ENTRE A FOTOGRAFIA E O ROMANCE. João Luiz Lafetá, Folha de S. Paulo, sobre Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, de João Almino

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Folha de S. Paulo, Ilustrada, domingo, 25 de outubro de 1987 

ENTRE A FOTOGRAFIA E O ROMANCE

João Luiz Lafetá
Especial para a Folha

Falando certa vez sobre conto e romance, Cortázar comparou-os à fotografia e ao cinema. A dupla analogia me ocorre de imediato, depois da leitura de “Idéias para onde passar o fim do mundo”, primeira “ficção” (digamos assim) de João Almino. Talvez porque o autor, diplomata e cientista político, seja também excelente fotógrafo. Talvez porque o ponto de partida do enredo seja uma foto feita por Cadu durante a festa de posse do primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antonio. Talvez, ainda, por outros motivos mais complicados, que se relacionam com a composição e a estrutura do livro.

A idéia inicial parece simples: o narrador parte da fotografia da posse e concebe o roteiro de um filme. Do instantâneo, momento coagulado, se desenvolveria a sequência, o filme feito de instantâneos articulando-se entre si. Mas já aí, no primeiro capítulo, começam os problemas. Como desembaraçar as personagens da fixidez de sua aparência, movê-las por outros espaços, comovê-las? Se a foto insinua o que está fora dela, inspira o narrador e o instiga a recompor uma totalidade, é que ela, em si, não basta -e o narrador quer mais, quer o movimento da vida, ilusão de filme ou romance.

O leitor, que já passou por John dos Passos, Aldous Huxley, o próprio Cortázar ou Ivan Ãngelo (entre outros), pode pensar que não há problema algum. De fato, a técnica é conhecida: painel, contraponto, jogo de montagem, as linhas das personagens vão se cruzando, às vezes ao acaso, às vezes obedecendo a determinadas necessidades, até que das fotografias saia o filme, ou dos contos nasça o romance.

Linhas paralelas

Pode não ser tão simples. João Almino sabe contar histórias com habilidade e demonstra isso em vários capítulos. No terceiro, por exemplo, em que compõe a figura de Berenice, camponesa nascida do interior do Ceará, que vai ser empregada doméstica em Brasília, recebe toda a carga de experiência da cidade e, sozinha e grávida, retorna ao sertão. A delicadeza com que o autor trata a interioridade de Berenice revaloriza o tema regionalista e ultrapassa a caricatura engajada a que fomos tão habituados.

Há outras passagens igualmente bem realizadas: a história de Eva Fernandes, irmã adotiva do presidente Paulo Antonio, e certos trechos (embora não tudo) dedicados à vidente Iris, personagem estranha que nos leva a uma viagem entre a profecia e á loucura. A capacidade de criar “biografias” é admirável em João Almino, tanto mais que Berenice, Eva e Iris são muito diferentes entre si e devem ter exigido grande esforço artístico de recriação.

Sinto, apenas, que este efeito não se estenda ao conjunto do livro. Isoladas, as personagens têm força, vivem suas vidas, movimentam-se dentro de mundos delineados com verossimilhança, convicção e bom estilo. No entanto, deve haver algum problema de montagem, pois os melhores efeitos se perdem na passagem de um trecho a outro e não conseguem dominar o livro todo. É como se as fotografias não virassem filme, ou os contos reunidos não resultassem em romance…

Mas sai um livro. E, embora hesitando em chamá-lo de “romance”, não hesito em recomendá-lo ao leitor interessado em literatura brasileira e em algo mais refletido que os simples best-sellers. Ele verá que as várias histórias do livro apontam, como alegoria fantasmagórica, para as crises do Brasil, as nossas muitas crises individuais -e as crises da narrativa.

JOÃO LUIZ LAFETÁ, é professor de Teoria Literária na USP.

Folha de S. Paulo, Ilustrada, domingo, 25 de outubro de 1987 

ENTRE A FOTOGRAFIA E O ROMANCE

João Luiz Lafetá
Especial para a Folha

Falando certa vez sobre conto e romance, Cortázar comparou-os à fotografia e ao cinema. A dupla analogia me ocorre de imediato, depois da leitura de “Idéias para onde passar o fim do mundo”, primeira “ficção” (digamos assim) de João Almino. Talvez porque o autor, diplomata e cientista político, seja também excelente fotógrafo. Talvez porque o ponto de partida do enredo seja uma foto feita por Cadu durante a festa de posse do primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antonio. Talvez, ainda, por outros motivos mais complicados, que se relacionam com a composição e a estrutura do livro.

A idéia inicial parece simples: o narrador parte da fotografia da posse e concebe o roteiro de um filme. Do instantâneo, momento coagulado, se desenvolveria a sequência, o filme feito de instantâneos articulando-se entre si. Mas já aí, no primeiro capítulo, começam os problemas. Como desembaraçar as personagens da fixidez de sua aparência, movê-las por outros espaços, comovê-las? Se a foto insinua o que está fora dela, inspira o narrador e o instiga a recompor uma totalidade, é que ela, em si, não basta -e o narrador quer mais, quer o movimento da vida, ilusão de filme ou romance.

O leitor, que já passou por John dos Passos, Aldous Huxley, o próprio Cortázar ou Ivan Ãngelo (entre outros), pode pensar que não há problema algum. De fato, a técnica é conhecida: painel, contraponto, jogo de montagem, as linhas das personagens vão se cruzando, às vezes ao acaso, às vezes obedecendo a determinadas necessidades, até que das fotografias saia o filme, ou dos contos nasça o romance.

Linhas paralelas

Pode não ser tão simples. João Almino sabe contar histórias com habilidade e demonstra isso em vários capítulos. No terceiro, por exemplo, em que compõe a figura de Berenice, camponesa nascida do interior do Ceará, que vai ser empregada doméstica em Brasília, recebe toda a carga de experiência da cidade e, sozinha e grávida, retorna ao sertão. A delicadeza com que o autor trata a interioridade de Berenice revaloriza o tema regionalista e ultrapassa a caricatura engajada a que fomos tão habituados.

Há outras passagens igualmente bem realizadas: a história de Eva Fernandes, irmã adotiva do presidente Paulo Antonio, e certos trechos (embora não tudo) dedicados à vidente Iris, personagem estranha que nos leva a uma viagem entre a profecia e á loucura. A capacidade de criar “biografias” é admirável em João Almino, tanto mais que Berenice, Eva e Iris são muito diferentes entre si e devem ter exigido grande esforço artístico de recriação.

Sinto, apenas, que este efeito não se estenda ao conjunto do livro. Isoladas, as personagens têm força, vivem suas vidas, movimentam-se dentro de mundos delineados com verossimilhança, convicção e bom estilo. No entanto, deve haver algum problema de montagem, pois os melhores efeitos se perdem na passagem de um trecho a outro e não conseguem dominar o livro todo. É como se as fotografias não virassem filme, ou os contos reunidos não resultassem em romance…

Mas sai um livro. E, embora hesitando em chamá-lo de “romance”, não hesito em recomendá-lo ao leitor interessado em literatura brasileira e em algo mais refletido que os simples best-sellers. Ele verá que as várias histórias do livro apontam, como alegoria fantasmagórica, para as crises do Brasil, as nossas muitas crises individuais -e as crises da narrativa.

JOÃO LUIZ LAFETÁ, é professor de Teoria Literária na USP.

Folha de S. Paulo, Ilustrada, domingo, 25 de outubro de 1987 

ENTRE A FOTOGRAFIA E O ROMANCE

João Luiz Lafetá
Especial para a Folha

Falando certa vez sobre conto e romance, Cortázar comparou-os à fotografia e ao cinema. A dupla analogia me ocorre de imediato, depois da leitura de “Idéias para onde passar o fim do mundo”, primeira “ficção” (digamos assim) de João Almino. Talvez porque o autor, diplomata e cientista político, seja também excelente fotógrafo. Talvez porque o ponto de partida do enredo seja uma foto feita por Cadu durante a festa de posse do primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antonio. Talvez, ainda, por outros motivos mais complicados, que se relacionam com a composição e a estrutura do livro.

A idéia inicial parece simples: o narrador parte da fotografia da posse e concebe o roteiro de um filme. Do instantâneo, momento coagulado, se desenvolveria a sequência, o filme feito de instantâneos articulando-se entre si. Mas já aí, no primeiro capítulo, começam os problemas. Como desembaraçar as personagens da fixidez de sua aparência, movê-las por outros espaços, comovê-las? Se a foto insinua o que está fora dela, inspira o narrador e o instiga a recompor uma totalidade, é que ela, em si, não basta -e o narrador quer mais, quer o movimento da vida, ilusão de filme ou romance.

O leitor, que já passou por John dos Passos, Aldous Huxley, o próprio Cortázar ou Ivan Ãngelo (entre outros), pode pensar que não há problema algum. De fato, a técnica é conhecida: painel, contraponto, jogo de montagem, as linhas das personagens vão se cruzando, às vezes ao acaso, às vezes obedecendo a determinadas necessidades, até que das fotografias saia o filme, ou dos contos nasça o romance.

Linhas paralelas

Pode não ser tão simples. João Almino sabe contar histórias com habilidade e demonstra isso em vários capítulos. No terceiro, por exemplo, em que compõe a figura de Berenice, camponesa nascida do interior do Ceará, que vai ser empregada doméstica em Brasília, recebe toda a carga de experiência da cidade e, sozinha e grávida, retorna ao sertão. A delicadeza com que o autor trata a interioridade de Berenice revaloriza o tema regionalista e ultrapassa a caricatura engajada a que fomos tão habituados.

Há outras passagens igualmente bem realizadas: a história de Eva Fernandes, irmã adotiva do presidente Paulo Antonio, e certos trechos (embora não tudo) dedicados à vidente Iris, personagem estranha que nos leva a uma viagem entre a profecia e á loucura. A capacidade de criar “biografias” é admirável em João Almino, tanto mais que Berenice, Eva e Iris são muito diferentes entre si e devem ter exigido grande esforço artístico de recriação.

Sinto, apenas, que este efeito não se estenda ao conjunto do livro. Isoladas, as personagens têm força, vivem suas vidas, movimentam-se dentro de mundos delineados com verossimilhança, convicção e bom estilo. No entanto, deve haver algum problema de montagem, pois os melhores efeitos se perdem na passagem de um trecho a outro e não conseguem dominar o livro todo. É como se as fotografias não virassem filme, ou os contos reunidos não resultassem em romance…

Mas sai um livro. E, embora hesitando em chamá-lo de “romance”, não hesito em recomendá-lo ao leitor interessado em literatura brasileira e em algo mais refletido que os simples best-sellers. Ele verá que as várias histórias do livro apontam, como alegoria fantasmagórica, para as crises do Brasil, as nossas muitas crises individuais -e as crises da narrativa.

JOÃO LUIZ LAFETÁ, é professor de Teoria Literária na USP.

Folha de S. Paulo, Ilustrada, domingo, 25 de outubro de 1987 

ENTRE A FOTOGRAFIA E O ROMANCE

João Luiz Lafetá
Especial para a Folha

Falando certa vez sobre conto e romance, Cortázar comparou-os à fotografia e ao cinema. A dupla analogia me ocorre de imediato, depois da leitura de “Idéias para onde passar o fim do mundo”, primeira “ficção” (digamos assim) de João Almino. Talvez porque o autor, diplomata e cientista político, seja também excelente fotógrafo. Talvez porque o ponto de partida do enredo seja uma foto feita por Cadu durante a festa de posse do primeiro presidente negro do Brasil, Paulo Antonio. Talvez, ainda, por outros motivos mais complicados, que se relacionam com a composição e a estrutura do livro.

A idéia inicial parece simples: o narrador parte da fotografia da posse e concebe o roteiro de um filme. Do instantâneo, momento coagulado, se desenvolveria a sequência, o filme feito de instantâneos articulando-se entre si. Mas já aí, no primeiro capítulo, começam os problemas. Como desembaraçar as personagens da fixidez de sua aparência, movê-las por outros espaços, comovê-las? Se a foto insinua o que está fora dela, inspira o narrador e o instiga a recompor uma totalidade, é que ela, em si, não basta -e o narrador quer mais, quer o movimento da vida, ilusão de filme ou romance.

O leitor, que já passou por John dos Passos, Aldous Huxley, o próprio Cortázar ou Ivan Ãngelo (entre outros), pode pensar que não há problema algum. De fato, a técnica é conhecida: painel, contraponto, jogo de montagem, as linhas das personagens vão se cruzando, às vezes ao acaso, às vezes obedecendo a determinadas necessidades, até que das fotografias saia o filme, ou dos contos nasça o romance.

Linhas paralelas

Pode não ser tão simples. João Almino sabe contar histórias com habilidade e demonstra isso em vários capítulos. No terceiro, por exemplo, em que compõe a figura de Berenice, camponesa nascida do interior do Ceará, que vai ser empregada doméstica em Brasília, recebe toda a carga de experiência da cidade e, sozinha e grávida, retorna ao sertão. A delicadeza com que o autor trata a interioridade de Berenice revaloriza o tema regionalista e ultrapassa a caricatura engajada a que fomos tão habituados.

Há outras passagens igualmente bem realizadas: a história de Eva Fernandes, irmã adotiva do presidente Paulo Antonio, e certos trechos (embora não tudo) dedicados à vidente Iris, personagem estranha que nos leva a uma viagem entre a profecia e á loucura. A capacidade de criar “biografias” é admirável em João Almino, tanto mais que Berenice, Eva e Iris são muito diferentes entre si e devem ter exigido grande esforço artístico de recriação.

Sinto, apenas, que este efeito não se estenda ao conjunto do livro. Isoladas, as personagens têm força, vivem suas vidas, movimentam-se dentro de mundos delineados com verossimilhança, convicção e bom estilo. No entanto, deve haver algum problema de montagem, pois os melhores efeitos se perdem na passagem de um trecho a outro e não conseguem dominar o livro todo. É como se as fotografias não virassem filme, ou os contos reunidos não resultassem em romance…

Mas sai um livro. E, embora hesitando em chamá-lo de “romance”, não hesito em recomendá-lo ao leitor interessado em literatura brasileira e em algo mais refletido que os simples best-sellers. Ele verá que as várias histórias do livro apontam, como alegoria fantasmagórica, para as crises do Brasil, as nossas muitas crises individuais -e as crises da narrativa.

JOÃO LUIZ LAFETÁ, é professor de Teoria Literária na USP.