Sábado, 16 de junho de 2001, Idéias, Jornal do Brasil
Heloisa Buarque de Hollanda (Heloisa Teixeira)
As cinco estações do amor é o último volume da trilogia de Brasília, do escritor, crítico, fotógrafo e diplomata João Almino. Um autor que começa a escrever nos tempos quentes do Planalto, que traz o cenário de Brasília e dos bastidores do poder, um diplomata convictamente diaspórico, um romance que fala de amor. Resumindo, um mix que, em princípio, promete. Foi com essa expectativa que comecei ler As cinco estações do amor. Os ingredientes esperados estavam todos lá: a luminosidade incisiva do Planalto, as idas e vindas das utopias da geração AI-5, a marca distintiva dos afetos, invejas e conflitos desenrolando-se no design das superquadras, o balanço existencial dos protagonistas desse projeto algumas décadas depois. Tudo certo.
O que eu não esperava era que o narrador fosse uma mulher e mais: uma mulher com a dicção mais ortodoxamente feminina que se pudesse prever. Essa mulher era, sem dúvida, da minha geração ou da que veio imediatamente depois. Sua experiência social, revelada nas entrelinhas e em sentimentos explícitos e implícitos, trazia cicatrizes dos anos 60-70. Apresenta-se no romance através do acting out da clássica divisão entre os dois lados da Eva pré-feminista. Diana, nome escolhido e registrado legalmente pela mãe; e Ana, preferência paterna, como ficou sendo efetivamente conhecida. Diana, a que ousa. Ana, a que morde a língua.
Ainda que esta divisão remeta à clássica projeção das fantasias masculinas sobre a “violência da libido feminina”, chama a atenção a desenvoltura com que João Almino percebe os movimentos e contra-movimentos da protagonista. Chama ainda a atenção o impulso ansioso de ouvir, traduzir e saber o “outro”. A respeito, diz João Almino, com certo humor: “O escritor é como o ator. Alguns como, por exemplo, Jack Nicholson, representam sempre seu próprio papel, outros vão à procura de personagens diferentes.”
Alteridade – No caso do nosso autor, a imersão no universo do outro não é precisamente uma novidade. Em todos os volumes da trilogia de Brasília, a narração é, teimosamente, a tradução da perspectiva de um outro. Em Idéias para onde passar o fim do mundo, essa estratégia é ainda hesitante ou, pelo menos, conduzida por um artifício meio complicado. O narrador, já falecido e autor do roteiro de um filme que não chegou a ser realizado, conta-nos a história dos personagens que aparem numa foto. Digamos que o “fantasma do roteirista” encarne em cada um dos personagens que aparecem na imagem que dá origem à trama e narre suas histórias pessoais do ponto de vista de cada um deles. Portanto, a perspectiva da 3.a pessoa neste caso é, na realidade, a de uma 1.a pessoa “traduzida”.
Já em Samba-enredo, a trama é urdida entre as intrigas e paixões que envolvem o seqüestro do presidente da República em meio ao turbilhão do carnaval. O narrador aqui é nada mais nada menos do que o imprevisível ponto de vista de uma máquina (um computador?) apresentada na primeira pessoa do feminino. Diz a máquina-narrador: “O autor tem face, eu interfaces. Por isso, tenho esta facilidade de mostrar-me com cara humana e até mais que humana: de mulher.” Esse é, sem dúvida, o mais experimental dos romances de João Almino. E, como tal, nos entrega algumas chaves de seu trabalho. O artifício da narração espelhada, o tema recorrente do instante na percepção prismática e fracionada de seu(s) relato(s), o puzzle do Brasil político, social, comportamental e afetivo destes últimos 30 anos.
Nos dois primeiros volumes da trilogia, a presença de um rigoroso trabalho técnico de estrutura e de linguagem é transparente. Entretanto, em As cinco estações do amor, somos surpreendidos por uma narrativa que se apresenta de forma relativamente conservadora e por uma história que pode ser entendida como a capitulação de antigas energias & utopias geracionais. Mas, pelo contrário, me parece que é exatamente aqui que o autor traz definitivamente o feeling e a marca da nova área de risco da produção literária atual.
Dissonância – À primeira vista, este trabalho não se identifica e mesmo recusa o impulso experimental dos anteriores, nem trata diretamente, como nos anteriores, das cores, do humor, do lado escabroso e brutal do Brasil desenrolando-se nos bastidores do poder e das intrigas palacianas. Tanto o abandono da preocupação formal explícita, quanto da complexidade do país pós-68, em Cinco estações, vão dar lugar a exercícios talvez mais ousados.
Em primeiro lugar, em vez dos artifícios narrativos anteriores, o autor joga-se total e abertamente, sem intermediários, no feminino. A falsa aparência de quietude e de mesmice simulada aqui é, através da personagem, progressivamente negada em função do que possa ser sentido como contradição tanto na narrativa limpidamente linear ou no próprio tratamento da forma, quanto na negação de seus conteúdos. O deslocamento da narrativa para o feminino quebra algumas normas éticas e estéticas. Sob o impacto da luz agressiva da cidade, desarmam-se, em cena aberta, os truques literários. O que está agora em questão é o ponto de chegada de uma longa revolução. É a voz e a vez de um acerto de contas. Descobrimos a presença modulada dos mesmos personagens nos três volumes, da mesma planta baixa lógica de articulações e projeções, da eterna volta de um instante particular como leitmotif, neste último volume da trilogia, aquele em que se sobrepõe (e se desgasta) a idéia de revolução social à de revolução interior.
Heloísa Buarque de Hollanda é professora da ECO-UFRJ e um dos autores de Cultura em trânsito, da repressão à abertura (Aeroplano).
Sábado, 16 de junho de 2001, Idéias, Jornal do Brasil
As cinco estações do amor é o último volume da trilogia de Brasília, do escritor, crítico, fotógrafo e diplomata João Almino. Um autor que começa a escrever nos tempos quentes do Planalto, que traz o cenário de Brasília e dos bastidores do poder, um diplomata convictamente diaspórico, um romance que fala de amor. Resumindo, um mix que, em princípio, promete. Foi com essa expectativa que comecei ler As cinco estações do amor. Os ingredientes esperados estavam todos lá: a luminosidade incisiva do Planalto, as idas e vindas das utopias da geração AI-5, a marca distintiva dos afetos, invejas e conflitos desenrolando-se no design das superquadras, o balanço existencial dos protagonistas desse projeto algumas décadas depois. Tudo certo.
O que eu não esperava era que o narrador fosse uma mulher e mais: uma mulher com a dicção mais ortodoxamente feminina que se pudesse prever. Essa mulher era, sem dúvida, da minha geração ou da que veio imediatamente depois. Sua experiência social, revelada nas entrelinhas e em sentimentos explícitos e implícitos, trazia cicatrizes dos anos 60-70. Apresenta-se no romance através do acting out da clássica divisão entre os dois lados da Eva pré-feminista. Diana, nome escolhido e registrado legalmente pela mãe; e Ana, preferência paterna, como ficou sendo efetivamente conhecida. Diana, a que ousa. Ana, a que morde a língua.
Ainda que esta divisão remeta à clássica projeção das fantasias masculinas sobre a “violência da libido feminina”, chama a atenção a desenvoltura com que João Almino percebe os movimentos e contra-movimentos da protagonista. Chama ainda a atenção o impulso ansioso de ouvir, traduzir e saber o “outro”. A respeito, diz João Almino, com certo humor: “O escritor é como o ator. Alguns como, por exemplo, Jack Nicholson, representam sempre seu próprio papel, outros vão à procura de personagens diferentes.”
Alteridade – No caso do nosso autor, a imersão no universo do outro não é precisamente uma novidade. Em todos os volumes da trilogia de Brasília, a narração é, teimosamente, a tradução da perspectiva de um outro. Em Idéias para onde passar o fim do mundo, essa estratégia é ainda hesitante ou, pelo menos, conduzida por um artifício meio complicado. O narrador, já falecido e autor do roteiro de um filme que não chegou a ser realizado, conta-nos a história dos personagens que aparem numa foto. Digamos que o “fantasma do roteirista” encarne em cada um dos personagens que aparecem na imagem que dá origem à trama e narre suas histórias pessoais do ponto de vista de cada um deles. Portanto, a perspectiva da 3.a pessoa neste caso é, na realidade, a de uma 1.a pessoa “traduzida”.
Já em Samba-enredo, a trama é urdida entre as intrigas e paixões que envolvem o seqüestro do presidente da República em meio ao turbilhão do carnaval. O narrador aqui é nada mais nada menos do que o imprevisível ponto de vista de uma máquina (um computador?) apresentada na primeira pessoa do feminino. Diz a máquina-narrador: “O autor tem face, eu interfaces. Por isso, tenho esta facilidade de mostrar-me com cara humana e até mais que humana: de mulher.” Esse é, sem dúvida, o mais experimental dos romances de João Almino. E, como tal, nos entrega algumas chaves de seu trabalho. O artifício da narração espelhada, o tema recorrente do instante na percepção prismática e fracionada de seu(s) relato(s), o puzzle do Brasil político, social, comportamental e afetivo destes últimos 30 anos.
Nos dois primeiros volumes da trilogia, a presença de um rigoroso trabalho técnico de estrutura e de linguagem é transparente. Entretanto, em As cinco estações do amor, somos surpreendidos por uma narrativa que se apresenta de forma relativamente conservadora e por uma história que pode ser entendida como a capitulação de antigas energias & utopias geracionais. Mas, pelo contrário, me parece que é exatamente aqui que o autor traz definitivamente o feeling e a marca da nova área de risco da produção literária atual.
Dissonância – À primeira vista, este trabalho não se identifica e mesmo recusa o impulso experimental dos anteriores, nem trata diretamente, como nos anteriores, das cores, do humor, do lado escabroso e brutal do Brasil desenrolando-se nos bastidores do poder e das intrigas palacianas. Tanto o abandono da preocupação formal explícita, quanto da complexidade do país pós-68, em Cinco estações, vão dar lugar a exercícios talvez mais ousados.
Em primeiro lugar, em vez dos artifícios narrativos anteriores, o autor joga-se total e abertamente, sem intermediários, no feminino. A falsa aparência de quietude e de mesmice simulada aqui é, através da personagem, progressivamente negada em função do que possa ser sentido como contradição tanto na narrativa limpidamente linear ou no próprio tratamento da forma, quanto na negação de seus conteúdos. O deslocamento da narrativa para o feminino quebra algumas normas éticas e estéticas. Sob o impacto da luz agressiva da cidade, desarmam-se, em cena aberta, os truques literários. O que está agora em questão é o ponto de chegada de uma longa revolução. É a voz e a vez de um acerto de contas. Descobrimos a presença modulada dos mesmos personagens nos três volumes, da mesma planta baixa lógica de articulações e projeções, da eterna volta de um instante particular como leitmotif, neste último volume da trilogia, aquele em que se sobrepõe (e se desgasta) a idéia de revolução social à de revolução interior.
Heloísa Buarque de Hollanda é professora da ECO-UFRJ e um dos autores de Cultura em trânsito, da repressão à abertura (Aeroplano).
Sábado, 16 de junho de 2001, Idéias, Jornal do Brasil
As cinco estações do amor é o último volume da trilogia de Brasília, do escritor, crítico, fotógrafo e diplomata João Almino. Um autor que começa a escrever nos tempos quentes do Planalto, que traz o cenário de Brasília e dos bastidores do poder, um diplomata convictamente diaspórico, um romance que fala de amor. Resumindo, um mix que, em princípio, promete. Foi com essa expectativa que comecei ler As cinco estações do amor. Os ingredientes esperados estavam todos lá: a luminosidade incisiva do Planalto, as idas e vindas das utopias da geração AI-5, a marca distintiva dos afetos, invejas e conflitos desenrolando-se no design das superquadras, o balanço existencial dos protagonistas desse projeto algumas décadas depois. Tudo certo.
O que eu não esperava era que o narrador fosse uma mulher e mais: uma mulher com a dicção mais ortodoxamente feminina que se pudesse prever. Essa mulher era, sem dúvida, da minha geração ou da que veio imediatamente depois. Sua experiência social, revelada nas entrelinhas e em sentimentos explícitos e implícitos, trazia cicatrizes dos anos 60-70. Apresenta-se no romance através do acting out da clássica divisão entre os dois lados da Eva pré-feminista. Diana, nome escolhido e registrado legalmente pela mãe; e Ana, preferência paterna, como ficou sendo efetivamente conhecida. Diana, a que ousa. Ana, a que morde a língua.
Ainda que esta divisão remeta à clássica projeção das fantasias masculinas sobre a “violência da libido feminina”, chama a atenção a desenvoltura com que João Almino percebe os movimentos e contra-movimentos da protagonista. Chama ainda a atenção o impulso ansioso de ouvir, traduzir e saber o “outro”. A respeito, diz João Almino, com certo humor: “O escritor é como o ator. Alguns como, por exemplo, Jack Nicholson, representam sempre seu próprio papel, outros vão à procura de personagens diferentes.”
Alteridade – No caso do nosso autor, a imersão no universo do outro não é precisamente uma novidade. Em todos os volumes da trilogia de Brasília, a narração é, teimosamente, a tradução da perspectiva de um outro. Em Idéias para onde passar o fim do mundo, essa estratégia é ainda hesitante ou, pelo menos, conduzida por um artifício meio complicado. O narrador, já falecido e autor do roteiro de um filme que não chegou a ser realizado, conta-nos a história dos personagens que aparem numa foto. Digamos que o “fantasma do roteirista” encarne em cada um dos personagens que aparecem na imagem que dá origem à trama e narre suas histórias pessoais do ponto de vista de cada um deles. Portanto, a perspectiva da 3.a pessoa neste caso é, na realidade, a de uma 1.a pessoa “traduzida”.
Já em Samba-enredo, a trama é urdida entre as intrigas e paixões que envolvem o seqüestro do presidente da República em meio ao turbilhão do carnaval. O narrador aqui é nada mais nada menos do que o imprevisível ponto de vista de uma máquina (um computador?) apresentada na primeira pessoa do feminino. Diz a máquina-narrador: “O autor tem face, eu interfaces. Por isso, tenho esta facilidade de mostrar-me com cara humana e até mais que humana: de mulher.” Esse é, sem dúvida, o mais experimental dos romances de João Almino. E, como tal, nos entrega algumas chaves de seu trabalho. O artifício da narração espelhada, o tema recorrente do instante na percepção prismática e fracionada de seu(s) relato(s), o puzzle do Brasil político, social, comportamental e afetivo destes últimos 30 anos.
Nos dois primeiros volumes da trilogia, a presença de um rigoroso trabalho técnico de estrutura e de linguagem é transparente. Entretanto, em As cinco estações do amor, somos surpreendidos por uma narrativa que se apresenta de forma relativamente conservadora e por uma história que pode ser entendida como a capitulação de antigas energias & utopias geracionais. Mas, pelo contrário, me parece que é exatamente aqui que o autor traz definitivamente o feeling e a marca da nova área de risco da produção literária atual.
Dissonância – À primeira vista, este trabalho não se identifica e mesmo recusa o impulso experimental dos anteriores, nem trata diretamente, como nos anteriores, das cores, do humor, do lado escabroso e brutal do Brasil desenrolando-se nos bastidores do poder e das intrigas palacianas. Tanto o abandono da preocupação formal explícita, quanto da complexidade do país pós-68, em Cinco estações, vão dar lugar a exercícios talvez mais ousados.
Em primeiro lugar, em vez dos artifícios narrativos anteriores, o autor joga-se total e abertamente, sem intermediários, no feminino. A falsa aparência de quietude e de mesmice simulada aqui é, através da personagem, progressivamente negada em função do que possa ser sentido como contradição tanto na narrativa limpidamente linear ou no próprio tratamento da forma, quanto na negação de seus conteúdos. O deslocamento da narrativa para o feminino quebra algumas normas éticas e estéticas. Sob o impacto da luz agressiva da cidade, desarmam-se, em cena aberta, os truques literários. O que está agora em questão é o ponto de chegada de uma longa revolução. É a voz e a vez de um acerto de contas. Descobrimos a presença modulada dos mesmos personagens nos três volumes, da mesma planta baixa lógica de articulações e projeções, da eterna volta de um instante particular como leitmotif, neste último volume da trilogia, aquele em que se sobrepõe (e se desgasta) a idéia de revolução social à de revolução interior.
Heloísa Buarque de Hollanda é professora da ECO-UFRJ e um dos autores de Cultura em trânsito, da repressão à abertura (Aeroplano).
Sábado, 16 de junho de 2001, Idéias, Jornal do Brasil
As cinco estações do amor é o último volume da trilogia de Brasília, do escritor, crítico, fotógrafo e diplomata João Almino. Um autor que começa a escrever nos tempos quentes do Planalto, que traz o cenário de Brasília e dos bastidores do poder, um diplomata convictamente diaspórico, um romance que fala de amor. Resumindo, um mix que, em princípio, promete. Foi com essa expectativa que comecei ler As cinco estações do amor. Os ingredientes esperados estavam todos lá: a luminosidade incisiva do Planalto, as idas e vindas das utopias da geração AI-5, a marca distintiva dos afetos, invejas e conflitos desenrolando-se no design das superquadras, o balanço existencial dos protagonistas desse projeto algumas décadas depois. Tudo certo.
O que eu não esperava era que o narrador fosse uma mulher e mais: uma mulher com a dicção mais ortodoxamente feminina que se pudesse prever. Essa mulher era, sem dúvida, da minha geração ou da que veio imediatamente depois. Sua experiência social, revelada nas entrelinhas e em sentimentos explícitos e implícitos, trazia cicatrizes dos anos 60-70. Apresenta-se no romance através do acting out da clássica divisão entre os dois lados da Eva pré-feminista. Diana, nome escolhido e registrado legalmente pela mãe; e Ana, preferência paterna, como ficou sendo efetivamente conhecida. Diana, a que ousa. Ana, a que morde a língua.
Ainda que esta divisão remeta à clássica projeção das fantasias masculinas sobre a “violência da libido feminina”, chama a atenção a desenvoltura com que João Almino percebe os movimentos e contra-movimentos da protagonista. Chama ainda a atenção o impulso ansioso de ouvir, traduzir e saber o “outro”. A respeito, diz João Almino, com certo humor: “O escritor é como o ator. Alguns como, por exemplo, Jack Nicholson, representam sempre seu próprio papel, outros vão à procura de personagens diferentes.”
Alteridade – No caso do nosso autor, a imersão no universo do outro não é precisamente uma novidade. Em todos os volumes da trilogia de Brasília, a narração é, teimosamente, a tradução da perspectiva de um outro. Em Idéias para onde passar o fim do mundo, essa estratégia é ainda hesitante ou, pelo menos, conduzida por um artifício meio complicado. O narrador, já falecido e autor do roteiro de um filme que não chegou a ser realizado, conta-nos a história dos personagens que aparem numa foto. Digamos que o “fantasma do roteirista” encarne em cada um dos personagens que aparecem na imagem que dá origem à trama e narre suas histórias pessoais do ponto de vista de cada um deles. Portanto, a perspectiva da 3.a pessoa neste caso é, na realidade, a de uma 1.a pessoa “traduzida”.
Já em Samba-enredo, a trama é urdida entre as intrigas e paixões que envolvem o seqüestro do presidente da República em meio ao turbilhão do carnaval. O narrador aqui é nada mais nada menos do que o imprevisível ponto de vista de uma máquina (um computador?) apresentada na primeira pessoa do feminino. Diz a máquina-narrador: “O autor tem face, eu interfaces. Por isso, tenho esta facilidade de mostrar-me com cara humana e até mais que humana: de mulher.” Esse é, sem dúvida, o mais experimental dos romances de João Almino. E, como tal, nos entrega algumas chaves de seu trabalho. O artifício da narração espelhada, o tema recorrente do instante na percepção prismática e fracionada de seu(s) relato(s), o puzzle do Brasil político, social, comportamental e afetivo destes últimos 30 anos.
Nos dois primeiros volumes da trilogia, a presença de um rigoroso trabalho técnico de estrutura e de linguagem é transparente. Entretanto, em As cinco estações do amor, somos surpreendidos por uma narrativa que se apresenta de forma relativamente conservadora e por uma história que pode ser entendida como a capitulação de antigas energias & utopias geracionais. Mas, pelo contrário, me parece que é exatamente aqui que o autor traz definitivamente o feeling e a marca da nova área de risco da produção literária atual.
Dissonância – À primeira vista, este trabalho não se identifica e mesmo recusa o impulso experimental dos anteriores, nem trata diretamente, como nos anteriores, das cores, do humor, do lado escabroso e brutal do Brasil desenrolando-se nos bastidores do poder e das intrigas palacianas. Tanto o abandono da preocupação formal explícita, quanto da complexidade do país pós-68, em Cinco estações, vão dar lugar a exercícios talvez mais ousados.
Em primeiro lugar, em vez dos artifícios narrativos anteriores, o autor joga-se total e abertamente, sem intermediários, no feminino. A falsa aparência de quietude e de mesmice simulada aqui é, através da personagem, progressivamente negada em função do que possa ser sentido como contradição tanto na narrativa limpidamente linear ou no próprio tratamento da forma, quanto na negação de seus conteúdos. O deslocamento da narrativa para o feminino quebra algumas normas éticas e estéticas. Sob o impacto da luz agressiva da cidade, desarmam-se, em cena aberta, os truques literários. O que está agora em questão é o ponto de chegada de uma longa revolução. É a voz e a vez de um acerto de contas. Descobrimos a presença modulada dos mesmos personagens nos três volumes, da mesma planta baixa lógica de articulações e projeções, da eterna volta de um instante particular como leitmotif, neste último volume da trilogia, aquele em que se sobrepõe (e se desgasta) a idéia de revolução social à de revolução interior.
Heloísa Buarque de Hollanda é professora da ECO-UFRJ e um dos autores de Cultura em trânsito, da repressão à abertura (Aeroplano).