Em livro de João Almino, lições de tolerância e maturidade
MARIA FERNANDA RODRIGUES – O ESTADO DE S. PAULO
São Paulo, 26 de maio de 2015
‘Enigmas da Primavera’ é protagonizado por um jovem que vive nas redes sociais e que quer entender o sentido de tolerância para o Islã
Primeiro veio a ideia de escrever um romance centrado num personagem muito jovem, que fosse movido pelas redes sociais e vivesse essa evolução recente dos contatos virtuais. Era 2010, e, no ano seguinte, o escritor e diplomata João Almino se mudaria para Madri para uma temporada profissional. Chegando lá, seu personagem, então um rascunho, foi adquirindo novas camadas porque Almino começou a se interessar pelo tema da ocupação islâmica na Península Ibérica.
Vizinho da Biblioteca Nacional da Espanha, foi ali que ele iniciou as pesquisas. Nessa época, a primavera árabe estava começando a chacoalhar o mundo e os jornais já traziam notícias sobre o islamismo radical. E a história, que ele queria, desde o princípio, que tivesse como ponto de partida uma certa desorientação do mundo atual, foi ganhando corpo. Enigmas da Primavera, lançado agora, aborda isso tudo e muito mais: família, amor, liberdade, responsabilidade, busca de identidade e de entendimento do mundo, rejeição, frustração e delírio.
O livro anterior do diplomata, ‘Cidade Livre’, venceu o Prêmio Passo Fundo Zaffari e BourbonMajnun é um garoto na casa dos 20 anos que foi criado, confortavelmente, em Brasília, pelos avós maternos – que lutaram pela democracia quando o País vivia sob a ditadura militar. O pai, que tinha 15 anos quando engravidou a mãe, morreu de overdose. Ela, viciada em heroína e com surtos psicóticos, estava internada. “Quando pensava nela, imaginava-a tomando uísque e cheirando carreiras de cocaína”, nos informa o narrador.
Frustrado por não conseguir entrar na faculdade de História, vive mergulhado em pesquisas na internet. Seu interesse: encontrar na tradição islâmica a explicação da tolerância. Sua vontade é que um ensaio sobre o tema perpasse a novela que ele está escrevendo sobre o Alhambra. Seu interesse pelo mundo árabe, porém, não é gratuito. Sua avó paterna é filha de egípcia e libanês palestino, muçulmana que não usa o véu, e é com ela – e com um professor espanhol – que ele conversa sobre essas questões.
É perdidamente apaixonado por Laila (como Majnun, o louco da história árabe do século7, é por Layla). Ela é muçulmana como a avó dele, mais velha e casada. Depois de uma reviravolta nessa sua história de amor, ele parte para Madri com duas amigas que participariam da Jornada Mundial da Juventude, o grande encontro de jovens católicos com o papa. Era a desculpa perfeita para fugir dos problemas e realizar o sonho de visitar Granada. Na verdade, seu sonho era ter vivido ali séculos atrás.
Enquanto essa história vai sendo contada, Majnun flerta com o islamismo radical, rompe com a família, perambula por Madri, delira e surta em Granada. Na volta da Espanha, encontra um jeito de fazer a diferença. Já estamos em 2013 e a população está nas ruas de todo o País protestando contra uma série de problemas. Ele também.
“É um risco muito grande fazer um romance sobre questões contemporâneas, mas sempre me interessei pelo tema do presente”, conta João Almino. Assim, tentou entrar nesses acontecimentos – além da primavera árabe e dos protestos de junho, estão ali o movimento dos indignados, da Espanha – por meio da visão subjetiva dos personagens e tentando verificar, como diz o autor, do ponto de vista emocional, como eles estão sendo mobilizados por esses acontecimentos. Assim, não importa o resultado da ação, mas, sim, sua influência naquele personagem.
Majnun poderia ser um desses jovens que deixam tudo para trás e se envolvem com grupos islâmicos radicais. “Isso tem um sentido de utopia para ele, mas uma utopia regressiva. Uma volta a um passado que nunca existiu. E essa é também uma das inspirações dos grupos radicais, que acreditam que houve essa pureza, essa inocência original, mas ela nunca existiu”, diz o autor. Sobre o perfil dos que se envolvem, ele comenta que o que há de comum é que são todos muito jovens e recém-convertidos, portanto, “pessoas com conhecimento rasteiro de alguns aspectos dessa ideologia”.
Neste sentido, a leitura de Enigmas da Primavera fornece informações ao leitor que deseja entender melhor o que está acontecendo no mundo para não radicalizar também. “Esta é uma questão que interessa a todos. Não é puramente do mundo árabe, do mundo islâmico ou da Europa. É tão importante quanto foi, nos anos 1920, 1930, a expansão da ideologia totalitária. E a expansão das novas ideologias totalitárias contemporâneas interessa ao filósofo, ao historiador e também ao ficcionista”, diz o escritor.
João Almino, que voltou a Brasília esta semana por tempo indeterminado depois de 10 anos vivendo entre Madri, Chicago e Miami, já pensa no próximo livro. A capital federal deve deixar de ser cenário. “Estou muito tentado a voltar para o Nordeste. Criei uma cidade fictícia perto de Mossoró, onde nasci, e já pus os personagens lá. Vamos ver o que sai disso.”
João Almino
Nascido em Mossoró (RN) em 1950, João Almino é autor livros de não ficção e de seis romances – conhecidos como o Quinteto de Brasília. O último da série, Cidade Livre, venceu, em 2011, o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. Em sua carreira diplomática, serviu em cidades como Madri, Chicago, Miami, Paris, Washington, São Francisco, Lisboa, Londres e Beirute, entre outras.
Confira trechos da obra:
“Uma noite, ainda em fevereiro de 2011, as conversas eram muitas e variadas em torno à grande mesa da sala de jantar. Seus avós tinham convidado um casal para jantar, uma professora de Sociologia da UnB, já aposentada, velha amiga de sua avó, e o marido, um médico que, apesar da idade, ainda se dedicava à clínica pediátrica. De comum, além de rugas e cabelos brancos, tinham morado em Paris como estudantes. Se pudesse, Majnun pensou, repetiria a vida de seus avós nos anos sessenta e setenta, em Paris ou no Oriente Médio.”
(…)
“Ao chegarem ao Pátio das Murtas, deitou-se no chão com o rosto voltado para a piscina. Apoiou a cabeça sobre a mochila, balançando-a levemente para acompanhar os movimentos brilhosos no espelho d’água. Havia vida do outro lado, lá no fundo, na realidade que se refletia, talvez uma vida melhor. Um vulto lhe apareceu bem no fundo da piscina. Agora tinha certeza. Era de fato seu avô, já moribundo, os olhos assustados, a boca muito aberta. Veio-lhe um desejo forte de mergulhar na água. O calor intenso o impelia. E não apenas o calor. Precisava fugir, fugir da polícia, fugir para outro mundo. O espelho d’água o confundia, deixava-o tonto e com enjoo, e o atraía como um ímã. Levantou-se rapidamente, vencendo com dificuldade a força que o puxava para baixo. Tonto e hipnotizado, observava a água, que tremia sob o sol. De repente sua vista escureceu e, como abatido por um tiro, caiu na água com todo o peso do corpo. Sentiu a cabeça bater no fundo da piscina, onde ficaria para sempre. Não precisaria jamais voltar à superfície, a da realidade insuportável. Ia se encontrar com o avô e pedir desculpas.”
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,em-livro-de-joao-almino-licoes-de-tolerancia-e-maturidade,1693979
Em livro de João Almino, lições de tolerância e maturidade
MARIA FERNANDA RODRIGUES – O ESTADO DE S. PAULO
São Paulo, 26 de Maio de 2015
‘Enigmas da Primavera’ é protagonizado por um jovem que vive nas redes sociais e que quer entender o sentido de tolerância para o Islã
Primeiro veio a ideia de escrever um romance centrado num personagem muito jovem, que fosse movido pelas redes sociais e vivesse essa evolução recente dos contatos virtuais. Era 2010, e, no ano seguinte, o escritor e diplomata João Almino se mudaria para Madri para uma temporada profissional. Chegando lá, seu personagem, então um rascunho, foi adquirindo novas camadas porque Almino começou a se interessar pelo tema da ocupação islâmica na Península Ibérica.
Vizinho da Biblioteca Nacional da Espanha, foi ali que ele iniciou as pesquisas. Nessa época, a primavera árabe estava começando a chacoalhar o mundo e os jornais já traziam notícias sobre o islamismo radical. E a história, que ele queria, desde o princípio, que tivesse como ponto de partida uma certa desorientação do mundo atual, foi ganhando corpo. Enigmas da Primavera, lançado agora, aborda isso tudo e muito mais: família, amor, liberdade, responsabilidade, busca de identidade e de entendimento do mundo, rejeição, frustração e delírio.
O livro anterior do diplomata, ‘Cidade Livre’, venceu o Prêmio Passo Fundo Zaffari e BourbonMajnun é um garoto na casa dos 20 anos que foi criado, confortavelmente, em Brasília, pelos avós maternos – que lutaram pela democracia quando o País vivia sob a ditadura militar. O pai, que tinha 15 anos quando engravidou a mãe, morreu de overdose. Ela, viciada em heroína e com surtos psicóticos, estava internada. “Quando pensava nela, imaginava-a tomando uísque e cheirando carreiras de cocaína”, nos informa o narrador.
Frustrado por não conseguir entrar na faculdade de História, vive mergulhado em pesquisas na internet. Seu interesse: encontrar na tradição islâmica a explicação da tolerância. Sua vontade é que um ensaio sobre o tema perpasse a novela que ele está escrevendo sobre o Alhambra. Seu interesse pelo mundo árabe, porém, não é gratuito. Sua avó paterna é filha de egípcia e libanês palestino, muçulmana que não usa o véu, e é com ela – e com um professor espanhol – que ele conversa sobre essas questões.
É perdidamente apaixonado por Laila (como Majnun, o louco da história árabe do século7, é por Layla). Ela é muçulmana como a avó dele, mais velha e casada. Depois de uma reviravolta nessa sua história de amor, ele parte para Madri com duas amigas que participariam da Jornada Mundial da Juventude, o grande encontro de jovens católicos com o papa. Era a desculpa perfeita para fugir dos problemas e realizar o sonho de visitar Granada. Na verdade, seu sonho era ter vivido ali séculos atrás.
Enquanto essa história vai sendo contada, Majnun flerta com o islamismo radical, rompe com a família, perambula por Madri, delira e surta em Granada. Na volta da Espanha, encontra um jeito de fazer a diferença. Já estamos em 2013 e a população está nas ruas de todo o País protestando contra uma série de problemas. Ele também.
“É um risco muito grande fazer um romance sobre questões contemporâneas, mas sempre me interessei pelo tema do presente”, conta João Almino. Assim, tentou entrar nesses acontecimentos – além da primavera árabe e dos protestos de junho, estão ali o movimento dos indignados, da Espanha – por meio da visão subjetiva dos personagens e tentando verificar, como diz o autor, do ponto de vista emocional, como eles estão sendo mobilizados por esses acontecimentos. Assim, não importa o resultado da ação, mas, sim, sua influência naquele personagem.
Majnun poderia ser um desses jovens que deixam tudo para trás e se envolvem com grupos islâmicos radicais. “Isso tem um sentido de utopia para ele, mas uma utopia regressiva. Uma volta a um passado que nunca existiu. E essa é também uma das inspirações dos grupos radicais, que acreditam que houve essa pureza, essa inocência original, mas ela nunca existiu”, diz o autor. Sobre o perfil dos que se envolvem, ele comenta que o que há de comum é que são todos muito jovens e recém-convertidos, portanto, “pessoas com conhecimento rasteiro de alguns aspectos dessa ideologia”.
Neste sentido, a leitura de Enigmas da Primavera fornece informações ao leitor que deseja entender melhor o que está acontecendo no mundo para não radicalizar também. “Esta é uma questão que interessa a todos. Não é puramente do mundo árabe, do mundo islâmico ou da Europa. É tão importante quanto foi, nos anos 1920, 1930, a expansão da ideologia totalitária. E a expansão das novas ideologias totalitárias contemporâneas interessa ao filósofo, ao historiador e também ao ficcionista”, diz o escritor.
João Almino, que voltou a Brasília esta semana por tempo indeterminado depois de 10 anos vivendo entre Madri, Chicago e Miami, já pensa no próximo livro. A capital federal deve deixar de ser cenário. “Estou muito tentado a voltar para o Nordeste. Criei uma cidade fictícia perto de Mossoró, onde nasci, e já pus os personagens lá. Vamos ver o que sai disso.”
João Almino
Nascido em Mossoró (RN) em 1950, João Almino é autor livros de não ficção e de seis romances – conhecidos como o Quinteto de Brasília. O último da série, Cidade Livre, venceu, em 2011, o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. Em sua carreira diplomática, serviu em cidades como Madri, Chicago, Miami, Paris, Washington, São Francisco, Lisboa, Londres e Beirute, entre outras.
Confira trechos da obra:
“Uma noite, ainda em fevereiro de 2011, as conversas eram muitas e variadas em torno à grande mesa da sala de jantar. Seus avós tinham convidado um casal para jantar, uma professora de Sociologia da UnB, já aposentada, velha amiga de sua avó, e o marido, um médico que, apesar da idade, ainda se dedicava à clínica pediátrica. De comum, além de rugas e cabelos brancos, tinham morado em Paris como estudantes. Se pudesse, Majnun pensou, repetiria a vida de seus avós nos anos sessenta e setenta, em Paris ou no Oriente Médio.”
(…)
“Ao chegarem ao Pátio das Murtas, deitou-se no chão com o rosto voltado para a piscina. Apoiou a cabeça sobre a mochila, balançando-a levemente para acompanhar os movimentos brilhosos no espelho d’água. Havia vida do outro lado, lá no fundo, na realidade que se refletia, talvez uma vida melhor. Um vulto lhe apareceu bem no fundo da piscina. Agora tinha certeza. Era de fato seu avô, já moribundo, os olhos assustados, a boca muito aberta. Veio-lhe um desejo forte de mergulhar na água. O calor intenso o impelia. E não apenas o calor. Precisava fugir, fugir da polícia, fugir para outro mundo. O espelho d’água o confundia, deixava-o tonto e com enjoo, e o atraía como um ímã. Levantou-se rapidamente, vencendo com dificuldade a força que o puxava para baixo. Tonto e hipnotizado, observava a água, que tremia sob o sol. De repente sua vista escureceu e, como abatido por um tiro, caiu na água com todo o peso do corpo. Sentiu a cabeça bater no fundo da piscina, onde ficaria para sempre. Não precisaria jamais voltar à superfície, a da realidade insuportável. Ia se encontrar com o avô e pedir desculpas.”
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,em-livro-de-joao-almino-licoes-de-tolerancia-e-maturidade,1693979
Em livro de João Almino, lições de tolerância e maturidade
MARIA FERNANDA RODRIGUES – O ESTADO DE S. PAULO
São Paulo, 26 de Maio de 2015
‘Enigmas da Primavera’ é protagonizado por um jovem que vive nas redes sociais e que quer entender o sentido de tolerância para o Islã
Primeiro veio a ideia de escrever um romance centrado num personagem muito jovem, que fosse movido pelas redes sociais e vivesse essa evolução recente dos contatos virtuais. Era 2010, e, no ano seguinte, o escritor e diplomata João Almino se mudaria para Madri para uma temporada profissional. Chegando lá, seu personagem, então um rascunho, foi adquirindo novas camadas porque Almino começou a se interessar pelo tema da ocupação islâmica na Península Ibérica.
Vizinho da Biblioteca Nacional da Espanha, foi ali que ele iniciou as pesquisas. Nessa época, a primavera árabe estava começando a chacoalhar o mundo e os jornais já traziam notícias sobre o islamismo radical. E a história, que ele queria, desde o princípio, que tivesse como ponto de partida uma certa desorientação do mundo atual, foi ganhando corpo. Enigmas da Primavera, lançado agora, aborda isso tudo e muito mais: família, amor, liberdade, responsabilidade, busca de identidade e de entendimento do mundo, rejeição, frustração e delírio.
O livro anterior do diplomata, ‘Cidade Livre’, venceu o Prêmio Passo Fundo Zaffari e BourbonMajnun é um garoto na casa dos 20 anos que foi criado, confortavelmente, em Brasília, pelos avós maternos – que lutaram pela democracia quando o País vivia sob a ditadura militar. O pai, que tinha 15 anos quando engravidou a mãe, morreu de overdose. Ela, viciada em heroína e com surtos psicóticos, estava internada. “Quando pensava nela, imaginava-a tomando uísque e cheirando carreiras de cocaína”, nos informa o narrador.
Frustrado por não conseguir entrar na faculdade de História, vive mergulhado em pesquisas na internet. Seu interesse: encontrar na tradição islâmica a explicação da tolerância. Sua vontade é que um ensaio sobre o tema perpasse a novela que ele está escrevendo sobre o Alhambra. Seu interesse pelo mundo árabe, porém, não é gratuito. Sua avó paterna é filha de egípcia e libanês palestino, muçulmana que não usa o véu, e é com ela – e com um professor espanhol – que ele conversa sobre essas questões.
É perdidamente apaixonado por Laila (como Majnun, o louco da história árabe do século7, é por Layla). Ela é muçulmana como a avó dele, mais velha e casada. Depois de uma reviravolta nessa sua história de amor, ele parte para Madri com duas amigas que participariam da Jornada Mundial da Juventude, o grande encontro de jovens católicos com o papa. Era a desculpa perfeita para fugir dos problemas e realizar o sonho de visitar Granada. Na verdade, seu sonho era ter vivido ali séculos atrás.
Enquanto essa história vai sendo contada, Majnun flerta com o islamismo radical, rompe com a família, perambula por Madri, delira e surta em Granada. Na volta da Espanha, encontra um jeito de fazer a diferença. Já estamos em 2013 e a população está nas ruas de todo o País protestando contra uma série de problemas. Ele também.
“É um risco muito grande fazer um romance sobre questões contemporâneas, mas sempre me interessei pelo tema do presente”, conta João Almino. Assim, tentou entrar nesses acontecimentos – além da primavera árabe e dos protestos de junho, estão ali o movimento dos indignados, da Espanha – por meio da visão subjetiva dos personagens e tentando verificar, como diz o autor, do ponto de vista emocional, como eles estão sendo mobilizados por esses acontecimentos. Assim, não importa o resultado da ação, mas, sim, sua influência naquele personagem.
Majnun poderia ser um desses jovens que deixam tudo para trás e se envolvem com grupos islâmicos radicais. “Isso tem um sentido de utopia para ele, mas uma utopia regressiva. Uma volta a um passado que nunca existiu. E essa é também uma das inspirações dos grupos radicais, que acreditam que houve essa pureza, essa inocência original, mas ela nunca existiu”, diz o autor. Sobre o perfil dos que se envolvem, ele comenta que o que há de comum é que são todos muito jovens e recém-convertidos, portanto, “pessoas com conhecimento rasteiro de alguns aspectos dessa ideologia”.
Neste sentido, a leitura de Enigmas da Primavera fornece informações ao leitor que deseja entender melhor o que está acontecendo no mundo para não radicalizar também. “Esta é uma questão que interessa a todos. Não é puramente do mundo árabe, do mundo islâmico ou da Europa. É tão importante quanto foi, nos anos 1920, 1930, a expansão da ideologia totalitária. E a expansão das novas ideologias totalitárias contemporâneas interessa ao filósofo, ao historiador e também ao ficcionista”, diz o escritor.
João Almino, que voltou a Brasília esta semana por tempo indeterminado depois de 10 anos vivendo entre Madri, Chicago e Miami, já pensa no próximo livro. A capital federal deve deixar de ser cenário. “Estou muito tentado a voltar para o Nordeste. Criei uma cidade fictícia perto de Mossoró, onde nasci, e já pus os personagens lá. Vamos ver o que sai disso.”
João Almino
Nascido em Mossoró (RN) em 1950, João Almino é autor livros de não ficção e de seis romances – conhecidos como o Quinteto de Brasília. O último da série, Cidade Livre, venceu, em 2011, o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. Em sua carreira diplomática, serviu em cidades como Madri, Chicago, Miami, Paris, Washington, São Francisco, Lisboa, Londres e Beirute, entre outras.
Confira trechos da obra:
“Uma noite, ainda em fevereiro de 2011, as conversas eram muitas e variadas em torno à grande mesa da sala de jantar. Seus avós tinham convidado um casal para jantar, uma professora de Sociologia da UnB, já aposentada, velha amiga de sua avó, e o marido, um médico que, apesar da idade, ainda se dedicava à clínica pediátrica. De comum, além de rugas e cabelos brancos, tinham morado em Paris como estudantes. Se pudesse, Majnun pensou, repetiria a vida de seus avós nos anos sessenta e setenta, em Paris ou no Oriente Médio.”
(…)
“Ao chegarem ao Pátio das Murtas, deitou-se no chão com o rosto voltado para a piscina. Apoiou a cabeça sobre a mochila, balançando-a levemente para acompanhar os movimentos brilhosos no espelho d’água. Havia vida do outro lado, lá no fundo, na realidade que se refletia, talvez uma vida melhor. Um vulto lhe apareceu bem no fundo da piscina. Agora tinha certeza. Era de fato seu avô, já moribundo, os olhos assustados, a boca muito aberta. Veio-lhe um desejo forte de mergulhar na água. O calor intenso o impelia. E não apenas o calor. Precisava fugir, fugir da polícia, fugir para outro mundo. O espelho d’água o confundia, deixava-o tonto e com enjoo, e o atraía como um ímã. Levantou-se rapidamente, vencendo com dificuldade a força que o puxava para baixo. Tonto e hipnotizado, observava a água, que tremia sob o sol. De repente sua vista escureceu e, como abatido por um tiro, caiu na água com todo o peso do corpo. Sentiu a cabeça bater no fundo da piscina, onde ficaria para sempre. Não precisaria jamais voltar à superfície, a da realidade insuportável. Ia se encontrar com o avô e pedir desculpas.”
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,em-livro-de-joao-almino-licoes-de-tolerancia-e-maturidade,1693979
Em livro de João Almino, lições de tolerância e maturidade
MARIA FERNANDA RODRIGUES – O ESTADO DE S. PAULO
São Paulo, 26 de Maio de 2015
‘Enigmas da Primavera’ é protagonizado por um jovem que vive nas redes sociais e que quer entender o sentido de tolerância para o Islã
Primeiro veio a ideia de escrever um romance centrado num personagem muito jovem, que fosse movido pelas redes sociais e vivesse essa evolução recente dos contatos virtuais. Era 2010, e, no ano seguinte, o escritor e diplomata João Almino se mudaria para Madri para uma temporada profissional. Chegando lá, seu personagem, então um rascunho, foi adquirindo novas camadas porque Almino começou a se interessar pelo tema da ocupação islâmica na Península Ibérica.
Vizinho da Biblioteca Nacional da Espanha, foi ali que ele iniciou as pesquisas. Nessa época, a primavera árabe estava começando a chacoalhar o mundo e os jornais já traziam notícias sobre o islamismo radical. E a história, que ele queria, desde o princípio, que tivesse como ponto de partida uma certa desorientação do mundo atual, foi ganhando corpo. Enigmas da Primavera, lançado agora, aborda isso tudo e muito mais: família, amor, liberdade, responsabilidade, busca de identidade e de entendimento do mundo, rejeição, frustração e delírio.
O livro anterior do diplomata, ‘Cidade Livre’, venceu o Prêmio Passo Fundo Zaffari e BourbonMajnun é um garoto na casa dos 20 anos que foi criado, confortavelmente, em Brasília, pelos avós maternos – que lutaram pela democracia quando o País vivia sob a ditadura militar. O pai, que tinha 15 anos quando engravidou a mãe, morreu de overdose. Ela, viciada em heroína e com surtos psicóticos, estava internada. “Quando pensava nela, imaginava-a tomando uísque e cheirando carreiras de cocaína”, nos informa o narrador.
Frustrado por não conseguir entrar na faculdade de História, vive mergulhado em pesquisas na internet. Seu interesse: encontrar na tradição islâmica a explicação da tolerância. Sua vontade é que um ensaio sobre o tema perpasse a novela que ele está escrevendo sobre o Alhambra. Seu interesse pelo mundo árabe, porém, não é gratuito. Sua avó paterna é filha de egípcia e libanês palestino, muçulmana que não usa o véu, e é com ela – e com um professor espanhol – que ele conversa sobre essas questões.
É perdidamente apaixonado por Laila (como Majnun, o louco da história árabe do século7, é por Layla). Ela é muçulmana como a avó dele, mais velha e casada. Depois de uma reviravolta nessa sua história de amor, ele parte para Madri com duas amigas que participariam da Jornada Mundial da Juventude, o grande encontro de jovens católicos com o papa. Era a desculpa perfeita para fugir dos problemas e realizar o sonho de visitar Granada. Na verdade, seu sonho era ter vivido ali séculos atrás.
Enquanto essa história vai sendo contada, Majnun flerta com o islamismo radical, rompe com a família, perambula por Madri, delira e surta em Granada. Na volta da Espanha, encontra um jeito de fazer a diferença. Já estamos em 2013 e a população está nas ruas de todo o País protestando contra uma série de problemas. Ele também.
“É um risco muito grande fazer um romance sobre questões contemporâneas, mas sempre me interessei pelo tema do presente”, conta João Almino. Assim, tentou entrar nesses acontecimentos – além da primavera árabe e dos protestos de junho, estão ali o movimento dos indignados, da Espanha – por meio da visão subjetiva dos personagens e tentando verificar, como diz o autor, do ponto de vista emocional, como eles estão sendo mobilizados por esses acontecimentos. Assim, não importa o resultado da ação, mas, sim, sua influência naquele personagem.
Majnun poderia ser um desses jovens que deixam tudo para trás e se envolvem com grupos islâmicos radicais. “Isso tem um sentido de utopia para ele, mas uma utopia regressiva. Uma volta a um passado que nunca existiu. E essa é também uma das inspirações dos grupos radicais, que acreditam que houve essa pureza, essa inocência original, mas ela nunca existiu”, diz o autor. Sobre o perfil dos que se envolvem, ele comenta que o que há de comum é que são todos muito jovens e recém-convertidos, portanto, “pessoas com conhecimento rasteiro de alguns aspectos dessa ideologia”.
Neste sentido, a leitura de Enigmas da Primavera fornece informações ao leitor que deseja entender melhor o que está acontecendo no mundo para não radicalizar também. “Esta é uma questão que interessa a todos. Não é puramente do mundo árabe, do mundo islâmico ou da Europa. É tão importante quanto foi, nos anos 1920, 1930, a expansão da ideologia totalitária. E a expansão das novas ideologias totalitárias contemporâneas interessa ao filósofo, ao historiador e também ao ficcionista”, diz o escritor.
João Almino, que voltou a Brasília esta semana por tempo indeterminado depois de 10 anos vivendo entre Madri, Chicago e Miami, já pensa no próximo livro. A capital federal deve deixar de ser cenário. “Estou muito tentado a voltar para o Nordeste. Criei uma cidade fictícia perto de Mossoró, onde nasci, e já pus os personagens lá. Vamos ver o que sai disso.”
João Almino
Nascido em Mossoró (RN) em 1950, João Almino é autor livros de não ficção e de seis romances – conhecidos como o Quinteto de Brasília. O último da série, Cidade Livre, venceu, em 2011, o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. Em sua carreira diplomática, serviu em cidades como Madri, Chicago, Miami, Paris, Washington, São Francisco, Lisboa, Londres e Beirute, entre outras.
Confira trechos da obra:
“Uma noite, ainda em fevereiro de 2011, as conversas eram muitas e variadas em torno à grande mesa da sala de jantar. Seus avós tinham convidado um casal para jantar, uma professora de Sociologia da UnB, já aposentada, velha amiga de sua avó, e o marido, um médico que, apesar da idade, ainda se dedicava à clínica pediátrica. De comum, além de rugas e cabelos brancos, tinham morado em Paris como estudantes. Se pudesse, Majnun pensou, repetiria a vida de seus avós nos anos sessenta e setenta, em Paris ou no Oriente Médio.”
(…)
“Ao chegarem ao Pátio das Murtas, deitou-se no chão com o rosto voltado para a piscina. Apoiou a cabeça sobre a mochila, balançando-a levemente para acompanhar os movimentos brilhosos no espelho d’água. Havia vida do outro lado, lá no fundo, na realidade que se refletia, talvez uma vida melhor. Um vulto lhe apareceu bem no fundo da piscina. Agora tinha certeza. Era de fato seu avô, já moribundo, os olhos assustados, a boca muito aberta. Veio-lhe um desejo forte de mergulhar na água. O calor intenso o impelia. E não apenas o calor. Precisava fugir, fugir da polícia, fugir para outro mundo. O espelho d’água o confundia, deixava-o tonto e com enjoo, e o atraía como um ímã. Levantou-se rapidamente, vencendo com dificuldade a força que o puxava para baixo. Tonto e hipnotizado, observava a água, que tremia sob o sol. De repente sua vista escureceu e, como abatido por um tiro, caiu na água com todo o peso do corpo. Sentiu a cabeça bater no fundo da piscina, onde ficaria para sempre. Não precisaria jamais voltar à superfície, a da realidade insuportável. Ia se encontrar com o avô e pedir desculpas.”
http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,em-livro-de-joao-almino-licoes-de-tolerancia-e-maturidade,1693979