“Não pertencer pertencendo”. Sobre “As Cinco Estações do Amor”, de João Almino. Por Pedro Meira Monteiro.

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Este livro de João Almino é o terceiro de uma trilogia que recentemente se tornou um quarteto, e que nada impede de vir a tornar-se uma saga, tendo sempre como cenário Brasília, a cidade modernista incrustada, como um sonho raro, no coração do Brasil.
Nos livros “anteriores” a este (as aspas servem a lembrar que o leitor quase nada perde se ler os romances fora de sua ordem de aparição), Brasília era ainda o repositório de uma história fragmentada, feita aos pedaços, nem tanto pela recusa programática de uma ordem qualquer, mas muito mais pelo estilhaçamento próprio à memória, que João Almino persegue em seus personagens atormentados e simula em sua prosa despida de grandes contornos, pedestre e ágil.
Talvez o mais forte traço da literatura de João Almino seja o exercício metanarrativo, as experimentações e a exposição das vozes de onde se crê emanar a história contada. Entretanto, há algo especial e um tanto inusitado nessa literatura que se exercita a si mesma diante dos olhos do leitor. É que, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, tais experimentações não a esvaziam de um caráter propriamente lírico, quase elegíaco por vezes.
Não há, nos livros de João Almino, o “realismo” rente das narrativas que, mais ou menos secas, se atêm ao objeto narrado, muitas vezes crendo no poder de um olhar veloz que se cola àquilo que retrata ou distorce. Sua prosa, pode-se dizer, obedece pelo menos a dois tempos: um que segue o fluxo do pensamento, e do olhar um tanto blasé (porque geralmente esvaziado de utopias) de vários de seus personagens, e outro tempo que, mais lento, permite afastamentos momentâneos, criando instantes em que pequenos contornos antes invisíveis se deixam flagrar. Como se este fotógrafo que é o autor se divertisse em brincar com o foco de uma máquina narrativa, lembrando que o que é invisível não é matéria misteriosa e inacessível, mas é apenas a marca de uma silhueta que se forma em outro plano, onde linhas de luz se juntam para conformar uma imagem alternativa. Os livros de João Almino são, em certo sentido, um exercício do olhar, e a constante lembrança de que também os autores não podem deixar de brincar com foco.
Em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, de 1987, o narrador lembra logo de início que, sendo ele mesmo um morto a escrever, estaria rendendo sua homenagem ao Brás Cubas de Machado de Assis, ainda que de fato recuse identificar-se ao famoso “defunto autor”. Enquanto em Machado o futuro é quase sempre um espaço vazio, fundamentalmente ausente, em João Almino ele é a incógnita que ganha as cores de Brasília, o cheiro, a temperatura e os gostos do Planalto Central do Brasil. Espécie de empresa proustiana às avessas, a memória parece querer vazar o tempo e encaminhar-se para a frente (“tenho espaço demais para onde me expandir”, diz o narrador fantasmático de seu primeiro romance), para ali onde está o futuro de Brasília, que é o tempo figurado de uma falência de sonhos coletivos, da impossibilidade de que o ideal afinal se concretize.
Não devemos esquecer que o tempo da escrita e da publicação da primeira obra ficcional de João Almino (1987) é precisamente o momento em que o Brasil experimentava o enfraquecimento, enfim, de mais uma longa ditadura. Como para grande parte da esquerda latinoamericana, o legado daquele tempo era a constatação amarga de que a potência libertária dos anos sessenta dera em praticamente nada. Esta a marca que carregará a Brasília de seus livros: a cidade é um ideal sempre um pouco falho, ou antes, como nas figurações clássicas da melancolia, ela é o espaço em que o arruinamento já se iniciou, com a inexorabilidade própria ao tempo que, como bem sabem os leitores de Machado de Assis, rói e rói, completamente indiferente às veleidades e aos desejos dos homens.
Mas não se trata de uma alegoria do tempo, apenas. Para além do primeiro romance, seus personagens revelam, através de seus movimentos, uma trama complexa, que se faz e desfaz diante de um espaço e de um tempo vazio: o instante é aquilo que mais insistentemente buscam os livros de João Almino, como se todos (inclusive o narrador morto do primeiro romance, mas também os narradores dos demais livros, especialmente deste As Cinco Estações do Amor) se movessem diante de um rumo para sempre ignorado, um futuro para o qual todos olham sem nada enxergar precisamente. Mas, para além das tintas trágicas com que se desenhariam esses seres cegos diante do destino, a densidade e as qualidades humanas dos personagens permitem ver, em meio às diversas tramas amorosas, uma rede propriamente social que, indiferente, marca a posição de cada um, isto é, das classes alta e média de Brasília, que vivem rodeadas por um mundo enorme que as assombra e fascina, universo de migrantes que, vindos em especial do Nordeste do Brasil, dão forma a uma cidade interminável que rompe sem dó as linhas projetadas pelos seus primeiros arquitetos e visionários.
Os personagens se movimentam num cenário de ruínas ao contrário: “ruínas do futuro”, para recordar a triste e exasperada expressão de Don DeLillo. Brasília, de onde quer que se a veja, acumula os detritos de suas derrotas, um pouco como o quadro de Klee, na interpretação célebre de Walter Benjamin, tão fundamental em As Cinco Estações do Amor: o anjo (ou o narrador) “gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos”, mas não há senão esse vento impetuoso que nos leva todos ao futuro, que é um acúmulo continuado de ruínas.
No segundo livro, Samba-enredo: Romance, de 1994, é um computador-mulher, Gigi (G.G.), que se apossa da narrativa e se antepõe a sua proprietária, Sílvia, para sozinha imprimir algum sentido à história caótica do país, vista num registro burlesco e carnavalizado que, aqui sim, beira a alegoria de uma “terra em transe”, lembrando a magnífica fábula cinematográfica sobre o fenômeno populista na América Latina.
Nem tão sozinha, entretanto, está a computadora de seu segundo livro. Também ela, como no caso do primeiro romance, é assombrada por um fantasma: o de Ana Kaufman, protagonista involuntária da tragédia que levara à morte, por assassinato, o primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antônio Fernandes. A mesma Ana cujas “anotações para um romance em primeira pessoa” foram descobertas após a sua morte, e cujos “problemas de decifração” a computadora tratara de resolver, embora os problemas “do seu coração”, como se lê no início de Samba-enredo, tivessem se revelado insolúveis mesmo para a onisciência cibernética de Gigi, que se descobre sem “acesso” aos segredos mais recônditos da personagem. Enfim, trata-se da mesma Ana Kaufman que, descobrirá o leitor deste As Cinco Estações do Amor, é a narradora que se desdobra em duas potências distintas: a contida Ana e a brava Diana, que juntas habitam as “aventuras da solidão” desta professora aposentada precocemente, que vive num ponto privilegiado da cidade, de onde se descortinaria o “plano-piloto” de Brasília e suas linhas ideais que o presente vai desfazendo pouco a pouco. Trata-se finalmente de Ana, a escritora frustrada que não consegue desfazer-se da tralha incômoda de seus escritos, a não ser num gesto extremo e doloroso. Uma personagem, ou uma narradora, assombrada por sua própria condição de escritora.
Em certo sentido, os livros de João Almino são sobre a impossibilidade do livro, sobre a angústia do escritor moderno que, justamente por habitar a modernidade, deu-se conta de que um “livro absoluto”, como aquele que Mallarmé imaginara e que a narradora de As Cinco Estações do Amor evoca, é uma improbabilidade, um sonho que as palavras singulares de Ana Kaufman projetam, num belo desenho que aqui me permito adiantar aos olhos do leitor: “Ficar nua e leve, me desfazer dos papéis, renascer livre da carga do passado, é tudo o que quero. Com idéias murchas é difícil me vingar de palavras adormecidas. Porém, os papéis vão gritar, chorar, ao ser rasgados,
recobrando vida às idéias e aos sentimentos neles armazenados. A partir de agora, minhas palavras de ordem são: nada retido, nada guardado. É chegado o momento de descarregar o que venho acumulando. E também de liberar as palavras dos blocos – graníticos – feitos com as emoções que o tempo calou. Que elas saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante. Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém, que vai passando ele próprio suas páginas, abrindo-se cada dia numa diferente, e que, por ser vivo, sangra quando tentam virar suas páginas. Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente, enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade.”
“Papéis a menos”, para seguir com a expressão de Ana, é a figuração mesma desse encontro impossível da literatura com a vida, uma vida que resiste a derramar-se sobre o papel ou a tela, sendo afinal refratária às letras. Mas João Almino segue tentando, e já aqui é possível aventar uma hipótese: a de que toda a sua literatura seja não apenas uma aventura metanarrativa, mas um diálogo profundo com as emoções, que são por sua natureza mesma inacessíveis àquele que busca rememorá-las. Afinal, sempre que o escritor quer agarrá-las elas se esvaem, fazendo com que o resultado do esforço artístico seja apenas uma coleção de “blocos graníticos”, isto é, de emoções mortas, esfriadas e petrificadas pelo tempo.
Se há pouco evoquei Proust, foi por imaginar que mesmo em João Almino as sensações são ainda o único caminho para a recomposição do que o tempo pôs a perder. Mas também aqui haverá algo de proustiano às avessas, não apenas porque a sondagem do futuro prescinde da reconstrução mirífica do passado, mas também porque toda a recomposição está inelutavelmente fadada ao fracasso. Nem uma dezena de livros, nem cem madalenas, nem um milhão de palavras podem conter esse fluxo impiedoso do tempo e trazer de volta o que passou, que será sempre para nós mero resquício, restos incongruentes a que a nossa sanha de leitores, ou escritores, tenta emprestar algum sentido. A metáfora é a da leitura, mas é também a da política: a matéria da cidade, isto é, da pólis, espalha-se sem sentido, e não há ordem possível que a retenha ou organize, a não ser no gigantesco carnaval que o transe da política brasileira e latinoamericana pode sugerir.
Se há uma “lição” na obra ficcional de João Almino, talvez ela se dirija contra as pretensões de hierarquizar e organizar o vivido. Daí que o sentido do vivido se resuma às emoções que escapam ao discurso, lançando-nos, a nós leitores, o desafio de uma recomposição de imagens e sonhos fugazes, cuja poética mesma é a da delicadeza e inviolabilidade do momento, que raramente reporta um plano para além da experiência individual. Na ficção de João Almino, os sonhos coletivos e abstratos, e o sentido mesmo da política, encontram-se numa crise que é a do nosso tempo, quando, entretanto, dá-se o instante em que a delicadeza se oferece ao sujeito, em suas formas múltiplas, figuradas num jardim: “Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos reduzidos no fim, ao essencial, ao que podemos abarcar com o olhar e o toque. O jardim sempre estivera lá, mas só agora o notamos, espaço da delicadeza, do exterior próximo, perto da casa. Algo que nos pertence, mas atravessado pelo olhar dos outros, sempre à espreita, para contemplar, para possuir, para ser perdido.”
Em um clássico estudo sobre a “ontologia da imagem fotográfica”, publicado ao fim da Segunda Guerra, André Bazin lembra que na origem das artes plásticas estaria uma espécie de “complexo da múmia”, isto é, o desejo de celebrar e simular a perenidade do corpo contra a morte. Residiria aí a busca dos pintores pela semelhança, sua tentativa de congelar os objetos e saciar o nosso “apetite de ilusão” que, numa espécie de evolução pictórica, a fotografia teria superado, por ser uma forma artística que praticamente prescindiria da mediação do homem, constituindo-se em pura objetividade. Em nada deveria surpreender, então, que aquilo que substitui o olho humano se chame, para o fotógrafo, “objetiva”.
A acreditar em Bazin, não poderíamos duvidar do fenômeno que o fotógrafo captura: a fotografia assemelha-se a uma relíquia em que se guarda a presentificação do objeto, liberado de suas contingências temporais. Donde o charme das fotografias de um álbum: “essas sombras cinza ou sépia, fantasmáticas, quase ilegíveis, não são mais os tradicionais retratos de família, mas sim a presença perturbadora de vidas arrestadas na sua duração, liberadas de seu destino, não pelos prestígios da arte, mas pela virtude de uma mecânica impassível.”
Descontados os pressupostos ontológicos que atribuem à fotografia um caráter absolutamente instantâneo, que no limite prescinde do artista, haverá, nessa ideia de vidas capturadas na sua duração, uma poética bastante próxima àquela esboçada por João Almino, e ensaiada por Ana, a narradora de As Cinco Estações do Amor.
Não será à toa, finalmente, se o seu último romance, talvez o mais lírico até aqui, se chame O Livro das Emoções (2008) e tenha por narrador Cadu, um fotógrafo velho e já cego que, vivendo em Brasília no ano de 2022, resolve recompor um diário a partir de fotografias que ele não pode mais ver, mas que pode evocar e, portanto, descrever, ou seja, escrever sobre elas. Cadu é um personagem que atravessa os romances anteriores, inclusive As Cinco Estações do Amor. Fora ele, aliás, que em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo tirara a foto que dá partida à narrativa. Uma foto que, sendo o instantâneo de uma efusão cívica, fixara um grupo de pessoas cujas vidas o narrador-defunto daquele livro pretende resgatar, desenvolvendo um roteiro cinematográfico que pudesse retirá-las daquela imobilidade, dando-lhes o futuro que a fotografia esconde como pura e inalcançável virtualidade. Retornando a Bazin, o cinema aparece então “como o acabamento no tempo da objetividade fotográfica”.
Creio que a fotografia e o cinema forneçam as chaves para a compreensão não apenas do último romance de João Almino, O Livro das Emoções, mas para todo o quarteto de Brasília e, talvez, para os livros que ainda virão. Na orelha da edição brasileira de As Cinco Estações do Amor, Silviano Santiago já alertara para a “implacável kodak romanesca” com que o autor flagra as “vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali [em Brasília] aportaram.” E é Alcir Pécora quem, mais recentemente, prefaciando O Livro das Emoções, compara a narrativa fornecida pelos instantâneos fotográficos do fotógrafo-escritor (cego, nunca é demais relembrar) àqueles “passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em sequência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do voo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.”
A observação de Alcir Pécora ilumina também As Cinco Estações do Amor, cuja referência oblíqua, no título, à paixão do Cristo em seu caminho árduo pelas estações, não deve contudo levar-nos ao engano de supor que haja ou deva haver, ao fim, uma redenção. A redenção, afinal, se expre
ssaria na imolação derradeira do sujeito excepcional que, entregue ao transe místico, logo mais encontrará a ressurreição. Não assim com os personagens de João Almino, neste seu belo livro narrado por Ana.
O “desenquadramento existencialista” a que se refere o crítico remete a um deslocamento de outra ordem, que não se dá em direção à grande solução final, mas, ao contrário, admite e legitima um mundo em que o sujeito encontra a sua significação não mais no discurso apocalíptico que crê que o futuro tenha finalmente se materializado diante dos nossos olhos. Em As Cinco Estações do Amor, perto do fim encontra-se uma saída discreta. Diante da revelação final, há um instante de rendição, mais que de redenção.
Este livro, assim como os demais livros de João Almino, parece evocar um encolhimento, ou um apaziguamento do ser, que finalmente desiste de acercar-se a todo o sentido, abrindo-se generosamente à multiplicidade e ao fluxo da vida. (Nunca é demais lembrar que o apocalipse, tomado etimologicamente, é a própria revelação do sentido.) Em outras palavras, é oferta ao sujeito a chance de aproximar-se humildemente do instante, para amá-lo em sua fugacidade, e ali escavar o amor possível. Como lembra Susan Sontag em sua diatribe contra os surrealistas, os fotógrafos seriam os únicos capazes de sugerir que é vão “até mesmo tentar compreender o mundo”. Em troca dessa recusa da compreensão, o que oferecem é tão-somente a ideia de “colecionar” o mundo em imagens.
Ao fim, quando nos vemos diante de tal coleção, descobrimos que o instante é a nossa única morada possível, o lugar fugitivo a que pertencemos sem pertencer. Aí se abriga o olhar de João Almino, e aí, apenas aí, deve encontrar-se o leitor deste As Cinco Estações do Amor.

[1] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1987]; Samba-enredo: Romance. São Paulo: Marco Zero, 1994; As Cinco Estações do Amor, publicado no Brasil em 2001; e, mais recentemente, O Livro das Emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008.

[2] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.16. Para uma aproximação entre Machado de Assis e João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “Uma declaração de princípios”, Jornal do Brasil, 4 out. 2008, “Idéias & Livros”, p.3.

[3] Há uma óbvia, embora complexa, relação entre a produção acadêmica de João Almino e sua ficção. Sobre a Assembleia Constituinte de 1946 e seus laivos ainda autoritários, consulte-se João Almino. Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na Constituinte de 1946. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[4] Referindo-se ao último romance de João Almino, O Livro das Emoções, Antonio Gonçalves Filho lembrou, justamente, o aspecto trágico de sua ficção, e sugeriu um parentesco remoto com O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Cf. Antonio Gonçalves Filho. “Ensaio sobre a cegueira brasileira”, O Estado de S.Paulo, 26 jul. 2008, “Caderno 2”, p.6. Num breve apanhado histórico do sonho “visionário” e secular de uma capital a plantar-se no coração do Brasil, o próprio João Almino lembra o dia em que, ainda criança, no mesmo Nordeste de onde provêm alguns de seus personagens, sua família ouvia eletrizada, “ao pé do rádio”, a inauguração de Brasília. Cf. João Almino. “Brasília, o mito: Anotações para um ideário estético-literário” in Escrita em contraponto: ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p.9-19.

[5] Don DeLillo. “In the Ruins of the Future: Reflections on Terror and Loss in the Shadow of September”, Harper’s Magazine, Dec. 2001, p.33-40.

[6] Cf. Walter Benjamin. “Sobre o conceito da história” in Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.226. Sobre a questão do instante e a importância de Benjamin (e de João Cabral de Melo Neto) para a compreensão do romance de João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor: o work in progress de João Almino”, Imaginário, USP, 2007, vol.13, n.14, p.15-26.

[7] Refiro-me aqui, é claro, ao filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, de 1967.

[8] João Almino. Samba-enredo: Romance, p.14.

[9] A aposentadoria precoce era um fenômeno encontradiço entre professores universitários e funcionários estatais até há pouco tempo no Brasil, graças a uma legislação recentemente reparada, que hoje estabelece a aposentadoria de acordo com a idade, não com o tempo de serviço do trabalhador. Escusado lembrar o que uma nação de aposentados precoces significaria no quadro daquele “futuro” que os romances de João Almino pretendem, justamente, pôr em suspenso.

[10] Denilson Lopes. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Editora UNB, Finatec, 2007, p.128.

[11] Cf. André Bazin. “Ontologie de l’Image Photographique” in Qu’est-ce que le Cinéma? Paris: Éditions du Cerf, 1958, p.11-19.

[12] Idem, p.16.

[13] A percepção de Bazin, que se prolonga em muitas reflexões contemporâneas sobre a fotografia, pressupõe uma instantaneidade que rouba ao ato fotográfico a sua própria duração, seu espaço fora do instante. No limite, como se não se pensasse, por exemplo, na velocidade do obturador. Ou como se na fotografia houvesse, à la Barthes, uma relação analógica entre o “real” e a “imagem”. Penso aqui na formulação crítica de Antonio Fatorelli, para quem “este exercício de identificação de uma origem, de um tipo de esqueleto fundamental, e de elementos acessórios facultativos é o viés pelo qual se realizam as operações de purificação que guardam o sentido último de preservar o centro da contaminação do múltiplo.” Antonio Fatorelli. Fotografia e viagem: entre a natureza e o artifício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p.26.

[14] “Ontologie de l’Image Photographique”, p.16.

[15] Silviano Santiago in João Almino. As Cinco Estações do Amor. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[16] Alcir Pécora. “Prefácio” in João Almino. O Livro das Emoções, p.8. Walnice Nogueira Galvão, por seu turno, prefaciando Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, lembra que a simulação de um roteiro de cinema é o engano maior em que se enreda o leitor, neste “deslizante jogo de engodos” que é o primeiro romance de João Almino. Cf. Walnice Nogueira Galvão. “Prefácio” in Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.9. Uma questão mais sobre a qual refletir é a existência dos inúmeros prefácios e orelhas assinados por críticos literários nos livros ficcionais de João Almino que, a bem da verdade, prescindem desse aparato crítico e se sustentariam perfeitamente sozinhos, apenas como ficção. Talvez a resposta a tal questão tenha sido ensaiada por João Cezar de Castro Rocha, em artigo já referido aqui (neste meu prefácio que tampouco foge à sua angustiante desnecessidade diante do livro que o leitor ora manuseia), e que tem como uma de suas propostas encontrar a ponte que une o ensaísta ao inventor de ficções: “Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensamento, um modo particular de propor perguntas que não supõem respostas, mas a geração de perguntas novas – se possível, inovadoras.” João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor”, p.18.

[17] Susan Sontag. On Photography. New York: Picador, 1977, p.82.

Este livro de João Almino é o terceiro de uma trilogia que recentemente se tornou um quarteto, e que nada impede de vir a tornar-se uma saga, tendo sempre como cenário Brasília, a cidade modernista incrustada, como um sonho raro, no coração do Brasil.
Nos livros “anteriores” a este (as aspas servem a lembrar que o leitor quase nada perde se ler os romances fora de sua ordem de aparição), Brasília era ainda o repositório de uma história fragmentada, feita aos pedaços, nem tanto pela recusa programática de uma ordem qualquer, mas muito mais pelo estilhaçamento próprio à memória, que João Almino persegue em seus personagens atormentados e simula em sua prosa despida de grandes contornos, pedestre e ágil.
Talvez o mais forte traço da literatura de João Almino seja o exercício metanarrativo, as experimentações e a exposição das vozes de onde se crê emanar a história contada. Entretanto, há algo especial e um tanto inusitado nessa literatura que se exercita a si mesma diante dos olhos do leitor. É que, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, tais experimentações não a esvaziam de um caráter propriamente lírico, quase elegíaco por vezes.
Não há, nos livros de João Almino, o “realismo” rente das narrativas que, mais ou menos secas, se atêm ao objeto narrado, muitas vezes crendo no poder de um olhar veloz que se cola àquilo que retrata ou distorce. Sua prosa, pode-se dizer, obedece pelo menos a dois tempos: um que segue o fluxo do pensamento, e do olhar um tanto blasé (porque geralmente esvaziado de utopias) de vários de seus personagens, e outro tempo que, mais lento, permite afastamentos momentâneos, criando instantes em que pequenos contornos antes invisíveis se deixam flagrar. Como se este fotógrafo que é o autor se divertisse em brincar com o foco de uma máquina narrativa, lembrando que o que é invisível não é matéria misteriosa e inacessível, mas é apenas a marca de uma silhueta que se forma em outro plano, onde linhas de luz se juntam para conformar uma imagem alternativa. Os livros de João Almino são, em certo sentido, um exercício do olhar, e a constante lembrança de que também os autores não podem deixar de brincar com foco.
Em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, de 1987, o narrador lembra logo de início que, sendo ele mesmo um morto a escrever, estaria rendendo sua homenagem ao Brás Cubas de Machado de Assis, ainda que de fato recuse identificar-se ao famoso “defunto autor”. Enquanto em Machado o futuro é quase sempre um espaço vazio, fundamentalmente ausente, em João Almino ele é a incógnita que ganha as cores de Brasília, o cheiro, a temperatura e os gostos do Planalto Central do Brasil. Espécie de empresa proustiana às avessas, a memória parece querer vazar o tempo e encaminhar-se para a frente (“tenho espaço demais para onde me expandir”, diz o narrador fantasmático de seu primeiro romance), para ali onde está o futuro de Brasília, que é o tempo figurado de uma falência de sonhos coletivos, da impossibilidade de que o ideal afinal se concretize.
Não devemos esquecer que o tempo da escrita e da publicação da primeira obra ficcional de João Almino (1987) é precisamente o momento em que o Brasil experimentava o enfraquecimento, enfim, de mais uma longa ditadura. Como para grande parte da esquerda latinoamericana, o legado daquele tempo era a constatação amarga de que a potência libertária dos anos sessenta dera em praticamente nada. Esta a marca que carregará a Brasília de seus livros: a cidade é um ideal sempre um pouco falho, ou antes, como nas figurações clássicas da melancolia, ela é o espaço em que o arruinamento já se iniciou, com a inexorabilidade própria ao tempo que, como bem sabem os leitores de Machado de Assis, rói e rói, completamente indiferente às veleidades e aos desejos dos homens.
Mas não se trata de uma alegoria do tempo, apenas. Para além do primeiro romance, seus personagens revelam, através de seus movimentos, uma trama complexa, que se faz e desfaz diante de um espaço e de um tempo vazio: o instante é aquilo que mais insistentemente buscam os livros de João Almino, como se todos (inclusive o narrador morto do primeiro romance, mas também os narradores dos demais livros, especialmente deste As Cinco Estações do Amor) se movessem diante de um rumo para sempre ignorado, um futuro para o qual todos olham sem nada enxergar precisamente. Mas, para além das tintas trágicas com que se desenhariam esses seres cegos diante do destino, a densidade e as qualidades humanas dos personagens permitem ver, em meio às diversas tramas amorosas, uma rede propriamente social que, indiferente, marca a posição de cada um, isto é, das classes alta e média de Brasília, que vivem rodeadas por um mundo enorme que as assombra e fascina, universo de migrantes que, vindos em especial do Nordeste do Brasil, dão forma a uma cidade interminável que rompe sem dó as linhas projetadas pelos seus primeiros arquitetos e visionários.
Os personagens se movimentam num cenário de ruínas ao contrário: “ruínas do futuro”, para recordar a triste e exasperada expressão de Don DeLillo. Brasília, de onde quer que se a veja, acumula os detritos de suas derrotas, um pouco como o quadro de Klee, na interpretação célebre de Walter Benjamin, tão fundamental em As Cinco Estações do Amor: o anjo (ou o narrador) “gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos”, mas não há senão esse vento impetuoso que nos leva todos ao futuro, que é um acúmulo continuado de ruínas.
No segundo livro, Samba-enredo: Romance, de 1994, é um computador-mulher, Gigi (G.G.), que se apossa da narrativa e se antepõe a sua proprietária, Sílvia, para sozinha imprimir algum sentido à história caótica do país, vista num registro burlesco e carnavalizado que, aqui sim, beira a alegoria de uma “terra em transe”, lembrando a magnífica fábula cinematográfica sobre o fenômeno populista na América Latina.
Nem tão sozinha, entretanto, está a computadora de seu segundo livro. Também ela, como no caso do primeiro romance, é assombrada por um fantasma: o de Ana Kaufman, protagonista involuntária da tragédia que levara à morte, por assassinato, o primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antônio Fernandes. A mesma Ana cujas “anotações para um romance em primeira pessoa” foram descobertas após a sua morte, e cujos “problemas de decifração” a computadora tratara de resolver, embora os problemas “do seu coração”, como se lê no início de Samba-enredo, tivessem se revelado insolúveis mesmo para a onisciência cibernética de Gigi, que se descobre sem “acesso” aos segredos mais recônditos da personagem. Enfim, trata-se da mesma Ana Kaufman que, descobrirá o leitor deste As Cinco Estações do Amor, é a narradora que se desdobra em duas potências distintas: a contida Ana e a brava Diana, que juntas habitam as “aventuras da solidão” desta professora aposentada precocemente, que vive num ponto privilegiado da cidade, de onde se descortinaria o “plano-piloto” de Brasília e suas linhas ideais que o presente vai desfazendo pouco a pouco. Trata-se finalmente de Ana, a escritora frustrada que não consegue desfazer-se da tralha incômoda de seus escritos, a não ser num gesto extremo e doloroso. Uma personagem, ou uma narradora, assombrada por sua própria condição de escritora.
Em certo sentido, os livros de João Almino são sobre a impossibilidade do livro, sobre a angústia do escritor moderno que, justamente por habitar a modernidade, deu-se conta de que um “livro absoluto”, como aquele que Mallarmé imaginara e que a narradora de As Cinco Estações do Amor evoca, é uma improbabilidade, um sonho que as palavras singulares de Ana Kaufman projetam, num belo desenho que aqui me permito adiantar aos olhos do leitor: “Ficar nua e leve, me desfazer dos papéis, renascer livre da carga do passado, é tudo o que quero. Com idéias murchas é difícil me vingar de palavras adormecidas. Porém, os papéis vão gritar, chorar, ao ser rasgados,
recobrando vida às idéias e aos sentimentos neles armazenados. A partir de agora, minhas palavras de ordem são: nada retido, nada guardado. É chegado o momento de descarregar o que venho acumulando. E também de liberar as palavras dos blocos – graníticos – feitos com as emoções que o tempo calou. Que elas saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante. Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém, que vai passando ele próprio suas páginas, abrindo-se cada dia numa diferente, e que, por ser vivo, sangra quando tentam virar suas páginas. Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente, enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade.”
“Papéis a menos”, para seguir com a expressão de Ana, é a figuração mesma desse encontro impossível da literatura com a vida, uma vida que resiste a derramar-se sobre o papel ou a tela, sendo afinal refratária às letras. Mas João Almino segue tentando, e já aqui é possível aventar uma hipótese: a de que toda a sua literatura seja não apenas uma aventura metanarrativa, mas um diálogo profundo com as emoções, que são por sua natureza mesma inacessíveis àquele que busca rememorá-las. Afinal, sempre que o escritor quer agarrá-las elas se esvaem, fazendo com que o resultado do esforço artístico seja apenas uma coleção de “blocos graníticos”, isto é, de emoções mortas, esfriadas e petrificadas pelo tempo.
Se há pouco evoquei Proust, foi por imaginar que mesmo em João Almino as sensações são ainda o único caminho para a recomposição do que o tempo pôs a perder. Mas também aqui haverá algo de proustiano às avessas, não apenas porque a sondagem do futuro prescinde da reconstrução mirífica do passado, mas também porque toda a recomposição está inelutavelmente fadada ao fracasso. Nem uma dezena de livros, nem cem madalenas, nem um milhão de palavras podem conter esse fluxo impiedoso do tempo e trazer de volta o que passou, que será sempre para nós mero resquício, restos incongruentes a que a nossa sanha de leitores, ou escritores, tenta emprestar algum sentido. A metáfora é a da leitura, mas é também a da política: a matéria da cidade, isto é, da pólis, espalha-se sem sentido, e não há ordem possível que a retenha ou organize, a não ser no gigantesco carnaval que o transe da política brasileira e latinoamericana pode sugerir.
Se há uma “lição” na obra ficcional de João Almino, talvez ela se dirija contra as pretensões de hierarquizar e organizar o vivido. Daí que o sentido do vivido se resuma às emoções que escapam ao discurso, lançando-nos, a nós leitores, o desafio de uma recomposição de imagens e sonhos fugazes, cuja poética mesma é a da delicadeza e inviolabilidade do momento, que raramente reporta um plano para além da experiência individual. Na ficção de João Almino, os sonhos coletivos e abstratos, e o sentido mesmo da política, encontram-se numa crise que é a do nosso tempo, quando, entretanto, dá-se o instante em que a delicadeza se oferece ao sujeito, em suas formas múltiplas, figuradas num jardim: “Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos reduzidos no fim, ao essencial, ao que podemos abarcar com o olhar e o toque. O jardim sempre estivera lá, mas só agora o notamos, espaço da delicadeza, do exterior próximo, perto da casa. Algo que nos pertence, mas atravessado pelo olhar dos outros, sempre à espreita, para contemplar, para possuir, para ser perdido.”
Em um clássico estudo sobre a “ontologia da imagem fotográfica”, publicado ao fim da Segunda Guerra, André Bazin lembra que na origem das artes plásticas estaria uma espécie de “complexo da múmia”, isto é, o desejo de celebrar e simular a perenidade do corpo contra a morte. Residiria aí a busca dos pintores pela semelhança, sua tentativa de congelar os objetos e saciar o nosso “apetite de ilusão” que, numa espécie de evolução pictórica, a fotografia teria superado, por ser uma forma artística que praticamente prescindiria da mediação do homem, constituindo-se em pura objetividade. Em nada deveria surpreender, então, que aquilo que substitui o olho humano se chame, para o fotógrafo, “objetiva”.
A acreditar em Bazin, não poderíamos duvidar do fenômeno que o fotógrafo captura: a fotografia assemelha-se a uma relíquia em que se guarda a presentificação do objeto, liberado de suas contingências temporais. Donde o charme das fotografias de um álbum: “essas sombras cinza ou sépia, fantasmáticas, quase ilegíveis, não são mais os tradicionais retratos de família, mas sim a presença perturbadora de vidas arrestadas na sua duração, liberadas de seu destino, não pelos prestígios da arte, mas pela virtude de uma mecânica impassível.”
Descontados os pressupostos ontológicos que atribuem à fotografia um caráter absolutamente instantâneo, que no limite prescinde do artista, haverá, nessa ideia de vidas capturadas na sua duração, uma poética bastante próxima àquela esboçada por João Almino, e ensaiada por Ana, a narradora de As Cinco Estações do Amor.
Não será à toa, finalmente, se o seu último romance, talvez o mais lírico até aqui, se chame O Livro das Emoções (2008) e tenha por narrador Cadu, um fotógrafo velho e já cego que, vivendo em Brasília no ano de 2022, resolve recompor um diário a partir de fotografias que ele não pode mais ver, mas que pode evocar e, portanto, descrever, ou seja, escrever sobre elas. Cadu é um personagem que atravessa os romances anteriores, inclusive As Cinco Estações do Amor. Fora ele, aliás, que em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo tirara a foto que dá partida à narrativa. Uma foto que, sendo o instantâneo de uma efusão cívica, fixara um grupo de pessoas cujas vidas o narrador-defunto daquele livro pretende resgatar, desenvolvendo um roteiro cinematográfico que pudesse retirá-las daquela imobilidade, dando-lhes o futuro que a fotografia esconde como pura e inalcançável virtualidade. Retornando a Bazin, o cinema aparece então “como o acabamento no tempo da objetividade fotográfica”.
Creio que a fotografia e o cinema forneçam as chaves para a compreensão não apenas do último romance de João Almino, O Livro das Emoções, mas para todo o quarteto de Brasília e, talvez, para os livros que ainda virão. Na orelha da edição brasileira de As Cinco Estações do Amor, Silviano Santiago já alertara para a “implacável kodak romanesca” com que o autor flagra as “vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali [em Brasília] aportaram.” E é Alcir Pécora quem, mais recentemente, prefaciando O Livro das Emoções, compara a narrativa fornecida pelos instantâneos fotográficos do fotógrafo-escritor (cego, nunca é demais relembrar) àqueles “passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em sequência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do voo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.”
A observação de Alcir Pécora ilumina também As Cinco Estações do Amor, cuja referência oblíqua, no título, à paixão do Cristo em seu caminho árduo pelas estações, não deve contudo levar-nos ao engano de supor que haja ou deva haver, ao fim, uma redenção. A redenção, afinal, se expre
ssaria na imolação derradeira do sujeito excepcional que, entregue ao transe místico, logo mais encontrará a ressurreição. Não assim com os personagens de João Almino, neste seu belo livro narrado por Ana.
O “desenquadramento existencialista” a que se refere o crítico remete a um deslocamento de outra ordem, que não se dá em direção à grande solução final, mas, ao contrário, admite e legitima um mundo em que o sujeito encontra a sua significação não mais no discurso apocalíptico que crê que o futuro tenha finalmente se materializado diante dos nossos olhos. Em As Cinco Estações do Amor, perto do fim encontra-se uma saída discreta. Diante da revelação final, há um instante de rendição, mais que de redenção.
Este livro, assim como os demais livros de João Almino, parece evocar um encolhimento, ou um apaziguamento do ser, que finalmente desiste de acercar-se a todo o sentido, abrindo-se generosamente à multiplicidade e ao fluxo da vida. (Nunca é demais lembrar que o apocalipse, tomado etimologicamente, é a própria revelação do sentido.) Em outras palavras, é oferta ao sujeito a chance de aproximar-se humildemente do instante, para amá-lo em sua fugacidade, e ali escavar o amor possível. Como lembra Susan Sontag em sua diatribe contra os surrealistas, os fotógrafos seriam os únicos capazes de sugerir que é vão “até mesmo tentar compreender o mundo”. Em troca dessa recusa da compreensão, o que oferecem é tão-somente a ideia de “colecionar” o mundo em imagens.
Ao fim, quando nos vemos diante de tal coleção, descobrimos que o instante é a nossa única morada possível, o lugar fugitivo a que pertencemos sem pertencer. Aí se abriga o olhar de João Almino, e aí, apenas aí, deve encontrar-se o leitor deste As Cinco Estações do Amor.

[1] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1987]; Samba-enredo: Romance. São Paulo: Marco Zero, 1994; As Cinco Estações do Amor, publicado no Brasil em 2001; e, mais recentemente, O Livro das Emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008.

[2] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.16. Para uma aproximação entre Machado de Assis e João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “Uma declaração de princípios”, Jornal do Brasil, 4 out. 2008, “Idéias & Livros”, p.3.

[3] Há uma óbvia, embora complexa, relação entre a produção acadêmica de João Almino e sua ficção. Sobre a Assembleia Constituinte de 1946 e seus laivos ainda autoritários, consulte-se João Almino. Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na Constituinte de 1946. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[4] Referindo-se ao último romance de João Almino, O Livro das Emoções, Antonio Gonçalves Filho lembrou, justamente, o aspecto trágico de sua ficção, e sugeriu um parentesco remoto com O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Cf. Antonio Gonçalves Filho. “Ensaio sobre a cegueira brasileira”, O Estado de S.Paulo, 26 jul. 2008, “Caderno 2”, p.6. Num breve apanhado histórico do sonho “visionário” e secular de uma capital a plantar-se no coração do Brasil, o próprio João Almino lembra o dia em que, ainda criança, no mesmo Nordeste de onde provêm alguns de seus personagens, sua família ouvia eletrizada, “ao pé do rádio”, a inauguração de Brasília. Cf. João Almino. “Brasília, o mito: Anotações para um ideário estético-literário” in Escrita em contraponto: ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p.9-19.

[5] Don DeLillo. “In the Ruins of the Future: Reflections on Terror and Loss in the Shadow of September”, Harper’s Magazine, Dec. 2001, p.33-40.

[6] Cf. Walter Benjamin. “Sobre o conceito da história” in Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.226. Sobre a questão do instante e a importância de Benjamin (e de João Cabral de Melo Neto) para a compreensão do romance de João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor: o work in progress de João Almino”, Imaginário, USP, 2007, vol.13, n.14, p.15-26.

[7] Refiro-me aqui, é claro, ao filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, de 1967.

[8] João Almino. Samba-enredo: Romance, p.14.

[9] A aposentadoria precoce era um fenômeno encontradiço entre professores universitários e funcionários estatais até há pouco tempo no Brasil, graças a uma legislação recentemente reparada, que hoje estabelece a aposentadoria de acordo com a idade, não com o tempo de serviço do trabalhador. Escusado lembrar o que uma nação de aposentados precoces significaria no quadro daquele “futuro” que os romances de João Almino pretendem, justamente, pôr em suspenso.

[10] Denilson Lopes. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Editora UNB, Finatec, 2007, p.128.

[11] Cf. André Bazin. “Ontologie de l’Image Photographique” in Qu’est-ce que le Cinéma? Paris: Éditions du Cerf, 1958, p.11-19.

[12] Idem, p.16.

[13] A percepção de Bazin, que se prolonga em muitas reflexões contemporâneas sobre a fotografia, pressupõe uma instantaneidade que rouba ao ato fotográfico a sua própria duração, seu espaço fora do instante. No limite, como se não se pensasse, por exemplo, na velocidade do obturador. Ou como se na fotografia houvesse, à la Barthes, uma relação analógica entre o “real” e a “imagem”. Penso aqui na formulação crítica de Antonio Fatorelli, para quem “este exercício de identificação de uma origem, de um tipo de esqueleto fundamental, e de elementos acessórios facultativos é o viés pelo qual se realizam as operações de purificação que guardam o sentido último de preservar o centro da contaminação do múltiplo.” Antonio Fatorelli. Fotografia e viagem: entre a natureza e o artifício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p.26.

[14] “Ontologie de l’Image Photographique”, p.16.

[15] Silviano Santiago in João Almino. As Cinco Estações do Amor. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[16] Alcir Pécora. “Prefácio” in João Almino. O Livro das Emoções, p.8. Walnice Nogueira Galvão, por seu turno, prefaciando Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, lembra que a simulação de um roteiro de cinema é o engano maior em que se enreda o leitor, neste “deslizante jogo de engodos” que é o primeiro romance de João Almino. Cf. Walnice Nogueira Galvão. “Prefácio” in Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.9. Uma questão mais sobre a qual refletir é a existência dos inúmeros prefácios e orelhas assinados por críticos literários nos livros ficcionais de João Almino que, a bem da verdade, prescindem desse aparato crítico e se sustentariam perfeitamente sozinhos, apenas como ficção. Talvez a resposta a tal questão tenha sido ensaiada por João Cezar de Castro Rocha, em artigo já referido aqui (neste meu prefácio que tampouco foge à sua angustiante desnecessidade diante do livro que o leitor ora manuseia), e que tem como uma de suas propostas encontrar a ponte que une o ensaísta ao inventor de ficções: “Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensamento, um modo particular de propor perguntas que não supõem respostas, mas a geração de perguntas novas – se possível, inovadoras.” João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor”, p.18.

[17] Susan Sontag. On Photography. New York: Picador, 1977, p.82.

Este livro de João Almino é o terceiro de uma trilogia que recentemente se tornou um quarteto, e que nada impede de vir a tornar-se uma saga, tendo sempre como cenário Brasília, a cidade modernista incrustada, como um sonho raro, no coração do Brasil.
Nos livros “anteriores” a este (as aspas servem a lembrar que o leitor quase nada perde se ler os romances fora de sua ordem de aparição), Brasília era ainda o repositório de uma história fragmentada, feita aos pedaços, nem tanto pela recusa programática de uma ordem qualquer, mas muito mais pelo estilhaçamento próprio à memória, que João Almino persegue em seus personagens atormentados e simula em sua prosa despida de grandes contornos, pedestre e ágil.
Talvez o mais forte traço da literatura de João Almino seja o exercício metanarrativo, as experimentações e a exposição das vozes de onde se crê emanar a história contada. Entretanto, há algo especial e um tanto inusitado nessa literatura que se exercita a si mesma diante dos olhos do leitor. É que, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, tais experimentações não a esvaziam de um caráter propriamente lírico, quase elegíaco por vezes.
Não há, nos livros de João Almino, o “realismo” rente das narrativas que, mais ou menos secas, se atêm ao objeto narrado, muitas vezes crendo no poder de um olhar veloz que se cola àquilo que retrata ou distorce. Sua prosa, pode-se dizer, obedece pelo menos a dois tempos: um que segue o fluxo do pensamento, e do olhar um tanto blasé (porque geralmente esvaziado de utopias) de vários de seus personagens, e outro tempo que, mais lento, permite afastamentos momentâneos, criando instantes em que pequenos contornos antes invisíveis se deixam flagrar. Como se este fotógrafo que é o autor se divertisse em brincar com o foco de uma máquina narrativa, lembrando que o que é invisível não é matéria misteriosa e inacessível, mas é apenas a marca de uma silhueta que se forma em outro plano, onde linhas de luz se juntam para conformar uma imagem alternativa. Os livros de João Almino são, em certo sentido, um exercício do olhar, e a constante lembrança de que também os autores não podem deixar de brincar com foco.
Em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, de 1987, o narrador lembra logo de início que, sendo ele mesmo um morto a escrever, estaria rendendo sua homenagem ao Brás Cubas de Machado de Assis, ainda que de fato recuse identificar-se ao famoso “defunto autor”. Enquanto em Machado o futuro é quase sempre um espaço vazio, fundamentalmente ausente, em João Almino ele é a incógnita que ganha as cores de Brasília, o cheiro, a temperatura e os gostos do Planalto Central do Brasil. Espécie de empresa proustiana às avessas, a memória parece querer vazar o tempo e encaminhar-se para a frente (“tenho espaço demais para onde me expandir”, diz o narrador fantasmático de seu primeiro romance), para ali onde está o futuro de Brasília, que é o tempo figurado de uma falência de sonhos coletivos, da impossibilidade de que o ideal afinal se concretize.
Não devemos esquecer que o tempo da escrita e da publicação da primeira obra ficcional de João Almino (1987) é precisamente o momento em que o Brasil experimentava o enfraquecimento, enfim, de mais uma longa ditadura. Como para grande parte da esquerda latinoamericana, o legado daquele tempo era a constatação amarga de que a potência libertária dos anos sessenta dera em praticamente nada. Esta a marca que carregará a Brasília de seus livros: a cidade é um ideal sempre um pouco falho, ou antes, como nas figurações clássicas da melancolia, ela é o espaço em que o arruinamento já se iniciou, com a inexorabilidade própria ao tempo que, como bem sabem os leitores de Machado de Assis, rói e rói, completamente indiferente às veleidades e aos desejos dos homens.
Mas não se trata de uma alegoria do tempo, apenas. Para além do primeiro romance, seus personagens revelam, através de seus movimentos, uma trama complexa, que se faz e desfaz diante de um espaço e de um tempo vazio: o instante é aquilo que mais insistentemente buscam os livros de João Almino, como se todos (inclusive o narrador morto do primeiro romance, mas também os narradores dos demais livros, especialmente deste As Cinco Estações do Amor) se movessem diante de um rumo para sempre ignorado, um futuro para o qual todos olham sem nada enxergar precisamente. Mas, para além das tintas trágicas com que se desenhariam esses seres cegos diante do destino, a densidade e as qualidades humanas dos personagens permitem ver, em meio às diversas tramas amorosas, uma rede propriamente social que, indiferente, marca a posição de cada um, isto é, das classes alta e média de Brasília, que vivem rodeadas por um mundo enorme que as assombra e fascina, universo de migrantes que, vindos em especial do Nordeste do Brasil, dão forma a uma cidade interminável que rompe sem dó as linhas projetadas pelos seus primeiros arquitetos e visionários.
Os personagens se movimentam num cenário de ruínas ao contrário: “ruínas do futuro”, para recordar a triste e exasperada expressão de Don DeLillo. Brasília, de onde quer que se a veja, acumula os detritos de suas derrotas, um pouco como o quadro de Klee, na interpretação célebre de Walter Benjamin, tão fundamental em As Cinco Estações do Amor: o anjo (ou o narrador) “gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos”, mas não há senão esse vento impetuoso que nos leva todos ao futuro, que é um acúmulo continuado de ruínas.
No segundo livro, Samba-enredo: Romance, de 1994, é um computador-mulher, Gigi (G.G.), que se apossa da narrativa e se antepõe a sua proprietária, Sílvia, para sozinha imprimir algum sentido à história caótica do país, vista num registro burlesco e carnavalizado que, aqui sim, beira a alegoria de uma “terra em transe”, lembrando a magnífica fábula cinematográfica sobre o fenômeno populista na América Latina.
Nem tão sozinha, entretanto, está a computadora de seu segundo livro. Também ela, como no caso do primeiro romance, é assombrada por um fantasma: o de Ana Kaufman, protagonista involuntária da tragédia que levara à morte, por assassinato, o primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antônio Fernandes. A mesma Ana cujas “anotações para um romance em primeira pessoa” foram descobertas após a sua morte, e cujos “problemas de decifração” a computadora tratara de resolver, embora os problemas “do seu coração”, como se lê no início de Samba-enredo, tivessem se revelado insolúveis mesmo para a onisciência cibernética de Gigi, que se descobre sem “acesso” aos segredos mais recônditos da personagem. Enfim, trata-se da mesma Ana Kaufman que, descobrirá o leitor deste As Cinco Estações do Amor, é a narradora que se desdobra em duas potências distintas: a contida Ana e a brava Diana, que juntas habitam as “aventuras da solidão” desta professora aposentada precocemente, que vive num ponto privilegiado da cidade, de onde se descortinaria o “plano-piloto” de Brasília e suas linhas ideais que o presente vai desfazendo pouco a pouco. Trata-se finalmente de Ana, a escritora frustrada que não consegue desfazer-se da tralha incômoda de seus escritos, a não ser num gesto extremo e doloroso. Uma personagem, ou uma narradora, assombrada por sua própria condição de escritora.
Em certo sentido, os livros de João Almino são sobre a impossibilidade do livro, sobre a angústia do escritor moderno que, justamente por habitar a modernidade, deu-se conta de que um “livro absoluto”, como aquele que Mallarmé imaginara e que a narradora de As Cinco Estações do Amor evoca, é uma improbabilidade, um sonho que as palavras singulares de Ana Kaufman projetam, num belo desenho que aqui me permito adiantar aos olhos do leitor: “Ficar nua e leve, me desfazer dos papéis, renascer livre da carga do passado, é tudo o que quero. Com idéias murchas é difícil me vingar de palavras adormecidas. Porém, os papéis vão gritar, chorar, ao ser rasgados,
recobrando vida às idéias e aos sentimentos neles armazenados. A partir de agora, minhas palavras de ordem são: nada retido, nada guardado. É chegado o momento de descarregar o que venho acumulando. E também de liberar as palavras dos blocos – graníticos – feitos com as emoções que o tempo calou. Que elas saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante. Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém, que vai passando ele próprio suas páginas, abrindo-se cada dia numa diferente, e que, por ser vivo, sangra quando tentam virar suas páginas. Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente, enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade.”
“Papéis a menos”, para seguir com a expressão de Ana, é a figuração mesma desse encontro impossível da literatura com a vida, uma vida que resiste a derramar-se sobre o papel ou a tela, sendo afinal refratária às letras. Mas João Almino segue tentando, e já aqui é possível aventar uma hipótese: a de que toda a sua literatura seja não apenas uma aventura metanarrativa, mas um diálogo profundo com as emoções, que são por sua natureza mesma inacessíveis àquele que busca rememorá-las. Afinal, sempre que o escritor quer agarrá-las elas se esvaem, fazendo com que o resultado do esforço artístico seja apenas uma coleção de “blocos graníticos”, isto é, de emoções mortas, esfriadas e petrificadas pelo tempo.
Se há pouco evoquei Proust, foi por imaginar que mesmo em João Almino as sensações são ainda o único caminho para a recomposição do que o tempo pôs a perder. Mas também aqui haverá algo de proustiano às avessas, não apenas porque a sondagem do futuro prescinde da reconstrução mirífica do passado, mas também porque toda a recomposição está inelutavelmente fadada ao fracasso. Nem uma dezena de livros, nem cem madalenas, nem um milhão de palavras podem conter esse fluxo impiedoso do tempo e trazer de volta o que passou, que será sempre para nós mero resquício, restos incongruentes a que a nossa sanha de leitores, ou escritores, tenta emprestar algum sentido. A metáfora é a da leitura, mas é também a da política: a matéria da cidade, isto é, da pólis, espalha-se sem sentido, e não há ordem possível que a retenha ou organize, a não ser no gigantesco carnaval que o transe da política brasileira e latinoamericana pode sugerir.
Se há uma “lição” na obra ficcional de João Almino, talvez ela se dirija contra as pretensões de hierarquizar e organizar o vivido. Daí que o sentido do vivido se resuma às emoções que escapam ao discurso, lançando-nos, a nós leitores, o desafio de uma recomposição de imagens e sonhos fugazes, cuja poética mesma é a da delicadeza e inviolabilidade do momento, que raramente reporta um plano para além da experiência individual. Na ficção de João Almino, os sonhos coletivos e abstratos, e o sentido mesmo da política, encontram-se numa crise que é a do nosso tempo, quando, entretanto, dá-se o instante em que a delicadeza se oferece ao sujeito, em suas formas múltiplas, figuradas num jardim: “Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos reduzidos no fim, ao essencial, ao que podemos abarcar com o olhar e o toque. O jardim sempre estivera lá, mas só agora o notamos, espaço da delicadeza, do exterior próximo, perto da casa. Algo que nos pertence, mas atravessado pelo olhar dos outros, sempre à espreita, para contemplar, para possuir, para ser perdido.”
Em um clássico estudo sobre a “ontologia da imagem fotográfica”, publicado ao fim da Segunda Guerra, André Bazin lembra que na origem das artes plásticas estaria uma espécie de “complexo da múmia”, isto é, o desejo de celebrar e simular a perenidade do corpo contra a morte. Residiria aí a busca dos pintores pela semelhança, sua tentativa de congelar os objetos e saciar o nosso “apetite de ilusão” que, numa espécie de evolução pictórica, a fotografia teria superado, por ser uma forma artística que praticamente prescindiria da mediação do homem, constituindo-se em pura objetividade. Em nada deveria surpreender, então, que aquilo que substitui o olho humano se chame, para o fotógrafo, “objetiva”.
A acreditar em Bazin, não poderíamos duvidar do fenômeno que o fotógrafo captura: a fotografia assemelha-se a uma relíquia em que se guarda a presentificação do objeto, liberado de suas contingências temporais. Donde o charme das fotografias de um álbum: “essas sombras cinza ou sépia, fantasmáticas, quase ilegíveis, não são mais os tradicionais retratos de família, mas sim a presença perturbadora de vidas arrestadas na sua duração, liberadas de seu destino, não pelos prestígios da arte, mas pela virtude de uma mecânica impassível.”
Descontados os pressupostos ontológicos que atribuem à fotografia um caráter absolutamente instantâneo, que no limite prescinde do artista, haverá, nessa ideia de vidas capturadas na sua duração, uma poética bastante próxima àquela esboçada por João Almino, e ensaiada por Ana, a narradora de As Cinco Estações do Amor.
Não será à toa, finalmente, se o seu último romance, talvez o mais lírico até aqui, se chame O Livro das Emoções (2008) e tenha por narrador Cadu, um fotógrafo velho e já cego que, vivendo em Brasília no ano de 2022, resolve recompor um diário a partir de fotografias que ele não pode mais ver, mas que pode evocar e, portanto, descrever, ou seja, escrever sobre elas. Cadu é um personagem que atravessa os romances anteriores, inclusive As Cinco Estações do Amor. Fora ele, aliás, que em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo tirara a foto que dá partida à narrativa. Uma foto que, sendo o instantâneo de uma efusão cívica, fixara um grupo de pessoas cujas vidas o narrador-defunto daquele livro pretende resgatar, desenvolvendo um roteiro cinematográfico que pudesse retirá-las daquela imobilidade, dando-lhes o futuro que a fotografia esconde como pura e inalcançável virtualidade. Retornando a Bazin, o cinema aparece então “como o acabamento no tempo da objetividade fotográfica”.
Creio que a fotografia e o cinema forneçam as chaves para a compreensão não apenas do último romance de João Almino, O Livro das Emoções, mas para todo o quarteto de Brasília e, talvez, para os livros que ainda virão. Na orelha da edição brasileira de As Cinco Estações do Amor, Silviano Santiago já alertara para a “implacável kodak romanesca” com que o autor flagra as “vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali [em Brasília] aportaram.” E é Alcir Pécora quem, mais recentemente, prefaciando O Livro das Emoções, compara a narrativa fornecida pelos instantâneos fotográficos do fotógrafo-escritor (cego, nunca é demais relembrar) àqueles “passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em sequência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do voo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.”
A observação de Alcir Pécora ilumina também As Cinco Estações do Amor, cuja referência oblíqua, no título, à paixão do Cristo em seu caminho árduo pelas estações, não deve contudo levar-nos ao engano de supor que haja ou deva haver, ao fim, uma redenção. A redenção, afinal, se expre
ssaria na imolação derradeira do sujeito excepcional que, entregue ao transe místico, logo mais encontrará a ressurreição. Não assim com os personagens de João Almino, neste seu belo livro narrado por Ana.
O “desenquadramento existencialista” a que se refere o crítico remete a um deslocamento de outra ordem, que não se dá em direção à grande solução final, mas, ao contrário, admite e legitima um mundo em que o sujeito encontra a sua significação não mais no discurso apocalíptico que crê que o futuro tenha finalmente se materializado diante dos nossos olhos. Em As Cinco Estações do Amor, perto do fim encontra-se uma saída discreta. Diante da revelação final, há um instante de rendição, mais que de redenção.
Este livro, assim como os demais livros de João Almino, parece evocar um encolhimento, ou um apaziguamento do ser, que finalmente desiste de acercar-se a todo o sentido, abrindo-se generosamente à multiplicidade e ao fluxo da vida. (Nunca é demais lembrar que o apocalipse, tomado etimologicamente, é a própria revelação do sentido.) Em outras palavras, é oferta ao sujeito a chance de aproximar-se humildemente do instante, para amá-lo em sua fugacidade, e ali escavar o amor possível. Como lembra Susan Sontag em sua diatribe contra os surrealistas, os fotógrafos seriam os únicos capazes de sugerir que é vão “até mesmo tentar compreender o mundo”. Em troca dessa recusa da compreensão, o que oferecem é tão-somente a ideia de “colecionar” o mundo em imagens.
Ao fim, quando nos vemos diante de tal coleção, descobrimos que o instante é a nossa única morada possível, o lugar fugitivo a que pertencemos sem pertencer. Aí se abriga o olhar de João Almino, e aí, apenas aí, deve encontrar-se o leitor deste As Cinco Estações do Amor.

[1] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1987]; Samba-enredo: Romance. São Paulo: Marco Zero, 1994; As Cinco Estações do Amor, publicado no Brasil em 2001; e, mais recentemente, O Livro das Emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008.

[2] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.16. Para uma aproximação entre Machado de Assis e João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “Uma declaração de princípios”, Jornal do Brasil, 4 out. 2008, “Idéias & Livros”, p.3.

[3] Há uma óbvia, embora complexa, relação entre a produção acadêmica de João Almino e sua ficção. Sobre a Assembleia Constituinte de 1946 e seus laivos ainda autoritários, consulte-se João Almino. Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na Constituinte de 1946. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[4] Referindo-se ao último romance de João Almino, O Livro das Emoções, Antonio Gonçalves Filho lembrou, justamente, o aspecto trágico de sua ficção, e sugeriu um parentesco remoto com O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Cf. Antonio Gonçalves Filho. “Ensaio sobre a cegueira brasileira”, O Estado de S.Paulo, 26 jul. 2008, “Caderno 2”, p.6. Num breve apanhado histórico do sonho “visionário” e secular de uma capital a plantar-se no coração do Brasil, o próprio João Almino lembra o dia em que, ainda criança, no mesmo Nordeste de onde provêm alguns de seus personagens, sua família ouvia eletrizada, “ao pé do rádio”, a inauguração de Brasília. Cf. João Almino. “Brasília, o mito: Anotações para um ideário estético-literário” in Escrita em contraponto: ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p.9-19.

[5] Don DeLillo. “In the Ruins of the Future: Reflections on Terror and Loss in the Shadow of September”, Harper’s Magazine, Dec. 2001, p.33-40.

[6] Cf. Walter Benjamin. “Sobre o conceito da história” in Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.226. Sobre a questão do instante e a importância de Benjamin (e de João Cabral de Melo Neto) para a compreensão do romance de João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor: o work in progress de João Almino”, Imaginário, USP, 2007, vol.13, n.14, p.15-26.

[7] Refiro-me aqui, é claro, ao filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, de 1967.

[8] João Almino. Samba-enredo: Romance, p.14.

[9] A aposentadoria precoce era um fenômeno encontradiço entre professores universitários e funcionários estatais até há pouco tempo no Brasil, graças a uma legislação recentemente reparada, que hoje estabelece a aposentadoria de acordo com a idade, não com o tempo de serviço do trabalhador. Escusado lembrar o que uma nação de aposentados precoces significaria no quadro daquele “futuro” que os romances de João Almino pretendem, justamente, pôr em suspenso.

[10] Denilson Lopes. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Editora UNB, Finatec, 2007, p.128.

[11] Cf. André Bazin. “Ontologie de l’Image Photographique” in Qu’est-ce que le Cinéma? Paris: Éditions du Cerf, 1958, p.11-19.

[12] Idem, p.16.

[13] A percepção de Bazin, que se prolonga em muitas reflexões contemporâneas sobre a fotografia, pressupõe uma instantaneidade que rouba ao ato fotográfico a sua própria duração, seu espaço fora do instante. No limite, como se não se pensasse, por exemplo, na velocidade do obturador. Ou como se na fotografia houvesse, à la Barthes, uma relação analógica entre o “real” e a “imagem”. Penso aqui na formulação crítica de Antonio Fatorelli, para quem “este exercício de identificação de uma origem, de um tipo de esqueleto fundamental, e de elementos acessórios facultativos é o viés pelo qual se realizam as operações de purificação que guardam o sentido último de preservar o centro da contaminação do múltiplo.” Antonio Fatorelli. Fotografia e viagem: entre a natureza e o artifício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p.26.

[14] “Ontologie de l’Image Photographique”, p.16.

[15] Silviano Santiago in João Almino. As Cinco Estações do Amor. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[16] Alcir Pécora. “Prefácio” in João Almino. O Livro das Emoções, p.8. Walnice Nogueira Galvão, por seu turno, prefaciando Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, lembra que a simulação de um roteiro de cinema é o engano maior em que se enreda o leitor, neste “deslizante jogo de engodos” que é o primeiro romance de João Almino. Cf. Walnice Nogueira Galvão. “Prefácio” in Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.9. Uma questão mais sobre a qual refletir é a existência dos inúmeros prefácios e orelhas assinados por críticos literários nos livros ficcionais de João Almino que, a bem da verdade, prescindem desse aparato crítico e se sustentariam perfeitamente sozinhos, apenas como ficção. Talvez a resposta a tal questão tenha sido ensaiada por João Cezar de Castro Rocha, em artigo já referido aqui (neste meu prefácio que tampouco foge à sua angustiante desnecessidade diante do livro que o leitor ora manuseia), e que tem como uma de suas propostas encontrar a ponte que une o ensaísta ao inventor de ficções: “Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensamento, um modo particular de propor perguntas que não supõem respostas, mas a geração de perguntas novas – se possível, inovadoras.” João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor”, p.18.

[17] Susan Sontag. On Photography. New York: Picador, 1977, p.82.

Este livro de João Almino é o terceiro de uma trilogia que recentemente se tornou um quarteto, e que nada impede de vir a tornar-se uma saga, tendo sempre como cenário Brasília, a cidade modernista incrustada, como um sonho raro, no coração do Brasil.
Nos livros “anteriores” a este (as aspas servem a lembrar que o leitor quase nada perde se ler os romances fora de sua ordem de aparição), Brasília era ainda o repositório de uma história fragmentada, feita aos pedaços, nem tanto pela recusa programática de uma ordem qualquer, mas muito mais pelo estilhaçamento próprio à memória, que João Almino persegue em seus personagens atormentados e simula em sua prosa despida de grandes contornos, pedestre e ágil.
Talvez o mais forte traço da literatura de João Almino seja o exercício metanarrativo, as experimentações e a exposição das vozes de onde se crê emanar a história contada. Entretanto, há algo especial e um tanto inusitado nessa literatura que se exercita a si mesma diante dos olhos do leitor. É que, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, tais experimentações não a esvaziam de um caráter propriamente lírico, quase elegíaco por vezes.
Não há, nos livros de João Almino, o “realismo” rente das narrativas que, mais ou menos secas, se atêm ao objeto narrado, muitas vezes crendo no poder de um olhar veloz que se cola àquilo que retrata ou distorce. Sua prosa, pode-se dizer, obedece pelo menos a dois tempos: um que segue o fluxo do pensamento, e do olhar um tanto blasé (porque geralmente esvaziado de utopias) de vários de seus personagens, e outro tempo que, mais lento, permite afastamentos momentâneos, criando instantes em que pequenos contornos antes invisíveis se deixam flagrar. Como se este fotógrafo que é o autor se divertisse em brincar com o foco de uma máquina narrativa, lembrando que o que é invisível não é matéria misteriosa e inacessível, mas é apenas a marca de uma silhueta que se forma em outro plano, onde linhas de luz se juntam para conformar uma imagem alternativa. Os livros de João Almino são, em certo sentido, um exercício do olhar, e a constante lembrança de que também os autores não podem deixar de brincar com foco.
Em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, de 1987, o narrador lembra logo de início que, sendo ele mesmo um morto a escrever, estaria rendendo sua homenagem ao Brás Cubas de Machado de Assis, ainda que de fato recuse identificar-se ao famoso “defunto autor”. Enquanto em Machado o futuro é quase sempre um espaço vazio, fundamentalmente ausente, em João Almino ele é a incógnita que ganha as cores de Brasília, o cheiro, a temperatura e os gostos do Planalto Central do Brasil. Espécie de empresa proustiana às avessas, a memória parece querer vazar o tempo e encaminhar-se para a frente (“tenho espaço demais para onde me expandir”, diz o narrador fantasmático de seu primeiro romance), para ali onde está o futuro de Brasília, que é o tempo figurado de uma falência de sonhos coletivos, da impossibilidade de que o ideal afinal se concretize.
Não devemos esquecer que o tempo da escrita e da publicação da primeira obra ficcional de João Almino (1987) é precisamente o momento em que o Brasil experimentava o enfraquecimento, enfim, de mais uma longa ditadura. Como para grande parte da esquerda latinoamericana, o legado daquele tempo era a constatação amarga de que a potência libertária dos anos sessenta dera em praticamente nada. Esta a marca que carregará a Brasília de seus livros: a cidade é um ideal sempre um pouco falho, ou antes, como nas figurações clássicas da melancolia, ela é o espaço em que o arruinamento já se iniciou, com a inexorabilidade própria ao tempo que, como bem sabem os leitores de Machado de Assis, rói e rói, completamente indiferente às veleidades e aos desejos dos homens.
Mas não se trata de uma alegoria do tempo, apenas. Para além do primeiro romance, seus personagens revelam, através de seus movimentos, uma trama complexa, que se faz e desfaz diante de um espaço e de um tempo vazio: o instante é aquilo que mais insistentemente buscam os livros de João Almino, como se todos (inclusive o narrador morto do primeiro romance, mas também os narradores dos demais livros, especialmente deste As Cinco Estações do Amor) se movessem diante de um rumo para sempre ignorado, um futuro para o qual todos olham sem nada enxergar precisamente. Mas, para além das tintas trágicas com que se desenhariam esses seres cegos diante do destino, a densidade e as qualidades humanas dos personagens permitem ver, em meio às diversas tramas amorosas, uma rede propriamente social que, indiferente, marca a posição de cada um, isto é, das classes alta e média de Brasília, que vivem rodeadas por um mundo enorme que as assombra e fascina, universo de migrantes que, vindos em especial do Nordeste do Brasil, dão forma a uma cidade interminável que rompe sem dó as linhas projetadas pelos seus primeiros arquitetos e visionários.
Os personagens se movimentam num cenário de ruínas ao contrário: “ruínas do futuro”, para recordar a triste e exasperada expressão de Don DeLillo. Brasília, de onde quer que se a veja, acumula os detritos de suas derrotas, um pouco como o quadro de Klee, na interpretação célebre de Walter Benjamin, tão fundamental em As Cinco Estações do Amor: o anjo (ou o narrador) “gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos”, mas não há senão esse vento impetuoso que nos leva todos ao futuro, que é um acúmulo continuado de ruínas.
No segundo livro, Samba-enredo: Romance, de 1994, é um computador-mulher, Gigi (G.G.), que se apossa da narrativa e se antepõe a sua proprietária, Sílvia, para sozinha imprimir algum sentido à história caótica do país, vista num registro burlesco e carnavalizado que, aqui sim, beira a alegoria de uma “terra em transe”, lembrando a magnífica fábula cinematográfica sobre o fenômeno populista na América Latina.
Nem tão sozinha, entretanto, está a computadora de seu segundo livro. Também ela, como no caso do primeiro romance, é assombrada por um fantasma: o de Ana Kaufman, protagonista involuntária da tragédia que levara à morte, por assassinato, o primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antônio Fernandes. A mesma Ana cujas “anotações para um romance em primeira pessoa” foram descobertas após a sua morte, e cujos “problemas de decifração” a computadora tratara de resolver, embora os problemas “do seu coração”, como se lê no início de Samba-enredo, tivessem se revelado insolúveis mesmo para a onisciência cibernética de Gigi, que se descobre sem “acesso” aos segredos mais recônditos da personagem. Enfim, trata-se da mesma Ana Kaufman que, descobrirá o leitor deste As Cinco Estações do Amor, é a narradora que se desdobra em duas potências distintas: a contida Ana e a brava Diana, que juntas habitam as “aventuras da solidão” desta professora aposentada precocemente, que vive num ponto privilegiado da cidade, de onde se descortinaria o “plano-piloto” de Brasília e suas linhas ideais que o presente vai desfazendo pouco a pouco. Trata-se finalmente de Ana, a escritora frustrada que não consegue desfazer-se da tralha incômoda de seus escritos, a não ser num gesto extremo e doloroso. Uma personagem, ou uma narradora, assombrada por sua própria condição de escritora.
Em certo sentido, os livros de João Almino são sobre a impossibilidade do livro, sobre a angústia do escritor moderno que, justamente por habitar a modernidade, deu-se conta de que um “livro absoluto”, como aquele que Mallarmé imaginara e que a narradora de As Cinco Estações do Amor evoca, é uma improbabilidade, um sonho que as palavras singulares de Ana Kaufman projetam, num belo desenho que aqui me permito adiantar aos olhos do leitor: “Ficar nua e leve, me desfazer dos papéis, renascer livre da carga do passado, é tudo o que quero. Com idéias murchas é difícil me vingar de palavras adormecidas. Porém, os papéis vão gritar, chorar, ao ser rasgados,
recobrando vida às idéias e aos sentimentos neles armazenados. A partir de agora, minhas palavras de ordem são: nada retido, nada guardado. É chegado o momento de descarregar o que venho acumulando. E também de liberar as palavras dos blocos – graníticos – feitos com as emoções que o tempo calou. Que elas saiam, feito facas afiadas, esculpindo o espírito do instante. Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém, que vai passando ele próprio suas páginas, abrindo-se cada dia numa diferente, e que, por ser vivo, sangra quando tentam virar suas páginas. Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente, enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade.”
“Papéis a menos”, para seguir com a expressão de Ana, é a figuração mesma desse encontro impossível da literatura com a vida, uma vida que resiste a derramar-se sobre o papel ou a tela, sendo afinal refratária às letras. Mas João Almino segue tentando, e já aqui é possível aventar uma hipótese: a de que toda a sua literatura seja não apenas uma aventura metanarrativa, mas um diálogo profundo com as emoções, que são por sua natureza mesma inacessíveis àquele que busca rememorá-las. Afinal, sempre que o escritor quer agarrá-las elas se esvaem, fazendo com que o resultado do esforço artístico seja apenas uma coleção de “blocos graníticos”, isto é, de emoções mortas, esfriadas e petrificadas pelo tempo.
Se há pouco evoquei Proust, foi por imaginar que mesmo em João Almino as sensações são ainda o único caminho para a recomposição do que o tempo pôs a perder. Mas também aqui haverá algo de proustiano às avessas, não apenas porque a sondagem do futuro prescinde da reconstrução mirífica do passado, mas também porque toda a recomposição está inelutavelmente fadada ao fracasso. Nem uma dezena de livros, nem cem madalenas, nem um milhão de palavras podem conter esse fluxo impiedoso do tempo e trazer de volta o que passou, que será sempre para nós mero resquício, restos incongruentes a que a nossa sanha de leitores, ou escritores, tenta emprestar algum sentido. A metáfora é a da leitura, mas é também a da política: a matéria da cidade, isto é, da pólis, espalha-se sem sentido, e não há ordem possível que a retenha ou organize, a não ser no gigantesco carnaval que o transe da política brasileira e latinoamericana pode sugerir.
Se há uma “lição” na obra ficcional de João Almino, talvez ela se dirija contra as pretensões de hierarquizar e organizar o vivido. Daí que o sentido do vivido se resuma às emoções que escapam ao discurso, lançando-nos, a nós leitores, o desafio de uma recomposição de imagens e sonhos fugazes, cuja poética mesma é a da delicadeza e inviolabilidade do momento, que raramente reporta um plano para além da experiência individual. Na ficção de João Almino, os sonhos coletivos e abstratos, e o sentido mesmo da política, encontram-se numa crise que é a do nosso tempo, quando, entretanto, dá-se o instante em que a delicadeza se oferece ao sujeito, em suas formas múltiplas, figuradas num jardim: “Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos reduzidos no fim, ao essencial, ao que podemos abarcar com o olhar e o toque. O jardim sempre estivera lá, mas só agora o notamos, espaço da delicadeza, do exterior próximo, perto da casa. Algo que nos pertence, mas atravessado pelo olhar dos outros, sempre à espreita, para contemplar, para possuir, para ser perdido.”
Em um clássico estudo sobre a “ontologia da imagem fotográfica”, publicado ao fim da Segunda Guerra, André Bazin lembra que na origem das artes plásticas estaria uma espécie de “complexo da múmia”, isto é, o desejo de celebrar e simular a perenidade do corpo contra a morte. Residiria aí a busca dos pintores pela semelhança, sua tentativa de congelar os objetos e saciar o nosso “apetite de ilusão” que, numa espécie de evolução pictórica, a fotografia teria superado, por ser uma forma artística que praticamente prescindiria da mediação do homem, constituindo-se em pura objetividade. Em nada deveria surpreender, então, que aquilo que substitui o olho humano se chame, para o fotógrafo, “objetiva”.
A acreditar em Bazin, não poderíamos duvidar do fenômeno que o fotógrafo captura: a fotografia assemelha-se a uma relíquia em que se guarda a presentificação do objeto, liberado de suas contingências temporais. Donde o charme das fotografias de um álbum: “essas sombras cinza ou sépia, fantasmáticas, quase ilegíveis, não são mais os tradicionais retratos de família, mas sim a presença perturbadora de vidas arrestadas na sua duração, liberadas de seu destino, não pelos prestígios da arte, mas pela virtude de uma mecânica impassível.”
Descontados os pressupostos ontológicos que atribuem à fotografia um caráter absolutamente instantâneo, que no limite prescinde do artista, haverá, nessa ideia de vidas capturadas na sua duração, uma poética bastante próxima àquela esboçada por João Almino, e ensaiada por Ana, a narradora de As Cinco Estações do Amor.
Não será à toa, finalmente, se o seu último romance, talvez o mais lírico até aqui, se chame O Livro das Emoções (2008) e tenha por narrador Cadu, um fotógrafo velho e já cego que, vivendo em Brasília no ano de 2022, resolve recompor um diário a partir de fotografias que ele não pode mais ver, mas que pode evocar e, portanto, descrever, ou seja, escrever sobre elas. Cadu é um personagem que atravessa os romances anteriores, inclusive As Cinco Estações do Amor. Fora ele, aliás, que em Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo tirara a foto que dá partida à narrativa. Uma foto que, sendo o instantâneo de uma efusão cívica, fixara um grupo de pessoas cujas vidas o narrador-defunto daquele livro pretende resgatar, desenvolvendo um roteiro cinematográfico que pudesse retirá-las daquela imobilidade, dando-lhes o futuro que a fotografia esconde como pura e inalcançável virtualidade. Retornando a Bazin, o cinema aparece então “como o acabamento no tempo da objetividade fotográfica”.
Creio que a fotografia e o cinema forneçam as chaves para a compreensão não apenas do último romance de João Almino, O Livro das Emoções, mas para todo o quarteto de Brasília e, talvez, para os livros que ainda virão. Na orelha da edição brasileira de As Cinco Estações do Amor, Silviano Santiago já alertara para a “implacável kodak romanesca” com que o autor flagra as “vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou por decreto, ali [em Brasília] aportaram.” E é Alcir Pécora quem, mais recentemente, prefaciando O Livro das Emoções, compara a narrativa fornecida pelos instantâneos fotográficos do fotógrafo-escritor (cego, nunca é demais relembrar) àqueles “passeios erráticos de câmera que empregava Robert Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conhecidos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em sequência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretudo pela sintaxe, pela disposição do voo cego da câmera. Por isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento existencialista que o travelling permite, quando as situações são capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre alguma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos seus quadros ou fotos.”
A observação de Alcir Pécora ilumina também As Cinco Estações do Amor, cuja referência oblíqua, no título, à paixão do Cristo em seu caminho árduo pelas estações, não deve contudo levar-nos ao engano de supor que haja ou deva haver, ao fim, uma redenção. A redenção, afinal, se expre
ssaria na imolação derradeira do sujeito excepcional que, entregue ao transe místico, logo mais encontrará a ressurreição. Não assim com os personagens de João Almino, neste seu belo livro narrado por Ana.
O “desenquadramento existencialista” a que se refere o crítico remete a um deslocamento de outra ordem, que não se dá em direção à grande solução final, mas, ao contrário, admite e legitima um mundo em que o sujeito encontra a sua significação não mais no discurso apocalíptico que crê que o futuro tenha finalmente se materializado diante dos nossos olhos. Em As Cinco Estações do Amor, perto do fim encontra-se uma saída discreta. Diante da revelação final, há um instante de rendição, mais que de redenção.
Este livro, assim como os demais livros de João Almino, parece evocar um encolhimento, ou um apaziguamento do ser, que finalmente desiste de acercar-se a todo o sentido, abrindo-se generosamente à multiplicidade e ao fluxo da vida. (Nunca é demais lembrar que o apocalipse, tomado etimologicamente, é a própria revelação do sentido.) Em outras palavras, é oferta ao sujeito a chance de aproximar-se humildemente do instante, para amá-lo em sua fugacidade, e ali escavar o amor possível. Como lembra Susan Sontag em sua diatribe contra os surrealistas, os fotógrafos seriam os únicos capazes de sugerir que é vão “até mesmo tentar compreender o mundo”. Em troca dessa recusa da compreensão, o que oferecem é tão-somente a ideia de “colecionar” o mundo em imagens.
Ao fim, quando nos vemos diante de tal coleção, descobrimos que o instante é a nossa única morada possível, o lugar fugitivo a que pertencemos sem pertencer. Aí se abriga o olhar de João Almino, e aí, apenas aí, deve encontrar-se o leitor deste As Cinco Estações do Amor.

[1] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1987]; Samba-enredo: Romance. São Paulo: Marco Zero, 1994; As Cinco Estações do Amor, publicado no Brasil em 2001; e, mais recentemente, O Livro das Emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008.

[2] Cf. João Almino. Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.16. Para uma aproximação entre Machado de Assis e João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “Uma declaração de princípios”, Jornal do Brasil, 4 out. 2008, “Idéias & Livros”, p.3.

[3] Há uma óbvia, embora complexa, relação entre a produção acadêmica de João Almino e sua ficção. Sobre a Assembleia Constituinte de 1946 e seus laivos ainda autoritários, consulte-se João Almino. Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na Constituinte de 1946. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[4] Referindo-se ao último romance de João Almino, O Livro das Emoções, Antonio Gonçalves Filho lembrou, justamente, o aspecto trágico de sua ficção, e sugeriu um parentesco remoto com O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Cf. Antonio Gonçalves Filho. “Ensaio sobre a cegueira brasileira”, O Estado de S.Paulo, 26 jul. 2008, “Caderno 2”, p.6. Num breve apanhado histórico do sonho “visionário” e secular de uma capital a plantar-se no coração do Brasil, o próprio João Almino lembra o dia em que, ainda criança, no mesmo Nordeste de onde provêm alguns de seus personagens, sua família ouvia eletrizada, “ao pé do rádio”, a inauguração de Brasília. Cf. João Almino. “Brasília, o mito: Anotações para um ideário estético-literário” in Escrita em contraponto: ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p.9-19.

[5] Don DeLillo. “In the Ruins of the Future: Reflections on Terror and Loss in the Shadow of September”, Harper’s Magazine, Dec. 2001, p.33-40.

[6] Cf. Walter Benjamin. “Sobre o conceito da história” in Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.226. Sobre a questão do instante e a importância de Benjamin (e de João Cabral de Melo Neto) para a compreensão do romance de João Almino, leia-se João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor: o work in progress de João Almino”, Imaginário, USP, 2007, vol.13, n.14, p.15-26.

[7] Refiro-me aqui, é claro, ao filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, de 1967.

[8] João Almino. Samba-enredo: Romance, p.14.

[9] A aposentadoria precoce era um fenômeno encontradiço entre professores universitários e funcionários estatais até há pouco tempo no Brasil, graças a uma legislação recentemente reparada, que hoje estabelece a aposentadoria de acordo com a idade, não com o tempo de serviço do trabalhador. Escusado lembrar o que uma nação de aposentados precoces significaria no quadro daquele “futuro” que os romances de João Almino pretendem, justamente, pôr em suspenso.

[10] Denilson Lopes. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Editora UNB, Finatec, 2007, p.128.

[11] Cf. André Bazin. “Ontologie de l’Image Photographique” in Qu’est-ce que le Cinéma? Paris: Éditions du Cerf, 1958, p.11-19.

[12] Idem, p.16.

[13] A percepção de Bazin, que se prolonga em muitas reflexões contemporâneas sobre a fotografia, pressupõe uma instantaneidade que rouba ao ato fotográfico a sua própria duração, seu espaço fora do instante. No limite, como se não se pensasse, por exemplo, na velocidade do obturador. Ou como se na fotografia houvesse, à la Barthes, uma relação analógica entre o “real” e a “imagem”. Penso aqui na formulação crítica de Antonio Fatorelli, para quem “este exercício de identificação de uma origem, de um tipo de esqueleto fundamental, e de elementos acessórios facultativos é o viés pelo qual se realizam as operações de purificação que guardam o sentido último de preservar o centro da contaminação do múltiplo.” Antonio Fatorelli. Fotografia e viagem: entre a natureza e o artifício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p.26.

[14] “Ontologie de l’Image Photographique”, p.16.

[15] Silviano Santiago in João Almino. As Cinco Estações do Amor. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[16] Alcir Pécora. “Prefácio” in João Almino. O Livro das Emoções, p.8. Walnice Nogueira Galvão, por seu turno, prefaciando Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, lembra que a simulação de um roteiro de cinema é o engano maior em que se enreda o leitor, neste “deslizante jogo de engodos” que é o primeiro romance de João Almino. Cf. Walnice Nogueira Galvão. “Prefácio” in Idéias Para Onde Passar o Fim do Mundo, p.9. Uma questão mais sobre a qual refletir é a existência dos inúmeros prefácios e orelhas assinados por críticos literários nos livros ficcionais de João Almino que, a bem da verdade, prescindem desse aparato crítico e se sustentariam perfeitamente sozinhos, apenas como ficção. Talvez a resposta a tal questão tenha sido ensaiada por João Cezar de Castro Rocha, em artigo já referido aqui (neste meu prefácio que tampouco foge à sua angustiante desnecessidade diante do livro que o leitor ora manuseia), e que tem como uma de suas propostas encontrar a ponte que une o ensaísta ao inventor de ficções: “Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensamento, um modo particular de propor perguntas que não supõem respostas, mas a geração de perguntas novas – se possível, inovadoras.” João Cezar de Castro Rocha. “As estações de um autor”, p.18.

[17] Susan Sontag. On Photography. New York: Picador, 1977, p.82.