Da intuição delirante à descrença ponderada
- ANA CRISTINA BRAGA MARTES
- SÃO PAULO – SP
Homem de papel, oitavo romance de João Almino, é uma paródia do Memorial de Aires, último livro de Machado de Assis. Ele incorpora o protagonista e alguns personagens também presentes em Esaú e Jacó, do mesmo autor, e dá continuidade à história do conselheiro até chegar ao século 21, com uma anta disputando a presidência da República.
Sem metáforas, a anta também é — literalmente — um animal neste livro. Além de ser, é claro, um símbolo nacional. A partir daí, todas as derivações são possíveis. Entre metáforas e muita ironia, o enredo vem e vai na história do Brasil. Paródia combinada à metalinguagem e intertextualidade, pois é um livro escrito por um livro que adota outros livros como referência. Aires, o narrador centenário, se transforma em um homem de papel — também ele, um herói malogrado.
Ainda que o leitor nunca tenha lido Machado de Assis, Homem de papel flui machadianamente do mesmo jeito. O livro é escrito com um tipo de humor também machadiano, irônico e cortante, assim como a escrita é muito próxima deste autor, direta mas carregada de surpresas.
Enredo e temas
Homem de papel conta a história de um livro com todos os dramas capazes de acometer o mais comum dos mortais: o amor, a incerteza do ser, problemas com a própria identidade e com o envelhecimento. Tudo começa com a personagem Flor, uma diplomata que adorava ler “o livro”. Há muitas passagens elucidativas e nostálgicas que parecem ter o objetivo de realmente esclarecer (e criticar) o exercício da diplomacia, o acesso à carreira e as promoções internas, especialmente nas primeiras décadas dos anos 2000.
Em Machado, Aires é conselheiro para dilemas pessoais e dramas morais típicos do século 19, com as transformações ocorridas nos últimos cem anos. Agora, no livro de Almino, ele passa a ser requisitado como uma espécie de terapeuta ou analista. Além dos problemas enfrentados na carreira diplomática de Flor, Aires ouve pacientemente seus relatos de traição conjugal e outras coisas mais íntimas, que as mulheres de Machado talvez não ousassem. Por se tratar de um livro, deve-se considerar que o Aires do Homem de papel é um voyeur discreto e poderoso.
Morador da capital, teve que deixar o Rio de Janeiro ao ser levado para Brasília a contragosto. Nesta cidade, que aparece em vários romances de Almino e é por ele definida como “uma cidade de cruzamentos” e um “Brasil de Brasis”, o livro pode continuar testemunhando a fantástica vida política brasileira.
Do Rio para Brasília, de Flor para Leonor. O livro foi comprado em um sebo por Leonor, que também o tem como um conselheiro, solicitando sua opinião, confessando sentimentos ambíguos e angustiados. Por ser um livro, é incapaz de ver todas a cenas, faltam-lhe pernas e onipresença. Mas sua intuição, vivência e raciocínio lógico são suficientes para deduzir tudo o que se passa. Num tom “modesto” e sarcástico ao mesmo tempo, ele se permite afirmações como: “Isto exatamente eu não vi, mas…”.
Um dos pontos altos do enredo ocorre quando o protagonista sai do livro. Sim, o livro deixa de ser livro para ser personagem, personagem preso ao próprio livro, que vai desembocar, de fato, na prisão de Aires por causa da anta. Muita inspiração, humor fantástico e fabulação literária.
O narrador-livro filosofa e é um ser intrigado com a natureza humana. Suas páginas trazem uma reflexão constante sobre a vida, as ações mundanas e suas consequências, principalmente as mais absurdas e inesperadas (ou esperadas, mas carregadas de autoengano). Apesar de ser tão velho — e talvez por isso mesmo —, Aires tem um olhar crítico sobre si, sujeito decadente, e a própria decadência do Brasil ao longo de tantas décadas. Ele tenta se atualizar ao máximo, chegando a ter uma presença ativa nas redes sociais, mas tem consciência de ser impossível superar sua condição de sujeito/objeto ultrapassado. Até o Google é capaz de atestar seu declínio: as pesquisas pelo seu nome decresciam ano a ano, tendo caído de 40 mil para 30 mil nos últimos dez anos.
Discursos radicais
Solilóquios e diálogos em meio a narrativas políticas, especialmente as que se referem a dois momentos da história do Brasil que Almino aproxima e compara para destacar similaridades curiosas: de um lado, a abolição da escravatura e fim do Império e, de outro, a instabilidade política e jurídica das primeiras décadas do século 21. A polarização e o ódio estão presentes nos dois contextos, apesar das diferenças temporais, tecnológicas e econômicas.
Como livro e conselheiro, ele se vê obrigado a ouvir (e sobretudo a ponderar) discursos radicais e populistas à direita e à esquerda, semelhantes aos discursos conservadores e liberais que testemunhou no fim do Império, com o embate entre republicanos e monarquistas. Um dos recursos literários usados para aproximar estes dois momentos históricos é a menção a uma passagem do memorial, que faz com que Aires se lembre de que está no Brasil ao ouvir alguém gritando da rua: “Vassoura, vassoura, vassoura…”. Em Homem de papel, a frase análoga é: “Pamonhas, pamonhas, pamonhas”. No final das contas, o país não mudou muito.
Ironia
Almino usa a ironia como estilo literário e motor do enredo. O recurso está na construção dos personagens, nas cenas, nos diálogos, no pensamento enroscado nele mesmo. Nada escapa ao olhar relativista e pessimista do livro-narrador, capaz de radicalizar a ironia até tudo se tornar ridículo ou fantástico, como no caso da anta. Nesta e em outras passagens, observa-se uma tensão permanente entre o que é literal e o que é figurado, levando o leitor a se perguntar sobre o sentido das palavras. Uma vez que a ironia deixa transparecer um sentimento de superioridade, o leitor suspeita de que a autoimagem de flagrante decadência é puro fingimento, um artifício de sedução do protagonista.
Tal como em Machado, o humor reflete uma compreensão filosófica do mundo que ilumina a dimensão comezinha da qual nenhum humano escapa e que induz a cálculos e ações equivocadas. Todos estão perdidos e a vida talvez não faça sentido algum. Mas não se engane, o narrador é um dissimulador profissional. Muita galhofa e escárnio são usados para denunciar, mas sempre reduzindo os riscos de cair nos extremos. Nada de posicionamentos definitivos ou absolutos sobre os fatos, especialmente se capazes de descartar definitivamente a esperança. Homem de papel vai da intuição delirante à ponderação para atingir o ápice de uma crítica resignada.
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O GLOBO
‘Homem de papel’: personagem de Machado de Assis conhece século XXI em novo livro de João Almino
Circulando as ruas de Brasília, o conselheiro Aires segue especialista na alma humana
Stefania Chiarelli, especial para O GLOBO
02/04/2022 – 04:30
Posse do escritor João Almino na Academia Brasileira de Letras Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Ele é um diplomata aposentado. Vestido à moda antiga, apresenta-se sóbrio, equilibrado, verdadeiro mediador. Homem bicentenário, seu nome é Aires, e ele vem de outro século — viajou diretamente das páginas de “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), de Machado de Assis, para protagonizar “Homem de papel”, oitavo romance de João Almino. O escritor, nascido em Mossoró (RN), também diplomata, promove na narrativa intenso jogo entre passado e presente, em que o célebre personagem transita hoje pelas entrequadras de Brasília, no lugar dos passeios pela Praia de Botafogo e Rua do Ouvidor, no Centro da antiga capital federal.
Plantado neste confuso século XXI, Aires vai revelando, em primeira pessoa, sua perspectiva das coisas. O conselheiro agora mora dentro de um livro. A diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, é sua interlocutora privilegiada, e diante de seus olhos espantados o personagem se materializa a cada tanto, saindo do exemplar para o mundo real. A moça vive uma crise, dividida entre o amor do marido Cássio e do colega Zeus, ecos visíveis da grande Flora, de “Esaú e Jacó”, jovem perdidamente apaixonada pelos gêmeos que protagonizam a trama.
É antiga a relação quase promíscua entre livros, histórias e palavras. A obra machadiana já vem marcada por múltiplas citações: o escritor carioca se pautou pela releitura da tradição, parodiando sem reservas o texto alheio, da Bíblia a José de Alencar, de Laurence Stern a Xavier de Maîstre. Nessa espiral, o romance de Almino se situa entre criação e apropriação, gesto que desde sempre sustenta a própria literatura. Ele não está só, muitos escritores já beberam dessa água, como Lygia Fagundes Telles, com o roteiro “Capitu” (1967), e Silviano Santiago, no romance “Machado” (2016), entre tantos outros.
Em Almino, ecoando Machado, Aires chama a atenção para que o leitor tome parte ativa na história, orientando nossa leitura com lembretes e perguntas: “Peço que não riam de mim” ou “Afinal, quem era eu?” Tal procedimento surge como alerta —estamos lendo um relato ficcional, aqui fala um homem de papel. Nessa condição, em algum momento ele dá o salto e sai da página escrita. Flor e a entusiasmada professora Leonor são as que melhor conseguem vê-lo.
Tentador ver aqui sopros vindos da cinematografia de Woody Allen, não por acaso diretor citado no discurso do escritor ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 2017. “A rosa púrpura do Cairo” (1985) evoca com força a quebra da distância entre personagem fictício e espectadora, na figura de Tom Baxter, ator que abandona a tela para declarar o amor à garçonete Cecília, que vê o filme repetidas vezes na Nova Jersey dos anos 1930. Uma fã, um personagem. Uma leitora, um conselheiro. Em ambas as narrativas, a saída do protagonista provoca imediata desarmonia no universo ficcional. Como fazer sentido sem sua presença? Filme e livro respondem à pergunta com interessantes desdobramentos.
No âmbito da trama, chama a atenção a ambientação em Brasília, lugar de grande relevância na prosa de Almino, dedicada a pensar as relações com esse espaço mítico e utópico. À trilogia composta por “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1987), “Samba-enredo” (1994) e “As cinco estações do amor” (2001), acresceu-se “O livro das emoções” (2008), “Cidade livre” (2010) e “Entre facas, algodão” (2017), também ancorados na cidade. Ao olhar para o conjunto dessa já vasta obra, é possível perceber um sólido projeto literário —temas e ambientação retornam, criando uma espécie de constelação em diálogo, em que o escritor dá asa solta à imaginação. Um personagem pode saltar das páginas do livro que o abriga, ou um computador é capaz de narrar toda a trama, como G.G., de “Samba-enredo”.
Mas o narrador Aires carrega várias ambiguidades. Empenhado em recordar o passado, confessa ter a memória falha, admitindo ser impreciso na recomposição do vivido. Surpresas e equívocos se intercalam, como na divertida passagem do carnaval, em que é tomado por folião. Nesse universo dúbio, por vezes um ser imaterial pode ser mais real do que indivíduos de carne e osso, e as cenas ambientadas no mundo da política e da diplomacia comprovam o quanto de teatro a vida obriga a fazer. Na visão de alguns, Aires revela prudência no viver. Já outros o enxergam como alguém que jamais se posiciona e evita a controvérsia a qualquer preço.
Mesmo desconhecendo as redes sociais, os aparelhos de celular e os bitcoins, o conselheiro segue um especialista na alma humana. No Brasil caótico de hoje, em que a diplomacia anda tão mal representada, seu espírito sensível e elegante faz diferença. Viúvo e sem filhos, Aires pensa que o verdadeiro patrimônio consiste na herança das palavras. Esse imprescindível capital constitui um modo de prolongar a estirpe do conselheiro nos leitores de hoje e do futuro — de corpo presente, papel ou dígitos, cada leitura dirá.
Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF
“Homem de papel”
Autor: João Almino. Editora: Record. Páginas: 416.
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As Aventuras do Conselheiro Aires em Brasília
Correio Braziliense, 14 de junho de 2022
As aventuras do conselheiro Aires em Brasília
Vera Lúcia de Oliveira
“É por causa de gente como o senhor, sempre disposto a acomodar, que as coisas não
avançam, Hugo falou.
O senhor é puramente livresco, disse Miguel, no centro da mesa.
Um homem de papel, completou Hugo.
Isso não posso negar, respondi contrariado.” (Pág. 145).
Quem respondeu contrariado foi o conselheiro Aires, personagem-
narrador que migrou do romance Memorial de Aires (1908), de Machado
de Assis, para o recém-lançado Homem de papel (2022), de João Almino,
seu oitavo romance. Ambos dispensam apresentação. Machado, o clássico
da literatura de todos os tempos; Almino, o clássico moderno, autor do
magnífico Cidade livre (2010), entre outros excelentes romances e ensaios
de história e filosofia política. Ambos imortais da Academia Brasileira de
Letras.
Pois foi com o espírito da paráfrase, da literatura fantástica, da
graça cult que Almino construiu esse romance pós-moderno, homenagem
ao “bruxo do Cosme Velho”. Ninguém poderia fazê-lo melhor: diplomata
de carreira, mergulhou no personagem aposentado, pacifista (mais por
tédio à controvérsia) e bebeu suas palavras, sua moderação e elegância. E,
num poderoso exercício de imaginação, trouxe-o para Brasília. Diz ele:
Meu nome, não sei se terão adivinhado, é José da Costa Marcondes Aires. Nasci
no Rio de Janeiro às seis da tarde em 17 de outubro de 1825 e acordei em Brasília
confundido por siglas. Mesmo sem ser aristocrata, me infiltrei na aristocracia quando
passei em 1852 num concurso para a Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros.
Depois de hesitar se aceitaria uma encarregatura de negócios junto à Gran Colombia,
onde havia estado um visconde conhecido meu, fui enviado a Viena. (Pág. 31).
Assim se constrói a trama desse romance encantador: uma
diplomata “arretada” da nova geração de nome Flor recebe um presente
e não se desgruda mais dele, o romance Memorial de Aires. Personagem
forte, inteligente, franca, mulher de quase de meia idade, que sabe o que
quer (menos quando tem de escolher o parceiro com quem ficar). O livro
que, segundo ela, a acompanharia pelo resto da vida, era um guia para a
sua carreira. Casada, mãe de um filho, e com relacionamento
extraconjugal com um diplomata superior hierarquicamente, Flor tem vida
amorosa complicada. Ela, Cássio, o marido, e o amante Zeus formam o
triângulo desamoroso da história.
Almino “entra” no Memorial de Aires e utiliza palavras e expressões
do livro num diálogo que mantém vivo o romance, tecendo a narrativa
com personagens equivalentes aos da história original. Dentro do livro, na
mão ou na pasta de trabalho de Flor, o conselheiro aposentado
acompanha-a em passeios em Brasília e em viagens, a exemplo da ida a
Viena, onde queria rever o túmulo da mulher e o de Beethoven, cuja
ópera Fidélio com a abertura “Leonora” tem mais de um sentido na obra.
A narrativa desperta o interesse do leitor cada vez mais pelo
elemento fantástico que, curiosamente, se desfaz pelo fato de as próprias
personagens tratarem o livro falante com naturalidade (como na
Metamorfose, de Kafka, em que a família não se espanta em ver Gregor
Samsa transformado em inseto). Há também ecos de Borges quando a
fantasia e as pistas falsas, como obras e sites inexistentes, deixam o leitor
desnorteado. Artimanhas do autor.
O conselheiro Aires, uma espécie de guru da diplomacia para Flor,
aparece inicialmente como personagem machadiano em Esaú e Jacó,
romance de 1904, para, em seguida, ter um livro só seu, de memórias, o
Memorial de Aires, de 1908, ano da morte de Machado. Em Esaú e Jacó, o
autor focaliza o fato político da Proclamação da República, em 1889. No
Memorial, o tempo histórico é 1888, ano da Abolição da Escravatura no
Brasil. E, no Homem de papel, Almino concentra a ação neste selvagem
2022, ano de eleições, destacando-se a de Presidente da República, e faz
um contraponto com as duas obras citadas, no sentido de discutir com
espírito crítico a insana situação política do país, no passado como no
presente. Replica, portanto, os personagens: os gêmeos briguentos Pedro
e Paulo, de Esaú e Jacó, em Miguel e Hugo (trigêmeos com Flora)
igualmente beligerantes e irreconciliáveis, metáfora sutil para o Brasil de
hoje. Por sua vez, Flor lembra a indecisa Flora quanto à escolha do
parceiro, enquanto Leonor, a professora argentina especialista no
conselheiro-personagem, guarda semelhança com Fidélia, a jovem viúva
que despertou todos os sentidos (ocultados) do velho conselheiro Aires.
Fidélia, Leonor – tema da fidelidade conjugal em Beethoven.
A ideia do autor é muito feliz, pois utiliza um recurso cômico ao
fazer o velho conselheiro viajar ao futuro e ao passado, do qual, na
verdade, nunca saiu, com sua cultura e linguagem polida, seu colete,
fraque, botinas enceradas e bigode retorcido. Todo ele démodé. Mas
ninguém em Brasília repara… Ele sai e volta ao livro com desenvoltura,
como um animalzinho de estimação – e obediente – de Flor, que o guarda
com todo o cuidado. Mas as coisas mudam e ele vai parar até num sebo. E
em lugares piores. Muito piores. É um personagem falante. Um verdadeiro
“audiobook”.
O melhor do livro é esse jogo, uma espécie de “mise en abyme”, um
romance dentro do outro, o que é muito engenhoso e divertido. Há
também um “trompe-loeil” literário que brinca com a própria narração,
uma vez que os personagens de Homem de papel dizem ao conselheiro
que ele não tem existência real, que é um personagem de romance, um
homem sem carne – de papel -, quando na realidade esses mesmos
personagens são igualmente de papel para o leitor. Sem contar a aparição
do enigmático editor M. de A. para aumentar o imbróglio.
Os personagens do Memorial dialogam entre si, a exemplo de dona
Cesárea, velha amiga de língua afiada, que pede ao conselheiro que volte
ao passado. Os diálogos se alternam entre passado e presente, num
exercício de intertextualidade, o que na narrativa significa futuro, num
jogo entre ficção e… ficção.
E o conselheiro, homem conservador, vai se adaptando à nova vida,
se soltando muito à vontade, protagonizando mil e uma peripécias,
rebelando-se, o que preocupa Flor: “conselheiro, imploro que as situações
que o senhor anda criando parem por aí. O senhor sabe o carinho e o
respeito que tenho pelo senhor.” (Pág. 117). Algumas delas como fazer
pagamentos com moedas do século 19 que ainda trazia no bolso; fugir
sem pagar a conta; frequentar as redes sociais com milhões de seguidores;
ser guiado por um cego pelas ruas de Brasília; visitar o palácio do
Itamaraty (de onde quase foi expulso); lidar com fake News e participar de
manifestação política na Esplanada dos Ministérios. Esta, particularmente
hilariante, tem alguma coisa de O rinoceronte, de Ionesco, pelo absurdo
da situação. Assim como a sessão na Câmara dos Deputados, cuja
comicidade atinge o paroxismo com a discussão acalorada sobre a
questão de uma anta ser candidata às próximas eleições. (Num país que
quase elegeu um macaco, o Tião, à prefeitura do Rio de Janeiro tudo é
possível.). Almino utiliza com muita graça o jargão de todas as categorias
sociais, bem como os mais variados registros linguísticos como profundo
conhecedor da língua portuguesa que é, e não só da língua de Machado
de Assis, cujo representante no romance é o conselheiro Aires, homem
lido e relido, leitor de Shelley, Dostoiévski, Platão. Sobrevivendo a si
mesmo, diz: “Vocês pensam, logo existo”.
Assim, o embaixador João Almino com sua prosa vigorosa mais uma
vez declara o seu amor a Brasília de JK, Lúcio Costa e Niemeyer, que,
agradecida, o abraça calorosamente; cidade aberta ao novo e ao velho –
que nela se encontram, ou se cruzam, como os dois eixos que formam o
traçado da cidade. Assim também, o velho diplomata, exumado, se
encontra com o novo Brasil, que, dividido, anseia por dias melhores. Que
hão de vir.[:en]As aventuras do conselheiro Aires em Brasília
Vera Lúcia de Oliveira
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Antônio Torres sobre Homem de Papel, de João Almino
João Almino nos brinda com o seu oitavo romance, com o qual acrescenta um ponto importante ao conjunto de sua obra – uma obra, diga-se, vigorosa e rigorosa, de intensa leveza narrativa, e que inclui o ensaio literário e escritos de história e filosofia.
Se no seu romance anterior, Entre facas, algodão, ele se fez o continuador da prosa realista, enxuta, metonímica de Graciliano Ramos, do mundo de casas repartidas dos meninos de engenho de José Lins do Rego, e até da poesia descarnada de João Cabral de Melo Neto, agora, com a pena da galhofa, tintas alegóricas, por vezes melancólicas, em outras utópicas e distópicas, João Almino resgata um personagem de Machado de Assis, e o enfia nas farsas e tragédias desse nosso tempo.
Homem de Papel tem como narrador o conselheiro Aires, que é transportado do Rio de Janeiro dos fins do século 19 e começos do 20 para a cidade projetada como um cenário modernista e que passa a ser associada ao que o país tem hoje como palco das mais acerbas e/ou retrógadas discussões, que, por óbvio, nem preciso nomear.
Se em Esaú e Jacó o conselheiro Aires está numa trama que envolve dois irmãos em disputa de uma mesma mulher, enquanto defendem regimes contrários (Monarquia e República), agora ele ganha protagonismo metamorfoseado em livro, do qual dá suas saídas para o mundo real – um mundo com as marcas da ignorância e da estupidez, bem visíveis nas quadras e ruas da capital federal.
O livro em que ele se abriga pertence à jovem diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel que, assim como os gêmeos de Machado de Assis, vivem em discórdia em razão de suas posições políticas.
Saturado de embates privados e públicos, restará ao conselheiro Aires o seguinte dilema: voltar ou não voltar para dentro do livro. E nisso João Almino opera uma lição de literatura, como assinala o ensaísta e crítico literário português Abel Barros Baptista, no posfácio de Homem de Papel, por ele considerado surpreendente, inteligente e “divertidamente irônico, ou não fosse Aires o mais eminentemente personagem machadiano transportável para fora do livro e o mais eminentemente capaz de restaurar a necessidade de a ele regressar”, conclui o muito premiado ensaísta e crítico literário Abel Barros Baptista, professor da Universidade Nova de Lisboa, e autor de 3 livros sobre Machado de Assis.
Antônio Torres
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Oitavo romance de João Almino e segundo após entrar para a Academia Brasileira de Letras, Homem de papel transporta o conselheiro Aires para o século XXI. Livro será lançado em live no dia 12/04 às 19h.
O que Machado de Assis diria se escrevesse sobre a realidade contemporânea? Em Homem de papel, João Almino, diplomata e um dos escritores mais importantes da literatura nacional, resgata o personagem-narrador conselheiro Aires, transportando-o para os dias atuais. Se no machadiano Esaú e Jacó o conselheiro está numa trama sobre dois irmãos que disputam a mesma mulher e defendem regimes políticos contrários (Monarquia e República), em Homem de papel ele ganha protagonismo metamorfoseado em livro, do qual consegue dar escapadelas para o mundo real, regido pela ignorância e estupidez.
O exemplar que o abriga pertence à jovem diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, que, assim como os gêmeos de Machado, estão em eterna rixa. O conselheiro se depara com as redes sociais e precisa se adaptar à velocidade com que as notícias se multiplicam. Diferentemente do final do século XIX e início do XX, cada notícia cria milhões e milhões de “verdades” de consequências irreparáveis.
Sobre Homem de papel, Hélio Guimarães, professor da USP, escreve: “Movendo-se entre a farsa, a paródia, a sátira e a tragicomédia, João Almino aciona com maestria muitas notas do cômico. O humor afasta qualquer sugestão de que o passado fosse muito melhor do que o presente. Continua valendo aqui, como em Machado, a convicção de que ciúmes, traições, medo, orgulho, vaidade até mudam de endereço, mas mantêm o frescor do primeiro pé de alface que nossos ancestrais arrancaram da terra.” E afirma o crítico português Abel Barros Baptista: “uma lição de literatura: surpreendente e inteligente.”
HOMEM DE PAPEL
João Almino
416 págs. | R$ 64,90
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Lançamento
Homem de papel será lançado no dia 12 de abril, às 19h, em uma conversa do autor, João Almino, com o escritor Luiz Ruffato. A transmissão será ao vivo no youtube da Livraria da Travessa.
Trecho do livro
“Sempre que eu ouvia desavenças políticas, corriqueiras, menos corriqueiras e de todos os tipos, eu pensava em Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, um monarquista e o outro republicano, que já brigavam na barriga da mãe. Vocês fiquem tranquilos, jamais darei tanta importância a eles neste meu relato. Não vou substituir suas paixões pelas dos partidos azul e vermelho, nem os colocar a defender e condenar o golpe, embora o tenham feito em 1889. Não os convidaria para estes papéis novos por uma razão fundamental: um e outro abdicariam, como fizeram no passado, de suas paixões políticas por outra maior. Escreveriam suas constituições pessoais, acima da Monarquia e da República, para conquistar o amor de uma moça que acabaria morrendo de indecisão.”
Sobre o autor
João Almino nasceu em Mossoró, RN. Diplomata e um dos nomes mais importantes da literatura nacional atualmente, tem sido aclamado pela crítica por seus romances Ideias para onde passar o fim do mundo (Prêmio do Instituto Nacional do Livro), Samba-enredo, As cinco estações do amor (Prêmio Casa de las Américas), O livro das emoções, Cidade livre (Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon), Enigmas da primavera e Entre facas, algodão. Seus romances foram publicados na Argentina, Espanha, EUA, França, Holanda, Itália e México, entre outros países. Seus escritos de história e filosofia política são referência para os estudiosos do autoritarismo e da democracia. Em 2017, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Simone Magno
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SOBRE “HOMEM DE PAPEL”, LEIA ORELHA DO PROFESSOR HÉLIO GUIMARÃES, da Universidade de São Paulo:
O que diriam o conselheiro Aires, e Machado de Assis, sobre o estado de coisas no Brasil de hoje?
É essa a pergunta que parece mover a imaginação do escritor, e a do leitor, neste Seduções do Ocaso, o oitavo romance de João Almino.
O conselheiro Aires, que preside os dois últimos romances de Machado de Assis, é o narrador e protagonista aqui. Espiando de dentro das páginas do livro que habita há mais de século, e também em algumas escapadelas para o mundo exterior, ele passa em revista este nosso tempo regido pela ignorância e pela estupidez.
O exemplar que lhe serve de abrigo pertence a uma certa Flor, jovem diplomata, trigêmea de Hugo e Miguel. Neste caso, Flor não está dividida entre o amor de dois gêmeos, mas espremida entre dois irmãos em eterna rixa política.
O centro da ação desloca-se agora do Catete e do Botafogo para uma Brasília invadida por antas, esse animal tipicamente nacional, como o romance faz questão de frisar.
Os anos de transição da monarquia para a república, em que as personagens machadianas assistem, entre embasbacadas e indiferentes, tanto à abolição como à proclamação do novo regime, dão lugar à vertigem do agora.
A confusão generalizada não provoca muito mais do que bocejos no velho diplomata. Quando lhe perguntam como vê a atualidade, responde: “A lua está bonita”.
Aires, no entanto, não deixa de se espantar com a propaganda do Viagra, que lhe permitiria reescrever os velhos versos de Shelley e finalmente eliminar o “not” dos célebres versos “I can give not what men call love”.
Confrontado com as redes sociais, o conselheiro redivivo é obrigado a refazer as contas. Se no século 19 toda notícia crescia pelo menos de dois terços, agora cada notícia multiplica-se aos milhões, criando milhões e milhões de “verdades” em conflito.
Movendo-se entre a farsa, a paródia, a sátira e a tragicomédia, João Almino aciona com maestria muitas notas do cômico, provocando estampidos de riso, risadas malévolas, esgares e certamente muito sorriso amarelo.
O riso afasta qualquer sugestão de que o passado fosse muito melhor do que o presente. Continua valendo aqui, como em Machado, a convicção de que ciúmes, traições, medo, orgulho, vaidade até mudam de endereço, mas mantêm o frescor do primeiro pé de alface que nossos ancestrais arrancaram da Terra.
Assim, basta raspar de leve o tênue verniz que recobre as personagens para perceber que o mundo continua povoado pelos descendentes de Brás Cubas, Quincas Borba, Bento Santiago, Fidélia, dona Cesária e, claro, esse Aires, com a sua eterna flor na botoeira.
Neste que talvez seja o mais alusivo de todos os seus romances, João Almino não poupa ironia à vida literária, à academia, à política e à diplomacia. Entre o desespero e o riso, ressuscita o velho diplomata para nos perguntar ainda mais uma vez: “Que país é este?” E, por tabela, que mundo e que tempo é este em que sobrevivemos.
Hélio Guimarães, USP
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SOBRE “HOMEM DE PAPEL”, LEIA POSFÁCIO DO PROFESSOR ABEL BARROS BAPTISTA, DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA:
“Olha, conselheiro… O senhor deve ficar no livro, é o que lhe digo. Nem Machado de Assis consegue permanecer como grande escritor sem a presença do senhor. Fique, conselheiro. O mundo lá fora, como está, não merece o senhor.” São palavras de uma certa D. Cesária, que o leitor vai encontrar bem cedo no livro que tem nas mãos. O mundo “lá fora” é o que vamos chamando de nosso, decerto aquele onde o mesmo leitor passa os seus dias; por oposição, lá dentro, o mundo é o do livro, e o livro é evidentemente Memorial de Aires. O problema do livro de João Almino fica assim posto por essa figura que já animava a obra de Machado com tanta maldade como graça: não tanto o problema de sair do livro, antes o de, saindo, ficar neste outro mundo, o que chamamos nosso. Nenhum mistério. De entrada se percebe que Aires está no livro e é o livro; e o livro, por sua vez, circula nesse nosso mundo, presente e próximo, pela mão de Flor, que tem no mesmo conselheiro Aires o seu interlocutor favorito. (Flor, não Flora, advertência em atenção aos machadianos assíduos.) Num certo sentido, o empreendimento ficcional de João Almino ajeita-se bem à formulação que descrevia D. Cesária: dá interesse a um reputado entediado e movimento a um confirmado defunto. Num primeiro movimento, a deslocação de Aires sugere que o romance o traz a este nosso mundo para o consertar, ao mundo, ou para que ele se conserte, o conselheiro. Quando o célebre verso de Shelley comparece — I can give not what men call love —, a sugestão é de algum intuito redescritivo, como se João Almino pretendesse, trazendo Aires ao nosso presente, restituir-lhe uma oportunidade de amor que negou a si mesmo no romance de Machado e, depois, uma oportunidade de empenho que lhe parecia negar a condição diplomática. A primeira possibilidade de Homem de Papel é assim a metaficcional; Aires narrando-se de novo, mas para se inventar novo. Entretanto, num lance surpreendente se compreende que Homem de Papel vai noutro sentido sem renunciar a esse primeiro. Ficar ou não ficar no mundo deste século, este mundo merecê-lo ou não, enquanto decisões e juízos atribuídos ao conselheiro Aires, emergem no confronto com a brutalidade desse “mundo lá fora” e abrem o caminho para uma alegoria delirante e sarcástica da actual conjuntura política brasileira, incompatível tanto com a diplomacia como com o tédio da controvérsia famosamente caracterizadores de Aires. O contraste é grande, e enorme a distância da delicadeza melancólica à boçalidade em que Aires fica tentado a morar para sempre. D. Cesária adverte que assim se prejudicaria a grandeza de Machado, que o mundo lá fora não merece o conselheiro: e eis a graça sem maldade nenhuma e a maldade sem graça nenhuma reunidas num só problema: ficar ou não ficar fora do livro. João Almino subverte Aires para o restituir ao original Aires de 1908: depois de ter transformado esse mesmo original em gerador de encontros e desencontros catalisados politicamente pelo aparecimento de uma anta. A discrepância entre os dois movimentos é suficientemente flagrante para operar uma lição de literatura: surpreendente e inteligente, remetendo ao passado sem perder a atração pelo presente, denunciando e do mesmo passo contemplando. E irónico, claro, divertidamente irónico, ou não fosse Aires o mais eminentemente personagem machadiano transportável para fora do livro e o mais eminentemente capaz de restaurar a necessidade de a ele regressar.
Abel Barros Baptista, Universidade Nova de Lisboa
_____________________________________________________________________________________Sobre HOMEM DE PAPEL leia resenha de Paula Sperb na revista Quatro Cinco Um:
Como se tornar moderno
Conselheiro Aires, famoso personagem de Machado de Assis, ganha roupagem atual em novo romance de João Almino
Paula Sperb
14mar2022 04h51 (14mar2022 10h05)
O escritor portiguar João AlminoPio Figueroa/Divulgação
Homem de papel
Em um primeiro momento, pode parecer uma missão delicada para um escritor apoderar-se de um personagem de Machado de Assis e trazê-lo para a atualidade em um romance. Tarefa desafiadora especialmente quando trata-se de Conselheiro Aires, personagem tão estimado pelos leitores machadianos. Parte do carisma de José da Costa Marcondes Aires — seu nome completo — deve-se principalmente ao caráter temperado e à capacidade de escutar e observar para, então, narrar os dramas humanos.
Aires, um diplomata aposentado, conta, em forma de diário, sua vida em 1888 e 1889, quando volta ao Brasil após passagem pela Europa, no seu Memorial de Aires (1908). Entretanto, os leitores já conheciam o personagem de Esaú e Jacó (1904), no qual se descobre que o romance é, na verdade, o décimo tomo do Memorial que o conselheiro estava escrevendo. Agora, Aires ganha fumos de modernidade em Homem de papel, oitavo romance de João Almino, o segundo desde que o escritor passou a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL), casa dos imortais fundada por Machado. Em Homem de papel, Aires é renovado, mas continua no papel de narrador.
Homem de papel, de João Almino
A forma como o leitor descobre quem narra já se encontra na primeira frase do romance: “Flor me colocava numa estante baixa entre uma cômoda de três gavetas e uma escrivaninha coberta de papéis desarrumados”. A oração inicial permite inferir de imediato que a voz está dentro de um livro na estante de Flor, uma das personagens. “Não quero valorizar essas minúcias, que não deveriam me ocupar quando me concentro na história principal. Se é que lhes conto uma história”, prossegue o narrador. Aqui, o Aires de Almino ressoa o Aires de Machado, que narra detalhes de seus compromissos e histórias para depois desculpar-se pelos seus supostos excessos em “minúcias”.
Almino — ele próprio um diplomata de carreira — conseguiu manter a coerência do personagem ao rejuvenescê-lo. Os leitores familiarizados com a voz de Aires e sua mentalidade. Como se tornar moderno Conselheiro Aires, famoso personagem de Machado de Assis, ganha roupagem atual em novo romance de João Almino Paula Sperb de aberta ao novo e sua convicção em não tomar partido de grandes questões não se decepcionarão. Na verdade, é quase um presente descobrir que é possível um Aires que usa “boné e óculos escuros” e caminha pelas ruas de Brasília, cidade que percorre parte significativa da obra de Almino. É lá que os ossos do conselheiro, doloridos devido ao reumatismo, param de doer. A cura não decorre da mudança de ares, do Rio de Janeiro para Brasília. O narrador explica e joga luz sobre o título da obra: “Passei a ter papel no lugar de ossos”.
Emancipação
Aires não apenas narra episódios vividos pela personagem Flor, a dona do livro, como também acompanha sua trajetória, de estudante à diplomata, passando a participar dela. Isso só é viável graças à emancipação do homem de papel, então preso ao livro. Esta emancipação ocorre em quatro etapas ao longo do romance. A primeira, quando Aires apenas escuta o que se passa ao seu redor, seja com o livro na estante ou fora dele. A segunda, quando Aires passa a escrever no livro, inserindo frases e até sinais de pontuação reconhecidos como novos por Flor. É adorável, porém não menos convincente, quando Aires deixa um emoji de sorriso para Flor, que enfrenta um momento de aflição. “Era como se eu tivesse me tornado moderno”, conta o narrador. A terceira etapa é quando Aires passa a falar de dentro do livro. Por fim, Aires sai do exemplar, inicialmente visível apenas para a dona da publicação.
A fusão de Machado de Assis com Jorge Amado faz com que ‘Homem de Papel’ seja o melhor livro de João Almino
Flor é uma mulher dividida entre o amor de Cássio e Zenir, desde a sua juventude. Seu dilema lembra aquele enfrentado pela personagem Flora, de Esaú e Jacó. Flora é objeto da paixão dos irmãos gêmeos Pedro e Paulo, opostos entre si inclusive politicamente. Enquanto um é monarquista, o outro é republicano. Flora também padece da indecisão entre os pretendentes. Mas a Flor de Almino não remete apenas a Machado de Assis, mas a Jorge Amado. Ela é um pouco Dona Flor e seus dois maridos (1966), como faz questão de apontar o personagem Zenir. Na saborosa obra amadiana, Flor é uma viúva que ama tanto o malandro Vadinho, o marido morto que aparece nu em forma de espírito, como o novo marido, o correto Teodoro.
Realismo mágico
Almino faz com que seja verossímil que Aires saia do livro e circule por Brasília. Há aí o traço de realismo mágico que também o aproxima de Jorge Amado. Não apenas há um diálogo com Dona Flor, como com O sumiço da santa (1988). No livro, uma imagem de Santa Bárbara, talhada por Aleijadinho, ganha vida ao desembarcar para ser exposta em um museu.
Além do elemento mágico, O sumiço da santa também é uma sátira política e trata de movimentos sociais e ditadura militar. Em Homem de papel, Almino não foge do contexto político. Os irmãos trigêmeos de Flor brigam por discordar sobre os rumos do país. Sabe-se que ocorreu um impeachment no Brasil e outro chega a ser cogitado. Em tom de fábula, antas — sim, os animais — invadem Brasília. Uma anta ganha fama e é aclamada para concorrer à Presidência. No Memorial de Aires, o contexto social e político é o do fim da escravidão e a proclamação da República.
A fusão de Machado de Assis com Jorge Amado somada à originalidade de um Aires rejuvenescido faz com que Homem de Papel seja o melhor livro de João Almino. O escritor não poupa delicadezas para os leitores, com referências de outras obras machadianas e do próprio Almino. O fotógrafo Cadu, personagem de Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), romance de estreia de Almino, encontra com Aires. A mulher de Almino, a artista plástica Bia Wouk, também surge no livro, com um quadro que decora um ambiente. Diz-se que em Memorial de Aires Machado de Assis também teria colocado um pouco de sua biografia nos personagens Aguiar e D. Carmo, um casal sem filhos, assim como o autor e a mulher Carolina.
Logo no início de Memorial, Machado escreveu que a publicação estava “desbastada e estreita” e indicou: “O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia”. Graças ao poder da literatura de inventar uma nova realidade, é como se Almino tivesse dado continuidade ao Memorial.
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SOBRE “HOMEM DE PAPEL”, LEIA MATÉRIA NO UOL ASSINADA POR RAFAELA BERTOLINI E ISABELLA BISORDI:
UOL:
VITRINE » CULTURA
UOL
ROMANCE RESGATA CONSELHEIRO AIRES, CLÁSSICO PERSONAGEM DE MACHADO DE ASSIS
“Homem de Papel” é o oitavo romance de João Almino, responsável por trazer Aires para o século XXI
RAFAELA BERTOLINI, SOB A SUPERVISÃO DE ISABELLA BISORDI PUBLICADO EM 02/03/2022, ÀS 15H35
Capa da obra “Homem de Papel” (2022) – Crédito: Reprodução / Record
Machado de Assis é um dos nomes mais importantes da literatura brasileira, sendo que seus livros e contos são celebrados até os dias atuais. E para resgatar uma parte da obra de Machado de Assis, o autor João Almino, também muito importante para a literatura brasileira, resgata o clássicopersonagem-narrador conselheiro Aires para transportá-lo ao século XXI.
“Homem de papel” tira o personagem do papel de conselheiro e o coloca como protagonista metamorfoseado na história, onde ele consegue escapar para o mundo real, que é regido pela ignorância e estupidez. A história conta sobre Flor, que é trigêmea de Hugo e Miguel. A relação entre os três é cercada de uma eterna richa política, assim como os gêmeos de Machado, Esaú e Jacó. Seria Flor a pessoa que atrapalha a simetria ou seria ela um epicentro de equilíbrio nessa disputa entre irmãos?
Crédito: Reprodução / Record
O livro se torna moderno por inserir Aires em um mundo moderno onde as notícias são muito rápidas e todos estão cercados por redes sociais. Assim, ele se torna responsável por trazer a essência de Machado de Assis para o mundo moderno, resgatando o seu humor sarcástico em uma narrativa intrigante e inteligente.
A obra será lançada pela editora Record no dia 14 de março de 2022, mas já está disponível para reserva na pré-venda na Amazon.
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Sobre HOMEM DE PAPEL, leia resenha de José Nêumanne Pinto
Machado visita Almino em romance de gênio
José Nêumanne
Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção
Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog da Estação José Nêumanne Pinto, na sexta 22 de julho de 2022)
Para ler no original clique no link abaixo:
http://neumanne.com/novosite/31517-2/#.YtsuKnbMKUk[:en]Oitavo romance de João Almino e segundo após entrar para a Academia Brasileira de Letras, Homem de papel transporta o conselheiro Aires para o século XXI. Livro será lançado em live no dia 12/04 às 19h.
O que Machado de Assis diria se escrevesse sobre a realidade contemporânea? Em Homem de papel, João Almino, diplomata e um dos escritores mais importantes da literatura nacional, resgata o personagem-narrador conselheiro Aires, transportando-o para os dias atuais. Se no machadiano Esaú e Jacó o conselheiro está numa trama sobre dois irmãos que disputam a mesma mulher e defendem regimes políticos contrários (Monarquia e República), em Homem de papel ele ganha protagonismo metamorfoseado em livro, do qual consegue dar escapadelas para o mundo real, regido pela ignorância e estupidez.
O exemplar que o abriga pertence à jovem diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, que, assim como os gêmeos de Machado, estão em eterna rixa. O conselheiro se depara com as redes sociais e precisa se adaptar à velocidade com que as notícias se multiplicam. Diferentemente do final do século XIX e início do XX, cada notícia cria milhões e milhões de “verdades” de consequências irreparáveis.
Sobre Homem de papel, Hélio Guimarães, professor da USP, escreve: “Movendo-se entre a farsa, a paródia, a sátira e a tragicomédia, João Almino aciona com maestria muitas notas do cômico. O humor afasta qualquer sugestão de que o passado fosse muito melhor do que o presente. Continua valendo aqui, como em Machado, a convicção de que ciúmes, traições, medo, orgulho, vaidade até mudam de endereço, mas mantêm o frescor do primeiro pé de alface que nossos ancestrais arrancaram da terra.” E afirma o crítico português Abel Barros Baptista: “uma lição de literatura: surpreendente e inteligente.”
HOMEM DE PAPEL
João Almino
416 págs. | R$ 64,90
Ed. Record | Grupo Editorial Record
Informações à imprensa:
Simone Magno
simone.magno@record.com.br
(21) 99998-7854
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Lançamento
Homem de papel será lançado no dia 12 de abril, às 19h, em uma conversa do autor, João Almino, com o escritor Luiz Ruffato. A transmissão será ao vivo no youtube da Livraria da Travessa.
Trecho do livro
“Sempre que eu ouvia desavenças políticas, corriqueiras, menos corriqueiras e de todos os tipos, eu pensava em Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, um monarquista e o outro republicano, que já brigavam na barriga da mãe. Vocês fiquem tranquilos, jamais darei tanta importância a eles neste meu relato. Não vou substituir suas paixões pelas dos partidos azul e vermelho, nem os colocar a defender e condenar o golpe, embora o tenham feito em 1889. Não os convidaria para estes papéis novos por uma razão fundamental: um e outro abdicariam, como fizeram no passado, de suas paixões políticas por outra maior. Escreveriam suas constituições pessoais, acima da Monarquia e da República, para conquistar o amor de uma moça que acabaria morrendo de indecisão.”
Sobre o autor
João Almino nasceu em Mossoró, RN. Diplomata e um dos nomes mais importantes da literatura nacional atualmente, tem sido aclamado pela crítica por seus romances Ideias para onde passar o fim do mundo (Prêmio do Instituto Nacional do Livro), Samba-enredo, As cinco estações do amor (Prêmio Casa de las Américas), O livro das emoções, Cidade livre (Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon), Enigmas da primavera e Entre facas, algodão. Seus romances foram publicados na Argentina, Espanha, EUA, França, Holanda, Itália e México, entre outros países. Seus escritos de história e filosofia política são referência para os estudiosos do autoritarismo e da democracia. Em 2017, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Simone Magno
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Machado visita Almino em romance de gênio
José Nêumanne
Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção
Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog da Estação José Nêumanne Pinto, na sexta 22 de julho de 2022)
Para ler no original clique no link abaixo:
[:es]Oitavo romance de João Almino e segundo após entrar para a Academia Brasileira de Letras, Homem de papel transporta o conselheiro Aires para o século XXI. Livro será lançado em live no dia 12/04 às 19h.
O que Machado de Assis diria se escrevesse sobre a realidade contemporânea? Em Homem de papel, João Almino, diplomata e um dos escritores mais importantes da literatura nacional, resgata o personagem-narrador conselheiro Aires, transportando-o para os dias atuais. Se no machadiano Esaú e Jacó o conselheiro está numa trama sobre dois irmãos que disputam a mesma mulher e defendem regimes políticos contrários (Monarquia e República), em Homem de papel ele ganha protagonismo metamorfoseado em livro, do qual consegue dar escapadelas para o mundo real, regido pela ignorância e estupidez.
O exemplar que o abriga pertence à jovem diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, que, assim como os gêmeos de Machado, estão em eterna rixa. O conselheiro se depara com as redes sociais e precisa se adaptar à velocidade com que as notícias se multiplicam. Diferentemente do final do século XIX e início do XX, cada notícia cria milhões e milhões de “verdades” de consequências irreparáveis.
Sobre Homem de papel, Hélio Guimarães, professor da USP, escreve: “Movendo-se entre a farsa, a paródia, a sátira e a tragicomédia, João Almino aciona com maestria muitas notas do cômico. O humor afasta qualquer sugestão de que o passado fosse muito melhor do que o presente. Continua valendo aqui, como em Machado, a convicção de que ciúmes, traições, medo, orgulho, vaidade até mudam de endereço, mas mantêm o frescor do primeiro pé de alface que nossos ancestrais arrancaram da terra.” E afirma o crítico português Abel Barros Baptista: “uma lição de literatura: surpreendente e inteligente.”
HOMEM DE PAPEL
João Almino
416 págs. | R$ 64,90
Ed. Record | Grupo Editorial Record
Informações à imprensa:
Simone Magno
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Lançamento
Homem de papel será lançado no dia 12 de abril, às 19h, em uma conversa do autor, João Almino, com o escritor Luiz Ruffato. A transmissão será ao vivo no youtube da Livraria da Travessa.
Trecho do livro
“Sempre que eu ouvia desavenças políticas, corriqueiras, menos corriqueiras e de todos os tipos, eu pensava em Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, um monarquista e o outro republicano, que já brigavam na barriga da mãe. Vocês fiquem tranquilos, jamais darei tanta importância a eles neste meu relato. Não vou substituir suas paixões pelas dos partidos azul e vermelho, nem os colocar a defender e condenar o golpe, embora o tenham feito em 1889. Não os convidaria para estes papéis novos por uma razão fundamental: um e outro abdicariam, como fizeram no passado, de suas paixões políticas por outra maior. Escreveriam suas constituições pessoais, acima da Monarquia e da República, para conquistar o amor de uma moça que acabaria morrendo de indecisão.”
Sobre o autor
João Almino nasceu em Mossoró, RN. Diplomata e um dos nomes mais importantes da literatura nacional atualmente, tem sido aclamado pela crítica por seus romances Ideias para onde passar o fim do mundo (Prêmio do Instituto Nacional do Livro), Samba-enredo, As cinco estações do amor (Prêmio Casa de las Américas), O livro das emoções, Cidade livre (Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon), Enigmas da primavera e Entre facas, algodão. Seus romances foram publicados na Argentina, Espanha, EUA, França, Holanda, Itália e México, entre outros países. Seus escritos de história e filosofia política são referência para os estudiosos do autoritarismo e da democracia. Em 2017, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
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Machado visita Almino em romance de gênio
José Nêumanne
Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção
Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog da Estação José Nêumanne Pinto, na sexta 22 de julho de 2022)
Para ler no original clique no link abaixo:
[:fr]Oitavo romance de João Almino e segundo após entrar para a Academia Brasileira de Letras, Homem de papel transporta o conselheiro Aires para o século XXI. Livro será lançado em live no dia 12/04 às 19h.
O que Machado de Assis diria se escrevesse sobre a realidade contemporânea? Em Homem de papel, João Almino, diplomata e um dos escritores mais importantes da literatura nacional, resgata o personagem-narrador conselheiro Aires, transportando-o para os dias atuais. Se no machadiano Esaú e Jacó o conselheiro está numa trama sobre dois irmãos que disputam a mesma mulher e defendem regimes políticos contrários (Monarquia e República), em Homem de papel ele ganha protagonismo metamorfoseado em livro, do qual consegue dar escapadelas para o mundo real, regido pela ignorância e estupidez.
O exemplar que o abriga pertence à jovem diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, que, assim como os gêmeos de Machado, estão em eterna rixa. O conselheiro se depara com as redes sociais e precisa se adaptar à velocidade com que as notícias se multiplicam. Diferentemente do final do século XIX e início do XX, cada notícia cria milhões e milhões de “verdades” de consequências irreparáveis.
Sobre Homem de papel, Hélio Guimarães, professor da USP, escreve: “Movendo-se entre a farsa, a paródia, a sátira e a tragicomédia, João Almino aciona com maestria muitas notas do cômico. O humor afasta qualquer sugestão de que o passado fosse muito melhor do que o presente. Continua valendo aqui, como em Machado, a convicção de que ciúmes, traições, medo, orgulho, vaidade até mudam de endereço, mas mantêm o frescor do primeiro pé de alface que nossos ancestrais arrancaram da terra.” E afirma o crítico português Abel Barros Baptista: “uma lição de literatura: surpreendente e inteligente.”
HOMEM DE PAPEL
João Almino
416 págs. | R$ 64,90
Ed. Record | Grupo Editorial Record
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Homem de papel será lançado no dia 12 de abril, às 19h, em uma conversa do autor, João Almino, com o escritor Luiz Ruffato. A transmissão será ao vivo no youtube da Livraria da Travessa.
Trecho do livro
“Sempre que eu ouvia desavenças políticas, corriqueiras, menos corriqueiras e de todos os tipos, eu pensava em Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, um monarquista e o outro republicano, que já brigavam na barriga da mãe. Vocês fiquem tranquilos, jamais darei tanta importância a eles neste meu relato. Não vou substituir suas paixões pelas dos partidos azul e vermelho, nem os colocar a defender e condenar o golpe, embora o tenham feito em 1889. Não os convidaria para estes papéis novos por uma razão fundamental: um e outro abdicariam, como fizeram no passado, de suas paixões políticas por outra maior. Escreveriam suas constituições pessoais, acima da Monarquia e da República, para conquistar o amor de uma moça que acabaria morrendo de indecisão.”
Sobre o autor
João Almino nasceu em Mossoró, RN. Diplomata e um dos nomes mais importantes da literatura nacional atualmente, tem sido aclamado pela crítica por seus romances Ideias para onde passar o fim do mundo (Prêmio do Instituto Nacional do Livro), Samba-enredo, As cinco estações do amor (Prêmio Casa de las Américas), O livro das emoções, Cidade livre (Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon), Enigmas da primavera e Entre facas, algodão. Seus romances foram publicados na Argentina, Espanha, EUA, França, Holanda, Itália e México, entre outros países. Seus escritos de história e filosofia política são referência para os estudiosos do autoritarismo e da democracia. Em 2017, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Simone Magno
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Machado visita Almino em romance de gênio
José Nêumanne
Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção
Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
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(Publicado no Blog da Estação José Nêumanne Pinto, na sexta 22 de julho de 2022)
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