Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo, de João Almino, por Walnice Nogueira Galvão

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O deslizante jogo de engodos, que esta narrativa empreende, enfeitiça e leva o leitor pelo nariz. A narrativa — romance, anti-romance, des-romance? — quer passar inicialmente, e assim se apresenta, por roteiro de cinema. E o leitor desavisado, envolvido pela ficção, pode fingir para si mesmo que acredita estar lendo o roteiro de um futuro filme se conseguir furtar-se à ausência dos signos típicos, tais como rubricas, indicações de cenário, etc. Logo se aperceberá de que está sendo engodado, embora o narrador persista na exposição de seu roteiro.

Estamos às voltas com um defunto-autor, em alusão expli­citada a Machado de Assis. Não são papéis encontrados post mortem, mas relato emitido por uma voz que pode enunciar o impossível (“quando morri”), em meio a reflexões sobre as origens do universo e sobre preferências quanto a técnicas ou autores de cinema.

Como se não bastasse, esta prosa, que quer passar por roteiro cinematográfico, propõe como seu ponto de partida uma fotografia tirada em Brasília, para dedicar-se a reconstruir a história das relações entre as personagens que a compõem, no momento em que a objetiva disparou.

À insatisfação com a precariedade de uma fotografia, à carência dos elementos fermentadores da opacidade do vivido que ela implica, vem adicionar-se a insatisfação com o ar rarefeito do cinema, da literatura e da “vida real”. O narrador medita sobre a natureza parca do fragmentário e do impermanente. A arbitrarie­dade dos começos e dos fins das histórias solapa a confiança na ficção. E, ora! se não se pode mais confiar nem na ficção, o que será dos narradores e dos leitores?

Este pretenso roteiro de um provável filme, concebido em Paris a partir da obsessão por um instantâneo da posse de um presidente da República em Brasília, no Ano 1 (Ano 1 que é mais uma indeterminação a desnortear o leitor), vai aos poucos dissolvendo sua máscara e investindo seu caráter de narrativa. Porém não para confortar o leitor, nem para cessar de instigá-lo. O narrador, antes mero defunto, participa ser agora um fantasma que baixou nas personagens da foto para recriar as histórias delas. E enceta o relato pelo encontro entre Berenice e Íris, que por acaso estão simultaneamente na foto e que nunca se conhecerão pessoalmente.

Mas as histórias separadas de ambas se desenvolverão longa­mente, em diferentes passagens da narrativa. Entrementes, começam a surgir personagens que não estavam na foto, e que se intrometem tanto no relato quanto nas ações do narrador. E assim são introduzidos Cadu, o fotógrafo que batera a foto, uma Joana de nome “verdadeiro” cujo nome ficcional vai ser Tita Rodrigues, Eva que era irmã daquele presidente, Madalena que fora esposa dele, Silvinha sua filha, e mesmo Paulo Antônio, o primeiro presidente negro do Brasil. Uns estão na foto, outros não estão. E ainda entrarão em cena mais alguns, inesperados.

O narrador fica esmagado por sua própria falta de onisciência, da qual todavia é ciente, mas que o intriga, assim como o intrigam as vidas e os acontecimentos para além dos limites do relato. O desafio está presente, e sobre ele o narrador se debruça: como contar o estilhaçado e o incompleto? Ainda faz sentido narrar?

Irrompe a esta altura um outro narrador, apoderando-se da responsabilidade pela narrativa, deslocando o narrador prévio de seu papel decisório, colocando sob um novo foco os eventos e recolocando perspectivas a seu ver inexatas. Este novo narrador, ou narradora, desvenda — matreiramente, porque, é claro, ao desvendar só amplia o enigma — os materiais da ficção, apontando onde há mistura de acontecimentos, combinação de traços físicos e psicológicos de vários modelos para construir uma só personagem, fontes utilizadas quase sem deixar rastro.

Depois de postos os pingos nos is, para reassegurar o leitor que agora se sente pisando a terra firme das convenções da ficção afinal respeitadas, vem o último capítulo, intitulado “A verdade verdadeira”, onde o jogo do imaginário é novamente desmitificado, deixando o leitor em estado de vertigem.

O leitor, espicaçado a cada momento por esta leitura, vai ter que reexaminar suas relações com uma Brasília e um Brasil que têm igualmente existência histórica. Com o seu tempo, como também com o tempo do Ano 1 e do Ano 2. Com discos voadores (terão ou não sido vistos?), com videntes, com misticismo e religiões populares, com drogas, com presidentes negros, com seqüestro e atentado, com suicídio — e com a literatura contemporânea.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO[:en]

O deslizante jogo de engodos, que esta narrativa empreende, enfeitiça e leva o leitor pelo nariz. A narrativa — romance, anti-romance, des-romance? — quer passar inicialmente, e assim se apresenta, por roteiro de cinema. E o leitor desavisado, envolvido pela ficção, pode fingir para si mesmo que acredita estar lendo o roteiro de um futuro filme se conseguir furtar-se à ausência dos signos típicos, tais como rubricas, indicações de cenário, etc. Logo se aperceberá de que está sendo engodado, embora o narrador persista na exposição de seu roteiro.

Estamos às voltas com um defunto-autor, em alusão expli­citada a Machado de Assis. Não são papéis encontrados post mortem, mas relato emitido por uma voz que pode enunciar o impossível (“quando morri”), em meio a reflexões sobre as origens do universo e sobre preferências quanto a técnicas ou autores de cinema.

Como se não bastasse, esta prosa, que quer passar por roteiro cinematográfico, propõe como seu ponto de partida uma fotografia tirada em Brasília, para dedicar-se a reconstruir a história das relações entre as personagens que a compõem, no momento em que a objetiva disparou.

À insatisfação com a precariedade de uma fotografia, à carência dos elementos fermentadores da opacidade do vivido que ela implica, vem adicionar-se a insatisfação com o ar rarefeito do cinema, da literatura e da “vida real”. O narrador medita sobre a natureza parca do fragmentário e do impermanente. A arbitrarie­dade dos começos e dos fins das histórias solapa a confiança na ficção. E, ora! se não se pode mais confiar nem na ficção, o que será dos narradores e dos leitores?

Este pretenso roteiro de um provável filme, concebido em Paris a partir da obsessão por um instantâneo da posse de um presidente da República em Brasília, no Ano 1 (Ano 1 que é mais uma indeterminação a desnortear o leitor), vai aos poucos dissolvendo sua máscara e investindo seu caráter de narrativa. Porém não para confortar o leitor, nem para cessar de instigá-lo. O narrador, antes mero defunto, participa ser agora um fantasma que baixou nas personagens da foto para recriar as histórias delas. E enceta o relato pelo encontro entre Berenice e Íris, que por acaso estão simultaneamente na foto e que nunca se conhecerão pessoalmente.

Mas as histórias separadas de ambas se desenvolverão longa­mente, em diferentes passagens da narrativa. Entrementes, começam a surgir personagens que não estavam na foto, e que se intrometem tanto no relato quanto nas ações do narrador. E assim são introduzidos Cadu, o fotógrafo que batera a foto, uma Joana de nome “verdadeiro” cujo nome ficcional vai ser Tita Rodrigues, Eva que era irmã daquele presidente, Madalena que fora esposa dele, Silvinha sua filha, e mesmo Paulo Antônio, o primeiro presidente negro do Brasil. Uns estão na foto, outros não estão. E ainda entrarão em cena mais alguns, inesperados.

O narrador fica esmagado por sua própria falta de onisciência, da qual todavia é ciente, mas que o intriga, assim como o intrigam as vidas e os acontecimentos para além dos limites do relato. O desafio está presente, e sobre ele o narrador se debruça: como contar o estilhaçado e o incompleto? Ainda faz sentido narrar?

Irrompe a esta altura um outro narrador, apoderando-se da responsabilidade pela narrativa, deslocando o narrador prévio de seu papel decisório, colocando sob um novo foco os eventos e recolocando perspectivas a seu ver inexatas. Este novo narrador, ou narradora, desvenda — matreiramente, porque, é claro, ao desvendar só amplia o enigma — os materiais da ficção, apontando onde há mistura de acontecimentos, combinação de traços físicos e psicológicos de vários modelos para construir uma só personagem, fontes utilizadas quase sem deixar rastro.

Depois de postos os pingos nos is, para reassegurar o leitor que agora se sente pisando a terra firme das convenções da ficção afinal respeitadas, vem o último capítulo, intitulado “A verdade verdadeira”, onde o jogo do imaginário é novamente desmitificado, deixando o leitor em estado de vertigem.

O leitor, espicaçado a cada momento por esta leitura, vai ter que reexaminar suas relações com uma Brasília e um Brasil que têm igualmente existência histórica. Com o seu tempo, como também com o tempo do Ano 1 e do Ano 2. Com discos voadores (terão ou não sido vistos?), com videntes, com misticismo e religiões populares, com drogas, com presidentes negros, com seqüestro e atentado, com suicídio — e com a literatura contemporânea.

[:es]

O deslizante jogo de engodos, que esta narrativa empreende, enfeitiça e leva o leitor pelo nariz. A narrativa — romance, anti-romance, des-romance? — quer passar inicialmente, e assim se apresenta, por roteiro de cinema. E o leitor desavisado, envolvido pela ficção, pode fingir para si mesmo que acredita estar lendo o roteiro de um futuro filme se conseguir furtar-se à ausência dos signos típicos, tais como rubricas, indicações de cenário, etc. Logo se aperceberá de que está sendo engodado, embora o narrador persista na exposição de seu roteiro.

Estamos às voltas com um defunto-autor, em alusão expli­citada a Machado de Assis. Não são papéis encontrados post mortem, mas relato emitido por uma voz que pode enunciar o impossível (“quando morri”), em meio a reflexões sobre as origens do universo e sobre preferências quanto a técnicas ou autores de cinema.

Como se não bastasse, esta prosa, que quer passar por roteiro cinematográfico, propõe como seu ponto de partida uma fotografia tirada em Brasília, para dedicar-se a reconstruir a história das relações entre as personagens que a compõem, no momento em que a objetiva disparou.

À insatisfação com a precariedade de uma fotografia, à carência dos elementos fermentadores da opacidade do vivido que ela implica, vem adicionar-se a insatisfação com o ar rarefeito do cinema, da literatura e da “vida real”. O narrador medita sobre a natureza parca do fragmentário e do impermanente. A arbitrarie­dade dos começos e dos fins das histórias solapa a confiança na ficção. E, ora! se não se pode mais confiar nem na ficção, o que será dos narradores e dos leitores?

Este pretenso roteiro de um provável filme, concebido em Paris a partir da obsessão por um instantâneo da posse de um presidente da República em Brasília, no Ano 1 (Ano 1 que é mais uma indeterminação a desnortear o leitor), vai aos poucos dissolvendo sua máscara e investindo seu caráter de narrativa. Porém não para confortar o leitor, nem para cessar de instigá-lo. O narrador, antes mero defunto, participa ser agora um fantasma que baixou nas personagens da foto para recriar as histórias delas. E enceta o relato pelo encontro entre Berenice e Íris, que por acaso estão simultaneamente na foto e que nunca se conhecerão pessoalmente.

Mas as histórias separadas de ambas se desenvolverão longa­mente, em diferentes passagens da narrativa. Entrementes, começam a surgir personagens que não estavam na foto, e que se intrometem tanto no relato quanto nas ações do narrador. E assim são introduzidos Cadu, o fotógrafo que batera a foto, uma Joana de nome “verdadeiro” cujo nome ficcional vai ser Tita Rodrigues, Eva que era irmã daquele presidente, Madalena que fora esposa dele, Silvinha sua filha, e mesmo Paulo Antônio, o primeiro presidente negro do Brasil. Uns estão na foto, outros não estão. E ainda entrarão em cena mais alguns, inesperados.

O narrador fica esmagado por sua própria falta de onisciência, da qual todavia é ciente, mas que o intriga, assim como o intrigam as vidas e os acontecimentos para além dos limites do relato. O desafio está presente, e sobre ele o narrador se debruça: como contar o estilhaçado e o incompleto? Ainda faz sentido narrar?

Irrompe a esta altura um outro narrador, apoderando-se da responsabilidade pela narrativa, deslocando o narrador prévio de seu papel decisório, colocando sob um novo foco os eventos e recolocando perspectivas a seu ver inexatas. Este novo narrador, ou narradora, desvenda — matreiramente, porque, é claro, ao desvendar só amplia o enigma — os materiais da ficção, apontando onde há mistura de acontecimentos, combinação de traços físicos e psicológicos de vários modelos para construir uma só personagem, fontes utilizadas quase sem deixar rastro.

Depois de postos os pingos nos is, para reassegurar o leitor que agora se sente pisando a terra firme das convenções da ficção afinal respeitadas, vem o último capítulo, intitulado “A verdade verdadeira”, onde o jogo do imaginário é novamente desmitificado, deixando o leitor em estado de vertigem.

O leitor, espicaçado a cada momento por esta leitura, vai ter que reexaminar suas relações com uma Brasília e um Brasil que têm igualmente existência histórica. Com o seu tempo, como também com o tempo do Ano 1 e do Ano 2. Com discos voadores (terão ou não sido vistos?), com videntes, com misticismo e religiões populares, com drogas, com presidentes negros, com seqüestro e atentado, com suicídio — e com a literatura contemporânea.

[:fr]

O deslizante jogo de engodos, que esta narrativa empreende, enfeitiça e leva o leitor pelo nariz. A narrativa — romance, anti-romance, des-romance? — quer passar inicialmente, e assim se apresenta, por roteiro de cinema. E o leitor desavisado, envolvido pela ficção, pode fingir para si mesmo que acredita estar lendo o roteiro de um futuro filme se conseguir furtar-se à ausência dos signos típicos, tais como rubricas, indicações de cenário, etc. Logo se aperceberá de que está sendo engodado, embora o narrador persista na exposição de seu roteiro.

Estamos às voltas com um defunto-autor, em alusão expli­citada a Machado de Assis. Não são papéis encontrados post mortem, mas relato emitido por uma voz que pode enunciar o impossível (“quando morri”), em meio a reflexões sobre as origens do universo e sobre preferências quanto a técnicas ou autores de cinema.

Como se não bastasse, esta prosa, que quer passar por roteiro cinematográfico, propõe como seu ponto de partida uma fotografia tirada em Brasília, para dedicar-se a reconstruir a história das relações entre as personagens que a compõem, no momento em que a objetiva disparou.

À insatisfação com a precariedade de uma fotografia, à carência dos elementos fermentadores da opacidade do vivido que ela implica, vem adicionar-se a insatisfação com o ar rarefeito do cinema, da literatura e da “vida real”. O narrador medita sobre a natureza parca do fragmentário e do impermanente. A arbitrarie­dade dos começos e dos fins das histórias solapa a confiança na ficção. E, ora! se não se pode mais confiar nem na ficção, o que será dos narradores e dos leitores?

Este pretenso roteiro de um provável filme, concebido em Paris a partir da obsessão por um instantâneo da posse de um presidente da República em Brasília, no Ano 1 (Ano 1 que é mais uma indeterminação a desnortear o leitor), vai aos poucos dissolvendo sua máscara e investindo seu caráter de narrativa. Porém não para confortar o leitor, nem para cessar de instigá-lo. O narrador, antes mero defunto, participa ser agora um fantasma que baixou nas personagens da foto para recriar as histórias delas. E enceta o relato pelo encontro entre Berenice e Íris, que por acaso estão simultaneamente na foto e que nunca se conhecerão pessoalmente.

Mas as histórias separadas de ambas se desenvolverão longa­mente, em diferentes passagens da narrativa. Entrementes, começam a surgir personagens que não estavam na foto, e que se intrometem tanto no relato quanto nas ações do narrador. E assim são introduzidos Cadu, o fotógrafo que batera a foto, uma Joana de nome “verdadeiro” cujo nome ficcional vai ser Tita Rodrigues, Eva que era irmã daquele presidente, Madalena que fora esposa dele, Silvinha sua filha, e mesmo Paulo Antônio, o primeiro presidente negro do Brasil. Uns estão na foto, outros não estão. E ainda entrarão em cena mais alguns, inesperados.

O narrador fica esmagado por sua própria falta de onisciência, da qual todavia é ciente, mas que o intriga, assim como o intrigam as vidas e os acontecimentos para além dos limites do relato. O desafio está presente, e sobre ele o narrador se debruça: como contar o estilhaçado e o incompleto? Ainda faz sentido narrar?

Irrompe a esta altura um outro narrador, apoderando-se da responsabilidade pela narrativa, deslocando o narrador prévio de seu papel decisório, colocando sob um novo foco os eventos e recolocando perspectivas a seu ver inexatas. Este novo narrador, ou narradora, desvenda — matreiramente, porque, é claro, ao desvendar só amplia o enigma — os materiais da ficção, apontando onde há mistura de acontecimentos, combinação de traços físicos e psicológicos de vários modelos para construir uma só personagem, fontes utilizadas quase sem deixar rastro.

Depois de postos os pingos nos is, para reassegurar o leitor que agora se sente pisando a terra firme das convenções da ficção afinal respeitadas, vem o último capítulo, intitulado “A verdade verdadeira”, onde o jogo do imaginário é novamente desmitificado, deixando o leitor em estado de vertigem.

O leitor, espicaçado a cada momento por esta leitura, vai ter que reexaminar suas relações com uma Brasília e um Brasil que têm igualmente existência histórica. Com o seu tempo, como também com o tempo do Ano 1 e do Ano 2. Com discos voadores (terão ou não sido vistos?), com videntes, com misticismo e religiões populares, com drogas, com presidentes negros, com seqüestro e atentado, com suicídio — e com a literatura contemporânea.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO[:]