Stefania Chiarelli, O Globo, sobre HOMEM DE PAPEL

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‘Homem de papel’: personagem de Machado de Assis conhece século XXI em novo livro de João Almino

Circulando as ruas de Brasília, o conselheiro Aires segue especialista na alma humana

Stefania Chiarelli, especial para O GLOBO

02/04/2022 – 04:30

Posse do escritor João Almino na Academia Brasileira de Letras Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

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Ele é um diplomata aposentado. Vestido à moda antiga, apresenta-se sóbrio, equilibrado, verdadeiro mediador. Homem bicentenário, seu nome é Aires, e ele vem de outro século — viajou diretamente das páginas de “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), de Machado de Assis, para protagonizar “Homem de papel”, oitavo romance de João Almino. O escritor, nascido em Mossoró (RN), também diplomata, promove na narrativa intenso jogo entre passado e presente, em que o célebre personagem transita hoje pelas entrequadras de Brasília, no lugar dos passeios pela Praia de Botafogo e Rua do Ouvidor, no Centro da antiga capital federal.

Plantado neste confuso século XXI, Aires vai revelando, em primeira pessoa, sua perspectiva das coisas. O conselheiro agora mora dentro de um livro. A diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, é sua interlocutora privilegiada, e diante de seus olhos espantados o personagem se materializa a cada tanto, saindo do exemplar para o mundo real. A moça vive uma crise, dividida entre o amor do marido Cássio e do colega Zeus, ecos visíveis da grande Flora, de “Esaú e Jacó”, jovem perdidamente apaixonada pelos gêmeos que protagonizam a trama.

É antiga a relação quase promíscua entre livros, histórias e palavras. A obra machadiana já vem marcada por múltiplas citações: o escritor carioca se pautou pela releitura da tradição, parodiando sem reservas o texto alheio, da Bíblia a José de Alencar, de Laurence Stern a Xavier de Maîstre. Nessa espiral, o romance de Almino se situa entre criação e apropriação, gesto que desde sempre sustenta a própria literatura. Ele não está só, muitos escritores já beberam dessa água, como Lygia Fagundes Telles, com o roteiro “Capitu” (1967), e Silviano Santiago, no romance “Machado” (2016), entre tantos outros.

Em Almino, ecoando Machado, Aires chama a atenção para que o leitor tome parte ativa na história, orientando nossa leitura com lembretes e perguntas: “Peço que não riam de mim” ou “Afinal, quem era eu?” Tal procedimento surge como alerta —estamos lendo um relato ficcional, aqui fala um homem de papel. Nessa condição, em algum momento ele dá o salto e sai da página escrita. Flor e a entusiasmada professora Leonor são as que melhor conseguem vê-lo.

Tentador ver aqui sopros vindos da cinematografia de Woody Allen, não por acaso diretor citado no discurso do escritor ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 2017. “A rosa púrpura do Cairo” (1985) evoca com força a quebra da distância entre personagem fictício e espectadora, na figura de Tom Baxter, ator que abandona a tela para declarar o amor à garçonete Cecília, que vê o filme repetidas vezes na Nova Jersey dos anos 1930. Uma fã, um personagem. Uma leitora, um conselheiro. Em ambas as narrativas, a saída do protagonista provoca imediata desarmonia no universo ficcional. Como fazer sentido sem sua presença? Filme e livro respondem à pergunta com interessantes desdobramentos.

No âmbito da trama, chama a atenção a ambientação em Brasília, lugar de grande relevância na prosa de Almino, dedicada a pensar as relações com esse espaço mítico e utópico. À trilogia composta por “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1987), “Samba-enredo” (1994) e “As cinco estações do amor” (2001), acresceu-se “O livro das emoções” (2008), “Cidade livre” (2010) e “Entre facas, algodão” (2017), também ancorados na cidade. Ao olhar para o conjunto dessa já vasta obra, é possível perceber um sólido projeto literário —temas e ambientação retornam, criando uma espécie de constelação em diálogo, em que o escritor dá asa solta à imaginação. Um personagem pode saltar das páginas do livro que o abriga, ou um computador é capaz de narrar toda a trama, como G.G., de “Samba-enredo”.

Mas o narrador Aires carrega várias ambiguidades. Empenhado em recordar o passado, confessa ter a memória falha, admitindo ser impreciso na recomposição do vivido. Surpresas e equívocos se intercalam, como na divertida passagem do carnaval, em que é tomado por folião. Nesse universo dúbio, por vezes um ser imaterial pode ser mais real do que indivíduos de carne e osso, e as cenas ambientadas no mundo da política e da diplomacia comprovam o quanto de teatro a vida obriga a fazer. Na visão de alguns, Aires revela prudência no viver. Já outros o enxergam como alguém que jamais se posiciona e evita a controvérsia a qualquer preço.

Mesmo desconhecendo as redes sociais, os aparelhos de celular e os bitcoins, o conselheiro segue um especialista na alma humana. No Brasil caótico de hoje, em que a diplomacia anda tão mal representada, seu espírito sensível e elegante faz diferença. Viúvo e sem filhos, Aires pensa que o verdadeiro patrimônio consiste na herança das palavras. Esse imprescindível capital constitui um modo de prolongar a estirpe do conselheiro nos leitores de hoje e do futuro — de corpo presente, papel ou dígitos, cada leitura dirá.

Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF

“Homem de papel”

Autor: João Almino. Editora: Record. Páginas: 416.

[:en]

‘Homem de papel’: personagem de Machado de Assis conhece século XXI em novo livro de João Almino

Circulando as ruas de Brasília, o conselheiro Aires segue especialista na alma humana

Stefania Chiarelli, especial para O GLOBO

02/04/2022 – 04:30

Posse do escritor João Almino na Academia Brasileira de Letras Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

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Ele é um diplomata aposentado. Vestido à moda antiga, apresenta-se sóbrio, equilibrado, verdadeiro mediador. Homem bicentenário, seu nome é Aires, e ele vem de outro século — viajou diretamente das páginas de “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), de Machado de Assis, para protagonizar “Homem de papel”, oitavo romance de João Almino. O escritor, nascido em Mossoró (RN), também diplomata, promove na narrativa intenso jogo entre passado e presente, em que o célebre personagem transita hoje pelas entrequadras de Brasília, no lugar dos passeios pela Praia de Botafogo e Rua do Ouvidor, no Centro da antiga capital federal.

Plantado neste confuso século XXI, Aires vai revelando, em primeira pessoa, sua perspectiva das coisas. O conselheiro agora mora dentro de um livro. A diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, é sua interlocutora privilegiada, e diante de seus olhos espantados o personagem se materializa a cada tanto, saindo do exemplar para o mundo real. A moça vive uma crise, dividida entre o amor do marido Cássio e do colega Zeus, ecos visíveis da grande Flora, de “Esaú e Jacó”, jovem perdidamente apaixonada pelos gêmeos que protagonizam a trama.

É antiga a relação quase promíscua entre livros, histórias e palavras. A obra machadiana já vem marcada por múltiplas citações: o escritor carioca se pautou pela releitura da tradição, parodiando sem reservas o texto alheio, da Bíblia a José de Alencar, de Laurence Stern a Xavier de Maîstre. Nessa espiral, o romance de Almino se situa entre criação e apropriação, gesto que desde sempre sustenta a própria literatura. Ele não está só, muitos escritores já beberam dessa água, como Lygia Fagundes Telles, com o roteiro “Capitu” (1967), e Silviano Santiago, no romance “Machado” (2016), entre tantos outros.

Em Almino, ecoando Machado, Aires chama a atenção para que o leitor tome parte ativa na história, orientando nossa leitura com lembretes e perguntas: “Peço que não riam de mim” ou “Afinal, quem era eu?” Tal procedimento surge como alerta —estamos lendo um relato ficcional, aqui fala um homem de papel. Nessa condição, em algum momento ele dá o salto e sai da página escrita. Flor e a entusiasmada professora Leonor são as que melhor conseguem vê-lo.

Tentador ver aqui sopros vindos da cinematografia de Woody Allen, não por acaso diretor citado no discurso do escritor ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 2017. “A rosa púrpura do Cairo” (1985) evoca com força a quebra da distância entre personagem fictício e espectadora, na figura de Tom Baxter, ator que abandona a tela para declarar o amor à garçonete Cecília, que vê o filme repetidas vezes na Nova Jersey dos anos 1930. Uma fã, um personagem. Uma leitora, um conselheiro. Em ambas as narrativas, a saída do protagonista provoca imediata desarmonia no universo ficcional. Como fazer sentido sem sua presença? Filme e livro respondem à pergunta com interessantes desdobramentos.

No âmbito da trama, chama a atenção a ambientação em Brasília, lugar de grande relevância na prosa de Almino, dedicada a pensar as relações com esse espaço mítico e utópico. À trilogia composta por “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1987), “Samba-enredo” (1994) e “As cinco estações do amor” (2001), acresceu-se “O livro das emoções” (2008), “Cidade livre” (2010) e “Entre facas, algodão” (2017), também ancorados na cidade. Ao olhar para o conjunto dessa já vasta obra, é possível perceber um sólido projeto literário —temas e ambientação retornam, criando uma espécie de constelação em diálogo, em que o escritor dá asa solta à imaginação. Um personagem pode saltar das páginas do livro que o abriga, ou um computador é capaz de narrar toda a trama, como G.G., de “Samba-enredo”.

Mas o narrador Aires carrega várias ambiguidades. Empenhado em recordar o passado, confessa ter a memória falha, admitindo ser impreciso na recomposição do vivido. Surpresas e equívocos se intercalam, como na divertida passagem do carnaval, em que é tomado por folião. Nesse universo dúbio, por vezes um ser imaterial pode ser mais real do que indivíduos de carne e osso, e as cenas ambientadas no mundo da política e da diplomacia comprovam o quanto de teatro a vida obriga a fazer. Na visão de alguns, Aires revela prudência no viver. Já outros o enxergam como alguém que jamais se posiciona e evita a controvérsia a qualquer preço.

Mesmo desconhecendo as redes sociais, os aparelhos de celular e os bitcoins, o conselheiro segue um especialista na alma humana. No Brasil caótico de hoje, em que a diplomacia anda tão mal representada, seu espírito sensível e elegante faz diferença. Viúvo e sem filhos, Aires pensa que o verdadeiro patrimônio consiste na herança das palavras. Esse imprescindível capital constitui um modo de prolongar a estirpe do conselheiro nos leitores de hoje e do futuro — de corpo presente, papel ou dígitos, cada leitura dirá.

Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF

“Homem de papel”

Autor: João Almino. Editora: Record. Páginas: 416.

[:es]

‘Homem de papel’: personagem de Machado de Assis conhece século XXI em novo livro de João Almino

Circulando as ruas de Brasília, o conselheiro Aires segue especialista na alma humana

Stefania Chiarelli, especial para O GLOBO

02/04/2022 – 04:30

Posse do escritor João Almino na Academia Brasileira de Letras Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

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Plantado neste confuso século XXI, Aires vai revelando, em primeira pessoa, sua perspectiva das coisas. O conselheiro agora mora dentro de um livro. A diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, é sua interlocutora privilegiada, e diante de seus olhos espantados o personagem se materializa a cada tanto, saindo do exemplar para o mundo real. A moça vive uma crise, dividida entre o amor do marido Cássio e do colega Zeus, ecos visíveis da grande Flora, de “Esaú e Jacó”, jovem perdidamente apaixonada pelos gêmeos que protagonizam a trama.

É antiga a relação quase promíscua entre livros, histórias e palavras. A obra machadiana já vem marcada por múltiplas citações: o escritor carioca se pautou pela releitura da tradição, parodiando sem reservas o texto alheio, da Bíblia a José de Alencar, de Laurence Stern a Xavier de Maîstre. Nessa espiral, o romance de Almino se situa entre criação e apropriação, gesto que desde sempre sustenta a própria literatura. Ele não está só, muitos escritores já beberam dessa água, como Lygia Fagundes Telles, com o roteiro “Capitu” (1967), e Silviano Santiago, no romance “Machado” (2016), entre tantos outros.

Em Almino, ecoando Machado, Aires chama a atenção para que o leitor tome parte ativa na história, orientando nossa leitura com lembretes e perguntas: “Peço que não riam de mim” ou “Afinal, quem era eu?” Tal procedimento surge como alerta —estamos lendo um relato ficcional, aqui fala um homem de papel. Nessa condição, em algum momento ele dá o salto e sai da página escrita. Flor e a entusiasmada professora Leonor são as que melhor conseguem vê-lo.

Tentador ver aqui sopros vindos da cinematografia de Woody Allen, não por acaso diretor citado no discurso do escritor ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 2017. “A rosa púrpura do Cairo” (1985) evoca com força a quebra da distância entre personagem fictício e espectadora, na figura de Tom Baxter, ator que abandona a tela para declarar o amor à garçonete Cecília, que vê o filme repetidas vezes na Nova Jersey dos anos 1930. Uma fã, um personagem. Uma leitora, um conselheiro. Em ambas as narrativas, a saída do protagonista provoca imediata desarmonia no universo ficcional. Como fazer sentido sem sua presença? Filme e livro respondem à pergunta com interessantes desdobramentos.

No âmbito da trama, chama a atenção a ambientação em Brasília, lugar de grande relevância na prosa de Almino, dedicada a pensar as relações com esse espaço mítico e utópico. À trilogia composta por “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1987), “Samba-enredo” (1994) e “As cinco estações do amor” (2001), acresceu-se “O livro das emoções” (2008), “Cidade livre” (2010) e “Entre facas, algodão” (2017), também ancorados na cidade. Ao olhar para o conjunto dessa já vasta obra, é possível perceber um sólido projeto literário —temas e ambientação retornam, criando uma espécie de constelação em diálogo, em que o escritor dá asa solta à imaginação. Um personagem pode saltar das páginas do livro que o abriga, ou um computador é capaz de narrar toda a trama, como G.G., de “Samba-enredo”.

Mas o narrador Aires carrega várias ambiguidades. Empenhado em recordar o passado, confessa ter a memória falha, admitindo ser impreciso na recomposição do vivido. Surpresas e equívocos se intercalam, como na divertida passagem do carnaval, em que é tomado por folião. Nesse universo dúbio, por vezes um ser imaterial pode ser mais real do que indivíduos de carne e osso, e as cenas ambientadas no mundo da política e da diplomacia comprovam o quanto de teatro a vida obriga a fazer. Na visão de alguns, Aires revela prudência no viver. Já outros o enxergam como alguém que jamais se posiciona e evita a controvérsia a qualquer preço.

Mesmo desconhecendo as redes sociais, os aparelhos de celular e os bitcoins, o conselheiro segue um especialista na alma humana. No Brasil caótico de hoje, em que a diplomacia anda tão mal representada, seu espírito sensível e elegante faz diferença. Viúvo e sem filhos, Aires pensa que o verdadeiro patrimônio consiste na herança das palavras. Esse imprescindível capital constitui um modo de prolongar a estirpe do conselheiro nos leitores de hoje e do futuro — de corpo presente, papel ou dígitos, cada leitura dirá.

Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF

“Homem de papel”

Autor: João Almino. Editora: Record. Páginas: 416.

[:fr]

‘Homem de papel’: personagem de Machado de Assis conhece século XXI em novo livro de João Almino

Circulando as ruas de Brasília, o conselheiro Aires segue especialista na alma humana

Stefania Chiarelli, especial para O GLOBO

02/04/2022 – 04:30

Posse do escritor João Almino na Academia Brasileira de Letras Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Ele é um diplomata aposentado. Vestido à moda antiga, apresenta-se sóbrio, equilibrado, verdadeiro mediador. Homem bicentenário, seu nome é Aires, e ele vem de outro século — viajou diretamente das páginas de “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), de Machado de Assis, para protagonizar “Homem de papel”, oitavo romance de João Almino. O escritor, nascido em Mossoró (RN), também diplomata, promove na narrativa intenso jogo entre passado e presente, em que o célebre personagem transita hoje pelas entrequadras de Brasília, no lugar dos passeios pela Praia de Botafogo e Rua do Ouvidor, no Centro da antiga capital federal.

Plantado neste confuso século XXI, Aires vai revelando, em primeira pessoa, sua perspectiva das coisas. O conselheiro agora mora dentro de um livro. A diplomata Flor, trigêmea de Hugo e Miguel, é sua interlocutora privilegiada, e diante de seus olhos espantados o personagem se materializa a cada tanto, saindo do exemplar para o mundo real. A moça vive uma crise, dividida entre o amor do marido Cássio e do colega Zeus, ecos visíveis da grande Flora, de “Esaú e Jacó”, jovem perdidamente apaixonada pelos gêmeos que protagonizam a trama.

É antiga a relação quase promíscua entre livros, histórias e palavras. A obra machadiana já vem marcada por múltiplas citações: o escritor carioca se pautou pela releitura da tradição, parodiando sem reservas o texto alheio, da Bíblia a José de Alencar, de Laurence Stern a Xavier de Maîstre. Nessa espiral, o romance de Almino se situa entre criação e apropriação, gesto que desde sempre sustenta a própria literatura. Ele não está só, muitos escritores já beberam dessa água, como Lygia Fagundes Telles, com o roteiro “Capitu” (1967), e Silviano Santiago, no romance “Machado” (2016), entre tantos outros.

Em Almino, ecoando Machado, Aires chama a atenção para que o leitor tome parte ativa na história, orientando nossa leitura com lembretes e perguntas: “Peço que não riam de mim” ou “Afinal, quem era eu?” Tal procedimento surge como alerta —estamos lendo um relato ficcional, aqui fala um homem de papel. Nessa condição, em algum momento ele dá o salto e sai da página escrita. Flor e a entusiasmada professora Leonor são as que melhor conseguem vê-lo.

Tentador ver aqui sopros vindos da cinematografia de Woody Allen, não por acaso diretor citado no discurso do escritor ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 2017. “A rosa púrpura do Cairo” (1985) evoca com força a quebra da distância entre personagem fictício e espectadora, na figura de Tom Baxter, ator que abandona a tela para declarar o amor à garçonete Cecília, que vê o filme repetidas vezes na Nova Jersey dos anos 1930. Uma fã, um personagem. Uma leitora, um conselheiro. Em ambas as narrativas, a saída do protagonista provoca imediata desarmonia no universo ficcional. Como fazer sentido sem sua presença? Filme e livro respondem à pergunta com interessantes desdobramentos.

No âmbito da trama, chama a atenção a ambientação em Brasília, lugar de grande relevância na prosa de Almino, dedicada a pensar as relações com esse espaço mítico e utópico. À trilogia composta por “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1987), “Samba-enredo” (1994) e “As cinco estações do amor” (2001), acresceu-se “O livro das emoções” (2008), “Cidade livre” (2010) e “Entre facas, algodão” (2017), também ancorados na cidade. Ao olhar para o conjunto dessa já vasta obra, é possível perceber um sólido projeto literário —temas e ambientação retornam, criando uma espécie de constelação em diálogo, em que o escritor dá asa solta à imaginação. Um personagem pode saltar das páginas do livro que o abriga, ou um computador é capaz de narrar toda a trama, como G.G., de “Samba-enredo”.

Mas o narrador Aires carrega várias ambiguidades. Empenhado em recordar o passado, confessa ter a memória falha, admitindo ser impreciso na recomposição do vivido. Surpresas e equívocos se intercalam, como na divertida passagem do carnaval, em que é tomado por folião. Nesse universo dúbio, por vezes um ser imaterial pode ser mais real do que indivíduos de carne e osso, e as cenas ambientadas no mundo da política e da diplomacia comprovam o quanto de teatro a vida obriga a fazer. Na visão de alguns, Aires revela prudência no viver. Já outros o enxergam como alguém que jamais se posiciona e evita a controvérsia a qualquer preço.

Mesmo desconhecendo as redes sociais, os aparelhos de celular e os bitcoins, o conselheiro segue um especialista na alma humana. No Brasil caótico de hoje, em que a diplomacia anda tão mal representada, seu espírito sensível e elegante faz diferença. Viúvo e sem filhos, Aires pensa que o verdadeiro patrimônio consiste na herança das palavras. Esse imprescindível capital constitui um modo de prolongar a estirpe do conselheiro nos leitores de hoje e do futuro — de corpo presente, papel ou dígitos, cada leitura dirá.

Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF

“Homem de papel”

Autor: João Almino. Editora: Record. Páginas: 416.

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