O livro das emoções, de João Almino. Por Alcir Pécora

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Alcir Pécora

Desde 1987, João Almino tem produzido, sem pressa, um longo romance que é também, em sua face mais ambiciosa, o projeto de uma fundação escritural de Brasília. Nesta sua quarta parte — que, como as demais, admite leitura autônoma — o narrador-protagonista é um fotógrafo de 70 anos, já cego, que busca reinventar as suas memórias a partir da memória que guarda das fotografias que tirou para um ideado diário íntimo. A construção da intimidade, portanto, resulta não apenas do mimético ou realista das fotografias, mas da memória emocional colhida nelas, que é mais nitidamente percebida quando o fotógrafo já não vê. Da dialética entre visão objetiva e cegueira, imagem mimética e imaginação sentimental, nasce o reconhecimento de uma história pessoal, a única que se pode viver, embora aparentemente esgotada na banalidade.

O modo da narrativa é o de um travelling envolvente que se deixa arrastar por várias personagens e situações, muito diferentes entre si, nas quais ressalta a habilidade de João Almino para a confecção de biografias, como certa vez destacou João Lafetá, ou de instantâneos biográficos, como talvez se pudesse dizer, tendo em vista a analogia com as fotografias que ordenam a narrativa. Ressalta, também, a sua capacidade de manter o fio narrativo bem seguro em meio à variedade de registros produzidos pelo narrador, que opera como câmera, mas cujo principal documento se produz a posteriori, como écfrase, quando os registros fotográficos dão lugar à reconstrução imaginária de cenas vistas, vividas ou não, mas sempre manipuláveis.

A narrativa não se demora propriamente em fatos, conquanto os repasse o tempo todo. Antes que se imponham como significativos, prevalece o ritmo do passe, que no travelling é quase tudo. Digo isso, pensando exemplarmente naqueles passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em seqüência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do vôo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.

Quero dizer: o seu efeito fundamental é que as razões particulares, os motivos das ações, privados ou públicos, estão freqüentemente fora do universo dos eventos destacados em primeiro plano. A narrativa linear, de conteúdo à primeira vista coerente, no todo se revela quase aleatória, sob domínio do desenraizamento existencial, do ritmo espiralado da fortuna e da perda do tônus da vontade em algum momento do passado. No fundo, narra-se para descobrir o não vivido, assim como apenas se fotografam ausências. Aproveitando a deixa do próprio narrador, imagino chamar de voyeurismo cego a esse modo narrativo, finamente explorado nesta quarta parte do romance brasiliense de João Almino.

ALCIR PÉCORA

Alcir Pécora

Desde 1987, João Almino tem produzido, sem pressa, um longo romance que é também, em sua face mais ambiciosa, o projeto de uma fundação escritural de Brasília. Nesta sua quarta parte — que, como as demais, admite leitura autônoma — o narrador-protagonista é um fotógrafo de 70 anos, já cego, que busca reinventar as suas memórias a partir da memória que guarda das fotografias que tirou para um ideado diário íntimo. A construção da intimidade, portanto, resulta não apenas do mimético ou realista das fotografias, mas da memória emocional colhida nelas, que é mais nitidamente percebida quando o fotógrafo já não vê. Da dialética entre visão objetiva e cegueira, imagem mimética e imaginação sentimental, nasce o reconhecimento de uma história pessoal, a única que se pode viver, embora aparentemente esgotada na banalidade.

O modo da narrativa é o de um travelling envolvente que se deixa arrastar por várias personagens e situações, muito diferentes entre si, nas quais ressalta a habilidade de João Almino para a confecção de biografias, como certa vez destacou João Lafetá, ou de instantâneos biográficos, como talvez se pudesse dizer, tendo em vista a analogia com as fotografias que ordenam a narrativa. Ressalta, também, a sua capacidade de manter o fio narrativo bem seguro em meio à variedade de registros produzidos pelo narrador, que opera como câmera, mas cujo principal documento se produz a posteriori, como écfrase, quando os registros fotográficos dão lugar à reconstrução imaginária de cenas vistas, vividas ou não, mas sempre manipuláveis.

A narrativa não se demora propriamente em fatos, conquanto os repasse o tempo todo. Antes que se imponham como significativos, prevalece o ritmo do passe, que no travelling é quase tudo. Digo isso, pensando exemplarmente naqueles passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em seqüência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do vôo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.

Quero dizer: o seu efeito fundamental é que as razões particulares, os motivos das ações, privados ou públicos, estão freqüentemente fora do universo dos eventos destacados em primeiro plano. A narrativa linear, de conteúdo à primeira vista coerente, no todo se revela quase aleatória, sob domínio do desenraizamento existencial, do ritmo espiralado da fortuna e da perda do tônus da vontade em algum momento do passado. No fundo, narra-se para descobrir o não vivido, assim como apenas se fotografam ausências. Aproveitando a deixa do próprio narrador, imagino chamar de voyeurismo cego a esse modo narrativo, finamente explorado nesta quarta parte do romance brasiliense de João Almino.

ALCIR PÉCORA

Alcir Pécora

Desde 1987, João Almino tem produzido, sem pressa, um longo romance que é também, em sua face mais ambiciosa, o projeto de uma fundação escritural de Brasília. Nesta sua quarta parte — que, como as demais, admite leitura autônoma — o narrador-protagonista é um fotógrafo de 70 anos, já cego, que busca reinventar as suas memórias a partir da memória que guarda das fotografias que tirou para um ideado diário íntimo. A construção da intimidade, portanto, resulta não apenas do mimético ou realista das fotografias, mas da memória emocional colhida nelas, que é mais nitidamente percebida quando o fotógrafo já não vê. Da dialética entre visão objetiva e cegueira, imagem mimética e imaginação sentimental, nasce o reconhecimento de uma história pessoal, a única que se pode viver, embora aparentemente esgotada na banalidade.

O modo da narrativa é o de um travelling envolvente que se deixa arrastar por várias personagens e situações, muito diferentes entre si, nas quais ressalta a habilidade de João Almino para a confecção de biografias, como certa vez destacou João Lafetá, ou de instantâneos biográficos, como talvez se pudesse dizer, tendo em vista a analogia com as fotografias que ordenam a narrativa. Ressalta, também, a sua capacidade de manter o fio narrativo bem seguro em meio à variedade de registros produzidos pelo narrador, que opera como câmera, mas cujo principal documento se produz a posteriori, como écfrase, quando os registros fotográficos dão lugar à reconstrução imaginária de cenas vistas, vividas ou não, mas sempre manipuláveis.

A narrativa não se demora propriamente em fatos, conquanto os repasse o tempo todo. Antes que se imponham como significativos, prevalece o ritmo do passe, que no travelling é quase tudo. Digo isso, pensando exemplarmente naqueles passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em seqüência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do vôo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.

Quero dizer: o seu efeito fundamental é que as razões particulares, os motivos das ações, privados ou públicos, estão freqüentemente fora do universo dos eventos destacados em primeiro plano. A narrativa linear, de conteúdo à primeira vista coerente, no todo se revela quase aleatória, sob domínio do desenraizamento existencial, do ritmo espiralado da fortuna e da perda do tônus da vontade em algum momento do passado. No fundo, narra-se para descobrir o não vivido, assim como apenas se fotografam ausências. Aproveitando a deixa do próprio narrador, imagino chamar de voyeurismo cego a esse modo narrativo, finamente explorado nesta quarta parte do romance brasiliense de João Almino.

ALCIR PÉCORA

Alcir Pécora

Desde 1987, João Almino tem produzido, sem pressa, um longo romance que é também, em sua face mais ambiciosa, o projeto de uma fundação escritural de Brasília. Nesta sua quarta parte — que, como as demais, admite leitura autônoma — o narrador-protagonista é um fotógrafo de 70 anos, já cego, que busca reinventar as suas memórias a partir da memória que guarda das fotografias que tirou para um ideado diário íntimo. A construção da intimidade, portanto, resulta não apenas do mimético ou realista das fotografias, mas da memória emocional colhida nelas, que é mais nitidamente percebida quando o fotógrafo já não vê. Da dialética entre visão objetiva e cegueira, imagem mimética e imaginação sentimental, nasce o reconhecimento de uma história pessoal, a única que se pode viver, embora aparentemente esgotada na banalidade.

O modo da narrativa é o de um travelling envolvente que se deixa arrastar por várias personagens e situações, muito diferentes entre si, nas quais ressalta a habilidade de João Almino para a confecção de biografias, como certa vez destacou João Lafetá, ou de instantâneos biográficos, como talvez se pudesse dizer, tendo em vista a analogia com as fotografias que ordenam a narrativa. Ressalta, também, a sua capacidade de manter o fio narrativo bem seguro em meio à variedade de registros produzidos pelo narrador, que opera como câmera, mas cujo principal documento se produz a posteriori, como écfrase, quando os registros fotográficos dão lugar à reconstrução imaginária de cenas vistas, vividas ou não, mas sempre manipuláveis.

A narrativa não se demora propriamente em fatos, conquanto os repasse o tempo todo. Antes que se imponham como significativos, prevalece o ritmo do passe, que no travelling é quase tudo. Digo isso, pensando exemplarmente naqueles passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em seqüência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do vôo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.

Quero dizer: o seu efeito fundamental é que as razões particulares, os motivos das ações, privados ou públicos, estão freqüentemente fora do universo dos eventos destacados em primeiro plano. A narrativa linear, de conteúdo à primeira vista coerente, no todo se revela quase aleatória, sob domínio do desenraizamento existencial, do ritmo espiralado da fortuna e da perda do tônus da vontade em algum momento do passado. No fundo, narra-se para descobrir o não vivido, assim como apenas se fotografam ausências. Aproveitando a deixa do próprio narrador, imagino chamar de voyeurismo cego a esse modo narrativo, finamente explorado nesta quarta parte do romance brasiliense de João Almino.

ALCIR PÉCORA