsava, eu estava no lucro.

1º de abril

Não é mentira, apesar do primeiro de abril: vendo à minha volta, meu casamento com Patrícia não é dos piores. Temos muito em comum. Conversávamos, o que nem todo casal pode dizer. Nos beijávamos, feito notável depois de décadas de casamento. E os ciúmes de Patrícia são prova de que ainda me ama.

Só não tenho os mesmos ciúmes que ela porque há muito deixou de cantar nos bares e hoje não vejo rival à minha altura entre seus colegas dos Correios. Não tinha a menor intenção de me separar dela. Mas a briga cresceu feito suflê fora de meu controle. Não tem mais jeito. Me fez acreditar que é melhor mesmo voltar pro Nordeste.

Vou responder a Clarice. Pedir detalhes sobre o vendedor do terreno. Se conseguir negociar bom preço, pergunto se ela aceita que lhe passe uma procuração pra que cuide da transação no cartório de Várzea Pacífica.

Abril, Páscoa

Clarice me deu o número do vendedor. Depois de negociar com ele os termos da compra, liguei pro celular dela, achei melhor conversar. Aceitou que lhe faça a procuração. Não tocamos no assunto mais pessoal. Perguntei por Miguel, seu irmão. Está bem, fora as dificuldades nos negócios. Passa a maior parte do tempo viajando.

Pensei em tanta coisa antes de ligar… Em perguntar se ela se lembra de tal ou qual momento, como se sente vivendo sozinha numa fazenda, se alguma vez pensou em mim… Meus sentimentos ficaram embotados. Mas foi possível perceber emoção na sua voz. Sobretudo registrei bem o que disse:

Que bom que você está voltando.

Escavando sob meus pés, encontro muitas lembranças dela. Os sonhos têm memória. A Clarice do futuro — acho que existe, apesar de tudo — tem muito da Clarice do passado.

Se não me engano, foi em 58, plena seca, quando pela primeira vez senti por ela algo parecido com o amor. Não quero falar demais, porque não tenho certeza e não me lembro direito. Era muito pequeno. Podia ser naquele ano ou em qualquer outro que o rame-rame era o mesmo, morcegos voando de madrugada, árvores peladas, o verde só nas folhagens dos juazeiros, nos xiquexiques e mandacarus, carcaças de animais pelos caminhos de terra poeirenta exalando bafo quente, o sol queimando e secando o mundo, dentro de mim tudo seco. Em poucas palavras, o de sempre, agora cruzado por algum caminhão-pipa e à espera da transposição do Rio São Francisco.

Ou talvez tenha sido inverno, pois me lembro do açude com água, o verde das árvores espinhentas e baixas, verde-claro e brilhoso, a roça atrás do açude também verde, e eu acordava cedo para ir ao curral ordenhar as vacas. Não sei direito, me desculpe quem vier a ler isto. Ou, ora bolas, não me desculpo, pois não devo me desculpar de minhas contradições se são as meras contradições do sertão, seco ou molhado, contradições que hoje ainda existem. Quando seco, a paisagem cinza, realçada por pedras e caveiras, digo sem nenhum exagero. Quando molhado, molhado demais, assustando a gente e causando desastres.

21 de abril

Feriado, fiquei em casa. Achei que Patrícia ia querer me perturbar. Me ignorou, pelo menos até agora. Fico tranquilo para continuar estas anotações sobre meus tempos do Riacho Negro, de Várzea Pacífica, aquela época em que Clarice foi tão importante pra mim. Um dia, quem sabe, mostro estas páginas a ela.

Pode ser até que não me lembre propriamente. Que a realidade daquele passado esteja só na minha imaginação. Devo estar misturando várias secas e várias enchentes. Então, sim, por essa confusão devo me desculpar com quem vier a ler estas anotações, feitas assim rapidamente sem preocupação com estilo ou vocabulário.

Olho meu passado não com orgulho, mas com resignação. Muitas das turbulências que me atormentavam se apaziguaram. O que me despertava paixão agora está arquivado na memória como fotos num álbum de páginas amareladas pelo tempo. Algumas dessas fotos, cobertas de fungo. Outras, tão coladas entre si que, quando a gente tenta despregá-las, se rasgam deixando brancos.

Clarice é exceção. Minha lembrança dela é nítida como a fotografia bem guardada no fundo de uma de minhas gavetas em que ela olha pra mim com olhar que sinto ser apaixonado e até hoje transmite vibrações por meu corpo.

Recupero pedaços de mim para criar esta história contraditória e verdadeira, que me atormenta. Por isso tenho que pôr pra fora. Como contraditórios e verdadeiros, além do sertão, eram mamãe, que me punia e me protegia, e meu padrinho, pai de Clarice, severo e carinhoso. Eu aceitava as mudanças de humor deles como aceitava mudanças de humor da natureza. Achava normais minhas alegrias e tristezas.

No inverno a chuva cobria o campo verde, o chão ficava marcado com o barro das botas, as conversas e risos se prolongavam no alpendre da casa-grande de meus padrinhos, os aboios se animavam no campo, as muriçocas me picavam na nossa casa de tijolo aparente e vermelho, eu me enrolava na rede e envolvia o rosto com o lençol, deixando só o nariz de fora e ouvindo os pingos bater nas telhas.

Já na seca, o sol impiedoso castigava a fazenda do Riacho Negro e me cegava a vista. A poeira açoitava os campos cinzentos, de árvores despojadas, o açude minguado, as cacimbas sem água, as pessoas zonzas cozinhando irritação no calor, e o curral vazio, o gado tangido para o Piauí.

Nisso pode ser que de novo misture tempos, me desculpem, a seca de um ano com o verão prolongado de outro. Mas não invento nada, no máximo é a memória que me trai aqui e ali, coisa da idade, aos setenta anos a memória falha. O que é certo é que as paisagens da secura traziam sempre as mesmas árvores calcinadas, a mesma ruína cinzenta e a mesma irritação. Acho que são sobretudo elas, as paisagens da secura, que marcam os sertanejos feito eu.

1º de maio

Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos. Prefiro me concentrar nas minhas anotações. Procurei lá no fundo minhas memórias mais antigas.

Deve haver outras lá atrás, mas as que me chegaram logo foram as de um dia em que, deitado numa ponta do parapeito da casa-grande de meu padrinho, pai de Clarice, com 6 anos, eu ouvia o rádio a pilha Hitachi, novidade que acabava de chegar no Riacho Negro, alegrando o alpendre com forrós interrompidos pelos chiados da má transmissão. O rádio movido a bateria carregada por cata-vento, desligado. Noutra ponta do parapeito, a avó de Clarice, Dona Leopolda, gorda, de rosto redondo, bochechudo, metida num vestido florido até o meio da canela, fazia cigarro cortando com faca afiada o fumo de corda enquanto fumava cachimbo, soltando baforadas. Uma rede branca, sem ninguém, balançava no alpendre movida pelo nordeste que chegava forte. Da varanda se via um quarto separado da casa e, pela porta, selas e cabrestos, couros espichados, baús no chão e gibões pendurados nos tornos de rede. Talvez seja minha memória de um dia. Ou talvez, o que é mais provável, de muitos dias que se repetiam iguaizinhos, sem tirar nem pôr.

Arnaldo, um preto mais preto e dois anos mais velho do que eu, que hoje também mora perto da fazendola que quero comprar e com quem já me comuniquei, me chamou para ir ao açude buscar água. Ele morava com o pai, Seu Rodolfo, a mãe, Dona Vitória, e um magote de irmãos, na fazenda vizinha, do irmão de meu padrinho, que eu chamava de titio. Íamos com Quinquim, buchudo de lombrigas, mas magricela com cor de leite azedo, que, abestado, enrolava a língua e só tinha dois amigos: eu e o jumento Cinzento. Cinzento conhecia o caminho do açude, ia na frente. Todos os dias buscava água. Às vezes voltava só, nem precisava da gente, e ficava esperando até que a gente chegasse para esvaziar as caçambas.

Eu considerava Arnaldo meu superior, e com razão. Ele conhecia o nome de todas as rezes — vacas e bezerros —, sabia ajudar Quinquim com as caçambas d’água e enchia os quatro potes de barro que repousavam sobre o estrado de madeira do alpendre da casa-grande — hoje, me diz Arnaldo, substituídos pela cisterna. Embaixo deles depositávamos réstias de alho, cebola, panelas de barro e mochilas de sal. Para ali de manhã cedo trazíamos os potes de leite, que num canto da cozinha seriam mudados em queijo de coalho ou coalhada. Ali colocávamos os cachos de bananas para amadurecer, as bananas baba-de-boi, maçã, prata e casca verde que à medida que amadureciam exalavam seu cheiro. Meu padrinho, pai de Clarice, dizia para colocar as bananas verdes junto das mais maduras para amadurecerem depressa. Eu e Arnaldo às vezes roubávamos bananas-prata quando começavam a ficar amarelas e as comíamos quando descíamos com Cinzento para o açude.

Há coisas, já disse, que não me lembro direito, me desculpem. Não sei se foi neste dia ou noutro, a muda que morava na fazenda do tio de Clarice que eu chamava de titio tomava banho nua no açude. Surda, não ouvia o barulho dos nossos passos, meus e de Arnaldo. Se nos via, fingia que não nos via, e nós fingíamos não dar fé de seu fingimento. Não era a primeira vez. Embora mangássemos dela quando fazia caretas e barulhos incompreensíveis com a língua, era a principal atração da caminhada. Contávamos a Miguel, o irmão de Clarice, exagerando na beleza das coxas, da bunda e dos peitos, e ele ficava cheio de inveja. Só não conseguíamos dizer que era bonita de rosto, ainda que o cabelo louro, liso e comprido enfeitasse suas costas, pois, nisso concordávamos, a feiura de seu rosto assustava.

2 de maio

Um dia peguei uma aposta com Arnaldo na corrida — dia especial por uma razão simples: tem a ver com Clarice, de quem, afinal de contas, queria falar. Arnaldo corria mais rápido que eu. Me senti derrotado. Caí e ralei meus joelhos. Foi o fim do mundo. Ou melhor, seu começo.

O sol nos encandeava com desenhos amarelos. Projetava pra dentro da casa-grande os pilares do alpendre, marcando o chão e os potes de barro com sombras negras e violentas. Daquele dia perdura em mim até hoje um sentimento de drama e esperança.

De drama: de que a noite que caía me despojava de seu manto protetor; de que eu sempre tropeçaria sobre as pedras da ladeira; de que o horizonte nunca deixaria de ser incerto; de que, perdido, não encontraria o caminho.

De esperança: de que alguém me salvaria do desastre. Do alto da ladeira, joelhos ralados nas pedras, vendo o sangue, eu também via a casa-grande e, na frente, Clarice, que veio em meu socorro.

Uma guiné gasguita voava no terreiro com medo dos vaqueiros encourados. Então chegou um magote de ciganos, visitantes que a cada dois ou três meses passavam tangendo tropas de burros, mulas e cavalos carregados de bugigangas. Juntaram-se embaixo do pé de tamarindo do terreiro.

Vende este cavalo? Cadê o ferrão?, perguntava meu padrinho, o pai de Clarice, com voz raivosamente fina e minúcias de atenção, desconfiado dos ciganos, sem dar fé do sangue nos meus joelhos.

Eu não tinha dinheiro e queria comprar um presente para Clarice. Por gestos, um dos ciganos me deu a entender que eu poderia pagar depois. Escolhi um anel certamente de ouro e pedra falsos, que dei de presente a Clarice quando o sol já se escondia envergonhado e as galinhas se aquietavam no poleiro.

De noite — pode ter sido nesse dia e, se não foi, juntei com outro, sua prolongação natural — havia uma fogueira enorme, feita de muitas carradas de lenha, em frente à casa-grande. Devia ser junho, quem sabe dia 24, festa de São João. As labaredas iluminavam rostos risonhos, às vezes de gargalhadas escancaradas, gente dando volta em torno da fogueira, assando milho verde. No alpendre da casa, a brincadeira era outra, séria: joguei gotas da vela derretida num copo d’água, e a cera formou uma letra cê, cê de Clarice. A felicidade.

Naquela época falava-se em roubos de moça para se casar, e me contaram que um roubo tinha acontecido em Várzea Pacífica. O rapaz roubava a moça, e as famílias tinham a obrigação de fazer o casamento. Imaginava-me, então, chegando a cavalo numa das janelas da casa-grande e levando Clarice na garupa. Será que ela toparia?

Hoje falei com Arnaldo. Faz muitos anos que não nos vemos, mas sempre que nos falamos é como se tivéssemos nos encontrado ontem. Vamos nos comunicar por WhatsApp, ele propôs. Um sujeito que ele conhece está vendendo um carro de segunda mão. Vendo o meu aqui em Taguatinga para comprar esse outro quando chegar a Várzea Pacífica, se ainda estiver à venda. Comprar sem ver é que não.

Levo para a fazenda uma técnica de plantio direto do algodão com a introdução de culturas rotativas. Já consultei uma lista de empresas de energia solar fotovoltaica da região de Fortaleza, pois vou, sim, instalar placas de energia solar, pelo menos para as necessidades da casa principal, que não será a casa-grande, mas a minha própria, moderna e confortável. E vou aprimorar o sistema precário de irrigação, que existe há alguns anos. De novidade, há dois poços artesianos na propriedade, e a casa já tem cisterna, Arnaldo me disse.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.

Parto dentro de uma semana, está tudo certo. Fujo da secura que começa. Não tem caído pingo d’água neste planalto.

Clarice me enviou a escritura do terreno que comprei por procuração. Arrumei minhas coisas e despachei há exatamente treze dias uma pequena mudança, que Arnaldo vai receber e acomodar na casa da fazenda. Encarreguei-o também de comprar sementes de algodão para o plantio, quando eu chegar.

2. Voo Brasília-Fortaleza

1º de junho

O avião subiu faz pouco. Voo Brasília-Fortaleza. Agora que Patrícia me deixou, deixo Taguatinga. Digo que foi ela que me deixou, embora seja eu que parti, pois a iniciativa foi dela, não há dúvida.

Teve razão e coragem. Eu não teria nem uma coisa nem outra. Mas fico matutando se o medo às vezes é que tem razão. A despedida foi dura e fria.

Seja feliz, ela disse, como se dissesse que se foda.

Você também, respondi.

A separação foi amigável, e muita coisa ainda tem que ser decidida. Ela ficou com a maior parte dos bens, inclusive a casa, mas não exige dinheiro. Combinamos que vamos formalizar o divórcio, porém não começamos a cuidar dos papéis. Sugeri aguardar um pouco, testar como vamos nos sentir com a separação.

Não tem volta, foi categórica.

Olhando as chapadas pela janela do avião — será a Mantiqueira? —, deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza. Que talvez queira encontrar futuro no passado, tenho de admitir. A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu.

Às vezes fica difícil traçar a fronteira entre lembrança e imaginação. Às vezes a realidade se impõe às duas. Às vezes a fazenda que pertencia a meu padrinho me traz más lembranças. A fazenda ficava a três léguas de Várzea Pacífica, que, quando eu era criança, nem várzea nem pacífica era. Ali a vegetação secava no verão — isso imagino que ainda acontece — e, por qualquer coisa, armava-se o maior cu de boi. Assassinatos a todo tempo. Terríveis assassinatos! A mais terrível de todas as lembranças me chega por tabela, lembrança de lembranças. Papai assassinado a peixeiradas. Ainda vejo o sangue saindo de sua barriga, esguichado, desparramando-se pelo chão.

Lembranças mesmo, quando tenho, são vagas, de gritos, portas batendo, eu correndo por um descampado sem fim. Eu seguia caminhos sinuosos e esburacados ouvindo choros fortes de mulher, acho que de mamãe, de vovó. Finalmente chegamos ao lugar de chão ondulado e marcado por cruzes, onde, ao lado de um buraco sem fim, foi depositado o caixão que não sei se vi ou imaginei, em madeira lisa e pintada de preto. O montículo de terra ali ao lado me parecia uma montanha também infindável, montanha que eu não conseguia escalar. Lágrimas ainda caem de meus olhos pelo que não vi, me desculpo uma vez mais com quem tem paciência de continuar me lendo.

Como posso me lembrar direito? Tinha só dois anos. Sei da violência do assassinato de papai pelos relatos que ouvi anos depois. Mais de vinte peixeiradas, sangue escorrendo pela calçada. Sangue, muito sangue, um vermelho que mancha todas as minhas lembranças.

Sempre pensava naquele crime quando assistia à morte das novilhas no curral, vendo as machadadas, a carne esfolada e o sangue escrevendo garranchos no tapete de estrume, preto e fofo.

O assassino, preso, nunca admitiu o crime. Sujeitinho nojento, filho da puta. Não há dúvida: teve uma rixa com papai por uma migalhice — papai se recusou a pagar por um gibão de couro malfeito — e era assassino confesso de outras quatro vítimas. Cabra ranzinza, irritadiço, que batia na mulher aos murros. A filha, de tanto levar chibatada, enlouqueceu, foi o que me contou há muitos anos Arnaldo, aquele meu amigo de infância com quem troco mensagens por WhatsApp.

Li uma vez que é somente nos vivos que os mortos existem, assim como será apenas nos vivos que estas anotações podem sobreviver depois de minha morte. Papai é um morto que vive em mim. Por que ainda quero vingar sua morte depois de tanto tempo? A verdade é que quero. Aparece cada vez mais como necessidade, necessidade de um velho, necessidade cada vez mais urgente, como se me faltasse o que preciso fazer para me sentir completo.

Só de pensar que posso me encontrar com o assassino, o sangue sobe à cabeça. À medida que os dias passam, vejo que me sobra pouco tempo para cumprir minha missão. Claro que não foi só por causa de Clarice que comprei o terreno. Volto pra perto do desgraçado, o filho da puta. Saiu da prisão há vários anos. Nunca o procurei, mas hoje sei que, se o encontrar, eu o mato. Tenho de matá-lo. Não me importa nada passar o resto da vida na cadeia. Quem lamentaria? Meus três filhos, sei que não. Talvez minha irmã Zuleide… Falo tão pouco com ela! Na verdade, faz dois anos que não a vejo. Para Patrícia, preso ou não, tanto faz, deve estar contente de se livrar de mim. E, se eu morrer, será minha morte gloriosa, pelo melhor dos objetivos, me entendam ou não. Trago na bagagem um revólver.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.[:es]

DONDE UN OSCURO RÍO PIERDE EL NOMBRE

João Almino

Traducción y notas de Pablo Rocca

[Fragmento]

1. Taguatinga, Sector A Norte, QNA 32

31 de marzo

Clarice había mandado un mensaje por Facebook.
–¿Qué quiere contigo? –me preguntó Patrícia, más amarga que nunca, los dos sentados en los sofás de la sala.
Caía una lluvia torrencial.
–Lo leíste. Sabes lo mismo que yo.
Me había olvidado de salir de Facebook. Patrícia aprovechó para hurgar mis mensajes. ¡Inadmisible!
–No, no lo leí. Sólo vi que ella te escribió.
–Dudo. Debiste ver que ella no quiere nada conmigo. Sólo me pasó un dato.
–¿Qué dato?
¡Carajo! Patrícia quiere controlarme. Podría haberle dicho la verdad, si es que ya no la sabía. Me hubiera costado poco. El mensaje de Clarice nada tenía de personal. Nada que denotara afecto entre nosotros. Supo por mi amigo Arnaldo de mi interés por comprar un terreno en los alrededores, y me pasó un dato. También me dio su e-mail y el número de celular. Sólo eso.
–No interesa –respondí.
–Sí interesa. ¿Te parece que me olvidé de lo que esa zorra representa para ti?
Agresión gratuita. Cómo me arrepiento de haber contado todo. Hablar de mi pasado. ¡Haber entrado en minucias y cuanto más sobre Clarice! Soy un verdadero idiota, ¡un imbécil!
O fui. Era en los comienzos, cuando nos parecía que, como estábamos arrebatados por la pasión, el mundo no tendría sentido si no estuviéramos juntos, teníamos que abrir nuestros corazones y contarnos todo, absolutamente todo. Sinceridad total. Respeto a la verdad, que no podría tener remiendo alguno. Patrícia nunca olvidó ni el menor detalle sobre Clarice.
Aún llovía. Los relámpagos iluminaban las ventanas. Los truenos retumbaban sin pausa, como si quisieran dramatizar nuestra discusión.
–No representa nada de nada. El terreno que está a la venta, sí. Eso es lo que yo quiero. Yo, ¿entiendes? Donde pasé mi infancia.
En el mensaje, Clarice habla de la destrucción de mi casa. Pero el terreno a la venta aún preserva la antigua casa de la estancia de su padre: Riacho Negro. ¡Qué recuerdos me trae Riacho Negro! Si no lo hubiera leído, Patrícia adivinó qué decía el mensaje, ya que preguntó:
–¿Y por qué ella no lo compra?
Irritado, respondí, porque quiere que yo lo compre.
–Ah, es eso, ¿no? La sinvergüenza quiere que te vayas a vivir cerca de ella.
¿Cómo sabía que Clarice vivía cerca del terreno? El mensaje no decía nada de eso. La verdad es que, si yo comprara el terreno, sería casi vecino de Clarice.
–No. Yo quiero vivir cerca de ella. Yo soy el que quiere, ¿entendiste? –respondí, irónico, levantando la voz.
–¿Puedo saber por qué? No. No hace falta que respondas, ya entendí todo –dijo, sin considerar mi ironía.
Bien pensando, no hay nada de ironía. Me da un enorme placer ser vecino de Clarice.
–Porque sí –respondí.
–Entonces compra esa mierda de terreno y métete adentro –gritó Patrícia–. Y fuera ahora mismo, basura. ¡Yo sabía que no eras confiable!
Mi casamiento con Patrícia sobrevivió a infidelidades, y ese asunto trivial no debía haber provocado tanto escándalo.
–Eso mismo es lo que voy a hacer –me encontré diciendo. Sólo porque una provocación lleva a la otra y esta a otra.
–¡Caradura! Salí ya mismo de esta casa –gritó más fuerte.
No era para tanto, pero la arenga continuó durante horas, con gritos insensatos, gota de agua para nuestra separación siempre postergada. Basta decir que, sin que le importara la lluvia, Patrícia tiró mi ropa por la ventana. Un zapato cayó del otro lado de la calle, en la vereda de enfrente, y se llenó de agua.
No desistí. Bajo la lluvia, junté todas las cosas, sin miedo al ridículo ante los vecinos, y volví a casa. Patrícia trató de agredirme físicamente. Sólo me defendí; no quería terminar en la comisaría. Después me encerré en una habitación. Decidí que saldría de casa, pero no expulsado. Patrícia no insistió, sino que dejó de hablar conmigo, lo que correspondí. Si no me expulsaba saldría ganando.

1º de abril

No es mentira, a pesar de ser primero de abril. Vuelvo al asunto: mi casamiento con Patrícia no es de los peores. Tenemos mucho en común. Conversábamos, lo que no toda pareja puede decir. Nos besábamos, hecho notable después de décadas de casamiento. Y los celos de Patrícia son prueba de que aún me ama.
Sólo que yo no tengo los mismos celos porque hace mucho dejó de cantar en los bares y hoy no veo rival a mi altura entre sus colegas del Correo. No tenía la menor intención de separarme de ella. Pero la pelea creció como un souflé fuera de mi control. No tenía caso. Me hizo pensar que lo mejor era volver al Nordeste.
Le responderé a Clarice. Voy a pedir detalles sobre el vendedor del terreno. Si consigo negociar un buen precio le preguntaré si acepta que le otorgue un poder para que se encargue de la transacción en la escribanía de Várzea Pacífica.

Abril, Pascua

Clarice me dio el número del vendedor. Después de negociar con él los términos de la compra la llamé a su celular, me pareció que era mejor conversar. Aceptó que le hiciera un poder. No tocamos el asunto más personal. Pregunté por Miguel, su hermano. Está bien, fuera de las dificultades de los negocios. Pasa la mayor parte del tiempo viajando.
Pensé en tanta cosa antes de llamar… En preguntar si acuerda de tal o cual momento, cómo se siente viviendo sola en una estancia, si alguna vez pensó en mí…. Mis sentimientos quedaron embotados. Pero fue posible percibir emoción en su voz. Sobre todo registré bien lo que dijo:
–Qué bueno que estás volviendo.
Excavando bajo mis pies encuentro muchas imágenes de ella. Los sueños tienen memoria. La Clarice del futuro –creo que existe, a pesar de todo– tiene mucho de la Clarice del pasado.
Si no me equivoco, fue en el 58, en plena sequía, cuando por primera vez sentí por ella algo parecido al amor. No quiero hablar de más, porque no estoy seguro y no me acuerdo con precisión. Era muy pequeño. Podía ser ese año o cualquier otro, ya que la rutina era la misma, murciélagos volando de madrugada, árboles deshojados, el verde sólo en los follajes de los juazeiros, los xiquexiques y los mandacarus, esqueletos de animales por los caminos de tierra polvorienta desde los que subía el calor, el sol quemando y secando el mundo, dentro de mí todo seco. En pocas palabras, lo de siempre, ahora cruzado por algún camión-pipa a la espera de la canalización del río São Francisco.
O tal vez haya sido en invierno, pues me acuerdo del tajamar con agua, el verde de los árboles espinosos y bajos, un verde-claro y brilloso, el campo detrás del tajamar también verde, y yo me levantaba temprano para ir al corral a ordeñar las vacas. No sé bien, discúlpeme quien lea esto. O, por qué tengo que disculparme, pues no debo disculparme de mis contradicciones si son las meras contradicciones del sertón, seco o mojado, contradicciones que aún hoy existen. Cuando seco, el paisaje gris, realzado por piedas y cuevas, lo digo sin ninguna exageración. Cuando mojado, demasiado mojado, asustándonos y causando desastres.

21 de abril

Feriado, me quedé en casa. Creía que Patrícia iba a hacerme la vida imposible. Me ignoró, por lo menos hasta ahora. Me quedo tranquilo para continuar estas anotaciones sobre mis tiempos de Riacho Negro, de Várzea Pacífica, la época en que Clarice fue tan importante para mí. Un día, quién sabe, le mostraré estas páginas.
Puede ser que no me acuerde con exactitud. Que la realidad de ese pasado esté sólo en mi imaginación. Debo estar mezclando varias sequías y varias crecientes. Entonces, sí, por esa confusión debo disculparme con quien leyera estas anotaciones, hechas así rápidamente sin preocupación por un estilo o por el vocabulario.
Miro mi pasado no con orgullo, sino con resignación. Muchas de las turbulencias que me atormentaban se apaciguaron. Lo que me despertaba pasión ahora está archivado en la memoria como fotos en un álbum de páginas amarillentas por el tiempo. Algunas de esas fotos, cubiertas de hongos. Otras, tan pegadas entre sí que, cuando uno trata de separarlas, se rompen dejando blancos.
Clarice es la excepción. Mi recuerdo de ella es nítido como la fotografía bien guardada en el fondo de uno de mis cajones, en que ella me mira con esa mirada que siento intensa y hasta hoy transmite vibraciones a mi cuerpo.
Recupero pedazos de mí para crear esta historia contradictoria y verdadera, que me atormenta. Por eso tengo que sacarla para afuera. Como contradictorios y verdaderos, además del sertón, eran mamá, que me pegaba y me protegía, y mi padrino, el padre de Clarice, severo y cariñoso. Yo aceptaba sus cambios de humor como aceptaba los cambios de humor de la naturaleza. Me parecía que mis alegrías y tristezas eran normales.
En el invierno la lluvia cubría el campo verde, el suelo quedaba marcado con el barro de las botas, las charlas y risas se prolongaban en la galería de la casa-grande de mis padrinos, los bueyes se animaban en el campo, los mosquitos me picaban en nuestra casa de rojo ladrillo sin revocar, yo me enrollaba en la hamaca y envolvía mi rostro con la sábana, dejando sólo la nariz afuera, oyendo las gotas tamborileando en las tejas.
Ya en la seca, el sol impiadoso castigaba la hacienda de Riacho Negro y me cegaba. El polvo azotaba los campos grises, despojados de árboles, el tajamar reducido, la cachimbas sin agua, la gente atontada cocinando su irritación al calor, el corral vacío, el ganado empujado hacia Piauí.
Puede que en esto de nuevo mezcle los tiempos, discúlpenme, la sequía de un año con el verano prolongado de otro. Pero no invento nada, a lo sumo es la memoria que me trae aquí y allá, cosa de la edad, a los setenta años la memoria falla. Pero es cierto que los paisajes de la seca traían siempre los mismos árboles calcinados, la misma ruina gris y la misma irritación. Creo que son sobre todo ellos, los paisajes de la seca, que marcan a los sertanejos como yo.

1º de mayo

Ando de feriado en feriado, no sé porqué. Hoy imagino que hará discursos y protestas. Prefiero concentrarme en mis anotaciones. Procuré en lo más hondo de mis memorias más antiguas.
Debe haber otras más atrás, pero las que pronto me llegaron fueron las de un día en que, tirado en un extremo del porche de la casa-grande de mi padrino, padre de Clarice, a los seis años yo oía la radio a pila Hitachi, novedad que acababa de llegar a Riacho Negro, alegrando la galería con forrós en los que interferían los chirridos de la mala trasmisión. La radio que andaba a batería cargada por el molino de viento, desconectada. En la otra punta del porche, la abuela de Clarice, Doña Leopolda, gorda, de cara redonda, mofletuda, metida en un vestido floreado hasta el medio de la canilla, armaba un cigarro cortando el naco con un cuchillo afilado mientras fumaba en pipa, soltando el humo. Una hamaca blanca, sin nadie, se balanceba en la galería movida por el viento del nordeste que llegaba fuerte. Desde la barandilla se veía un cuarto separado de la casa y, por la puerta, sillas y cabrestos, cueros curtidos, baúles en el piso y jergones colgados en los tornos de las hamacas. Tal vez sea mi memoria de un día. O tal vez, lo que es más probable, de muchos días que se repetían igualitos, sin sacar ni poner nada.
Arnaldo, un negro más negro y dos años mayor que yo, que hoy también vive cerca de la pequeña hacienda que quiero comprar, y con quien ya me comuniqué, me llamó para ir hasta el tajamar a buscar agua. Vivía con su padre, Don Rodolfo, la madre, Doña Vitória, y un manojo de hermanos en la estancia vecina, la del hermano de mi padrino, al que yo llamaba tiíto. Íbamos con Quinquim, lleno de lombrices, flaco y con el color de la leche cortada que, embrutecido, sólo enrollaba la lengua y tenía dos amigos: yo y el jumento Cinzento. Cinzento conocía el camino del tajamar, iba adelante. Todos los días iba por agua. A veces volvía solo, no precisaba de nosotros, y se quedaba esperando hasta que uno llegara para vaciar los cubos.
Yo consideraba a Arnaldo mi superior, y con razón. Él conocía el nombre de todas las reses –vacas y becerros–, sabía ayudar a Quinquim con los cubos de agua y llenaba las cuatro vasijas de barro que reposaban sobre la tarima de madera de la galería de la casa-grande –hoy, me dice Arnaldo, sustituidas por la cisterna. Debajo de ellos depositábamos ristras de ajo y bolsas de sal. Hacia ese lugar, de mañana temprano traíamos los tarros de leche, que en un rincón de la cocina se volverían requesón o yogur. Allí colocábamos los cachos de bananas para que maduraran, las bananas tipo baba-de-boi, manzana, plata y cáscara verde, las que a medida que maduraban desprendían su aroma. Mi padrino, padre de Clarice, nos hacía colocar las bananas verdes junto a las más maduras para que estas maduraran pronto. Yo y Arnaldo a veces robábamos bananas plata cuando comenzaban a quedar amarillas y las comíamos cuando bajábamos con Cinzento al tajamar.
Hay cosas, ya lo dije, que no me acuerdo bien, discúlpenme. No sé si fue ese día u otro: la muda que vivía en la estancia del tío de Clarice, al que yo llamaba tíito, se bañaba desnuda en el tajamar. Sorda, no oía el ruido de nuestros pasos, los míos y los de Arnaldo. Si nos veía, entonces fingía que no nos veía, y nosotros fingíamos no creer en su fingimiento. No era la primera vez. Aunque nos burláramos de ella cuando hacía morisquetas y ruidos incomprensibles con la lengua, era la principial atracción del paseo. Contábamos a Miguel, el hermano de Clarice, exagerando la belleza de los muslos, las caderas y los pechos, y él quedaba lleno de envidia. Sólo no conseguíamos decir que su rostro era bonito, aunque su cabello rubio, liso y largo adornara su espalda, pues, en esto estábamos de acuerdo, la fealdad de su rostro asustaba.

2 de mayo

Un día le aposté a Arnaldo para hacer una carrera –un día especial por una razón simple: tiene que ver con Clarice, de quien, al fin de cuentas, quería hablar. Arnaldo corría más rápido que yo. Me sentí derrotado. Caí y me lastimé las rodillas. Fue el fin del mundo. O mejor, su comienzo.
El sol nos encandilaba con dibujos amarillos. Proyectaba hacia adentro de la casa-grande las columnas de la galería, marcando sobre el piso y las macetas de barro sombras negras y violentas. De ese día perdura en mí hasta hoy un sentimiento de drama y esperanza.
De drama: que la noche que caía me despojaba de su manto protector; que yo siempre tropezaría sobre las piedras de la ladera; que el horizonte nunca dejaría de ser incierto; que, perdido, no encontraría el camino.
De esperanza: que alguien me salvaría del desastre. De lo alto de la ladera, las rodillas raspadas en las piedras, viendo la sangre, yo también veía la casa-grande y, al frente, Clarice, quien vino en mi auxilio.
Una gallina de Guinea gritona volaba en el terreno temerosa de los vaqueros cubiertos de cuero. Entonces llegó un grupo de gitanos, visitantes que cada dos o tres meses pasaban arreando tropas de burros, mulas y caballos cargados de chucherías. Se juntaban en el fondo, al pie del tamarindo.
¿Se vende este caballo? ¿Dónde está la marca? –preguntaba mi padrino, el padre de Clarice, con voz rabiosamente fina y alerta, desconfiado de los gitanos, sin reparar en la sangre de mis rodillas.
Yo no tenía dinero y quería comprar un regalo para Clarice. Por gestos, uno de los gitanos me dio a entender que podría pagarle después. Escogí un anillo ciertamente de oro y piedra falsos, que regalé a Clarice cuando el sol ya se escondía avergonzado y las gallinas se aquietaban en el gallinero.
De noche –puede haber sido ese día y, si no fue, lo junté con otro, su prolongación natural– había una hoguera enorme, hecha de muchas carradas de leña, en frente a la casa-grande. Debía ser junio, quién sabe si el día 24, fiesta de San Juan. Las llamas iluminaban rostros risueños, a veces de carcajadas estruendosas, gente dando vueltas alrededor de la hoguera, asando choclos. En la galería el juego era otro: serio, yo tiraba gotas de vela derretida en un vaso de agua y la cera formó la letra c, c de Clarice. La felicidad.
En esa época se hablaba de robos de muchachas para casarse, y me habían contado que un robo había ocurrido en Várzea Pacífica. El muchacho robaba a la joven, y las familias tenían la obligación de hacer el casamiento. Me imaginaba, entonces, acercándome a caballo a una de las ventanas de la casa-grande y llevándome a Clarice en la grupa. ¿Ella se animaría?

Hoy hablé con Arnaldo. Hace muchos años que no nos vemos, pero siempre que nos hablamos es como si nos hubiéramos encontrado ayer. Vamos a comunicarnos por WhatsApp, propuso él. Un tipo que conoce está vendiendo un auto de segunda mano. Vendo el mío aquí en Taguatinga para comprar ese otro cuando llegue a Várzea Pacífica, si aun estuviera a la venta. Comprar sin ver, eso sí que no.
Llevo a la estancia una técnica de plantación directa del algodón introduciendo culturas rotativas. Ya consulté una lista de empresas de energía solar fotovoltaica de la región de Fortaleza, pues voy, sí, a instalar placas de energía solar, por lo menos para las necesidades de la casa principal, que no será la casa-grande, sino la mía propia, moderna y confortable. Y voy a perfeccionar el sistema precario de irrigación, que existe desde hace algunos años. Como novedad hay dos pozos artesianos en la propiedad, y la casa ya tiene cisterna, me dijo Arnaldo.

7 de mayo

Cuando pienso en el viaje que en breve haré a Riacho Negro el pasado asume tonalidades grisáceas, vago y fuera de foco. Aquí y allí surgen luces que iluminan, relámpagos en lo oscuro y sin continuidad, la cara encarnada de mi abuela, los coloridos vestidos de algodón de mi madre, el saco de lino blanco y las botas lustrosas de mi padrino, padre de Clarice, los cencerros balanceando en los pescuezos de las vacas lecheras cuando salían de mañana temprano para pastar y volvían de tarde al corral, el trompo que yo tiraba en la plataforma alta de cemento de la casa-grande, los papagayos prontos para volar cuando el nordeste llegaba caliente soplando sobre las ramas secas, mi carnero blanco en el que montaba antes de llevarlo al corral al concluir la tarde, la jerga, pantalón, pechera y sombrero de cuero de Don Rodolfo, padre de mi amigo Arnaldo y marido de la bella Vitória.
Vitória… ¿Debo hablar también de ella? Me acuerdo que, en su pobre ventana, exhibía una sonrisa, misteriosa para mí, en dientes perfectamente alineados, vestido leve y escotado mostrando el pliegue de los pechos. No, no voy a hablar de ella. Es sólo una imagen pasajera, una sonrisa en la ventana, un deseo de niño.
Hurgando en las cenizas del pasado veo manos callosas en el mango de las azadas y otras, delicadas, las de Clarice, acariciando las vejigas de mi varicela que quería pinchar. Veo los campos de algodón, tan blancos, muy blancos, subiendo y bajando los cerros hasta que la vista se perdía, y Arnaldo llamándome para cazar las avoantes que llamábamos avoetes; para acompañarlo en algún trabajo, siempre a lomo de burro. Y después oigo sus carcajadas cómplices por el camino, voces ásperas dándome órdenes, otras que me alentaban.
De repente surge mi hermana Zuleide, quien vive hoy en Recife, dos años mayor que yo, retándome a causa de una broma que yo no entendía y continúo sin entender. Pedazos del pasado que llegan asustándome o invitándome a un reencuentro. Eso veo; eso oigo. El resto lo imagino, ¿debo describirlo?
Cierro los ojos. Muy en lo hondo aparece el paisaje del tajamar, de un brillo punteado por garzas y patos. ¿Aún estarán allí? A veces bajaba con Arnaldo, azuzando al jumento Cinzento aguas abajo para recoger hierbas, sandías o zapallos. Las sandías se desparramaban como un yuyo dañino, una alfombra verde en medio de las plantaciones de maíz. Llenábamos los canastos, y Cinzento penaba subiendo la ladera empedrada para que depositáramos la carga en los barriles de los almacenes junto a la casa-grande.

21 de mayo

Papá no aparece por esos intersticios de luz que veo en las oscuras cortinas del pasado. Miento. Él aparece, y mucho, cuando veo, asombrado, lo que no vi: el cuchillo penetrando en su barriga, la sangre desparramándose como un río por el suelo, el cadáver recostado a la puerta de una casita de Várzea Pacífica, el pueblo cerca de la estancia de Riacho Negro, donde vivíamos…
Y entonces, tal vez algo que vi con apenas dos años, no estoy seguro –las imágenes están fuera de foco–: una tumba profunda, un montículo de tierra con flores y una cruz… Él es una historia terrible que me angustia siempre. O entonces es una fotografía junto a mamá, una fotografía coloreada, en la cual el rostro negro de mamá está rosado y sus labios traen un lápiz de labios de un rojo que nunca vi. Una fotografía encuadrada y colgada en la pared del estar de nuestra casa pobre, de ladrillo rojo.
El asesinato de papá cocina algo dentro de mí, algo que va a explotar, estoy seguro. ¿Venganza?
Cuándo llegue a Riacho Negro y sobre todo cuándo visite Várzea Pacífica voy a encontrarme con ese hecho del pasado que no para da atormentarme. Enfrentar necesariamente al asesino.
Parto dentro de una semana, todo está pronto. Huyo de la seca que comienza. No ha caído gota de agua en esta meseta.
Clarice me envió la escritura del terreno que compré por poder. Preparé mis cosas y despaché hace exactamente tres días una pequeña mudanza, que Arnaldo va a recibir y acomodar en la casa de la hacienda. Le encargué, también, que comprara semillas de algodón para plantar cuando yo llegue.

[…]

2. Vuelo Brasília-Fortaleza

1º de junio

A partir de Fortaleza iré en ómnibus, vía Mossoró y Várzea Pacífica, hasta la pequeña hacienda que compré, a la cual ya di el nombre de Riacho Negro, nombre que había desaparecido de esas tierras, a pesar de designar la corriente que, siempre seca, pasa por allí y la enorme estancia de mi padrino, expropiada hace treinta años, que en los viejos tiempos incluía la pequeña parcela que compré. Podría haber continuado abogando por causas difíciles pero, haciendo las cuentas, consigo vivir con la jubilación. Sólo me quedé sin ahorros, empleados en el terreno. Riacho Negro. Para la plantación recurro a un préstamo.
Voy a vivir allá solo. Mis tres hijos viven lejos, no voy a hablar de ellos, tres hombres. ¿Qué historia es esa que de tal palo tal astilla? Uno parlotea creyendo que hace cine. Debo reconocer que fue siempre el más creativo, también el más disperso: no lograba concentrarse en nada, yo me preocupaba por él, creía que no sería nada en la vida. Ese es Paulo. Otro, Pedro, muy exitoso, es ingeniero, el primogénito que nos daba –a mí y a Patrícia y a mamá– mucho trabajo especialmente el primer año, un llorón, que nos despertaba de noche y estaba siempre exigiendo leche, del pecho o la mamadera. Creció muy competitivo, en la calle y en la escuela. Los dos viven en São Paulo. Nos parecía, a Patrícia y a mí, que íbamos a quedarnos ahí. Pero ella se descuidó al tomar la píldora y tal vez haya sido a propósito por leer en algún lugar que hacía mal, que podía provocar cáncer. Y entonces nació Teodoro, que siempre fue rebelde, conflictivo. Hoy es subgerente en un hotel de Fortaleza.
Son diferentes entre sí, pero se juntan para contradecirme. Tenemos opiniones contrarias básicamente porque soy viejo y ellos jóvenes. O tal vez porque tuve que subir a partir del más bajo escalón, y ellos partieron del nivel confortable que batallé para que tuvieran y por lo tanto nunca conocieron las dificultades de todo comienzo. No entienden cuán difícil fue criarlos y hacerlos llegar adonde llegaron. Apenas si quieren verme y nunca me ayudarían. Siempre que se produce un encuentro discordamos sobre lo que sea.
Pero avisé a Teodoro del viaje, y él insistió para que yo me quedara en el hotel donde trabaja. Siempre fue especial, sensible y con los nervios a flor de piel. Creció fuerte y musculoso, creo que para compensar el estigma contra los gays, especialmente en el Nordeste. Nunca hablamos del asunto. Un buen día nos presentó, a mí y a Patrícia, a un amigo con quien pretendía vivir. Sólo porque no fui entusiasta, concluyó que el muchacho no me había caído bien.
Acertó. No me gustó por razones difíciles de explicar, una risa de la que desconfiaba, una forma de pestañear, aparte de no dirigirme la palabra.
–Dices que defiendes a las minorías contra la discriminación, ¡pero en casa! –me espetó Teodoro.
Por más que yo le explicara que nada tenía contra su elección, no pude convencerlo. La idea de que yo era contrario a la unión de los dos se fortalecía con cada argumento que yo decía para satisfacerlo, hasta que se separaron y la relación fue sustituida por otra, y luego por otra.
Teodoro tuvo razón en mudarse a São Paulo, ciudad grande, donde caben todas las posibilidades y el preconcepto se disuelve. Pero ahora, a causa del trabajo, fue a vivir en Fortaleza. Reconozco que su vida no es fácil. Enfrenta un preconcepto que es diabólico. El riesgo de violencia es real, basta leer las estadísticas.

Aparte de la jubilación voy a vivir de plantar maíz, poroto y hasta algodón –idea absurda, lo sé, no necesitan decírmelo. Pero hay una razón afectiva: me recuerda mi infancia. De eso aún voy a hablar, sin contar todo. En verdad, en lugar de la frase anterior había escrito aquí algunas líneas que decidí borrar. Si encontrara la forma de decirlo podría recuperarlas en una posible revisión.
Ahora sólo anotaciones prácticas: el área que se plantará, relativamente pequeña, no justifica que haga una gran inversión para el algodonero. No voy a comprar un tractor, por lo menos al principio. No tengo dinero para eso. Tampoco quiero volver a los tiempos de la tracción animal, mucho menos a los de la azada. Estudié el asunto. Vi que la sembradora manual puede hacer el trabajo, uniformar el arreglo de la plantación y reducir en mucho su costo.

Mirando los bañados por la ventana del avión –¿será Mantiqueira?–, dejo aparecer otro ser que vivía dentro de mí, el otro yo contra quien siempre luché. Un ser triste, de una tristeza tierna y contenta, que se distiende en su propia naturaleza. Que tal vez quiera encontrar futuro en el pasado, debo admitirlo. Uno no tiene control sobre lo que se recuerda. Lo que se recuerda puede que uno se rehúse a quitarlo, hasta lo despierta de madrugada. Puede estar más cerca o más lejos de lo que ocurrió.
A veces es difícil trazar la frontera entre recuerdo e imaginación. A veces la realidad se impone a las dos. A veces la estancia que pertenecía a mi padrino me trae malos recuerdos. La estancia quedaba a tres leguas de Várzea Pacífica que, cuando yo era niño, no era tierra fértil ni pacífica. Allí la vegetación se secaba en el verano –imagino que eso aún sucede– y, por cualquier cosa, se armaba el mayor zafarrancho. Asesinatos todo el tiempo. ¡Terribles asesinatos! El más terrible de todos los recuerdos me llega indirectamente, recuerdo de recuerdos. Papá asesinado a cuchilladas. Aún veo la sangre saliendo de su barriga a borbotones, desparramándose por el suelo.
Recuerdos sí, cuando los tengo, son vagos, de gritos, puertas golpeándose, yo corriendo por un descampado sin fin. Yo seguía caminos sinuosos y llenos de pozos oyendo el llanto fuerte de una mujer, creo que mamá, de abuela. Finalmente llegamos al lugar del suelo ondulado y marcado por cruces donde, al lado de un agujero insondable, se depositó el cajón que no sé si vi o imaginé, en madera lisa y pintada de negro. El montículo de tierra al costado me parecía una montaña también sin fin, montaña que no podía escalar. Lágrimas caen aún de mis ojos por lo que no vi, me disculpo una vez más con quien tiene paciencia de continuar leyéndome.
¿Cómo podría recordar? Sólo tenía dos años. Sé de la violencia del asesinato de papá por los relatos que oí años después. Más de veinte puñaladas, sangre corriendo por la acera. Sangre, mucha sangre, un rojo que mancha todos mis recuerdos.
Siempre pensaba en ese crimen cuando asistía a la muerte del ganado en el corral, viendo los machetazos, la carne despellejada y la sangre escribiendo garabatos en la alfombra de estiércol, negro y fofo.
El asesino, preso, nunca admitió el crimen. Tipo repulsivo, hijo de puta. No hay duda: tuvo una riña con papá por una tontería –papá se negó a pagarle un chaleco de cuero malhecho– y era asesino confeso de otras cuatro víctimas. Sujeto hosco, irritable, que la emprendía a trompadas contra la mujer. La hija enloqueció de tantos azotes, eso me contó hace muchos años Arnaldo, mi amigo de la infancia con quien cambio mensajes por WhatsApp.
Leí una vez que sólo en los vivos los muertos existen, así como será apenas en los vivos que estas anotaciones pueden sobrevivir después de mi muerte. Papá es un muerto que vive en mí. ¿Por qué aún quiero vengar su muerte después de tanto tiempo? La verdad es que quiero. Aparece cada vez más como necesidad, necesidad de un viejo, necesidad cada vez más urgente, como si me faltara lo que necesito hacer para sentirme completo.
Sólo de pensar que puedo encontrarme con el asesino, la sangre se me sube a la cabeza. A medida que los días pasan veo que me queda poco tiempo para cumplir mi misión. Claro que no fue sólo por causa de Clarice que compré el terreno. Vuelvo cerca del desgraciado, el hijo de puta. Salió de la prisión hace varios años. Nunca lo busqué, pero hoy sé que, si lo encontrara, lo mato. Tengo que matarlo. No me importa nada pasar el resto de mi vida en la cárcel. ¿Quién lo lamentaría? Mis tres hijos sé que no. Tal vez mi hermana Zuleide… ¡Hablo tan poco con ella! En verdad, hace dos años que ni la veo. Para Patrícia, preso o no, tanto le dará, debe estar contenta de haberse librado de mí. Y, si yo muriera, será mi muerte gloriosa, por el mejor de los objetivos, me entiendan o no. Traigo un revólver en mi equipaje.

Del original en portugués:

  1. Taguatinga, Setor A Norte, QNA 32

31 de março

Clarice havia mandado uma mensagem pelo Facebook.

O que ela quer contigo? Patrícia me perguntou, mais amarga do que nunca, nós dois sentados numa poltrona da sala.

Caía uma chuva torrencial.

Você leu. Sabe tanto quanto eu.

Eu tinha esquecido de sair do Facebook. Patrícia aproveitou pra vasculhar minhas mensagens. Inadmissível!

Não, não li. Só vi que foi ela que lhe escreveu.

Duvido. Deve ter visto que ela não quer nada comigo. Só me deu uma dica.

Dica de quê?

Saco! Patrícia querer me controlar. Podia ter-lhe dito a verdade, se é que ela não sabia. Pouco me custava. A mensagem de Clarice nada tinha de pessoal. Nada que denotasse afeto entre nós. Absolutamente nada! Quase mensagem comercial. Soube por meu amigo Arnaldo de meu interesse em comprar um terreno nas redondezas e me passou a dica. Também me informou seu e-mail e número do celular. Só isso.

Não interessa, respondi.

Interessa, sim. Acha que esqueci o que essa perua representa pra ti?

Agressão gratuita. Como me arrependi de contar tudo. Falar de meu passado. Entrar em minúcias logo sobre Clarice! Sou mesmo um idiota, um imbecil!

Ou fui. Era lá no comecinho, quando achávamos que, como estávamos apaixonados e o mundo não faria sentido se não estivéssemos juntos, tínhamos que abrir nossos corações e contar tudo, absolutamente tudo. Sinceridade total. Respeito à verdade, que não podia ter qualquer remendo. Patrícia nunca esqueceu o menor detalhe sobre Clarice.

Ainda chovia. Os relâmpagos clareavam as janelas. Os trovões ribombavam sem parar, querendo dramatizar nossa discussão.

Não representa bulhufas. O terreno que está à venda, sim. É o que eu quero. Eu, entende? Onde passei minha infância.

Na mensagem Clarice diz que minha casa foi destruída. Mas o terreno à venda ainda preserva a antiga casa-grande da fazenda do pai dela, o Riacho Negro. E como o Riacho Negro me traz recordações! Se não leu, Patrícia adivinhou o que dizia a mensagem, pois perguntou:

E por que ela não compra?

Irritado, respondi, porque quer que eu compre.

Ah, é isso, né? A sem-vergonha quer que tu vá morar perto dela.

Como sabia que Clarice morava perto do terreno? Isso a mensagem não dizia. A verdade é que, se eu comprar o terreno, serei quase vizinho de Clarice.

Não. Eu é que quero morar perto dela. Eu é que quero, entendeu?, respondi, irônico, elevando a voz.

Posso saber por quê? Nem precisa me responder, já entendi tudo, disse, sem considerar minha ironia.

Pensando bem, não há mesmo ironia. Me dá enorme prazer ser vizinho de Clarice.

Porque sim, respondi.

Pois então compre a merda do terreno e se afunde nele, Patrícia berrou. Vá logo, seu bosta. Eu sabia que não podia confiar em você!

Meu casamento com Patrícia sobreviveu a infidelidades, e esse assunto boboca não devia ter provocado tanta zanga.

Pois é o que vou fazer, me flagrei dizendo, só porque uma provocação leva a outra e mais outra.

Descarado! Saia já de casa, gritou ainda mais alto.

Não era pra tanto, mas a arenga continuou por horas, em gritos insensatos, gota d’água para nossa separação sempre adiada. Basta dizer que, sem se importar com a chuva, Patrícia jogou minhas roupas pela janela. Um sapato caiu do outro lado da rua, na calçada em frente, e encheu-se de água.

Não desisti. Debaixo de chuva, juntei todas as coisas, sem medo do ridículo perante os vizinhos, e voltei pra casa. Patrícia tentou me agredir fisicamente. Só me defendi, não queria parar na delegacia. Depois me tranquei num quarto. Decidi que sairia de casa, mas não enxotado. Patrícia não insistiu, apenas deixou de falar comigo, no que lhe correspondi. Se não me expulsava, eu estava no lucro.

1º de abril

Não é mentira, apesar do primeiro de abril: vendo à minha volta, meu casamento com Patrícia não é dos piores. Temos muito em comum. Conversávamos, o que nem todo casal pode dizer. Nos beijávamos, feito notável depois de décadas de casamento. E os ciúmes de Patrícia são prova de que ainda me ama.

Só não tenho os mesmos ciúmes que ela porque há muito deixou de cantar nos bares e hoje não vejo rival à minha altura entre seus colegas dos Correios. Não tinha a menor intenção de me separar dela. Mas a briga cresceu feito suflê fora de meu controle. Não tem mais jeito. Me fez acreditar que é melhor mesmo voltar pro Nordeste.

Vou responder a Clarice. Pedir detalhes sobre o vendedor do terreno. Se conseguir negociar bom preço, pergunto se ela aceita que lhe passe uma procuração pra que cuide da transação no cartório de Várzea Pacífica.

Abril, Páscoa

Clarice me deu o número do vendedor. Depois de negociar com ele os termos da compra, liguei pro celular dela, achei melhor conversar. Aceitou que lhe faça a procuração. Não tocamos no assunto mais pessoal. Perguntei por Miguel, seu irmão. Está bem, fora as dificuldades nos negócios. Passa a maior parte do tempo viajando.

Pensei em tanta coisa antes de ligar… Em perguntar se ela se lembra de tal ou qual momento, como se sente vivendo sozinha numa fazenda, se alguma vez pensou em mim… Meus sentimentos ficaram embotados. Mas foi possível perceber emoção na sua voz. Sobretudo registrei bem o que disse:

Que bom que você está voltando.

Escavando sob meus pés, encontro muitas lembranças dela. Os sonhos têm memória. A Clarice do futuro — acho que existe, apesar de tudo — tem muito da Clarice do passado.

Se não me engano, foi em 58, plena seca, quando pela primeira vez senti por ela algo parecido com o amor. Não quero falar demais, porque não tenho certeza e não me lembro direito. Era muito pequeno. Podia ser naquele ano ou em qualquer outro que o rame-rame era o mesmo, morcegos voando de madrugada, árvores peladas, o verde só nas folhagens dos juazeiros, nos xiquexiques e mandacarus, carcaças de animais pelos caminhos de terra poeirenta exalando bafo quente, o sol queimando e secando o mundo, dentro de mim tudo seco. Em poucas palavras, o de sempre, agora cruzado por algum caminhão-pipa e à espera da transposição do Rio São Francisco.

Ou talvez tenha sido inverno, pois me lembro do açude com água, o verde das árvores espinhentas e baixas, verde-claro e brilhoso, a roça atrás do açude também verde, e eu acordava cedo para ir ao curral ordenhar as vacas. Não sei direito, me desculpe quem vier a ler isto. Ou, ora bolas, não me desculpo, pois não devo me desculpar de minhas contradições se são as meras contradições do sertão, seco ou molhado, contradições que hoje ainda existem. Quando seco, a paisagem cinza, realçada por pedras e caveiras, digo sem nenhum exagero. Quando molhado, molhado demais, assustando a gente e causando desastres.

21 de abril

Feriado, fiquei em casa. Achei que Patrícia ia querer me perturbar. Me ignorou, pelo menos até agora. Fico tranquilo para continuar estas anotações sobre meus tempos do Riacho Negro, de Várzea Pacífica, aquela época em que Clarice foi tão importante pra mim. Um dia, quem sabe, mostro estas páginas a ela.

Pode ser até que não me lembre propriamente. Que a realidade daquele passado esteja só na minha imaginação. Devo estar misturando várias secas e várias enchentes. Então, sim, por essa confusão devo me desculpar com quem vier a ler estas anotações, feitas assim rapidamente sem preocupação com estilo ou vocabulário.

Olho meu passado não com orgulho, mas com resignação. Muitas das turbulências que me atormentavam se apaziguaram. O que me despertava paixão agora está arquivado na memória como fotos num álbum de páginas amareladas pelo tempo. Algumas dessas fotos, cobertas de fungo. Outras, tão coladas entre si que, quando a gente tenta despregá-las, se rasgam deixando brancos.

Clarice é exceção. Minha lembrança dela é nítida como a fotografia bem guardada no fundo de uma de minhas gavetas em que ela olha pra mim com olhar que sinto ser apaixonado e até hoje transmite vibrações por meu corpo.

Recupero pedaços de mim para criar esta história contraditória e verdadeira, que me atormenta. Por isso tenho que pôr pra fora. Como contraditórios e verdadeiros, além do sertão, eram mamãe, que me punia e me protegia, e meu padrinho, pai de Clarice, severo e carinhoso. Eu aceitava as mudanças de humor deles como aceitava mudanças de humor da natureza. Achava normais minhas alegrias e tristezas.

No inverno a chuva cobria o campo verde, o chão ficava marcado com o barro das botas, as conversas e risos se prolongavam no alpendre da casa-grande de meus padrinhos, os aboios se animavam no campo, as muriçocas me picavam na nossa casa de tijolo aparente e vermelho, eu me enrolava na rede e envolvia o rosto com o lençol, deixando só o nariz de fora e ouvindo os pingos bater nas telhas.

Já na seca, o sol impiedoso castigava a fazenda do Riacho Negro e me cegava a vista. A poeira açoitava os campos cinzentos, de árvores despojadas, o açude minguado, as cacimbas sem água, as pessoas zonzas cozinhando irritação no calor, e o curral vazio, o gado tangido para o Piauí.

Nisso pode ser que de novo misture tempos, me desculpem, a seca de um ano com o verão prolongado de outro. Mas não invento nada, no máximo é a memória que me trai aqui e ali, coisa da idade, aos setenta anos a memória falha. O que é certo é que as paisagens da secura traziam sempre as mesmas árvores calcinadas, a mesma ruína cinzenta e a mesma irritação. Acho que são sobretudo elas, as paisagens da secura, que marcam os sertanejos feito eu.

1º de maio

Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos. Prefiro me concentrar nas minhas anotações. Procurei lá no fundo minhas memórias mais antigas.

Deve haver outras lá atrás, mas as que me chegaram logo foram as de um dia em que, deitado numa ponta do parapeito da casa-grande de meu padrinho, pai de Clarice, com 6 anos, eu ouvia o rádio a pilha Hitachi, novidade que acabava de chegar no Riacho Negro, alegrando o alpendre com forrós interrompidos pelos chiados da má transmissão. O rádio movido a bateria carregada por cata-vento, desligado. Noutra ponta do parapeito, a avó de Clarice, Dona Leopolda, gorda, de rosto redondo, bochechudo, metida num vestido florido até o meio da canela, fazia cigarro cortando com faca afiada o fumo de corda enquanto fumava cachimbo, soltando baforadas. Uma rede branca, sem ninguém, balançava no alpendre movida pelo nordeste que chegava forte. Da varanda se via um quarto separado da casa e, pela porta, selas e cabrestos, couros espichados, baús no chão e gibões pendurados nos tornos de rede. Talvez seja minha memória de um dia. Ou talvez, o que é mais provável, de muitos dias que se repetiam iguaizinhos, sem tirar nem pôr.

Arnaldo, um preto mais preto e dois anos mais velho do que eu, que hoje também mora perto da fazendola que quero comprar e com quem já me comuniquei, me chamou para ir ao açude buscar água. Ele morava com o pai, Seu Rodolfo, a mãe, Dona Vitória, e um magote de irmãos, na fazenda vizinha, do irmão de meu padrinho, que eu chamava de titio. Íamos com Quinquim, buchudo de lombrigas, mas magricela com cor de leite azedo, que, abestado, enrolava a língua e só tinha dois amigos: eu e o jumento Cinzento. Cinzento conhecia o caminho do açude, ia na frente. Todos os dias buscava água. Às vezes voltava só, nem precisava da gente, e ficava esperando até que a gente chegasse para esvaziar as caçambas.

Eu considerava Arnaldo meu superior, e com razão. Ele conhecia o nome de todas as rezes — vacas e bezerros —, sabia ajudar Quinquim com as caçambas d’água e enchia os quatro potes de barro que repousavam sobre o estrado de madeira do alpendre da casa-grande — hoje, me diz Arnaldo, substituídos pela cisterna. Embaixo deles depositávamos réstias de alho, cebola, panelas de barro e mochilas de sal. Para ali de manhã cedo trazíamos os potes de leite, que num canto da cozinha seriam mudados em queijo de coalho ou coalhada. Ali colocávamos os cachos de bananas para amadurecer, as bananas baba-de-boi, maçã, prata e casca verde que à medida que amadureciam exalavam seu cheiro. Meu padrinho, pai de Clarice, dizia para colocar as bananas verdes junto das mais maduras para amadurecerem depressa. Eu e Arnaldo às vezes roubávamos bananas-prata quando começavam a ficar amarelas e as comíamos quando descíamos com Cinzento para o açude.

Há coisas, já disse, que não me lembro direito, me desculpem. Não sei se foi neste dia ou noutro, a muda que morava na fazenda do tio de Clarice que eu chamava de titio tomava banho nua no açude. Surda, não ouvia o barulho dos nossos passos, meus e de Arnaldo. Se nos via, fingia que não nos via, e nós fingíamos não dar fé de seu fingimento. Não era a primeira vez. Embora mangássemos dela quando fazia caretas e barulhos incompreensíveis com a língua, era a principal atração da caminhada. Contávamos a Miguel, o irmão de Clarice, exagerando na beleza das coxas, da bunda e dos peitos, e ele ficava cheio de inveja. Só não conseguíamos dizer que era bonita de rosto, ainda que o cabelo louro, liso e comprido enfeitasse suas costas, pois, nisso concordávamos, a feiura de seu rosto assustava.

2 de maio

Um dia peguei uma aposta com Arnaldo na corrida — dia especial por uma razão simples: tem a ver com Clarice, de quem, afinal de contas, queria falar. Arnaldo corria mais rápido que eu. Me senti derrotado. Caí e ralei meus joelhos. Foi o fim do mundo. Ou melhor, seu começo.

O sol nos encandeava com desenhos amarelos. Projetava pra dentro da casa-grande os pilares do alpendre, marcando o chão e os potes de barro com sombras negras e violentas. Daquele dia perdura em mim até hoje um sentimento de drama e esperança.

De drama: de que a noite que caía me despojava de seu manto protetor; de que eu sempre tropeçaria sobre as pedras da ladeira; de que o horizonte nunca deixaria de ser incerto; de que, perdido, não encontraria o caminho.

De esperança: de que alguém me salvaria do desastre. Do alto da ladeira, joelhos ralados nas pedras, vendo o sangue, eu também via a casa-grande e, na frente, Clarice, que veio em meu socorro.

Uma guiné gasguita voava no terreiro com medo dos vaqueiros encourados. Então chegou um magote de ciganos, visitantes que a cada dois ou três meses passavam tangendo tropas de burros, mulas e cavalos carregados de bugigangas. Juntaram-se embaixo do pé de tamarindo do terreiro.

Vende este cavalo? Cadê o ferrão?, perguntava meu padrinho, o pai de Clarice, com voz raivosamente fina e minúcias de atenção, desconfiado dos ciganos, sem dar fé do sangue nos meus joelhos.

Eu não tinha dinheiro e queria comprar um presente para Clarice. Por gestos, um dos ciganos me deu a entender que eu poderia pagar depois. Escolhi um anel certamente de ouro e pedra falsos, que dei de presente a Clarice quando o sol já se escondia envergonhado e as galinhas se aquietavam no poleiro.

De noite — pode ter sido nesse dia e, se não foi, juntei com outro, sua prolongação natural — havia uma fogueira enorme, feita de muitas carradas de lenha, em frente à casa-grande. Devia ser junho, quem sabe dia 24, festa de São João. As labaredas iluminavam rostos risonhos, às vezes de gargalhadas escancaradas, gente dando volta em torno da fogueira, assando milho verde. No alpendre da casa, a brincadeira era outra, séria: joguei gotas da vela derretida num copo d’água, e a cera formou uma letra cê, cê de Clarice. A felicidade.

Naquela época falava-se em roubos de moça para se casar, e me contaram que um roubo tinha acontecido em Várzea Pacífica. O rapaz roubava a moça, e as famílias tinham a obrigação de fazer o casamento. Imaginava-me, então, chegando a cavalo numa das janelas da casa-grande e levando Clarice na garupa. Será que ela toparia?

Hoje falei com Arnaldo. Faz muitos anos que não nos vemos, mas sempre que nos falamos é como se tivéssemos nos encontrado ontem. Vamos nos comunicar por WhatsApp, ele propôs. Um sujeito que ele conhece está vendendo um carro de segunda mão. Vendo o meu aqui em Taguatinga para comprar esse outro quando chegar a Várzea Pacífica, se ainda estiver à venda. Comprar sem ver é que não.

Levo para a fazenda uma técnica de plantio direto do algodão com a introdução de culturas rotativas. Já consultei uma lista de empresas de energia solar fotovoltaica da região de Fortaleza, pois vou, sim, instalar placas de energia solar, pelo menos para as necessidades da casa principal, que não será a casa-grande, mas a minha própria, moderna e confortável. E vou aprimorar o sistema precário de irrigação, que existe há alguns anos. De novidade, há dois poços artesianos na propriedade, e a casa já tem cisterna, Arnaldo me disse.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.

Parto dentro de uma semana, está tudo certo. Fujo da secura que começa. Não tem caído pingo d’água neste planalto.

Clarice me enviou a escritura do terreno que comprei por procuração. Arrumei minhas coisas e despachei há exatamente treze dias uma pequena mudança, que Arnaldo vai receber e acomodar na casa da fazenda. Encarreguei-o também de comprar sementes de algodão para o plantio, quando eu chegar.

2. Voo Brasília-Fortaleza

1º de junho

O avião subiu faz pouco. Voo Brasília-Fortaleza. Agora que Patrícia me deixou, deixo Taguatinga. Digo que foi ela que me deixou, embora seja eu que parti, pois a iniciativa foi dela, não há dúvida.

Teve razão e coragem. Eu não teria nem uma coisa nem outra. Mas fico matutando se o medo às vezes é que tem razão. A despedida foi dura e fria.

Seja feliz, ela disse, como se dissesse que se foda.

Você também, respondi.

A separação foi amigável, e muita coisa ainda tem que ser decidida. Ela ficou com a maior parte dos bens, inclusive a casa, mas não exige dinheiro. Combinamos que vamos formalizar o divórcio, porém não começamos a cuidar dos papéis. Sugeri aguardar um pouco, testar como vamos nos sentir com a separação.

Não tem volta, foi categórica.

Olhando as chapadas pela janela do avião — será a Mantiqueira? —, deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza. Que talvez queira encontrar futuro no passado, tenho de admitir. A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu.

Às vezes fica difícil traçar a fronteira entre lembrança e imaginação. Às vezes a realidade se impõe às duas. Às vezes a fazenda que pertencia a meu padrinho me traz más lembranças. A fazenda ficava a três léguas de Várzea Pacífica, que, quando eu era criança, nem várzea nem pacífica era. Ali a vegetação secava no verão — isso imagino que ainda acontece — e, por qualquer coisa, armava-se o maior cu de boi. Assassinatos a todo tempo. Terríveis assassinatos! A mais terrível de todas as lembranças me chega por tabela, lembrança de lembranças. Papai assassinado a peixeiradas. Ainda vejo o sangue saindo de sua barriga, esguichado, desparramando-se pelo chão.

Lembranças mesmo, quando tenho, são vagas, de gritos, portas batendo, eu correndo por um descampado sem fim. Eu seguia caminhos sinuosos e esburacados ouvindo choros fortes de mulher, acho que de mamãe, de vovó. Finalmente chegamos ao lugar de chão ondulado e marcado por cruzes, onde, ao lado de um buraco sem fim, foi depositado o caixão que não sei se vi ou imaginei, em madeira lisa e pintada de preto. O montículo de terra ali ao lado me parecia uma montanha também infindável, montanha que eu não conseguia escalar. Lágrimas ainda caem de meus olhos pelo que não vi, me desculpo uma vez mais com quem tem paciência de continuar me lendo.

Como posso me lembrar direito? Tinha só dois anos. Sei da violência do assassinato de papai pelos relatos que ouvi anos depois. Mais de vinte peixeiradas, sangue escorrendo pela calçada. Sangue, muito sangue, um vermelho que mancha todas as minhas lembranças.

Sempre pensava naquele crime quando assistia à morte das novilhas no curral, vendo as machadadas, a carne esfolada e o sangue escrevendo garranchos no tapete de estrume, preto e fofo.

O assassino, preso, nunca admitiu o crime. Sujeitinho nojento, filho da puta. Não há dúvida: teve uma rixa com papai por uma migalhice — papai se recusou a pagar por um gibão de couro malfeito — e era assassino confesso de outras quatro vítimas. Cabra ranzinza, irritadiço, que batia na mulher aos murros. A filha, de tanto levar chibatada, enlouqueceu, foi o que me contou há muitos anos Arnaldo, aquele meu amigo de infância com quem troco mensagens por WhatsApp.

Li uma vez que é somente nos vivos que os mortos existem, assim como será apenas nos vivos que estas anotações podem sobreviver depois de minha morte. Papai é um morto que vive em mim. Por que ainda quero vingar sua morte depois de tanto tempo? A verdade é que quero. Aparece cada vez mais como necessidade, necessidade de um velho, necessidade cada vez mais urgente, como se me faltasse o que preciso fazer para me sentir completo.

Só de pensar que posso me encontrar com o assassino, o sangue sobe à cabeça. À medida que os dias passam, vejo que me sobra pouco tempo para cumprir minha missão. Claro que não foi só por causa de Clarice que comprei o terreno. Volto pra perto do desgraçado, o filho da puta. Saiu da prisão há vários anos. Nunca o procurei, mas hoje sei que, se o encontrar, eu o mato. Tenho de matá-lo. Não me importa nada passar o resto da vida na cadeia. Quem lamentaria? Meus três filhos, sei que não. Talvez minha irmã Zuleide… Falo tão pouco com ela! Na verdade, faz dois anos que não a vejo. Para Patrícia, preso ou não, tanto faz, deve estar contente de se livrar de mim. E, se eu morrer, será minha morte gloriosa, pelo melhor dos objetivos, me entendam ou não. Trago na bagagem um revólver.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.[:fr]

  1. Taguatinga, Setor A Norte, QNA 32

31 de março

Clarice havia mandado uma mensagem pelo Facebook.

O que ela quer contigo? Patrícia me perguntou, mais amarga do que nunca, nós dois sentados numa poltrona da sala.

Caía uma chuva torrencial.

Você leu. Sabe tanto quanto eu.

Eu tinha esquecido de sair do Facebook. Patrícia aproveitou pra vasculhar minhas mensagens. Inadmissível!

Não, não li. Só vi que foi ela que lhe escreveu.

Duvido. Deve ter visto que ela não quer nada comigo. Só me deu uma dica.

Dica de quê?

Saco! Patrícia querer me controlar. Podia ter-lhe dito a verdade, se é que ela não sabia. Pouco me custava. A mensagem de Clarice nada tinha de pessoal. Nada que denotasse afeto entre nós. Absolutamente nada! Quase mensagem comercial. Soube por meu amigo Arnaldo de meu interesse em comprar um terreno nas redondezas e me passou a dica. Também me informou seu e-mail e número do celular. Só isso.

Não interessa, respondi.

Interessa, sim. Acha que esqueci o que essa perua representa pra ti?

Agressão gratuita. Como me arrependi de contar tudo. Falar de meu passado. Entrar em minúcias logo sobre Clarice! Sou mesmo um idiota, um imbecil!

Ou fui. Era lá no comecinho, quando achávamos que, como estávamos apaixonados e o mundo não faria sentido se não estivéssemos juntos, tínhamos que abrir nossos corações e contar tudo, absolutamente tudo. Sinceridade total. Respeito à verdade, que não podia ter qualquer remendo. Patrícia nunca esqueceu o menor detalhe sobre Clarice.

Ainda chovia. Os relâmpagos clareavam as janelas. Os trovões ribombavam sem parar, querendo dramatizar nossa discussão.

Não representa bulhufas. O terreno que está à venda, sim. É o que eu quero. Eu, entende? Onde passei minha infância.

Na mensagem Clarice diz que minha casa foi destruída. Mas o terreno à venda ainda preserva a antiga casa-grande da fazenda do pai dela, o Riacho Negro. E como o Riacho Negro me traz recordações! Se não leu, Patrícia adivinhou o que dizia a mensagem, pois perguntou:

E por que ela não compra?

Irritado, respondi, porque quer que eu compre.

Ah, é isso, né? A sem-vergonha quer que tu vá morar perto dela.

Como sabia que Clarice morava perto do terreno? Isso a mensagem não dizia. A verdade é que, se eu comprar o terreno, serei quase vizinho de Clarice.

Não. Eu é que quero morar perto dela. Eu é que quero, entendeu?, respondi, irônico, elevando a voz.

Posso saber por quê? Nem precisa me responder, já entendi tudo, disse, sem considerar minha ironia.

Pensando bem, não há mesmo ironia. Me dá enorme prazer ser vizinho de Clarice.

Porque sim, respondi.

Pois então compre a merda do terreno e se afunde nele, Patrícia berrou. Vá logo, seu bosta. Eu sabia que não podia confiar em você!

Meu casamento com Patrícia sobreviveu a infidelidades, e esse assunto boboca não devia ter provocado tanta zanga.

Pois é o que vou fazer, me flagrei dizendo, só porque uma provocação leva a outra e mais outra.

Descarado! Saia já de casa, gritou ainda mais alto.

Não era pra tanto, mas a arenga continuou por horas, em gritos insensatos, gota d’água para nossa separação sempre adiada. Basta dizer que, sem se importar com a chuva, Patrícia jogou minhas roupas pela janela. Um sapato caiu do outro lado da rua, na calçada em frente, e encheu-se de água.

Não desisti. Debaixo de chuva, juntei todas as coisas, sem medo do ridículo perante os vizinhos, e voltei pra casa. Patrícia tentou me agredir fisicamente. Só me defendi, não queria parar na delegacia. Depois me tranquei num quarto. Decidi que sairia de casa, mas não enxotado. Patrícia não insistiu, apenas deixou de falar comigo, no que lhe correspondi. Se não me expulsava, eu estava no lucro.

1º de abril

Não é mentira, apesar do primeiro de abril: vendo à minha volta, meu casamento com Patrícia não é dos piores. Temos muito em comum. Conversávamos, o que nem todo casal pode dizer. Nos beijávamos, feito notável depois de décadas de casamento. E os ciúmes de Patrícia são prova de que ainda me ama.

Só não tenho os mesmos ciúmes que ela porque há muito deixou de cantar nos bares e hoje não vejo rival à minha altura entre seus colegas dos Correios. Não tinha a menor intenção de me separar dela. Mas a briga cresceu feito suflê fora de meu controle. Não tem mais jeito. Me fez acreditar que é melhor mesmo voltar pro Nordeste.

Vou responder a Clarice. Pedir detalhes sobre o vendedor do terreno. Se conseguir negociar bom preço, pergunto se ela aceita que lhe passe uma procuração pra que cuide da transação no cartório de Várzea Pacífica.

Abril, Páscoa

Clarice me deu o número do vendedor. Depois de negociar com ele os termos da compra, liguei pro celular dela, achei melhor conversar. Aceitou que lhe faça a procuração. Não tocamos no assunto mais pessoal. Perguntei por Miguel, seu irmão. Está bem, fora as dificuldades nos negócios. Passa a maior parte do tempo viajando.

Pensei em tanta coisa antes de ligar… Em perguntar se ela se lembra de tal ou qual momento, como se sente vivendo sozinha numa fazenda, se alguma vez pensou em mim… Meus sentimentos ficaram embotados. Mas foi possível perceber emoção na sua voz. Sobretudo registrei bem o que disse:

Que bom que você está voltando.

Escavando sob meus pés, encontro muitas lembranças dela. Os sonhos têm memória. A Clarice do futuro — acho que existe, apesar de tudo — tem muito da Clarice do passado.

Se não me engano, foi em 58, plena seca, quando pela primeira vez senti por ela algo parecido com o amor. Não quero falar demais, porque não tenho certeza e não me lembro direito. Era muito pequeno. Podia ser naquele ano ou em qualquer outro que o rame-rame era o mesmo, morcegos voando de madrugada, árvores peladas, o verde só nas folhagens dos juazeiros, nos xiquexiques e mandacarus, carcaças de animais pelos caminhos de terra poeirenta exalando bafo quente, o sol queimando e secando o mundo, dentro de mim tudo seco. Em poucas palavras, o de sempre, agora cruzado por algum caminhão-pipa e à espera da transposição do Rio São Francisco.

Ou talvez tenha sido inverno, pois me lembro do açude com água, o verde das árvores espinhentas e baixas, verde-claro e brilhoso, a roça atrás do açude também verde, e eu acordava cedo para ir ao curral ordenhar as vacas. Não sei direito, me desculpe quem vier a ler isto. Ou, ora bolas, não me desculpo, pois não devo me desculpar de minhas contradições se são as meras contradições do sertão, seco ou molhado, contradições que hoje ainda existem. Quando seco, a paisagem cinza, realçada por pedras e caveiras, digo sem nenhum exagero. Quando molhado, molhado demais, assustando a gente e causando desastres.

21 de abril

Feriado, fiquei em casa. Achei que Patrícia ia querer me perturbar. Me ignorou, pelo menos até agora. Fico tranquilo para continuar estas anotações sobre meus tempos do Riacho Negro, de Várzea Pacífica, aquela época em que Clarice foi tão importante pra mim. Um dia, quem sabe, mostro estas páginas a ela.

Pode ser até que não me lembre propriamente. Que a realidade daquele passado esteja só na minha imaginação. Devo estar misturando várias secas e várias enchentes. Então, sim, por essa confusão devo me desculpar com quem vier a ler estas anotações, feitas assim rapidamente sem preocupação com estilo ou vocabulário.

Olho meu passado não com orgulho, mas com resignação. Muitas das turbulências que me atormentavam se apaziguaram. O que me despertava paixão agora está arquivado na memória como fotos num álbum de páginas amareladas pelo tempo. Algumas dessas fotos, cobertas de fungo. Outras, tão coladas entre si que, quando a gente tenta despregá-las, se rasgam deixando brancos.

Clarice é exceção. Minha lembrança dela é nítida como a fotografia bem guardada no fundo de uma de minhas gavetas em que ela olha pra mim com olhar que sinto ser apaixonado e até hoje transmite vibrações por meu corpo.

Recupero pedaços de mim para criar esta história contraditória e verdadeira, que me atormenta. Por isso tenho que pôr pra fora. Como contraditórios e verdadeiros, além do sertão, eram mamãe, que me punia e me protegia, e meu padrinho, pai de Clarice, severo e carinhoso. Eu aceitava as mudanças de humor deles como aceitava mudanças de humor da natureza. Achava normais minhas alegrias e tristezas.

No inverno a chuva cobria o campo verde, o chão ficava marcado com o barro das botas, as conversas e risos se prolongavam no alpendre da casa-grande de meus padrinhos, os aboios se animavam no campo, as muriçocas me picavam na nossa casa de tijolo aparente e vermelho, eu me enrolava na rede e envolvia o rosto com o lençol, deixando só o nariz de fora e ouvindo os pingos bater nas telhas.

Já na seca, o sol impiedoso castigava a fazenda do Riacho Negro e me cegava a vista. A poeira açoitava os campos cinzentos, de árvores despojadas, o açude minguado, as cacimbas sem água, as pessoas zonzas cozinhando irritação no calor, e o curral vazio, o gado tangido para o Piauí.

Nisso pode ser que de novo misture tempos, me desculpem, a seca de um ano com o verão prolongado de outro. Mas não invento nada, no máximo é a memória que me trai aqui e ali, coisa da idade, aos setenta anos a memória falha. O que é certo é que as paisagens da secura traziam sempre as mesmas árvores calcinadas, a mesma ruína cinzenta e a mesma irritação. Acho que são sobretudo elas, as paisagens da secura, que marcam os sertanejos feito eu.

1º de maio

Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos. Prefiro me concentrar nas minhas anotações. Procurei lá no fundo minhas memórias mais antigas.

Deve haver outras lá atrás, mas as que me chegaram logo foram as de um dia em que, deitado numa ponta do parapeito da casa-grande de meu padrinho, pai de Clarice, com 6 anos, eu ouvia o rádio a pilha Hitachi, novidade que acabava de chegar no Riacho Negro, alegrando o alpendre com forrós interrompidos pelos chiados da má transmissão. O rádio movido a bateria carregada por cata-vento, desligado. Noutra ponta do parapeito, a avó de Clarice, Dona Leopolda, gorda, de rosto redondo, bochechudo, metida num vestido florido até o meio da canela, fazia cigarro cortando com faca afiada o fumo de corda enquanto fumava cachimbo, soltando baforadas. Uma rede branca, sem ninguém, balançava no alpendre movida pelo nordeste que chegava forte. Da varanda se via um quarto separado da casa e, pela porta, selas e cabrestos, couros espichados, baús no chão e gibões pendurados nos tornos de rede. Talvez seja minha memória de um dia. Ou talvez, o que é mais provável, de muitos dias que se repetiam iguaizinhos, sem tirar nem pôr.

Arnaldo, um preto mais preto e dois anos mais velho do que eu, que hoje também mora perto da fazendola que quero comprar e com quem já me comuniquei, me chamou para ir ao açude buscar água. Ele morava com o pai, Seu Rodolfo, a mãe, Dona Vitória, e um magote de irmãos, na fazenda vizinha, do irmão de meu padrinho, que eu chamava de titio. Íamos com Quinquim, buchudo de lombrigas, mas magricela com cor de leite azedo, que, abestado, enrolava a língua e só tinha dois amigos: eu e o jumento Cinzento. Cinzento conhecia o caminho do açude, ia na frente. Todos os dias buscava água. Às vezes voltava só, nem precisava da gente, e ficava esperando até que a gente chegasse para esvaziar as caçambas.

Eu considerava Arnaldo meu superior, e com razão. Ele conhecia o nome de todas as rezes — vacas e bezerros —, sabia ajudar Quinquim com as caçambas d’água e enchia os quatro potes de barro que repousavam sobre o estrado de madeira do alpendre da casa-grande — hoje, me diz Arnaldo, substituídos pela cisterna. Embaixo deles depositávamos réstias de alho, cebola, panelas de barro e mochilas de sal. Para ali de manhã cedo trazíamos os potes de leite, que num canto da cozinha seriam mudados em queijo de coalho ou coalhada. Ali colocávamos os cachos de bananas para amadurecer, as bananas baba-de-boi, maçã, prata e casca verde que à medida que amadureciam exalavam seu cheiro. Meu padrinho, pai de Clarice, dizia para colocar as bananas verdes junto das mais maduras para amadurecerem depressa. Eu e Arnaldo às vezes roubávamos bananas-prata quando começavam a ficar amarelas e as comíamos quando descíamos com Cinzento para o açude.

Há coisas, já disse, que não me lembro direito, me desculpem. Não sei se foi neste dia ou noutro, a muda que morava na fazenda do tio de Clarice que eu chamava de titio tomava banho nua no açude. Surda, não ouvia o barulho dos nossos passos, meus e de Arnaldo. Se nos via, fingia que não nos via, e nós fingíamos não dar fé de seu fingimento. Não era a primeira vez. Embora mangássemos dela quando fazia caretas e barulhos incompreensíveis com a língua, era a principal atração da caminhada. Contávamos a Miguel, o irmão de Clarice, exagerando na beleza das coxas, da bunda e dos peitos, e ele ficava cheio de inveja. Só não conseguíamos dizer que era bonita de rosto, ainda que o cabelo louro, liso e comprido enfeitasse suas costas, pois, nisso concordávamos, a feiura de seu rosto assustava.

2 de maio

Um dia peguei uma aposta com Arnaldo na corrida — dia especial por uma razão simples: tem a ver com Clarice, de quem, afinal de contas, queria falar. Arnaldo corria mais rápido que eu. Me senti derrotado. Caí e ralei meus joelhos. Foi o fim do mundo. Ou melhor, seu começo.

O sol nos encandeava com desenhos amarelos. Projetava pra dentro da casa-grande os pilares do alpendre, marcando o chão e os potes de barro com sombras negras e violentas. Daquele dia perdura em mim até hoje um sentimento de drama e esperança.

De drama: de que a noite que caía me despojava de seu manto protetor; de que eu sempre tropeçaria sobre as pedras da ladeira; de que o horizonte nunca deixaria de ser incerto; de que, perdido, não encontraria o caminho.

De esperança: de que alguém me salvaria do desastre. Do alto da ladeira, joelhos ralados nas pedras, vendo o sangue, eu também via a casa-grande e, na frente, Clarice, que veio em meu socorro.

Uma guiné gasguita voava no terreiro com medo dos vaqueiros encourados. Então chegou um magote de ciganos, visitantes que a cada dois ou três meses passavam tangendo tropas de burros, mulas e cavalos carregados de bugigangas. Juntaram-se embaixo do pé de tamarindo do terreiro.

Vende este cavalo? Cadê o ferrão?, perguntava meu padrinho, o pai de Clarice, com voz raivosamente fina e minúcias de atenção, desconfiado dos ciganos, sem dar fé do sangue nos meus joelhos.

Eu não tinha dinheiro e queria comprar um presente para Clarice. Por gestos, um dos ciganos me deu a entender que eu poderia pagar depois. Escolhi um anel certamente de ouro e pedra falsos, que dei de presente a Clarice quando o sol já se escondia envergonhado e as galinhas se aquietavam no poleiro.

De noite — pode ter sido nesse dia e, se não foi, juntei com outro, sua prolongação natural — havia uma fogueira enorme, feita de muitas carradas de lenha, em frente à casa-grande. Devia ser junho, quem sabe dia 24, festa de São João. As labaredas iluminavam rostos risonhos, às vezes de gargalhadas escancaradas, gente dando volta em torno da fogueira, assando milho verde. No alpendre da casa, a brincadeira era outra, séria: joguei gotas da vela derretida num copo d’água, e a cera formou uma letra cê, cê de Clarice. A felicidade.

Naquela época falava-se em roubos de moça para se casar, e me contaram que um roubo tinha acontecido em Várzea Pacífica. O rapaz roubava a moça, e as famílias tinham a obrigação de fazer o casamento. Imaginava-me, então, chegando a cavalo numa das janelas da casa-grande e levando Clarice na garupa. Será que ela toparia?

Hoje falei com Arnaldo. Faz muitos anos que não nos vemos, mas sempre que nos falamos é como se tivéssemos nos encontrado ontem. Vamos nos comunicar por WhatsApp, ele propôs. Um sujeito que ele conhece está vendendo um carro de segunda mão. Vendo o meu aqui em Taguatinga para comprar esse outro quando chegar a Várzea Pacífica, se ainda estiver à venda. Comprar sem ver é que não.

Levo para a fazenda uma técnica de plantio direto do algodão com a introdução de culturas rotativas. Já consultei uma lista de empresas de energia solar fotovoltaica da região de Fortaleza, pois vou, sim, instalar placas de energia solar, pelo menos para as necessidades da casa principal, que não será a casa-grande, mas a minha própria, moderna e confortável. E vou aprimorar o sistema precário de irrigação, que existe há alguns anos. De novidade, há dois poços artesianos na propriedade, e a casa já tem cisterna, Arnaldo me disse.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.

Parto dentro de uma semana, está tudo certo. Fujo da secura que começa. Não tem caído pingo d’água neste planalto.

Clarice me enviou a escritura do terreno que comprei por procuração. Arrumei minhas coisas e despachei há exatamente treze dias uma pequena mudança, que Arnaldo vai receber e acomodar na casa da fazenda. Encarreguei-o também de comprar sementes de algodão para o plantio, quando eu chegar.

2. Voo Brasília-Fortaleza

1º de junho

O avião subiu faz pouco. Voo Brasília-Fortaleza. Agora que Patrícia me deixou, deixo Taguatinga. Digo que foi ela que me deixou, embora seja eu que parti, pois a iniciativa foi dela, não há dúvida.

Teve razão e coragem. Eu não teria nem uma coisa nem outra. Mas fico matutando se o medo às vezes é que tem razão. A despedida foi dura e fria.

Seja feliz, ela disse, como se dissesse que se foda.

Você também, respondi.

A separação foi amigável, e muita coisa ainda tem que ser decidida. Ela ficou com a maior parte dos bens, inclusive a casa, mas não exige dinheiro. Combinamos que vamos formalizar o divórcio, porém não começamos a cuidar dos papéis. Sugeri aguardar um pouco, testar como vamos nos sentir com a separação.

Não tem volta, foi categórica.

Olhando as chapadas pela janela do avião — será a Mantiqueira? —, deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza. Que talvez queira encontrar futuro no passado, tenho de admitir. A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu.

Às vezes fica difícil traçar a fronteira entre lembrança e imaginação. Às vezes a realidade se impõe às duas. Às vezes a fazenda que pertencia a meu padrinho me traz más lembranças. A fazenda ficava a três léguas de Várzea Pacífica, que, quando eu era criança, nem várzea nem pacífica era. Ali a vegetação secava no verão — isso imagino que ainda acontece — e, por qualquer coisa, armava-se o maior cu de boi. Assassinatos a todo tempo. Terríveis assassinatos! A mais terrível de todas as lembranças me chega por tabela, lembrança de lembranças. Papai assassinado a peixeiradas. Ainda vejo o sangue saindo de sua barriga, esguichado, desparramando-se pelo chão.

Lembranças mesmo, quando tenho, são vagas, de gritos, portas batendo, eu correndo por um descampado sem fim. Eu seguia caminhos sinuosos e esburacados ouvindo choros fortes de mulher, acho que de mamãe, de vovó. Finalmente chegamos ao lugar de chão ondulado e marcado por cruzes, onde, ao lado de um buraco sem fim, foi depositado o caixão que não sei se vi ou imaginei, em madeira lisa e pintada de preto. O montículo de terra ali ao lado me parecia uma montanha também infindável, montanha que eu não conseguia escalar. Lágrimas ainda caem de meus olhos pelo que não vi, me desculpo uma vez mais com quem tem paciência de continuar me lendo.

Como posso me lembrar direito? Tinha só dois anos. Sei da violência do assassinato de papai pelos relatos que ouvi anos depois. Mais de vinte peixeiradas, sangue escorrendo pela calçada. Sangue, muito sangue, um vermelho que mancha todas as minhas lembranças.

Sempre pensava naquele crime quando assistia à morte das novilhas no curral, vendo as machadadas, a carne esfolada e o sangue escrevendo garranchos no tapete de estrume, preto e fofo.

O assassino, preso, nunca admitiu o crime. Sujeitinho nojento, filho da puta. Não há dúvida: teve uma rixa com papai por uma migalhice — papai se recusou a pagar por um gibão de couro malfeito — e era assassino confesso de outras quatro vítimas. Cabra ranzinza, irritadiço, que batia na mulher aos murros. A filha, de tanto levar chibatada, enlouqueceu, foi o que me contou há muitos anos Arnaldo, aquele meu amigo de infância com quem troco mensagens por WhatsApp.

Li uma vez que é somente nos vivos que os mortos existem, assim como será apenas nos vivos que estas anotações podem sobreviver depois de minha morte. Papai é um morto que vive em mim. Por que ainda quero vingar sua morte depois de tanto tempo? A verdade é que quero. Aparece cada vez mais como necessidade, necessidade de um velho, necessidade cada vez mais urgente, como se me faltasse o que preciso fazer para me sentir completo.

Só de pensar que posso me encontrar com o assassino, o sangue sobe à cabeça. À medida que os dias passam, vejo que me sobra pouco tempo para cumprir minha missão. Claro que não foi só por causa de Clarice que comprei o terreno. Volto pra perto do desgraçado, o filho da puta. Saiu da prisão há vários anos. Nunca o procurei, mas hoje sei que, se o encontrar, eu o mato. Tenho de matá-lo. Não me importa nada passar o resto da vida na cadeia. Quem lamentaria? Meus três filhos, sei que não. Talvez minha irmã Zuleide… Falo tão pouco com ela! Na verdade, faz dois anos que não a vejo. Para Patrícia, preso ou não, tanto faz, deve estar contente de se livrar de mim. E, se eu morrer, será minha morte gloriosa, pelo melhor dos objetivos, me entendam ou não. Trago na bagagem um revólver.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.[:]