A literatura de João Almino contra a ilusão. José Castello, O Estado de S. Paulo, sobre As Cinco Estações do Amor

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O ESTADO DE S. PAULO – CULTURA Domingo, 16 de setembro de 2001

Com ‘As Cinco Estações do Amor’, romancista retoma o realismo e encerra sua Trilogia de Brasília

por José Castello

Volume conclusivo de sua Trilogia de Brasília, esse novo romance do diplomata João Almino, As Cinco Estações do Amor (Record, 204 págs., R$ 24), indica, em tom veemente, a posição por ele tomada diante do fazer literário. A começar, porque é, sem dúvida, o mais realista, o mais substantivo dos três, sintoma de que a literatura é, para Almino, uma atividade que conduz ao essencial e que se atém às coisas existentes. Depois, porque é também o mais desesperançado da trilogia, indício, por certo, da maturidade de Almino e de seu empenho em realizar o que ele mesmo define como “uma literatura contra a ilusão”.

A guinada de volta ao realismo não é, em seu caso, um retorno ao passado ou uma opção pelos moldes da escrita conservadora, mas uma aposta incondicional no presente. No qual Brasília, a capital construída para o futuro, aparece como uma crença a desmoronar.

Em Idéias para onde Passar o Fim do Mundo, primeiro romance da Trilogia de Brasília, de 1986, o narrador é um morto, um fantasma que volta à Terra para terminar um projeto inconcluso e, para isso, reencama em cada um dos personagens. No segundo, Samba-Enredo, de 94, o narrador é uma máquina, um computador- Eu impessoal, nem primeira, nem terceira pessoas, muito mais próximo da revelação indiferente, mas irrefreável, que da confissão.

Agora Almino “encarna” em uma mulher, Ana Kauffmann, uma narradora machucada e triste, empenhada em juntar os cacos de suas ilusões. Concluída a Trilogia, um morto, uma máquina e uma mulher ocuparam, sucessivamente, o lugar do Eu masculino – o Eu de João Almino, o escritor – que não só foi reprimido, mas praticamente expulso dos relatos.

O primeiro livro, mais surreal, narra um acerto de contas. O segundo, de tom mais alegórico, um seqüestro em pleno carnaval. Este As Cinco Estações do Amor, ao contrário dos precedentes, detém-se em elementos banais, que compõem a vida das pessoas comuns, o mais previsível deles, o amor. Sua matéria é, em conseqüência, o incompleto, a frustração, o fracasso, as meias-verdades, os erros – enfim, tudo aquilo que constitui o que chamamos de real. Isto é, a desilusão.

Mitos – Corajosa a postura de Almino, num terreno, como o literário, em que, desde os tempos dos primeiros mitos, tudo sempre apontou para a imaginação e a mentira. E é nesse aspecto, de escrita dura e masculina (ainda que encarnada na boca de uma mulher), que está a beleza de romance. Como pano de fundo, sempre, a mesma Brasília, ela também uma cidade incompleta, fraturada e frustrada – criada para a perfeição nas formas de Niemeyer e Lúcio Costa, mas conduzida pela realidade, em vez disso, ao cenário doloroso das cidades satélites, dos burocratas insatisfeitos, dos aproveitadores, do caos urbano e da desesperança.

Projeto frustrado, como todo projeto humano -já que, para agir, sempre partimos de alguma utopia. Mas a utopia é isso: um projeto que nunca se realiza, algo que está sempre aquém do que é. Pode servir de motor ao sonho (a Brasília em forma de aeroplano, a sobrevoar o Planalto Central), mas só isso; só um motor, porque o que a realidade nos oferece é sempre outra coisa.

Brasília, um cenário criado em louvor do futuro, gera um presente que Ana sente como depressivo e até devastador. Nesse sentido, a literatura de João Almino é contemporânea; sem ilusões, impiedoso com as utopias e os sonhos fáceis, ele escreve não como o retratista que deseja reproduzir o real, para celebrá-lo, mas como o carrasco que, pisando o real, nos empurra de cara no chão.

Já se disse que Almino usa o pessimismo como método. Ana Kauffmann, a narradora, é de fato uma mulher impotente, que tomou caminhos que a conduziram sempre a destinos inoportunos, que desejou uma coisa e teve outra, e se sente como um fantoche nas mãos no destino. É filha da chamada geração 68, que acreditou nas utopias políticas, nas vanguardas, na luta armada, na liberação sexual, mas agora tem que se ver com o neoliberalismo, o pedantismo, a apatia e a Aids. Ao longo do livro, ainda que desconfiada e melancólica, ela se empenha em juntar os pedaços do que se quebrou, já que não lhe resta outra matéria para viver.

Diplomacia -Assumindo a direção do Instituto Rio Branco, em Brasília, João Almino separa rigidamente a atividade diplomática da carreira literária – como fizeram, aliás, escritores e diplomatas como João Cabral e Vinicius de Moraes. Separa, mas alguma coisa sempre fica. Como um diplomata, também o escritor João Almino sabe tomar distância, sabe ver sem acreditar rapidamente, sabe pesar o que vê e completar as faltas com contrapesos – e talvez por isso sua Ana seja tão humana.

Ela sente atração e repulsa pelo país que habita, pela vida que viveu e cujas feridas ainda não se fecharam, pelo futuro expresso na Brasília de JK; futuro que não veio, ou veio ao contrário, expresso numa cidade-túmulo, de mármores, avenidas vazias e fachadas imensas, ainda se lançando para a frente, quando a realidade a puxa para trás.

Na verdade, a Brasília de Almino não é só uma cidade moderna, mas uma metáfora do mundo moderno. Cidade de migrantes, em direção à qual todo o Brasil convergiu e de onde agora foge, cidade síntese num mundo em que a síntese foi substituída pelo fragmento. Cidade onde os materiais humanos mais elementares, como o sexo, o amor, a amizade, o trabalho, tomam formas estranhas, às vezes inaceitáveis, outras inacreditáveis.

A narradora Ana Kauffmann já aparecera no segundo romance, Samba-Enredo – e o Paulinho é o Paulo Antônio do primeiro livro. Livros cujas raízes se entrelaçam, mas que são independentes e podem ser lidos em separado. As Cinco Estações do Amor fala dessa quinta estação, que não existe. Ela não é uma soma das quatro estações existentes, tampouco é sua negação. É talvez o lugar da literatura (aquilo que Rosa chamou de “a terceira margem do rio”), lugar não da ilusão, mas, como sugerem escritores vigorosos como Almino, da desilusão.

O ESTADO DE S. PAULO – CULTURA Domingo, 16 de setembro de 2001

Com ‘As Cinco Estações do Amor’, romancista retoma o realismo e encerra sua Trilogia de Brasília

por José Castello

Volume conclusivo de sua Trilogia de Brasília, esse novo romance do diplomata João Almino, As Cinco Estações do Amor (Record, 204 págs., R$ 24), indica, em tom veemente, a posição por ele tomada diante do fazer literário. A começar, porque é, sem dúvida, o mais realista, o mais substantivo dos três, sintoma de que a literatura é, para Almino, uma atividade que conduz ao essencial e que se atém às coisas existentes. Depois, porque é também o mais desesperançado da trilogia, indício, por certo, da maturidade de Almino e de seu empenho em realizar o que ele mesmo define como “uma literatura contra a ilusão”.

A guinada de volta ao realismo não é, em seu caso, um retorno ao passado ou uma opção pelos moldes da escrita conservadora, mas uma aposta incondicional no presente. No qual Brasília, a capital construída para o futuro, aparece como uma crença a desmoronar.

Em Idéias para onde Passar o Fim do Mundo, primeiro romance da Trilogia de Brasília, de 1986, o narrador é um morto, um fantasma que volta à Terra para terminar um projeto inconcluso e, para isso, reencama em cada um dos personagens. No segundo, Samba-Enredo, de 94, o narrador é uma máquina, um computador- Eu impessoal, nem primeira, nem terceira pessoas, muito mais próximo da revelação indiferente, mas irrefreável, que da confissão.

Agora Almino “encarna” em uma mulher, Ana Kauffmann, uma narradora machucada e triste, empenhada em juntar os cacos de suas ilusões. Concluída a Trilogia, um morto, uma máquina e uma mulher ocuparam, sucessivamente, o lugar do Eu masculino – o Eu de João Almino, o escritor – que não só foi reprimido, mas praticamente expulso dos relatos.

O primeiro livro, mais surreal, narra um acerto de contas. O segundo, de tom mais alegórico, um seqüestro em pleno carnaval. Este As Cinco Estações do Amor, ao contrário dos precedentes, detém-se em elementos banais, que compõem a vida das pessoas comuns, o mais previsível deles, o amor. Sua matéria é, em conseqüência, o incompleto, a frustração, o fracasso, as meias-verdades, os erros – enfim, tudo aquilo que constitui o que chamamos de real. Isto é, a desilusão.

Mitos – Corajosa a postura de Almino, num terreno, como o literário, em que, desde os tempos dos primeiros mitos, tudo sempre apontou para a imaginação e a mentira. E é nesse aspecto, de escrita dura e masculina (ainda que encarnada na boca de uma mulher), que está a beleza de romance. Como pano de fundo, sempre, a mesma Brasília, ela também uma cidade incompleta, fraturada e frustrada – criada para a perfeição nas formas de Niemeyer e Lúcio Costa, mas conduzida pela realidade, em vez disso, ao cenário doloroso das cidades satélites, dos burocratas insatisfeitos, dos aproveitadores, do caos urbano e da desesperança.

Projeto frustrado, como todo projeto humano -já que, para agir, sempre partimos de alguma utopia. Mas a utopia é isso: um projeto que nunca se realiza, algo que está sempre aquém do que é. Pode servir de motor ao sonho (a Brasília em forma de aeroplano, a sobrevoar o Planalto Central), mas só isso; só um motor, porque o que a realidade nos oferece é sempre outra coisa.

Brasília, um cenário criado em louvor do futuro, gera um presente que Ana sente como depressivo e até devastador. Nesse sentido, a literatura de João Almino é contemporânea; sem ilusões, impiedoso com as utopias e os sonhos fáceis, ele escreve não como o retratista que deseja reproduzir o real, para celebrá-lo, mas como o carrasco que, pisando o real, nos empurra de cara no chão.

Já se disse que Almino usa o pessimismo como método. Ana Kauffmann, a narradora, é de fato uma mulher impotente, que tomou caminhos que a conduziram sempre a destinos inoportunos, que desejou uma coisa e teve outra, e se sente como um fantoche nas mãos no destino. É filha da chamada geração 68, que acreditou nas utopias políticas, nas vanguardas, na luta armada, na liberação sexual, mas agora tem que se ver com o neoliberalismo, o pedantismo, a apatia e a Aids. Ao longo do livro, ainda que desconfiada e melancólica, ela se empenha em juntar os pedaços do que se quebrou, já que não lhe resta outra matéria para viver.

Diplomacia -Assumindo a direção do Instituto Rio Branco, em Brasília, João Almino separa rigidamente a atividade diplomática da carreira literária – como fizeram, aliás, escritores e diplomatas como João Cabral e Vinicius de Moraes. Separa, mas alguma coisa sempre fica. Como um diplomata, também o escritor João Almino sabe tomar distância, sabe ver sem acreditar rapidamente, sabe pesar o que vê e completar as faltas com contrapesos – e talvez por isso sua Ana seja tão humana.

Ela sente atração e repulsa pelo país que habita, pela vida que viveu e cujas feridas ainda não se fecharam, pelo futuro expresso na Brasília de JK; futuro que não veio, ou veio ao contrário, expresso numa cidade-túmulo, de mármores, avenidas vazias e fachadas imensas, ainda se lançando para a frente, quando a realidade a puxa para trás.

Na verdade, a Brasília de Almino não é só uma cidade moderna, mas uma metáfora do mundo moderno. Cidade de migrantes, em direção à qual todo o Brasil convergiu e de onde agora foge, cidade síntese num mundo em que a síntese foi substituída pelo fragmento. Cidade onde os materiais humanos mais elementares, como o sexo, o amor, a amizade, o trabalho, tomam formas estranhas, às vezes inaceitáveis, outras inacreditáveis.

A narradora Ana Kauffmann já aparecera no segundo romance, Samba-Enredo – e o Paulinho é o Paulo Antônio do primeiro livro. Livros cujas raízes se entrelaçam, mas que são independentes e podem ser lidos em separado. As Cinco Estações do Amor fala dessa quinta estação, que não existe. Ela não é uma soma das quatro estações existentes, tampouco é sua negação. É talvez o lugar da literatura (aquilo que Rosa chamou de “a terceira margem do rio”), lugar não da ilusão, mas, como sugerem escritores vigorosos como Almino, da desilusão.