2.o Caderno – LITERATURA
A UNIÃO, João Pessoa, sábado, 17 de novembro de 2012
HISTÓRIAS DE UM CARNAVAL
SAMBA-ENREDO, segundo trabalho fictional de João Almino, é relançado 18 anos depois da primeira edição
Um evento histórico nebuloso – o desaparecimento do primeiro Presidente da República brasileiro negro durante o carnaval em Brasília – é resgatado décadas mais tarde por um computador e um fantasma. Passado e futuro se encontram numa narrativa apontada pela crítica como “Uma das mais consistentes realizações na área de ficção no Brasil”. Dezoito anos depois da primeira edição, o romance Samba-enredo, segundo trabalho ficcional de João Almino, é finalmente reeditado, revelando uma atualidade surpreendente.Comparado a Machado de Assis e Lima Barreto, ganhador de diversos prêmios literários, Almino nasceu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1950. Especialista em história e filosofia política, o escritor e diplomata João Almino já foi professor nas universidades Nacional do México, Nacional de Brasília, Berkeley e Stanford, além do Instituto Rio Branco.
É comum que a relação do autor com os primeiros livros se altere muito com o passar do tempo. Qual é a relação do senhor com esse livro hoje? Que espaço ele tem ocupado na sua bibliografia?
Cada livro que escrevo é uma aventura diferente. O que eles têm em comum é que não escrevo uma linha sem pensar se ela é de fato necessária e, se eu perceber que ela pode envelhecer facilmente, prefiro eliminá-la. Hoje não usaria as mesmas técnicas de qualquer dos meus livros, simplesmente porque não gosto de me repetir, mas não renego meus trabalhos anteriores. Por Samba-Enredo tenho um carinho especial, não só por causa do que trata, mas também pela forma. Foi o único de meus romances que escrevi inteiramente em verso livre e depois desfiz as quebras de linha, para extrair do texto uma certa musicalidade, que vai mudando ao longo da narrativa. Quando saiu, houve quem fizesse de Samba-Enredo uma leitura do Brasil contemporâneo, o que certamente era possível, mas sempre achei que ele pudesse ser lido e relido muitos anos depois. Houve também quem visse no livro ficção científica. E ficção científica, já sabemos, envelhece logo. No entanto, ele é o inverso de uma ficção científica ou talvez seja uma ficção científica às avessas, porque não se trata de projetar o presente sobre o futuro, tentando adivinhá-lo, mas de invocar o futuro para ver o presente a partir de ângulos inusitados. Não se trata de tentar imaginar o futuro, mas de distorcer o ângulo de visão sobre o presente ao fazer com que o futuro – com suas mais sofisticadas tecnologias que sequer conhecemos – nos veja de perto e como somos.
Em que circunstâncias ele foi escrito?
Eu morava em São Francisco, na Califórnia, e assistia ao surgimento das comunicações por email, da internet e dos primeiros sites.
E de que forma surgiu essa premissa?
No meu primeiro romance, os capítulos eram escritos numa terceira pessoa que tinhaa dimensão da primeira, pois o narrador (um espírito) vivia dentro de cada um dos personagens, podendo, portanto, saber o que pensavam e podendo mostrá-los em sua intimidade. Em Samba-Enredo quis subverter a ideia do narrador usando outro recurso: um narrador em primeira pessoa que, por ser uma máquina hiper-inteligente, tinha a quase onisciência e a suposta objetividade da terceira pessoa. Tudo começou imaginando o diálogo entre a máquina e o espírito.
Qual foi a repercussão da primeira edição do livro?
Do ponto de vista da crítica, acho que não poderia ter sido melhor. Saíram resenhas ou comentários em toda a grande imprensa. Ao todo, houve cerca de 15 textos críticos sobre o livro, todos muito positivos, e até mesmo uma tese universitária. Mas as vendas não justificaram de imediato uma segunda edição, que só sai agora.
A decisão de fazer certas revisões, suprimindo ou acrescentando detalhes que atualizam ainda mais o texto, diante do projeto de reedição, foi imediata?
Nunca releio meus livros. No momento de uma reedição, sinto-me obrigado a fazê-lo, por respeito ao público e o desejo de fazer um ou outro reparo necessário. Mas me mantenho absolutamente fiel ao texto original. A revisão é mínima: a eliminação de alguma palavra demais ou, mais raramente, o acréscimo de alguma outra que deixe mais clara a intenção do relato.
Muitos escritores resistem a reler os próprios livros. No seu caso, por que isso acontece?
Porque o tempo é curto. Embora releia com frequência certos livros e possa ler seletivamente passagens de meus livros sobretudo para fazer reviver alguns personagens, prefiro me concentrar em minha nova escrita e em minhas novas leituras.
Samba-enredo traz o embate entre a máquina e o espírito em meio à carnavalização brasileira. Um embate entre extremos. A perspectiva de que a informática pudesse ganhar tamanha dimensão, perspectiva que assombrou grandes artistas e pensadores do século 20, era uma inquietude importante sua naquela na época? De lá para cá, como tem avaliado essa evolução?
Sim, já era uma inquietude na época. Basta dizer que muitos anos antes, em 1986, em meu livro O segredo e a informação, eu havia discutido os impactos da informática sobre o acesso, o armazenamento e o controle da informação num capítulo inicial dedicado à “informação e o segredo na era pós-industrial”. Em meio ao aumento exponencial da circulação de informações propiciado pela informática, as questões centrais permanecem: como democratizar a informação e como fazer com que ela não seja apenas ruído ou objeto de acúmulo meramente quantitativo, mas contribua para o conhecimento. O embate entre a máquina e o espírito é também entre a liberdade criativa e a razão instrumental, entre a acumulação de uma memória de fatos e as emoções da lembrança.
A ideia, contida alegoricamente nesse romance, de um certo atravessamento do espírito pela máquina, de que a máquina poderá, enfim, penetrar e revelar regiões insondáveis ou até mesmo negadas pela psique humana, teria já alcançado seu ápice?
Na verdade a máquina super-inteligente de um futuro longínquo estende suas redes, seus tendões, a regiões hoje inimagináveis, mas sempre encontrará seus limites e, se a ela for dado sentimento, sentirá frustração por isso. O espírito, que a atravessa, adquire distintas formas, é livre e sem limites.
E há também a relação importante entre carnaval, política e misticismo. Mesmo diante do desaparecimento de um presidente, o carnaval não cessa de acontecer, e a voz da “vidente” com sua conexão extraterrestre ocupa um espaço privilegiado. O senhor poderia falar um pouco a respeito do cruzamento dessas três cenas?
Quis sobretudo criar uma tensão ao fazer com que a espontaneidade calorosa e caótica do carnaval fosse narrada da perspectiva fria, distante e controladora da máquina. Nesse caldo caótico, a história, cujos ingredientes a máquina junta de formas inusitadas e o espírito interpreta livremente, pode ser vista ao mesmo tempo como uma história cósmica enxergada pelos místicos, a História política e a história individual e amorosa.
Certas questões, que deixam de ser discutidas à medida que se incorporam ao cotidiano, e são por isso como que “naturalizadas”, podem ganhar força incomum numa ficção. É o caso das discussões que são travadas nesse livro. Há um componente crítico muito forte cercando todas elas: as relações amorosas, políticas, sociais, religiosas e entre o homem e a tecnologia. Um acento melancólico, talvez? É possível ter esperanças diante de um carnaval tão triste?
Fora do livro, sim. Às vezes a crítica mais acerba se faz a partir da esperança. Já me referi ao “pessimismo como método”. Acho que a literatura não deve se desviar dos maiores desafios, deve encarar de frente os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida. Mas isso não implica falta de confiança no futuro. Ao contrário, ao revelar o lado escuro da existência, mostrando compaixão pelo que é profundamente humano, o escritor muitas vezes espera que, frequentemente ao contrário de muitos de seus personagens, seus leitores possam compartir com ele aquilo que Antonio Candido chama de experiência de humanização da literatura, que prolonga nossa experiência por nos fazer viver outras vidas.
2.o Caderno – LITERATURA
A UNIÃO, sábado, 17 de novembro de 2012
HISTÓRIAS DE UM CARNAVAL
SAMBA-ENREDO, segundo trabalho fictional de João Almino, é relançado 18 anos depois da primeira edição
Um evento histórico nebuloso – o desaparecimento do primeiro Presidente da República brasileiro negro durante o carnaval em Brasília – é resgatado décadas mais tarde por um computador e um fantasma. Passado e futuro se encontram numa narrativa apontada pela crítica como “Uma das mais consistentes realizações na área de ficção no Brasil”. Dezoito anos depois da primeira edição, o romance Samba-enredo, segundo trabalho ficcional de João Almino, é finalmente reeditado, revelando uma atualidade surpreendente.Comparado a Machado de Assis e Lima Barreto, ganhador de diversos prêmios literários, Almino nasceu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1950. Especialista em história e filosofia política, o escritor e diplomata João Almino já foi professor nas universidades Nacional do México, Nacional de Brasília, Berkeley e Stanford, além do Instituto Rio Branco.
É comum que a relação do autor com os primeiros livros se altere muito com o passar do tempo. Qual é a relação do senhor com esse livro hoje? Que espaço ele tem ocupado na sua bibliografia?
Cada livro que escrevo é uma aventura diferente. O que eles têm em comum é que não escrevo uma linha sem pensar se ela é de fato necessária e, se eu perceber que ela pode envelhecer facilmente, prefiro eliminá-la. Hoje não usaria as mesmas técnicas de qualquer dos meus livros, simplesmente porque não gosto de me repetir, mas não renego meus trabalhos anteriores. Por Samba-Enredo tenho um carinho especial, não só por causa do que trata, mas também pela forma. Foi o único de meus romances que escrevi inteiramente em verso livre e depois desfiz as quebras de linha, para extrair do texto uma certa musicalidade, que vai mudando ao longo da narrativa. Quando saiu, houve quem fizesse de Samba-Enredo uma leitura do Brasil contemporâneo, o que certamente era possível, mas sempre achei que ele pudesse ser lido e relido muitos anos depois. Houve também quem visse no livro ficção científica. E ficção científica, já sabemos, envelhece logo. No entanto, ele é o inverso de uma ficção científica ou talvez seja uma ficção científica às avessas, porque não se trata de projetar o presente sobre o futuro, tentando adivinhá-lo, mas de invocar o futuro para ver o presente a partir de ângulos inusitados. Não se trata de tentar imaginar o futuro, mas de distorcer o ângulo de visão sobre o presente ao fazer com que o futuro – com suas mais sofisticadas tecnologias que sequer conhecemos – nos veja de perto e como somos.
Em que circunstâncias ele foi escrito?
Eu morava em São Francisco, na Califórnia, e assistia ao surgimento das comunicações por email, da internet e dos primeiros sites.
E de que forma surgiu essa premissa?
No meu primeiro romance, os capítulos eram escritos numa terceira pessoa que tinhaa dimensão da primeira, pois o narrador (um espírito) vivia dentro de cada um dos personagens, podendo, portanto, saber o que pensavam e podendo mostrá-los em sua intimidade. Em Samba-Enredo quis subverter a ideia do narrador usando outro recurso: um narrador em primeira pessoa que, por ser uma máquina hiper-inteligente, tinha a quase onisciência e a suposta objetividade da terceira pessoa. Tudo começou imaginando o diálogo entre a máquina e o espírito.
Qual foi a repercussão da primeira edição do livro?
Do ponto de vista da crítica, acho que não poderia ter sido melhor. Saíram resenhas ou comentários em toda a grande imprensa. Ao todo, houve cerca de 15 textos críticos sobre o livro, todos muito positivos, e até mesmo uma tese universitária. Mas as vendas não justificaram de imediato uma segunda edição, que só sai agora.
A decisão de fazer certas revisões, suprimindo ou acrescentando detalhes que atualizam ainda mais o texto, diante do projeto de reedição, foi imediata?
Nunca releio meus livros. No momento de uma reedição, sinto-me obrigado a fazê-lo, por respeito ao público e o desejo de fazer um ou outro reparo necessário. Mas me mantenho absolutamente fiel ao texto original. A revisão é mínima: a eliminação de alguma palavra demais ou, mais raramente, o acréscimo de alguma outra que deixe mais clara a intenção do relato.
Muitos escritores resistem a reler os próprios livros. No seu caso, por que isso acontece?
Porque o tempo é curto. Embora releia com frequência certos livros e possa ler seletivamente passagens de meus livros sobretudo para fazer reviver alguns personagens, prefiro me concentrar em minha nova escrita e em minhas novas leituras.
Samba-enredo traz o embate entre a máquina e o espírito em meio à carnavalização brasileira. Um embate entre extremos. A perspectiva de que a informática pudesse ganhar tamanha dimensão, perspectiva que assombrou grandes artistas e pensadores do século 20, era uma inquietude importante sua naquela na época? De lá para cá, como tem avaliado essa evolução?
Sim, já era uma inquietude na época. Basta dizer que muitos anos antes, em 1986, em meu livro O segredo e a informação, eu havia discutido os impactos da informática sobre o acesso, o armazenamento e o controle da informação num capítulo inicial dedicado à “informação e o segredo na era pós-industrial”. Em meio ao aumento exponencial da circulação de informações propiciado pela informática, as questões centrais permanecem: como democratizar a informação e como fazer com que ela não seja apenas ruído ou objeto de acúmulo meramente quantitativo, mas contribua para o conhecimento. O embate entre a máquina e o espírito é também entre a liberdade criativa e a razão instrumental, entre a acumulação de uma memória de fatos e as emoções da lembrança.
A ideia, contida alegoricamente nesse romance, de um certo atravessamento do espírito pela máquina, de que a máquina poderá, enfim, penetrar e revelar regiões insondáveis ou até mesmo negadas pela psique humana, teria já alcançado seu ápice?
Na verdade a máquina super-inteligente de um futuro longínquo estende suas redes, seus tendões, a regiões hoje inimagináveis, mas sempre encontrará seus limites e, se a ela for dado sentimento, sentirá frustração por isso. O espírito, que a atravessa, adquire distintas formas, é livre e sem limites.
E há também a relação importante entre carnaval, política e misticismo. Mesmo diante do desaparecimento de um presidente, o carnaval não cessa de acontecer, e a voz da “vidente” com sua conexão extraterrestre ocupa um espaço privilegiado. O senhor poderia falar um pouco a respeito do cruzamento dessas três cenas?
Quis sobretudo criar uma tensão ao fazer com que a espontaneidade calorosa e caótica do carnaval fosse narrada da perspectiva fria, distante e controladora da máquina. Nesse caldo caótico, a história, cujos ingredientes a máquina junta de formas inusitadas e o espírito interpreta livremente, pode ser vista ao mesmo tempo como uma história cósmica enxergada pelos místicos, a História política e a história individual e amorosa.
Certas questões, que deixam de ser discutidas à medida que se incorporam ao cotidiano, e são por isso como que “naturalizadas”, podem ganhar força incomum numa ficção. É o caso das discussões que são travadas nesse livro. Há um componente crítico muito forte cercando todas elas: as relações amorosas, políticas, sociais, religiosas e entre o homem e a tecnologia. Um acento melancólico, talvez? É possível ter esperanças diante de um carnaval tão triste?
Fora do livro, sim. Às vezes a crítica mais acerba se faz a partir da esperança. Já me referi ao “pessimismo como método”. Acho que a literatura não deve se desviar dos maiores desafios, deve encarar de frente os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida. Mas isso não implica falta de confiança no futuro. Ao contrário, ao revelar o lado escuro da existência, mostrando compaixão pelo que é profundamente humano, o escritor muitas vezes espera que, frequentemente ao contrário de muitos de seus personagens, seus leitores possam compartir com ele aquilo que Antonio Candido chama de experiência de humanização da literatura, que prolonga nossa experiência por nos fazer viver outras vidas.
2.o Caderno – LITERATURA
A UNIÃO, sábado, 17 de novembro de 2012
HISTÓRIAS DE UM CARNAVAL
SAMBA-ENREDO, segundo trabalho fictional de João Almino, é relançado 18 anos depois da primeira edição
Um evento histórico nebuloso – o desaparecimento do primeiro Presidente da República brasileiro negro durante o carnaval em Brasília – é resgatado décadas mais tarde por um computador e um fantasma. Passado e futuro se encontram numa narrativa apontada pela crítica como “Uma das mais consistentes realizações na área de ficção no Brasil”. Dezoito anos depois da primeira edição, o romance Samba-enredo, segundo trabalho ficcional de João Almino, é finalmente reeditado, revelando uma atualidade surpreendente.Comparado a Machado de Assis e Lima Barreto, ganhador de diversos prêmios literários, Almino nasceu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1950. Especialista em história e filosofia política, o escritor e diplomata João Almino já foi professor nas universidades Nacional do México, Nacional de Brasília, Berkeley e Stanford, além do Instituto Rio Branco.
É comum que a relação do autor com os primeiros livros se altere muito com o passar do tempo. Qual é a relação do senhor com esse livro hoje? Que espaço ele tem ocupado na sua bibliografia?
Cada livro que escrevo é uma aventura diferente. O que eles têm em comum é que não escrevo uma linha sem pensar se ela é de fato necessária e, se eu perceber que ela pode envelhecer facilmente, prefiro eliminá-la. Hoje não usaria as mesmas técnicas de qualquer dos meus livros, simplesmente porque não gosto de me repetir, mas não renego meus trabalhos anteriores. Por Samba-Enredo tenho um carinho especial, não só por causa do que trata, mas também pela forma. Foi o único de meus romances que escrevi inteiramente em verso livre e depois desfiz as quebras de linha, para extrair do texto uma certa musicalidade, que vai mudando ao longo da narrativa. Quando saiu, houve quem fizesse de Samba-Enredo uma leitura do Brasil contemporâneo, o que certamente era possível, mas sempre achei que ele pudesse ser lido e relido muitos anos depois. Houve também quem visse no livro ficção científica. E ficção científica, já sabemos, envelhece logo. No entanto, ele é o inverso de uma ficção científica ou talvez seja uma ficção científica às avessas, porque não se trata de projetar o presente sobre o futuro, tentando adivinhá-lo, mas de invocar o futuro para ver o presente a partir de ângulos inusitados. Não se trata de tentar imaginar o futuro, mas de distorcer o ângulo de visão sobre o presente ao fazer com que o futuro – com suas mais sofisticadas tecnologias que sequer conhecemos – nos veja de perto e como somos.
Em que circunstâncias ele foi escrito?
Eu morava em São Francisco, na Califórnia, e assistia ao surgimento das comunicações por email, da internet e dos primeiros sites.
E de que forma surgiu essa premissa?
No meu primeiro romance, os capítulos eram escritos numa terceira pessoa que tinhaa dimensão da primeira, pois o narrador (um espírito) vivia dentro de cada um dos personagens, podendo, portanto, saber o que pensavam e podendo mostrá-los em sua intimidade. Em Samba-Enredo quis subverter a ideia do narrador usando outro recurso: um narrador em primeira pessoa que, por ser uma máquina hiper-inteligente, tinha a quase onisciência e a suposta objetividade da terceira pessoa. Tudo começou imaginando o diálogo entre a máquina e o espírito.
Qual foi a repercussão da primeira edição do livro?
Do ponto de vista da crítica, acho que não poderia ter sido melhor. Saíram resenhas ou comentários em toda a grande imprensa. Ao todo, houve cerca de 15 textos críticos sobre o livro, todos muito positivos, e até mesmo uma tese universitária. Mas as vendas não justificaram de imediato uma segunda edição, que só sai agora.
A decisão de fazer certas revisões, suprimindo ou acrescentando detalhes que atualizam ainda mais o texto, diante do projeto de reedição, foi imediata?
Nunca releio meus livros. No momento de uma reedição, sinto-me obrigado a fazê-lo, por respeito ao público e o desejo de fazer um ou outro reparo necessário. Mas me mantenho absolutamente fiel ao texto original. A revisão é mínima: a eliminação de alguma palavra demais ou, mais raramente, o acréscimo de alguma outra que deixe mais clara a intenção do relato.
Muitos escritores resistem a reler os próprios livros. No seu caso, por que isso acontece?
Porque o tempo é curto. Embora releia com frequência certos livros e possa ler seletivamente passagens de meus livros sobretudo para fazer reviver alguns personagens, prefiro me concentrar em minha nova escrita e em minhas novas leituras.
Samba-enredo traz o embate entre a máquina e o espírito em meio à carnavalização brasileira. Um embate entre extremos. A perspectiva de que a informática pudesse ganhar tamanha dimensão, perspectiva que assombrou grandes artistas e pensadores do século 20, era uma inquietude importante sua naquela na época? De lá para cá, como tem avaliado essa evolução?
Sim, já era uma inquietude na época. Basta dizer que muitos anos antes, em 1986, em meu livro O segredo e a informação, eu havia discutido os impactos da informática sobre o acesso, o armazenamento e o controle da informação num capítulo inicial dedicado à “informação e o segredo na era pós-industrial”. Em meio ao aumento exponencial da circulação de informações propiciado pela informática, as questões centrais permanecem: como democratizar a informação e como fazer com que ela não seja apenas ruído ou objeto de acúmulo meramente quantitativo, mas contribua para o conhecimento. O embate entre a máquina e o espírito é também entre a liberdade criativa e a razão instrumental, entre a acumulação de uma memória de fatos e as emoções da lembrança.
A ideia, contida alegoricamente nesse romance, de um certo atravessamento do espírito pela máquina, de que a máquina poderá, enfim, penetrar e revelar regiões insondáveis ou até mesmo negadas pela psique humana, teria já alcançado seu ápice?
Na verdade a máquina super-inteligente de um futuro longínquo estende suas redes, seus tendões, a regiões hoje inimagináveis, mas sempre encontrará seus limites e, se a ela for dado sentimento, sentirá frustração por isso. O espírito, que a atravessa, adquire distintas formas, é livre e sem limites.
E há também a relação importante entre carnaval, política e misticismo. Mesmo diante do desaparecimento de um presidente, o carnaval não cessa de acontecer, e a voz da “vidente” com sua conexão extraterrestre ocupa um espaço privilegiado. O senhor poderia falar um pouco a respeito do cruzamento dessas três cenas?
Quis sobretudo criar uma tensão ao fazer com que a espontaneidade calorosa e caótica do carnaval fosse narrada da perspectiva fria, distante e controladora da máquina. Nesse caldo caótico, a história, cujos ingredientes a máquina junta de formas inusitadas e o espírito interpreta livremente, pode ser vista ao mesmo tempo como uma história cósmica enxergada pelos místicos, a História política e a história individual e amorosa.
Certas questões, que deixam de ser discutidas à medida que se incorporam ao cotidiano, e são por isso como que “naturalizadas”, podem ganhar força incomum numa ficção. É o caso das discussões que são travadas nesse livro. Há um componente crítico muito forte cercando todas elas: as relações amorosas, políticas, sociais, religiosas e entre o homem e a tecnologia. Um acento melancólico, talvez? É possível ter esperanças diante de um carnaval tão triste?
Fora do livro, sim. Às vezes a crítica mais acerba se faz a partir da esperança. Já me referi ao “pessimismo como método”. Acho que a literatura não deve se desviar dos maiores desafios, deve encarar de frente os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida. Mas isso não implica falta de confiança no futuro. Ao contrário, ao revelar o lado escuro da existência, mostrando compaixão pelo que é profundamente humano, o escritor muitas vezes espera que, frequentemente ao contrário de muitos de seus personagens, seus leitores possam compartir com ele aquilo que Antonio Candido chama de experiência de humanização da literatura, que prolonga nossa experiência por nos fazer viver outras vidas.
2.o Caderno – LITERATURA
A UNIÃO, sábado, 17 de novembro de 2012
HISTÓRIAS DE UM CARNAVAL
SAMBA-ENREDO, segundo trabalho fictional de João Almino, é relançado 18 anos depois da primeira edição
Um evento histórico nebuloso – o desaparecimento do primeiro Presidente da República brasileiro negro durante o carnaval em Brasília – é resgatado décadas mais tarde por um computador e um fantasma. Passado e futuro se encontram numa narrativa apontada pela crítica como “Uma das mais consistentes realizações na área de ficção no Brasil”. Dezoito anos depois da primeira edição, o romance Samba-enredo, segundo trabalho ficcional de João Almino, é finalmente reeditado, revelando uma atualidade surpreendente.Comparado a Machado de Assis e Lima Barreto, ganhador de diversos prêmios literários, Almino nasceu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1950. Especialista em história e filosofia política, o escritor e diplomata João Almino já foi professor nas universidades Nacional do México, Nacional de Brasília, Berkeley e Stanford, além do Instituto Rio Branco.
É comum que a relação do autor com os primeiros livros se altere muito com o passar do tempo. Qual é a relação do senhor com esse livro hoje? Que espaço ele tem ocupado na sua bibliografia?
Cada livro que escrevo é uma aventura diferente. O que eles têm em comum é que não escrevo uma linha sem pensar se ela é de fato necessária e, se eu perceber que ela pode envelhecer facilmente, prefiro eliminá-la. Hoje não usaria as mesmas técnicas de qualquer dos meus livros, simplesmente porque não gosto de me repetir, mas não renego meus trabalhos anteriores. Por Samba-Enredo tenho um carinho especial, não só por causa do que trata, mas também pela forma. Foi o único de meus romances que escrevi inteiramente em verso livre e depois desfiz as quebras de linha, para extrair do texto uma certa musicalidade, que vai mudando ao longo da narrativa. Quando saiu, houve quem fizesse de Samba-Enredo uma leitura do Brasil contemporâneo, o que certamente era possível, mas sempre achei que ele pudesse ser lido e relido muitos anos depois. Houve também quem visse no livro ficção científica. E ficção científica, já sabemos, envelhece logo. No entanto, ele é o inverso de uma ficção científica ou talvez seja uma ficção científica às avessas, porque não se trata de projetar o presente sobre o futuro, tentando adivinhá-lo, mas de invocar o futuro para ver o presente a partir de ângulos inusitados. Não se trata de tentar imaginar o futuro, mas de distorcer o ângulo de visão sobre o presente ao fazer com que o futuro – com suas mais sofisticadas tecnologias que sequer conhecemos – nos veja de perto e como somos.
Em que circunstâncias ele foi escrito?
Eu morava em São Francisco, na Califórnia, e assistia ao surgimento das comunicações por email, da internet e dos primeiros sites.
E de que forma surgiu essa premissa?
No meu primeiro romance, os capítulos eram escritos numa terceira pessoa que tinhaa dimensão da primeira, pois o narrador (um espírito) vivia dentro de cada um dos personagens, podendo, portanto, saber o que pensavam e podendo mostrá-los em sua intimidade. Em Samba-Enredo quis subverter a ideia do narrador usando outro recurso: um narrador em primeira pessoa que, por ser uma máquina hiper-inteligente, tinha a quase onisciência e a suposta objetividade da terceira pessoa. Tudo começou imaginando o diálogo entre a máquina e o espírito.
Qual foi a repercussão da primeira edição do livro?
Do ponto de vista da crítica, acho que não poderia ter sido melhor. Saíram resenhas ou comentários em toda a grande imprensa. Ao todo, houve cerca de 15 textos críticos sobre o livro, todos muito positivos, e até mesmo uma tese universitária. Mas as vendas não justificaram de imediato uma segunda edição, que só sai agora.
A decisão de fazer certas revisões, suprimindo ou acrescentando detalhes que atualizam ainda mais o texto, diante do projeto de reedição, foi imediata?
Nunca releio meus livros. No momento de uma reedição, sinto-me obrigado a fazê-lo, por respeito ao público e o desejo de fazer um ou outro reparo necessário. Mas me mantenho absolutamente fiel ao texto original. A revisão é mínima: a eliminação de alguma palavra demais ou, mais raramente, o acréscimo de alguma outra que deixe mais clara a intenção do relato.
Muitos escritores resistem a reler os próprios livros. No seu caso, por que isso acontece?
Porque o tempo é curto. Embora releia com frequência certos livros e possa ler seletivamente passagens de meus livros sobretudo para fazer reviver alguns personagens, prefiro me concentrar em minha nova escrita e em minhas novas leituras.
Samba-enredo traz o embate entre a máquina e o espírito em meio à carnavalização brasileira. Um embate entre extremos. A perspectiva de que a informática pudesse ganhar tamanha dimensão, perspectiva que assombrou grandes artistas e pensadores do século 20, era uma inquietude importante sua naquela na época? De lá para cá, como tem avaliado essa evolução?
Sim, já era uma inquietude na época. Basta dizer que muitos anos antes, em 1986, em meu livro O segredo e a informação, eu havia discutido os impactos da informática sobre o acesso, o armazenamento e o controle da informação num capítulo inicial dedicado à “informação e o segredo na era pós-industrial”. Em meio ao aumento exponencial da circulação de informações propiciado pela informática, as questões centrais permanecem: como democratizar a informação e como fazer com que ela não seja apenas ruído ou objeto de acúmulo meramente quantitativo, mas contribua para o conhecimento. O embate entre a máquina e o espírito é também entre a liberdade criativa e a razão instrumental, entre a acumulação de uma memória de fatos e as emoções da lembrança.
A ideia, contida alegoricamente nesse romance, de um certo atravessamento do espírito pela máquina, de que a máquina poderá, enfim, penetrar e revelar regiões insondáveis ou até mesmo negadas pela psique humana, teria já alcançado seu ápice?
Na verdade a máquina super-inteligente de um futuro longínquo estende suas redes, seus tendões, a regiões hoje inimagináveis, mas sempre encontrará seus limites e, se a ela for dado sentimento, sentirá frustração por isso. O espírito, que a atravessa, adquire distintas formas, é livre e sem limites.
E há também a relação importante entre carnaval, política e misticismo. Mesmo diante do desaparecimento de um presidente, o carnaval não cessa de acontecer, e a voz da “vidente” com sua conexão extraterrestre ocupa um espaço privilegiado. O senhor poderia falar um pouco a respeito do cruzamento dessas três cenas?
Quis sobretudo criar uma tensão ao fazer com que a espontaneidade calorosa e caótica do carnaval fosse narrada da perspectiva fria, distante e controladora da máquina. Nesse caldo caótico, a história, cujos ingredientes a máquina junta de formas inusitadas e o espírito interpreta livremente, pode ser vista ao mesmo tempo como uma história cósmica enxergada pelos místicos, a História política e a história individual e amorosa.
Certas questões, que deixam de ser discutidas à medida que se incorporam ao cotidiano, e são por isso como que “naturalizadas”, podem ganhar força incomum numa ficção. É o caso das discussões que são travadas nesse livro. Há um componente crítico muito forte cercando todas elas: as relações amorosas, políticas, sociais, religiosas e entre o homem e a tecnologia. Um acento melancólico, talvez? É possível ter esperanças diante de um carnaval tão triste?
Fora do livro, sim. Às vezes a crítica mais acerba se faz a partir da esperança. Já me referi ao “pessimismo como método”. Acho que a literatura não deve se desviar dos maiores desafios, deve encarar de frente os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida. Mas isso não implica falta de confiança no futuro. Ao contrário, ao revelar o lado escuro da existência, mostrando compaixão pelo que é profundamente humano, o escritor muitas vezes espera que, frequentemente ao contrário de muitos de seus personagens, seus leitores possam compartir com ele aquilo que Antonio Candido chama de experiência de humanização da literatura, que prolonga nossa experiência por nos fazer viver outras vidas.