“Cidade Livre” ou o inconformismo da literatura (*)
João Almino
Meu romance “Cidade Livre”, pelo qual fui agraciado com este Prêmio, se passa num lugar e num tempo precisos, no lugarejo para onde afluíram comerciantes, trabalhadores, construtores e engenheiros que chegavam para a construção de Brasília, entre 1956 e 1960, e que deveria ser destruído quando a nova capital fosse inaugurada. Mas, apesar de conter informações de uma história não oficial, não se trata de um romance histórico.
Tampouco se trata de uma literatura regional ou de Brasília. Tenho dito que o lugar onde se passa o enredo de um romance tem importância secundária em relação aos temas de que trata e sobretudo em relação a sua forma ou expressão estética.
Houve quem lesse “Cidade Livre” como um livro de memórias. Fico feliz quando me dizem que são memórias convincentes e me confundem com o narrador. Algumas pessoas me procuraram para dizer: também conheci fulano; também vivi tal situação, vivi lá na mesma época que você. A verdade é que não cresci na “Cidade Livre”, nunca estive lá naqueles anos e as memórias do narrador são inventadas e, em parte, pesquisadas, pois escrevi este livro quando morava em Chicago e recorri a mapas, relatórios, depoimentos e crônicas.
A História com H maiúsculo e as descrições do meio físico estão apenas na superfície do livro. O que me interessa é a criação dos personagens, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero. Em suma, é explorar as profundezas da alma humana e sua complexidade.
Não quero apenas que esses personagens sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Se fosse assim escreveria um artigo de opinião. Quando se trata de opiniões e pontos de vista dos personagens, os bons romances, a meu ver, em vez de exprimirem visões unívocas, unidimensionais, muitas vezes exprimem ambiguidade, incoerência e perspectivas conflitantes, pondo lado a lado personagens radicalmente distintos ou explorando personagens em toda a sua complexidade e em sua mistura de bem e de mal.
Mais fundamental ainda para mim é a experiência da própria linguagem. Ainda que não houvesse enredo, meu objetivo seria que o texto se sustentasse pela escolha mesma das palavras, umas se juntando a outras de forma inesperada, evitando os lugares comuns, criando novas formas de expressão e espaços amplos para a imaginação. Palavras nunca são suficientes para descrever a vida e suas emoções, e no entanto a literatura tenta agrupá-las de tal maneira a se aproximar da expressão de momentos e sentimentos únicos.
O fato de eu ter situado cinco romances em Brasília curiosamente causa surpresa. Ninguém se surpreende com livros cujas histórias se passam nos lugares mais recônditos do mundo, como aliás deve ser. Mas ouço frequentemente a pergunta: por que Brasília?
Por que não Brasília? Além de ser uma cidade como qualquer outra, onde seres humanos vivem suas histórias e inspiram outras tantas, é uma cidade como nenhuma outra. É uma ideia e um projeto que acompanhou toda a história do Brasil independente, prestando-se a uma leitura do País. Pode-se dizer que a ideia da construção da nova capital corresponde a uma utopia elaborada ao longo de toda a história do Brasil – e essa utopia pode ser contrastada criticamente com a experiência.
Nesse sentido Brasília é um mito, e suas características podem inspirar uma poética ou ideário estético-literário. É um território novo para a ficção, caracterizado por um enorme poder simbólico.
Pode simbolizar, por exemplo, o desenraizamento, a hibridização e a transculturalidade, temas centrais de “Cidade Livre”. Prefiro pensá-la como local de identidades múltiplas, cambiantes e principalmente em aberto – sendo esse um dos sentidos que se pode dar ao próprio título do romance —“Cidade Livre”.
Sem falar das consequências políticas nefastas do apego às raízes, elas de fato raramente existem: as migrações culturais são fenômeno não apenas de hoje, têm ocorrido mais ou menos em toda parte e tornam difícil isolar de qualquer influência o autenticamente autóctone. Na América, somos nações bastardas ou órfãs, condição que implica mais liberdade e também mais responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.
O fato de minhas histórias se situarem num lugar que foi ou é um relativo vazio também me ajudou na tomada de partido contra o estereótipo e o pitoresco.
A liberdade para criar no território vazio não implica, contudo, o apagamento da memória. Naquele relativo vazio os vários brasis se encontram e se entrecruzam, trazendo toda a carga de seus passados. Para ele posso trazer, portanto, histórias de todo o Brasil, inclusive do Nordeste onde nasci e cresci.
Se não estou preocupado com puras raízes ou identidades, por outro lado minha literatura tem uma obsessão pelo tema da fundação, do novo. Na fundação, na criação e no novo há uma questão de fundo religioso, místico e também filosófico, científico e literário – outro bom material para a ficção. Em “Cidade Livre”, trata-se da história de um lugar sem história, da fundação de uma cidade, que é também, na cabeça de muitos, a fundação de um país, de uma nova civilização, de um novo mundo e de uma nova humanidade. Um tema recorrente que perpassa o da fundação é a reflexão sobre o tempo – ou mais precisamente sobre o instante e sua relação com o eterno.
Há também a questão da vontade e do livre arbítrio. Diferentemente da maioria das cidades, que resultam do acaso, do encontro fortuito e da necessidade, Brasília é fruto do espírito e da vontade. Os controles exercidos por seu plano racional e quase matemático são, por sua vez, subvertidos pelos movimentos espontâneos da história de seus habitantes.
Brasília é, além disso, uma boa metáfora para as contradições do mundo moderno. Convida a pensar sobre a ideia do moderno que a fundou, uma ideia que envelheceu com ela e que pode ser analisada em retrospectiva, como um futuro que já é passado, mas ainda habita a imaginação dos brasileiros. Mais do que os ideais modernistas ou as aspirações modernizadoras, são os processos de desmodernização que minha literatura vai explorar. Os impulsos vanguardistas são ali colocados lado a lado com a anti-modernidade e o que é percebido como atrasado e arcaico.
A racionalidade do plano contrasta, por exemplo, com o misticismo que tem acompanhado a história da cidade, desde o frequentemente citado sonho profético de D. Bosco às preleções do Mestre Yokaanam ou de Tia Neiva, místicos citados em “Cidade Livre”. Íris Quelemém, minha personagem do ficcional Jardim da Salvação algo aprendeu com eles e com a explicação milenarista da fundação da cidade, que transforma a história num capítulo de múltiplas teologias ou de um amplo movimento cósmico.
Tanto nos projetos e análises que se baseiam em pressupostos racionais quanto nas expressões irracionais existe um ideal de grandeza, que acompanhava o entusiasmo dos fundadores: no primeiro caso, Brasília deveria exprimir a grandeza da vontade nacional, fundar um novo país, moderno como a arquitetura de sua capital; ser a base de uma nova e mais justa sociedade. André Malraux, também citado em “Cidade Livre”, definia Brasília como “a primeira das capitais da nova civilização” e “a cidade mais audaciosa que o Ocidente já concebeu.”
Os místicos, à sua maneira, imaginaram algo semelhante. Para alguns deles existiria um triângulo localizado no Planalto Central, que sobreviveria à grande catástrofe e seria o berço de uma nova era, uma nova civilização e uma nova humanidade.
Tudo isso contrasta com o dia a dia de Brasília, em que não faltam os engarrafamentos de trânsito, a violência, a pobreza e a desigualdade social visível na expansão das cidades satélites.
Está, assim, exacerbada ali a tensão entre o moderno e o arcaico que está no coração do mundo contemporâneo.
Como o mito de Brasília me atraiu mais do que sua história, criei em meus romances meu próprio mundo ficcional. “O historiador registra, enquanto o romancista deve criar”, já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance. No mais das vezes, não se trata de transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, de fazer com que personagens imaginários sejam absolutamente verossímeis. E essa verossimilhança existe quando os colocamos lado a lado com personagens conhecidos do grande público e que tiveram existência real. Em Cidade Livre misturei memórias inventadas e a ficção propriamente dita, que é sempre o aspecto definidor de um romance, com uma pesquisa sobre as origens históricas da cidade, ao tentar captar o clima de euforia da época da construção, uma euforia que em alguns aspectos se assemelha à que vivemos hoje, pois também JK acreditava que o Brasil seria a quinta maior economia do mundo dentro de dez anos.
Não foi apenas no Brasil que a construção de Brasília atraiu as atenções, de um lado sendo vista com ceticismo e de outro produzindo espanto e admiração. Fotos da cidade em construção vinham estampadas em jornais e revistas em várias partes do mundo. Muitos foram seus visitantes ilustres, ainda antes da inauguração, entre eles chefes de Estado e escritores presentes ou evocados em Cidade Livre. Como em outros de meus romances, existem igualmente descrições do espaço ou referências a fatos conhecidos dos brasilienses. No entanto, nenhum desses personagens ilustres, nem JK e nem mesmo o mitológico Bernardo Sayão, engenheiro responsável pelos primeiros trabalhos da construção, ocupam posições de destaque na trama do romance. Os personagens centrais, que transmitem as emoções e paixões, ou seja, as tristezas, alegrias e sonhos, são todos puras criações literárias: o narrador órfão, seu pai adotivo, suas duas tias e principalmente um homem simples, um candango que ajuda na construção de Brasília e, em razão de sua história, do próprio romance.
Esta Brasília que mistura mito e história, ideais de modernidade e processos de desmodernização, utopia e a mais crua realidade pós-utópica, será a Brasília real? Ou a Brasília real é apenas a cidade goiana, interiorana, de caráter regional forte? Ou não será ela sobretudo um Brasil profundo presente nas cidades satélites, construídas espontaneamente à revelia dos arquitetos e urbanistas? Nas suas primeiras histórias certamente há espaço para muitas brasílias, o que pode ser dito ao contrário: nas muitas brasílias há espaço para todo tipo de literatura. Não pretendo que Brasília seja minha literatura nem mesmo que minha literatura exprima a Brasília real ou verdadeira. Ela exprime apenas um ponto de vista, o da minha própria Brasília ficcional, feita de elementos díspares e às vezes contrastantes: de história e imaginação, mito e realidade, ideia, projeto e utopia e também suas negações.
Por mais que um texto de ficção queira parecer nada mais do que a fotografia do que existe, as escolhas feitas pelo autor têm a ver com ideias às vezes pré-concebidas, noutras vezes com a emoção sentida ao contato com determinada cena ou situação. A realidade tem muitas dimensões, e algumas delas são subjetivas e simbólicas. A literatura, a meu ver, deve se libertar da mera descrição jornalística. Deve ir além da narração de fatos conhecidos. Ela é às vezes mais eficaz não quando expressa o que foi visto ou dito, mas sim o que está escondido ou foi silenciado; não o que aconteceu, mas o que não pôde acontecer; não o que é conclusivo, mas o que é incompleto, fragmentário e oblíquo; não o que traz respostas, mas o que propõe perguntas.
Devemos, portanto, matizar o sentido do que seja o conhecimento transmitido pela literatura. Há romances que apresentam discussões morais e filosóficas ou que transmitem informações históricas ou de outra natureza, mas não devemos entender o conhecimento neste sentido estreito, de transmissão de saberes. Frequentemente a criação literária nasce das incertezas, da busca e da aventura. Muitas das grandes obras literárias não enfocam temas específicos, mas, ao contrário, tratam de algo tão amplo e complexo como a própria vida.
Eu diria que, como regra geral, os bons escritores entram no território da ficção quando todas as outras formas de linguagem são insuficientes para exprimir o que querem, e é por isso que sua ficção resiste às simplificações e comporta múltiplas interpretações que variam com o tempo. O escritor coleta ou suga informações, experiências e histórias das mais diferentes fontes e depois trata de dar forma à desordem e ao caos, criando uma estrutura e uma arquitetura feitas de palavras.
A literatura pode esclarecer e trazer ao primeiro plano aquilo que estava escondido e parecia obscuro. Alethea, em grego “verdade, memória”, é a negação de Lethe (noite, escuridão, esquecimento). Mas a verdade com a qual o escritor trabalha, a que ele traz à luz dos fundos da escuridão, a que estava relegada ao esquecimento e ele recupera pela memória, é a verdade da própria da ficção.
Mais do que ser real ou verdadeira, no sentido de corresponder ao que de fato existe, a história narrada pelo escritor deve pertencer, assim, à realidade da própria ficção, na qual a verossimilhança é mais importante do que a realidade entendida como o que de fato aconteceu. E não cabe ao escritor apenas retratar ou representar a realidade. Em suma, o realismo não basta.
Mas a solução literária tampouco passa pela idealização dos fatos e situações. Não adianta pintar de cor-de-rosa o que é negro. Acho que a literatura não deve se desviar do desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida, o que pode ser feito inclusive com humor.
Para nada serve a literatura em particular, e no entanto sua leitura é necessária e não é sem consequência. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Prefiro ler textos irrequietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem, e propõem uma visão de mundo. A boa literatura deve ter essa ambição não necessariamente para edificar ou instruir o leitor, mas para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo ver algo inesperado. A literatura pode avançar o conhecimento, mas é pobre quando se limita a uma função didática e ao universo da mera opinião.
Ela deve revelar, interrogar, tornar óbvio o que parecia obscuro, e problematizar o que parecia claro. Para mim a literatura não é sobre a realidade; é realidade mesma, realidade da própria linguagem. Não é sobre a experiência. É experiência e aventura. Deve ser criativa, portanto. Livre e fundadora. Ou, vista de outra forma, vai além da realidade e da experiência, porque sua natureza é essencialmente inconformista.
Sobretudo – e com isso concluo minhas palavras — resiste a todas as positividades, ao conhecimento já adquirido e às formas conhecidas, liberando a própria liberdade dos sentidos já adquiridos. Está sempre em busca de uma nova expressão, não necessariamente para explicar ou para descobrir os sentidos do mundo, mas para criar emoção, dúvida e vertigem.
(*) Discurso pronunciado pelo autor em 23 de agosto de 2011 por ocasião do recebimento do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura de melhor romance em língua portuguesa publicado entre maio de 2009 e maio de 2011.
“Cidade Livre” ou o inconformismo da literatura (*)
João Almino (**)
Meu romance “Cidade Livre”, pelo qual fui agraciado com este Prêmio, se passa num lugar e num tempo precisos, no lugarejo para onde afluíram comerciantes, trabalhadores, construtores e engenheiros que chegavam para a construção de Brasília, entre 1956 e 1960, e que deveria ser destruído quando a nova capital fosse inaugurada. Mas, apesar de conter informações de uma história não oficial, não se trata de um romance histórico.
Tampouco se trata de uma literatura regional ou de Brasília. Tenho dito que o lugar onde se passa o enredo de um romance tem importância secundária em relação aos temas de que trata e sobretudo em relação a sua forma ou expressão estética.
Houve quem lesse “Cidade Livre” como um livro de memórias. Fico feliz quando me dizem que são memórias convincentes e me confundem com o narrador. Algumas pessoas me procuraram para dizer: também conheci fulano; também vivi tal situação, vivi lá na mesma época que você. A verdade é que não cresci na “Cidade Livre”, nunca estive lá naqueles anos e as memórias do narrador são inventadas e, em parte, pesquisadas, pois escrevi este livro quando morava em Chicago e recorri a mapas, relatórios, depoimentos e crônicas.
A História com H maiúsculo e as descrições do meio físico estão apenas na superfície do livro. O que me interessa é a criação dos personagens, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero. Em suma, é explorar as profundezas da alma humana e sua complexidade.
Não quero apenas que esses personagens sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Se fosse assim escreveria um artigo de opinião. Quando se trata de opiniões e pontos de vista dos personagens, os bons romances, a meu ver, em vez de exprimirem visões unívocas, unidimensionais, muitas vezes exprimem ambiguidade, incoerência e perspectivas conflitantes, pondo lado a lado personagens radicalmente distintos ou explorando personagens em toda a sua complexidade e em sua mistura de bem e de mal.
Mais fundamental ainda para mim é a experiência da própria linguagem. Ainda que não houvesse enredo, meu objetivo seria que o texto se sustentasse pela escolha mesma das palavras, umas se juntando a outras de forma inesperada, evitando os lugares comuns, criando novas formas de expressão e espaços amplos para a imaginação. Palavras nunca são suficientes para descrever a vida e suas emoções, e no entanto a literatura tenta agrupá-las de tal maneira a se aproximar da expressão de momentos e sentimentos únicos.
O fato de eu ter situado cinco romances em Brasília curiosamente causa surpresa. Ninguém se surpreende com livros cujas histórias se passam nos lugares mais recônditos do mundo, como aliás deve ser. Mas ouço frequentemente a pergunta: por que Brasília?
Por que não Brasília? Além de ser uma cidade como qualquer outra, onde seres humanos vivem suas histórias e inspiram outras tantas, é uma cidade como nenhuma outra. É uma ideia e um projeto que acompanhou toda a história do Brasil independente, prestando-se a uma leitura do País. Pode-se dizer que a ideia da construção da nova capital corresponde a uma utopia elaborada ao longo de toda a história do Brasil – e essa utopia pode ser contrastada criticamente com a experiência.
Nesse sentido Brasília é um mito, e suas características podem inspirar uma poética ou ideário estético-literário. É um território novo para a ficção, caracterizado por um enorme poder simbólico.
Pode simbolizar, por exemplo, o desenraizamento, a hibridização e a transculturalidade, temas centrais de “Cidade Livre”. Prefiro pensá-la como local de identidades múltiplas, cambiantes e principalmente em aberto – sendo esse um dos sentidos que se pode dar ao próprio título do romance —“Cidade Livre”.
Sem falar das consequências políticas nefastas do apego às raízes, elas de fato raramente existem: as migrações culturais são fenômeno não apenas de hoje, têm ocorrido mais ou menos em toda parte e tornam difícil isolar de qualquer influência o autenticamente autóctone. Na América, somos nações bastardas ou órfãs, condição que implica mais liberdade e também mais responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.
O fato de minhas histórias se situarem num lugar que foi ou é um relativo vazio também me ajudou na tomada de partido contra o estereótipo e o pitoresco.
A liberdade para criar no território vazio não implica, contudo, o apagamento da memória. Naquele relativo vazio os vários brasis se encontram e se entrecruzam, trazendo toda a carga de seus passados. Para ele posso trazer, portanto, histórias de todo o Brasil, inclusive do Nordeste onde nasci e cresci.
Se não estou preocupado com puras raízes ou identidades, por outro lado minha literatura tem uma obsessão pelo tema da fundação, do novo. Na fundação, na criação e no novo há uma questão de fundo religioso, místico e também filosófico, científico e literário – outro bom material para a ficção. Em “Cidade Livre”, trata-se da história de um lugar sem história, da fundação de uma cidade, que é também, na cabeça de muitos, a fundação de um país, de uma nova civilização, de um novo mundo e de uma nova humanidade. Um tema recorrente que perpassa o da fundação é a reflexão sobre o tempo – ou mais precisamente sobre o instante e sua relação com o eterno.
Há também a questão da vontade e do livre arbítrio. Diferentemente da maioria das cidades, que resultam do acaso, do encontro fortuito e da necessidade, Brasília é fruto do espírito e da vontade. Os controles exercidos por seu plano racional e quase matemático são, por sua vez, subvertidos pelos movimentos espontâneos da história de seus habitantes.
Brasília é, além disso, uma boa metáfora para as contradições do mundo moderno. Convida a pensar sobre a ideia do moderno que a fundou, uma ideia que envelheceu com ela e que pode ser analisada em retrospectiva, como um futuro que já é passado, mas ainda habita a imaginação dos brasileiros. Mais do que os ideais modernistas ou as aspirações modernizadoras, são os processos de desmodernização que minha literatura vai explorar. Os impulsos vanguardistas são ali colocados lado a lado com a anti-modernidade e o que é percebido como atrasado e arcaico.
A racionalidade do plano contrasta, por exemplo, com o misticismo que tem acompanhado a história da cidade, desde o frequentemente citado sonho profético de D. Bosco às preleções do Mestre Yokaanam ou de Tia Neiva, místicos citados em “Cidade Livre”. Íris Quelemém, minha personagem do ficcional Jardim da Salvação algo aprendeu com eles e com a explicação milenarista da fundação da cidade, que transforma a história num capítulo de múltiplas teologias ou de um amplo movimento cósmico.
Tanto nos projetos e análises que se baseiam em pressupostos racionais quanto nas expressões irracionais existe um ideal de grandeza, que acompanhava o entusiasmo dos fundadores: no primeiro caso, Brasília deveria exprimir a grandeza da vontade nacional, fundar um novo país, moderno como a arquitetura de sua capital; ser a base de uma nova e mais justa sociedade. André Malraux, também citado em “Cidade Livre”, definia Brasília como “a primeira das capitais da nova civilização” e “a cidade mais audaciosa que o Ocidente já concebeu.”
Os místicos, à sua maneira, imaginaram algo semelhante. Para alguns deles existiria um triângulo localizado no Planalto Central, que sobreviveria à grande catástrofe e seria o berço de uma nova era, uma nova civilização e uma nova humanidade.
Tudo isso contrasta com o dia a dia de Brasília, em que não faltam os engarrafamentos de trânsito, a violência, a pobreza e a desigualdade social visível na expansão das cidades satélites.
Está, assim, exacerbada ali a tensão entre o moderno e o arcaico que está no coração do mundo contemporâneo.
Como o mito de Brasília me atraiu mais do que sua história, criei em meus romances meu próprio mundo ficcional. “O historiador registra, enquanto o romancista deve criar”, já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance. No mais das vezes, não se trata de transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, de fazer com que personagens imaginários sejam absolutamente verossímeis. E essa verossimilhança existe quando os colocamos lado a lado com personagens conhecidos do grande público e que tiveram existência real. Em Cidade Livre misturei memórias inventadas e a ficção propriamente dita, que é sempre o aspecto definidor de um romance, com uma pesquisa sobre as origens históricas da cidade, ao tentar captar o clima de euforia da época da construção, uma euforia que em alguns aspectos se assemelha à que vivemos hoje, pois também JK acreditava que o Brasil seria a quinta maior economia do mundo dentro de dez anos.
Não foi apenas no Brasil que a construção de Brasília atraiu as atenções, de um lado sendo vista com ceticismo e de outro produzindo espanto e admiração. Fotos da cidade em construção vinham estampadas em jornais e revistas em várias partes do mundo. Muitos foram seus visitantes ilustres, ainda antes da inauguração, entre eles chefes de Estado e escritores presentes ou evocados em Cidade Livre. Como em outros de meus romances, existem igualmente descrições do espaço ou referências a fatos conhecidos dos brasilienses. No entanto, nenhum desses personagens ilustres, nem JK e nem mesmo o mitológico Bernardo Sayão, engenheiro responsável pelos primeiros trabalhos da construção, ocupam posições de destaque na trama do romance. Os personagens centrais, que transmitem as emoções e paixões, ou seja, as tristezas, alegrias e sonhos, são todos puras criações literárias: o narrador órfão, seu pai adotivo, suas duas tias e principalmente um homem simples, um candango que ajuda na construção de Brasília e, em razão de sua história, do próprio romance.
Esta Brasília que mistura mito e história, ideais de modernidade e processos de desmodernização, utopia e a mais crua realidade pós-utópica, será a Brasília real? Ou a Brasília real é apenas a cidade goiana, interiorana, de caráter regional forte? Ou não será ela sobretudo um Brasil profundo presente nas cidades satélites, construídas espontaneamente à revelia dos arquitetos e urbanistas? Nas suas primeiras histórias certamente há espaço para muitas brasílias, o que pode ser dito ao contrário: nas muitas brasílias há espaço para todo tipo de literatura. Não pretendo que Brasília seja minha literatura nem mesmo que minha literatura exprima a Brasília real ou verdadeira. Ela exprime apenas um ponto de vista, o da minha própria Brasília ficcional, feita de elementos díspares e às vezes contrastantes: de história e imaginação, mito e realidade, ideia, projeto e utopia e também suas negações.
Por mais que um texto de ficção queira parecer nada mais do que a fotografia do que existe, as escolhas feitas pelo autor têm a ver com ideias às vezes pré-concebidas, noutras vezes com a emoção sentida ao contato com determinada cena ou situação. A realidade tem muitas dimensões, e algumas delas são subjetivas e simbólicas. A literatura, a meu ver, deve se libertar da mera descrição jornalística. Deve ir além da narração de fatos conhecidos. Ela é às vezes mais eficaz não quando expressa o que foi visto ou dito, mas sim o que está escondido ou foi silenciado; não o que aconteceu, mas o que não pôde acontecer; não o que é conclusivo, mas o que é incompleto, fragmentário e oblíquo; não o que traz respostas, mas o que propõe perguntas.
Devemos, portanto, matizar o sentido do que seja o conhecimento transmitido pela literatura. Há romances que apresentam discussões morais e filosóficas ou que transmitem informações históricas ou de outra natureza, mas não devemos entender o conhecimento neste sentido estreito, de transmissão de saberes. Frequentemente a criação literária nasce das incertezas, da busca e da aventura. Muitas das grandes obras literárias não enfocam temas específicos, mas, ao contrário, tratam de algo tão amplo e complexo como a própria vida.
Eu diria que, como regra geral, os bons escritores entram no território da ficção quando todas as outras formas de linguagem são insuficientes para exprimir o que querem, e é por isso que sua ficção resiste às simplificações e comporta múltiplas interpretações que variam com o tempo. O escritor coleta ou suga informações, experiências e histórias das mais diferentes fontes e depois trata de dar forma à desordem e ao caos, criando uma estrutura e uma arquitetura feitas de palavras.
A literatura pode esclarecer e trazer ao primeiro plano aquilo que estava escondido e parecia obscuro. Alethea, em grego “verdade, memória”, é a negação de Lethe (noite, escuridão, esquecimento). Mas a verdade com a qual o escritor trabalha, a que ele traz à luz dos fundos da escuridão, a que estava relegada ao esquecimento e ele recupera pela memória, é a verdade da própria da ficção.
Mais do que ser real ou verdadeira, no sentido de corresponder ao que de fato existe, a história narrada pelo escritor deve pertencer, assim, à realidade da própria ficção, na qual a verossimilhança é mais importante do que a realidade entendida como o que de fato aconteceu. E não cabe ao escritor apenas retratar ou representar a realidade. Em suma, o realismo não basta.
Mas a solução literária tampouco passa pela idealização dos fatos e situações. Não adianta pintar de cor-de-rosa o que é negro. Acho que a literatura não deve se desviar do desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida, o que pode ser feito inclusive com humor.
Para nada serve a literatura em particular, e no entanto sua leitura é necessária e não é sem consequência. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Prefiro ler textos irrequietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem, e propõem uma visão de mundo. A boa literatura deve ter essa ambição não necessariamente para edificar ou instruir o leitor, mas para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo ver algo inesperado. A literatura pode avançar o conhecimento, mas é pobre quando se limita a uma função didática e ao universo da mera opinião.
Ela deve revelar, interrogar, tornar óbvio o que parecia obscuro, e problematizar o que parecia claro. Para mim a literatura não é sobre a realidade; é realidade mesma, realidade da própria linguagem. Não é sobre a experiência. É experiência e aventura. Deve ser criativa, portanto. Livre e fundadora. Ou, vista de outra forma, vai além da realidade e da experiência, porque sua natureza é essencialmente inconformista.
Sobretudo – e com isso concluo minhas palavras — resiste a todas as positividades, ao conhecimento já adquirido e às formas conhecidas, liberando a própria liberdade dos sentidos já adquiridos. Está sempre em busca de uma nova expressão, não necessariamente para explicar ou para descobrir os sentidos do mundo, mas para criar emoção, dúvida e vertigem.
(*) Discurso pronunciado pelo autor em 23 de agosto de 2011 por ocasião do recebimento do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura de melhor romance em língua portuguesa publicado entre maio de 2009 e maio de 2011.
Discurso de aceptación del Prémio Zaffari & Bourbon de LIteratura para “Cidade Libre” como mejor novela publicada en lengua portuguesa entre mayo de 2009 y mayo de 2011
“Cidade Livre” ou o inconformismo da literatura (*)
João Almino (**)
Meu romance “Cidade Livre”, pelo qual fui agraciado com este Prêmio, se passa num lugar e num tempo precisos, no lugarejo para onde afluíram comerciantes, trabalhadores, construtores e engenheiros que chegavam para a construção de Brasília, entre 1956 e 1960, e que deveria ser destruído quando a nova capital fosse inaugurada. Mas, apesar de conter informações de uma história não oficial, não se trata de um romance histórico.
Tampouco se trata de uma literatura regional ou de Brasília. Tenho dito que o lugar onde se passa o enredo de um romance tem importância secundária em relação aos temas de que trata e sobretudo em relação a sua forma ou expressão estética.
Houve quem lesse “Cidade Livre” como um livro de memórias. Fico feliz quando me dizem que são memórias convincentes e me confundem com o narrador. Algumas pessoas me procuraram para dizer: também conheci fulano; também vivi tal situação, vivi lá na mesma época que você. A verdade é que não cresci na “Cidade Livre”, nunca estive lá naqueles anos e as memórias do narrador são inventadas e, em parte, pesquisadas, pois escrevi este livro quando morava em Chicago e recorri a mapas, relatórios, depoimentos e crônicas.
A História com H maiúsculo e as descrições do meio físico estão apenas na superfície do livro. O que me interessa é a criação dos personagens, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero. Em suma, é explorar as profundezas da alma humana e sua complexidade.
Não quero apenas que esses personagens sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Se fosse assim escreveria um artigo de opinião. Quando se trata de opiniões e pontos de vista dos personagens, os bons romances, a meu ver, em vez de exprimirem visões unívocas, unidimensionais, muitas vezes exprimem ambiguidade, incoerência e perspectivas conflitantes, pondo lado a lado personagens radicalmente distintos ou explorando personagens em toda a sua complexidade e em sua mistura de bem e de mal.
Mais fundamental ainda para mim é a experiência da própria linguagem. Ainda que não houvesse enredo, meu objetivo seria que o texto se sustentasse pela escolha mesma das palavras, umas se juntando a outras de forma inesperada, evitando os lugares comuns, criando novas formas de expressão e espaços amplos para a imaginação. Palavras nunca são suficientes para descrever a vida e suas emoções, e no entanto a literatura tenta agrupá-las de tal maneira a se aproximar da expressão de momentos e sentimentos únicos.
O fato de eu ter situado cinco romances em Brasília curiosamente causa surpresa. Ninguém se surpreende com livros cujas histórias se passam nos lugares mais recônditos do mundo, como aliás deve ser. Mas ouço frequentemente a pergunta: por que Brasília?
Por que não Brasília? Além de ser uma cidade como qualquer outra, onde seres humanos vivem suas histórias e inspiram outras tantas, é uma cidade como nenhuma outra. É uma ideia e um projeto que acompanhou toda a história do Brasil independente, prestando-se a uma leitura do País. Pode-se dizer que a ideia da construção da nova capital corresponde a uma utopia elaborada ao longo de toda a história do Brasil – e essa utopia pode ser contrastada criticamente com a experiência.
Nesse sentido Brasília é um mito, e suas características podem inspirar uma poética ou ideário estético-literário. É um território novo para a ficção, caracterizado por um enorme poder simbólico.
Pode simbolizar, por exemplo, o desenraizamento, a hibridização e a transculturalidade, temas centrais de “Cidade Livre”. Prefiro pensá-la como local de identidades múltiplas, cambiantes e principalmente em aberto – sendo esse um dos sentidos que se pode dar ao próprio título do romance —“Cidade Livre”.
Sem falar das consequências políticas nefastas do apego às raízes, elas de fato raramente existem: as migrações culturais são fenômeno não apenas de hoje, têm ocorrido mais ou menos em toda parte e tornam difícil isolar de qualquer influência o autenticamente autóctone. Na América, somos nações bastardas ou órfãs, condição que implica mais liberdade e também mais responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.
O fato de minhas histórias se situarem num lugar que foi ou é um relativo vazio também me ajudou na tomada de partido contra o estereótipo e o pitoresco.
A liberdade para criar no território vazio não implica, contudo, o apagamento da memória. Naquele relativo vazio os vários brasis se encontram e se entrecruzam, trazendo toda a carga de seus passados. Para ele posso trazer, portanto, histórias de todo o Brasil, inclusive do Nordeste onde nasci e cresci.
Se não estou preocupado com puras raízes ou identidades, por outro lado minha literatura tem uma obsessão pelo tema da fundação, do novo. Na fundação, na criação e no novo há uma questão de fundo religioso, místico e também filosófico, científico e literário – outro bom material para a ficção. Em “Cidade Livre”, trata-se da história de um lugar sem história, da fundação de uma cidade, que é também, na cabeça de muitos, a fundação de um país, de uma nova civilização, de um novo mundo e de uma nova humanidade. Um tema recorrente que perpassa o da fundação é a reflexão sobre o tempo – ou mais precisamente sobre o instante e sua relação com o eterno.
Há também a questão da vontade e do livre arbítrio. Diferentemente da maioria das cidades, que resultam do acaso, do encontro fortuito e da necessidade, Brasília é fruto do espírito e da vontade. Os controles exercidos por seu plano racional e quase matemático são, por sua vez, subvertidos pelos movimentos espontâneos da história de seus habitantes.
Brasília é, além disso, uma boa metáfora para as contradições do mundo moderno. Convida a pensar sobre a ideia do moderno que a fundou, uma ideia que envelheceu com ela e que pode ser analisada em retrospectiva, como um futuro que já é passado, mas ainda habita a imaginação dos brasileiros. Mais do que os ideais modernistas ou as aspirações modernizadoras, são os processos de desmodernização que minha literatura vai explorar. Os impulsos vanguardistas são ali colocados lado a lado com a anti-modernidade e o que é percebido como atrasado e arcaico.
A racionalidade do plano contrasta, por exemplo, com o misticismo que tem acompanhado a história da cidade, desde o frequentemente citado sonho profético de D. Bosco às preleções do Mestre Yokaanam ou de Tia Neiva, místicos citados em “Cidade Livre”. Íris Quelemém, minha personagem do ficcional Jardim da Salvação algo aprendeu com eles e com a explicação milenarista da fundação da cidade, que transforma a história num capítulo de múltiplas teologias ou de um amplo movimento cósmico.
Tanto nos projetos e análises que se baseiam em pressupostos racionais quanto nas expressões irracionais existe um ideal de grandeza, que acompanhava o entusiasmo dos fundadores: no primeiro caso, Brasília deveria exprimir a grandeza da vontade nacional, fundar um novo país, moderno como a arquitetura de sua capital; ser a base de uma nova e mais justa sociedade. André Malraux, também citado em “Cidade Livre”, definia Brasília como “a primeira das capitais da nova civilização” e “a cidade mais audaciosa que o Ocidente já concebeu.”
Os místicos, à sua maneira, imaginaram algo semelhante. Para alguns deles existiria um triângulo localizado no Planalto Central, que sobreviveria à grande catástrofe e seria o berço de uma nova era, uma nova civilização e uma nova humanidade.
Tudo isso contrasta com o dia a dia de Brasília, em que não faltam os engarrafamentos de trânsito, a violência, a pobreza e a desigualdade social visível na expansão das cidades satélites.
Está, assim, exacerbada ali a tensão entre o moderno e o arcaico que está no coração do mundo contemporâneo.
Como o mito de Brasília me atraiu mais do que sua história, criei em meus romances meu próprio mundo ficcional. “O historiador registra, enquanto o romancista deve criar”, já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance. No mais das vezes, não se trata de transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, de fazer com que personagens imaginários sejam absolutamente verossímeis. E essa verossimilhança existe quando os colocamos lado a lado com personagens conhecidos do grande público e que tiveram existência real. Em Cidade Livre misturei memórias inventadas e a ficção propriamente dita, que é sempre o aspecto definidor de um romance, com uma pesquisa sobre as origens históricas da cidade, ao tentar captar o clima de euforia da época da construção, uma euforia que em alguns aspectos se assemelha à que vivemos hoje, pois também JK acreditava que o Brasil seria a quinta maior economia do mundo dentro de dez anos.
Não foi apenas no Brasil que a construção de Brasília atraiu as atenções, de um lado sendo vista com ceticismo e de outro produzindo espanto e admiração. Fotos da cidade em construção vinham estampadas em jornais e revistas em várias partes do mundo. Muitos foram seus visitantes ilustres, ainda antes da inauguração, entre eles chefes de Estado e escritores presentes ou evocados em Cidade Livre. Como em outros de meus romances, existem igualmente descrições do espaço ou referências a fatos conhecidos dos brasilienses. No entanto, nenhum desses personagens ilustres, nem JK e nem mesmo o mitológico Bernardo Sayão, engenheiro responsável pelos primeiros trabalhos da construção, ocupam posições de destaque na trama do romance. Os personagens centrais, que transmitem as emoções e paixões, ou seja, as tristezas, alegrias e sonhos, são todos puras criações literárias: o narrador órfão, seu pai adotivo, suas duas tias e principalmente um homem simples, um candango que ajuda na construção de Brasília e, em razão de sua história, do próprio romance.
Esta Brasília que mistura mito e história, ideais de modernidade e processos de desmodernização, utopia e a mais crua realidade pós-utópica, será a Brasília real? Ou a Brasília real é apenas a cidade goiana, interiorana, de caráter regional forte? Ou não será ela sobretudo um Brasil profundo presente nas cidades satélites, construídas espontaneamente à revelia dos arquitetos e urbanistas? Nas suas primeiras histórias certamente há espaço para muitas brasílias, o que pode ser dito ao contrário: nas muitas brasílias há espaço para todo tipo de literatura. Não pretendo que Brasília seja minha literatura nem mesmo que minha literatura exprima a Brasília real ou verdadeira. Ela exprime apenas um ponto de vista, o da minha própria Brasília ficcional, feita de elementos díspares e às vezes contrastantes: de história e imaginação, mito e realidade, ideia, projeto e utopia e também suas negações.
Por mais que um texto de ficção queira parecer nada mais do que a fotografia do que existe, as escolhas feitas pelo autor têm a ver com ideias às vezes pré-concebidas, noutras vezes com a emoção sentida ao contato com determinada cena ou situação. A realidade tem muitas dimensões, e algumas delas são subjetivas e simbólicas. A literatura, a meu ver, deve se libertar da mera descrição jornalística. Deve ir além da narração de fatos conhecidos. Ela é às vezes mais eficaz não quando expressa o que foi visto ou dito, mas sim o que está escondido ou foi silenciado; não o que aconteceu, mas o que não pôde acontecer; não o que é conclusivo, mas o que é incompleto, fragmentário e oblíquo; não o que traz respostas, mas o que propõe perguntas.
Devemos, portanto, matizar o sentido do que seja o conhecimento transmitido pela literatura. Há romances que apresentam discussões morais e filosóficas ou que transmitem informações históricas ou de outra natureza, mas não devemos entender o conhecimento neste sentido estreito, de transmissão de saberes. Frequentemente a criação literária nasce das incertezas, da busca e da aventura. Muitas das grandes obras literárias não enfocam temas específicos, mas, ao contrário, tratam de algo tão amplo e complexo como a própria vida.
Eu diria que, como regra geral, os bons escritores entram no território da ficção quando todas as outras formas de linguagem são insuficientes para exprimir o que querem, e é por isso que sua ficção resiste às simplificações e comporta múltiplas interpretações que variam com o tempo. O escritor coleta ou suga informações, experiências e histórias das mais diferentes fontes e depois trata de dar forma à desordem e ao caos, criando uma estrutura e uma arquitetura feitas de palavras.
A literatura pode esclarecer e trazer ao primeiro plano aquilo que estava escondido e parecia obscuro. Alethea, em grego “verdade, memória”, é a negação de Lethe (noite, escuridão, esquecimento). Mas a verdade com a qual o escritor trabalha, a que ele traz à luz dos fundos da escuridão, a que estava relegada ao esquecimento e ele recupera pela memória, é a verdade da própria da ficção.
Mais do que ser real ou verdadeira, no sentido de corresponder ao que de fato existe, a história narrada pelo escritor deve pertencer, assim, à realidade da própria ficção, na qual a verossimilhança é mais importante do que a realidade entendida como o que de fato aconteceu. E não cabe ao escritor apenas retratar ou representar a realidade. Em suma, o realismo não basta.
Mas a solução literária tampouco passa pela idealização dos fatos e situações. Não adianta pintar de cor-de-rosa o que é negro. Acho que a literatura não deve se desviar do desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida, o que pode ser feito inclusive com humor.
Para nada serve a literatura em particular, e no entanto sua leitura é necessária e não é sem consequência. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Prefiro ler textos irrequietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem, e propõem uma visão de mundo. A boa literatura deve ter essa ambição não necessariamente para edificar ou instruir o leitor, mas para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo ver algo inesperado. A literatura pode avançar o conhecimento, mas é pobre quando se limita a uma função didática e ao universo da mera opinião.
Ela deve revelar, interrogar, tornar óbvio o que parecia obscuro, e problematizar o que parecia claro. Para mim a literatura não é sobre a realidade; é realidade mesma, realidade da própria linguagem. Não é sobre a experiência. É experiência e aventura. Deve ser criativa, portanto. Livre e fundadora. Ou, vista de outra forma, vai além da realidade e da experiência, porque sua natureza é essencialmente inconformista.
Sobretudo – e com isso concluo minhas palavras — resiste a todas as positividades, ao conhecimento já adquirido e às formas conhecidas, liberando a própria liberdade dos sentidos já adquiridos. Está sempre em busca de uma nova expressão, não necessariamente para explicar ou para descobrir os sentidos do mundo, mas para criar emoção, dúvida e vertigem.
(*) Discurso pronunciado pelo autor em 23 de agosto de 2011 por ocasião do recebimento do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura de melhor romance em língua portuguesa publicado entre maio de 2009 e maio de 2011.
“Hôtel Brasilia” ou l´informisme de la littérature.
“Cidade Livre” ou o inconformismo da literatura (*)
João Almino (**)
Meu romance “Cidade Livre”, pelo qual fui agraciado com este Prêmio, se passa num lugar e num tempo precisos, no lugarejo para onde afluíram comerciantes, trabalhadores, construtores e engenheiros que chegavam para a construção de Brasília, entre 1956 e 1960, e que deveria ser destruído quando a nova capital fosse inaugurada. Mas, apesar de conter informações de uma história não oficial, não se trata de um romance histórico.
Tampouco se trata de uma literatura regional ou de Brasília. Tenho dito que o lugar onde se passa o enredo de um romance tem importância secundária em relação aos temas de que trata e sobretudo em relação a sua forma ou expressão estética.
Houve quem lesse “Cidade Livre” como um livro de memórias. Fico feliz quando me dizem que são memórias convincentes e me confundem com o narrador. Algumas pessoas me procuraram para dizer: também conheci fulano; também vivi tal situação, vivi lá na mesma época que você. A verdade é que não cresci na “Cidade Livre”, nunca estive lá naqueles anos e as memórias do narrador são inventadas e, em parte, pesquisadas, pois escrevi este livro quando morava em Chicago e recorri a mapas, relatórios, depoimentos e crônicas.
A História com H maiúsculo e as descrições do meio físico estão apenas na superfície do livro. O que me interessa é a criação dos personagens, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero. Em suma, é explorar as profundezas da alma humana e sua complexidade.
Não quero apenas que esses personagens sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Se fosse assim escreveria um artigo de opinião. Quando se trata de opiniões e pontos de vista dos personagens, os bons romances, a meu ver, em vez de exprimirem visões unívocas, unidimensionais, muitas vezes exprimem ambiguidade, incoerência e perspectivas conflitantes, pondo lado a lado personagens radicalmente distintos ou explorando personagens em toda a sua complexidade e em sua mistura de bem e de mal.
Mais fundamental ainda para mim é a experiência da própria linguagem. Ainda que não houvesse enredo, meu objetivo seria que o texto se sustentasse pela escolha mesma das palavras, umas se juntando a outras de forma inesperada, evitando os lugares comuns, criando novas formas de expressão e espaços amplos para a imaginação. Palavras nunca são suficientes para descrever a vida e suas emoções, e no entanto a literatura tenta agrupá-las de tal maneira a se aproximar da expressão de momentos e sentimentos únicos.
O fato de eu ter situado cinco romances em Brasília curiosamente causa surpresa. Ninguém se surpreende com livros cujas histórias se passam nos lugares mais recônditos do mundo, como aliás deve ser. Mas ouço frequentemente a pergunta: por que Brasília?
Por que não Brasília? Além de ser uma cidade como qualquer outra, onde seres humanos vivem suas histórias e inspiram outras tantas, é uma cidade como nenhuma outra. É uma ideia e um projeto que acompanhou toda a história do Brasil independente, prestando-se a uma leitura do País. Pode-se dizer que a ideia da construção da nova capital corresponde a uma utopia elaborada ao longo de toda a história do Brasil – e essa utopia pode ser contrastada criticamente com a experiência.
Nesse sentido Brasília é um mito, e suas características podem inspirar uma poética ou ideário estético-literário. É um território novo para a ficção, caracterizado por um enorme poder simbólico.
Pode simbolizar, por exemplo, o desenraizamento, a hibridização e a transculturalidade, temas centrais de “Cidade Livre”. Prefiro pensá-la como local de identidades múltiplas, cambiantes e principalmente em aberto – sendo esse um dos sentidos que se pode dar ao próprio título do romance —“Cidade Livre”.
Sem falar das consequências políticas nefastas do apego às raízes, elas de fato raramente existem: as migrações culturais são fenômeno não apenas de hoje, têm ocorrido mais ou menos em toda parte e tornam difícil isolar de qualquer influência o autenticamente autóctone. Na América, somos nações bastardas ou órfãs, condição que implica mais liberdade e também mais responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.
O fato de minhas histórias se situarem num lugar que foi ou é um relativo vazio também me ajudou na tomada de partido contra o estereótipo e o pitoresco.
A liberdade para criar no território vazio não implica, contudo, o apagamento da memória. Naquele relativo vazio os vários brasis se encontram e se entrecruzam, trazendo toda a carga de seus passados. Para ele posso trazer, portanto, histórias de todo o Brasil, inclusive do Nordeste onde nasci e cresci.
Se não estou preocupado com puras raízes ou identidades, por outro lado minha literatura tem uma obsessão pelo tema da fundação, do novo. Na fundação, na criação e no novo há uma questão de fundo religioso, místico e também filosófico, científico e literário – outro bom material para a ficção. Em “Cidade Livre”, trata-se da história de um lugar sem história, da fundação de uma cidade, que é também, na cabeça de muitos, a fundação de um país, de uma nova civilização, de um novo mundo e de uma nova humanidade. Um tema recorrente que perpassa o da fundação é a reflexão sobre o tempo – ou mais precisamente sobre o instante e sua relação com o eterno.
Há também a questão da vontade e do livre arbítrio. Diferentemente da maioria das cidades, que resultam do acaso, do encontro fortuito e da necessidade, Brasília é fruto do espírito e da vontade. Os controles exercidos por seu plano racional e quase matemático são, por sua vez, subvertidos pelos movimentos espontâneos da história de seus habitantes.
Brasília é, além disso, uma boa metáfora para as contradições do mundo moderno. Convida a pensar sobre a ideia do moderno que a fundou, uma ideia que envelheceu com ela e que pode ser analisada em retrospectiva, como um futuro que já é passado, mas ainda habita a imaginação dos brasileiros. Mais do que os ideais modernistas ou as aspirações modernizadoras, são os processos de desmodernização que minha literatura vai explorar. Os impulsos vanguardistas são ali colocados lado a lado com a anti-modernidade e o que é percebido como atrasado e arcaico.
A racionalidade do plano contrasta, por exemplo, com o misticismo que tem acompanhado a história da cidade, desde o frequentemente citado sonho profético de D. Bosco às preleções do Mestre Yokaanam ou de Tia Neiva, místicos citados em “Cidade Livre”. Íris Quelemém, minha personagem do ficcional Jardim da Salvação algo aprendeu com eles e com a explicação milenarista da fundação da cidade, que transforma a história num capítulo de múltiplas teologias ou de um amplo movimento cósmico.
Tanto nos projetos e análises que se baseiam em pressupostos racionais quanto nas expressões irracionais existe um ideal de grandeza, que acompanhava o entusiasmo dos fundadores: no primeiro caso, Brasília deveria exprimir a grandeza da vontade nacional, fundar um novo país, moderno como a arquitetura de sua capital; ser a base de uma nova e mais justa sociedade. André Malraux, também citado em “Cidade Livre”, definia Brasília como “a primeira das capitais da nova civilização” e “a cidade mais audaciosa que o Ocidente já concebeu.”
Os místicos, à sua maneira, imaginaram algo semelhante. Para alguns deles existiria um triângulo localizado no Planalto Central, que sobreviveria à grande catástrofe e seria o berço de uma nova era, uma nova civilização e uma nova humanidade.
Tudo isso contrasta com o dia a dia de Brasília, em que não faltam os engarrafamentos de trânsito, a violência, a pobreza e a desigualdade social visível na expansão das cidades satélites.
Está, assim, exacerbada ali a tensão entre o moderno e o arcaico que está no coração do mundo contemporâneo.
Como o mito de Brasília me atraiu mais do que sua história, criei em meus romances meu próprio mundo ficcional. “O historiador registra, enquanto o romancista deve criar”, já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance. No mais das vezes, não se trata de transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, de fazer com que personagens imaginários sejam absolutamente verossímeis. E essa verossimilhança existe quando os colocamos lado a lado com personagens conhecidos do grande público e que tiveram existência real. Em Cidade Livre misturei memórias inventadas e a ficção propriamente dita, que é sempre o aspecto definidor de um romance, com uma pesquisa sobre as origens históricas da cidade, ao tentar captar o clima de euforia da época da construção, uma euforia que em alguns aspectos se assemelha à que vivemos hoje, pois também JK acreditava que o Brasil seria a quinta maior economia do mundo dentro de dez anos.
Não foi apenas no Brasil que a construção de Brasília atraiu as atenções, de um lado sendo vista com ceticismo e de outro produzindo espanto e admiração. Fotos da cidade em construção vinham estampadas em jornais e revistas em várias partes do mundo. Muitos foram seus visitantes ilustres, ainda antes da inauguração, entre eles chefes de Estado e escritores presentes ou evocados em Cidade Livre. Como em outros de meus romances, existem igualmente descrições do espaço ou referências a fatos conhecidos dos brasilienses. No entanto, nenhum desses personagens ilustres, nem JK e nem mesmo o mitológico Bernardo Sayão, engenheiro responsável pelos primeiros trabalhos da construção, ocupam posições de destaque na trama do romance. Os personagens centrais, que transmitem as emoções e paixões, ou seja, as tristezas, alegrias e sonhos, são todos puras criações literárias: o narrador órfão, seu pai adotivo, suas duas tias e principalmente um homem simples, um candango que ajuda na construção de Brasília e, em razão de sua história, do próprio romance.
Esta Brasília que mistura mito e história, ideais de modernidade e processos de desmodernização, utopia e a mais crua realidade pós-utópica, será a Brasília real? Ou a Brasília real é apenas a cidade goiana, interiorana, de caráter regional forte? Ou não será ela sobretudo um Brasil profundo presente nas cidades satélites, construídas espontaneamente à revelia dos arquitetos e urbanistas? Nas suas primeiras histórias certamente há espaço para muitas brasílias, o que pode ser dito ao contrário: nas muitas brasílias há espaço para todo tipo de literatura. Não pretendo que Brasília seja minha literatura nem mesmo que minha literatura exprima a Brasília real ou verdadeira. Ela exprime apenas um ponto de vista, o da minha própria Brasília ficcional, feita de elementos díspares e às vezes contrastantes: de história e imaginação, mito e realidade, ideia, projeto e utopia e também suas negações.
Por mais que um texto de ficção queira parecer nada mais do que a fotografia do que existe, as escolhas feitas pelo autor têm a ver com ideias às vezes pré-concebidas, noutras vezes com a emoção sentida ao contato com determinada cena ou situação. A realidade tem muitas dimensões, e algumas delas são subjetivas e simbólicas. A literatura, a meu ver, deve se libertar da mera descrição jornalística. Deve ir além da narração de fatos conhecidos. Ela é às vezes mais eficaz não quando expressa o que foi visto ou dito, mas sim o que está escondido ou foi silenciado; não o que aconteceu, mas o que não pôde acontecer; não o que é conclusivo, mas o que é incompleto, fragmentário e oblíquo; não o que traz respostas, mas o que propõe perguntas.
Devemos, portanto, matizar o sentido do que seja o conhecimento transmitido pela literatura. Há romances que apresentam discussões morais e filosóficas ou que transmitem informações históricas ou de outra natureza, mas não devemos entender o conhecimento neste sentido estreito, de transmissão de saberes. Frequentemente a criação literária nasce das incertezas, da busca e da aventura. Muitas das grandes obras literárias não enfocam temas específicos, mas, ao contrário, tratam de algo tão amplo e complexo como a própria vida.
Eu diria que, como regra geral, os bons escritores entram no território da ficção quando todas as outras formas de linguagem são insuficientes para exprimir o que querem, e é por isso que sua ficção resiste às simplificações e comporta múltiplas interpretações que variam com o tempo. O escritor coleta ou suga informações, experiências e histórias das mais diferentes fontes e depois trata de dar forma à desordem e ao caos, criando uma estrutura e uma arquitetura feitas de palavras.
A literatura pode esclarecer e trazer ao primeiro plano aquilo que estava escondido e parecia obscuro. Alethea, em grego “verdade, memória”, é a negação de Lethe (noite, escuridão, esquecimento). Mas a verdade com a qual o escritor trabalha, a que ele traz à luz dos fundos da escuridão, a que estava relegada ao esquecimento e ele recupera pela memória, é a verdade da própria da ficção.
Mais do que ser real ou verdadeira, no sentido de corresponder ao que de fato existe, a história narrada pelo escritor deve pertencer, assim, à realidade da própria ficção, na qual a verossimilhança é mais importante do que a realidade entendida como o que de fato aconteceu. E não cabe ao escritor apenas retratar ou representar a realidade. Em suma, o realismo não basta.
Mas a solução literária tampouco passa pela idealização dos fatos e situações. Não adianta pintar de cor-de-rosa o que é negro. Acho que a literatura não deve se desviar do desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida, o que pode ser feito inclusive com humor.
Para nada serve a literatura em particular, e no entanto sua leitura é necessária e não é sem consequência. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Prefiro ler textos irrequietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem, e propõem uma visão de mundo. A boa literatura deve ter essa ambição não necessariamente para edificar ou instruir o leitor, mas para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo ver algo inesperado. A literatura pode avançar o conhecimento, mas é pobre quando se limita a uma função didática e ao universo da mera opinião.
Ela deve revelar, interrogar, tornar óbvio o que parecia obscuro, e problematizar o que parecia claro. Para mim a literatura não é sobre a realidade; é realidade mesma, realidade da própria linguagem. Não é sobre a experiência. É experiência e aventura. Deve ser criativa, portanto. Livre e fundadora. Ou, vista de outra forma, vai além da realidade e da experiência, porque sua natureza é essencialmente inconformista.
Sobretudo – e com isso concluo minhas palavras — resiste a todas as positividades, ao conhecimento já adquirido e às formas conhecidas, liberando a própria liberdade dos sentidos já adquiridos. Está sempre em busca de uma nova expressão, não necessariamente para explicar ou para descobrir os sentidos do mundo, mas para criar emoção, dúvida e vertigem.
(*) Discurso pronunciado pelo autor em 23 de agosto de 2011 por ocasião do recebimento do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura de melhor romance em língua portuguesa publicado entre maio de 2009 e maio de 2011.