ENTREVISTA A José Leonardo Tonus, Université de Paris-SorbonneENTREVISTA A José Leonardo Tonus, Université de Paris-SorbonneENTREVISTA A José Leonardo Tonus, Université de Paris-SorbonneENTREVISTA A José Leonardo Tonus, Université de Paris-Sorbonne

/

Presente em grande parte de seus romances, o universo brasiliense surge, no último trabalho de João Almino, como um espaço mítico que o olhar descentrado do narrador-personagem vem revelar. J.A, um escritor sem editora, relata ao longo deste romance sua infância vivida no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite habitada por uma horda anônima de operários originários dos quatro cantos do Brasil. A história começa com um prológo, cuja ambiguidade em torno da voz autorial/atorial cria, à maneira machadiana, um jogo de falsos semblantes. Se, ao mimar o regime autobiográfico, (“eis o que eu vivi, eis o que eu escrevi”), o narrador-personagem responde ao protocolo da leitura memorialística, sua ficcionalização tende a atenuar e a diluir as tênues fronteiras existentes entre história e ficção, entre a verdade e a mentira.
Elaborada a partir de um suporte narrativo virtual em rede (o blog), a estrutura romanesca de Cidade Livre refuta as noções clássicas da autoria textual. Com efeito, ao acentuar os efeitos de dissimulação, o autor assegura ao texto uma configuração caleidoscópica capaz de neutralizar a articulação linear e unívoca das informações veiculadas. Em Cidade Livre, estas apresentam-se, antes, sob a forma de sequências associativas, convergentes e/ou divergentes, que reavaliam, constantemente, o conjunto dos dispositivos escriturais : instâncias narrativas, focalização, temporalidade e espacialidade. Ao olhar irônico e desabusado de J.A., justapõem-se, ao longo do texto, as lembranças fragmentadas de seu pai adotivo registradas num diário lacunar, o testemunho de personagens históricas ficcionalizadas, os comentários dos leitores virtuais do blog que destilam, completam ou alteram as informações diegéticas e, finalmente, o olhar admirativo da população anônima de candangos que, em Brasília, acreditava ver o raiar de uma nova era para o país. A intriga articula-se em torno do relato de sete noites de vigília durante as quais J.A acompanha a agonia do pai até a sua morte. O corte temporal aqui escolhido pelo autor confere ao texto uma dimensão mítico-simbólica inscrevendo-o na tradição dos mitos de restauração cíclica. Romance de fundação, ou de anti-fundação, Cidade Livre conduz o leitor pelos abismos labirínticos de uma memória individual e coletiva estilhaçada que, através das brechas, frestas, insterstícios e desvãos da história não-oficial do país, recompõe o momento inaugural do Brasil moderno. A euforia e o otimismo da construção de Brasília contrastam, ao longo do romance, com as desilusões familiares e o desencanto dos trabalhadores locais, dentre os quais, Valdivino, assassinado no dia da inauguração da capital brasileira. Sua morte misteriosa constitui o motor dramático e interpretativo desta narrativa que concentra no candango todas as contradições do devir da nação brasileira, dividida entre sua ancoragem rural e urbana, seu ímpeto modernista e tradicional, sua racionalidade e irracionalidade profundas. A localização do romance no universo brasiliense é neste sentido significativa. Espaço movediço e desprovido de história, Brasilia é em Cidade Livre um território sem raízes povoado de identidades precárias, órfãs e bastardas, em suma : o espaço das utopias e distopias de um Brasil que, em construção, ja é ruína.

– Muitos críticos têm sublinhado, neste seu último trabalho, sua preocupação com o resgaste de um material histórico brasiliense. Poderia nos falar um pouco da gênesis do romance, das fontes utilizadas e do processo de redação?
João Almino : Não é um romance histórico. Todos os personagens centrais bem como as tramas que dão corpo ao romance são puras criações literárias. As memórias do narrador, João, são inventadas. O J.A. do prefácio não passa de uma referência jocosa ao M. de A. do Memorial de Aires. No entanto, como a história se passa no momento da construção de Brasília e na “Cidade Livre”, a cidade que foi construída para ser destruída no dia da inauguração de Brasília, adicionei ao texto elementos e personagens históricos que, embora secundários, têm a função de criar uma atmosfera de verossimilhança para o conjunto das histórias. Havia perseguido o tema do novo, da criação e da fundação nos romances anteriores e, desta vez, resolvi revisitá-lo sob a ótica da própria construção da cidade. Uma parte substancial do material que eu havia acumulado sobre Brasília ao longo dos anos ainda não havia utilizado na minha ficção. A isso somei uma pesquisa em bibliotecas norte-americanas, onde encontrei várias dezenas de livros, revistas, folhetos e artigos de jornal sobre Brasília nos anos de sua construção.

– A crítica sublinha uma certa predominância do espaço brasiliense em sua obra. Por que a escolha de Brasília, sobretudo enquanto elaboração mítica? Em sua opinião, de que maneira o mito permite uma releitura da história oficial?
João Almino : O mito tem um sentido de permanência maior do que a realidade histórica. Não pode ser facilmente destruído. Pode também oferecer uma chave de interpretação de uma história profunda e nem sempre aparente. Brasília tem uma carga simbólica como poucas cidades do mundo. Seu projeto acompanhou toda a história do Brasil independente e veio a ser identificado com a aspiração de modernidade do País. Brasília é, assim, uma ideia de Brasil e uma metáfora do mundo moderno. Escrever sobre Brasília é escrever sobre o Brasil e sobre os dilemas, contradições e tensões desse mundo moderno. Brasília pode também servir de suporte a um ideário estético-literário. Uma cidade desenraizada, ainda um vazio com pouca tradição, povoada de migrantes, com uma identidade múltipla, cambiante e aberta, cria um espaço de possibilidades que legitima a liberdade de imaginação. Pode também ser propícia a uma literatura que procura evitar os estereótipos. Seu caráter universal favorece uma tomada de partido contra o pitoresco. Em Brasília, existe uma tensão exacerbada entre a geometria do plano e a criatividade espontânea da vida cotidiana, entre a ordem e o caos, entre o futurista e o arcaico, entre o projeto racional e moderno e expressões pré-modernas e irracionais, presentes, por exemplo, na experiência de suas várias seitas místicas. E tudo isso é um ótimo material para a literatura.

– Cidade Livre inscreve-se na dinâmica dos mitos de fundação. Por que estabelecer o mito de fundação a partir da categorias da orfandade? Compartilha a opinião do escritor e sociólogo canadense Gérard Bouchard que vê na bastardia uma chave interpretativa para se pensar a identidade dos países no Novo Mundo?
João Almino : Sim, somos povos bastardos, e esta é uma de nossas qualidades. Ao invés de pensar numa identidade referida a raízes ou tradições, prefiro trabalhar com a hipótese da ocupação de um espaço vazio, com a possibilidade de criação livre e de assimilação sem preconceitos das mais diferentes fontes. A orfandade implica maior liberdade e também maior responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.

– O romance Cidade livre apresenta uma nítida estrutura labiríntica. Seria esta a materialização de um espaço fechado que enclausura seus habitantes ou antes, como diria Octavio Paz, a sugestão de um território fechado com poucas saídas? Neste sentido, que saídas proporciona às suas personagens no final do romance?
João Almino : Você tem razão, há uma estrutura labiríntica, com arquitetura concêntrica. O personagem narra suas memórias a partir de suas próprias recordações, de uma conversa de sete noites com seu pai moribundo e da leitura de papéis que haviam sido enterrados pelo pai no dia da inauguração da cidade. Essas memórias, inicialmente escritas cerca de seis meses após a morte do pai, são postadas por partes num blog e comentadas por leitores. O que lemos, contudo, não é o processo da escrita, mas sim o texto na sua forma final, após incorporadas as opiniões ou comentários dos leitores e após feita uma revisão por João Almino, que, apesar da coincidência com o nome do autor, não deixa de ser também um personagem fictício. Os tempos se justapõem no relato: o da conversa com o pai, o do momento da escrita, aquele após a revisão final e o do passado a que estão referidas as conversas do pai e as recordações do menino. O tempo em si é um labirinto, já dizia Borges. Talvez tenha sido por causa desse outro labirinto, o do tempo, que Teseu um dia perdeu Ariadna, depois de matar o Minotauro e ter seguido o fio que ela havia tecido para que ele saísse do labirinto e voltasse a ela. A literatura é como esse fio de Ariadna, mas não dá garantias a ninguém. Gostaria de que, ao lidar com os becos sem saída do labirinto, que levam à prisão, à morte, ao desespero, à desilusão ou ao misticismo, o leitor pudesse abrir mais seus horizontes para lidar com as dificuldades da vida. Mas não posso estar certo disso. A única saída clara do labirinto, entre os personagens, é a da escrita. Com papéis desenterrados, a conversa com um moribundo, a dúvida em torno a um possível assassinato ou ainda o próprio fracasso, é possível ao filho construir o relato que o pai não conseguira.

– Seu último romance apóia-se, em grande parte, num jogo de dissimulações e de simulacros. De que maneira Cidade Livre questiona o valor e o papel do relato histórico? Por que se servir do indízivel histórico como transmissor da verdade ou de uma impossibilidade de se restaurar a verdade?
João Almino : Não questiono o valor e o papel do relato histórico. No entanto, por definição a ficção, para que seja ficção, não pode se confundir com a história. Era o que já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance: o historiador registra, enquanto o romancista deve criar, e uma parte do material com o qual este trabalha não está facilmente disponível para o historiador, pois pertence a um universo interior de difícil acesso, em que imperam as paixões, os sonhos, as alegrias, as tristezas e angústias. O trabalho do ficcionista deve incluir também o duvidoso, o fragmentário, o incompleto, o recôndito e obscuro. Esse é, aliás, o material por excelência do romance, pois a verdade transparente e a certeza demonstrável cabem numa tese ou num tratado científico. Um questionamento metódico pode ser feito num ensaio filosófico. Escrevemos ficção quando todas as outras formas de expressão são insuficientes para dizer o que queremos dizer ou o que nem sequer queremos dizer, por não conhecermos ainda o território em que pisamos. Pois a ficção é uma busca, uma interrogação, uma imersão nas emoções e uma aventura do pensamento.

– Como encara hoje a produção literária contemporânea no Brasil? De que autores nacionais sua escrita e preocupações estéticas tendem a se aproximar?
Jão Almino : Posso apenas dizer, sem com isso acreditar em afinidades ou influências, que os autores brasileiros de que mais gosto e que mais li e reli são Machado de Assis, Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Sei que esta lista tão pequena deixa de lado alguns dos gigantes de nossa literatura, mas estes são os três aos quais sempre volto. Quanto à produção contemporânea, creio que passa por um bom momento. É diversificada, rica e criativa.

Presente em grande parte de seus romances, o universo brasiliense surge, no último trabalho de João Almino, como um espaço mítico que o olhar descentrado do narrador-personagem vem revelar. J.A, um escritor sem editora, relata ao longo deste romance sua infância vivida no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite habitada por uma horda anônima de operários originários dos quatro cantos do Brasil. A história começa com um prológo, cuja ambiguidade em torno da voz autorial/atorial cria, à maneira machadiana, um jogo de falsos semblantes. Se, ao mimar o regime autobiográfico, (“eis o que eu vivi, eis o que eu escrevi”), o narrador-personagem responde ao protocolo da leitura memorialística, sua ficcionalização tende a atenuar e a diluir as tênues fronteiras existentes entre história e ficção, entre a verdade e a mentira.
Elaborada a partir de um suporte narrativo virtual em rede (o blog), a estrutura romanesca de Cidade Livre refuta as noções clássicas da autoria textual. Com efeito, ao acentuar os efeitos de dissimulação, o autor assegura ao texto uma configuração caleidoscópica capaz de neutralizar a articulação linear e unívoca das informações veiculadas. Em Cidade Livre, estas apresentam-se, antes, sob a forma de sequências associativas, convergentes e/ou divergentes, que reavaliam, constantemente, o conjunto dos dispositivos escriturais : instâncias narrativas, focalização, temporalidade e espacialidade. Ao olhar irônico e desabusado de J.A., justapõem-se, ao longo do texto, as lembranças fragmentadas de seu pai adotivo registradas num diário lacunar, o testemunho de personagens históricas ficcionalizadas, os comentários dos leitores virtuais do blog que destilam, completam ou alteram as informações diegéticas e, finalmente, o olhar admirativo da população anônima de candangos que, em Brasília, acreditava ver o raiar de uma nova era para o país. A intriga articula-se em torno do relato de sete noites de vigília durante as quais J.A acompanha a agonia do pai até a sua morte. O corte temporal aqui escolhido pelo autor confere ao texto uma dimensão mítico-simbólica inscrevendo-o na tradição dos mitos de restauração cíclica. Romance de fundação, ou de anti-fundação, Cidade Livre conduz o leitor pelos abismos labirínticos de uma memória individual e coletiva estilhaçada que, através das brechas, frestas, insterstícios e desvãos da história não-oficial do país, recompõe o momento inaugural do Brasil moderno. A euforia e o otimismo da construção de Brasília contrastam, ao longo do romance, com as desilusões familiares e o desencanto dos trabalhadores locais, dentre os quais, Valdivino, assassinado no dia da inauguração da capital brasileira. Sua morte misteriosa constitui o motor dramático e interpretativo desta narrativa que concentra no candango todas as contradições do devir da nação brasileira, dividida entre sua ancoragem rural e urbana, seu ímpeto modernista e tradicional, sua racionalidade e irracionalidade profundas. A localização do romance no universo brasiliense é neste sentido significativa. Espaço movediço e desprovido de história, Brasilia é em Cidade Livre um território sem raízes povoado de identidades precárias, órfãs e bastardas, em suma : o espaço das utopias e distopias de um Brasil que, em construção, ja é ruína.

– Muitos críticos têm sublinhado, neste seu último trabalho, sua preocupação com o resgaste de um material histórico brasiliense. Poderia nos falar um pouco da gênesis do romance, das fontes utilizadas e do processo de redação?
João Almino : Não é um romance histórico. Todos os personagens centrais bem como as tramas que dão corpo ao romance são puras criações literárias. As memórias do narrador, João, são inventadas. O J.A. do prefácio não passa de uma referência jocosa ao M. de A. do Memorial de Aires. No entanto, como a história se passa no momento da construção de Brasília e na “Cidade Livre”, a cidade que foi construída para ser destruída no dia da inauguração de Brasília, adicionei ao texto elementos e personagens históricos que, embora secundários, têm a função de criar uma atmosfera de verossimilhança para o conjunto das histórias. Havia perseguido o tema do novo, da criação e da fundação nos romances anteriores e, desta vez, resolvi revisitá-lo sob a ótica da própria construção da cidade. Uma parte substancial do material que eu havia acumulado sobre Brasília ao longo dos anos ainda não havia utilizado na minha ficção. A isso somei uma pesquisa em bibliotecas norte-americanas, onde encontrei várias dezenas de livros, revistas, folhetos e artigos de jornal sobre Brasília nos anos de sua construção.

– A crítica sublinha uma certa predominância do espaço brasiliense em sua obra. Por que a escolha de Brasília, sobretudo enquanto elaboração mítica? Em sua opinião, de que maneira o mito permite uma releitura da história oficial?
João Almino : O mito tem um sentido de permanência maior do que a realidade histórica. Não pode ser facilmente destruído. Pode também oferecer uma chave de interpretação de uma história profunda e nem sempre aparente. Brasília tem uma carga simbólica como poucas cidades do mundo. Seu projeto acompanhou toda a história do Brasil independente e veio a ser identificado com a aspiração de modernidade do País. Brasília é, assim, uma ideia de Brasil e uma metáfora do mundo moderno. Escrever sobre Brasília é escrever sobre o Brasil e sobre os dilemas, contradições e tensões desse mundo moderno. Brasília pode também servir de suporte a um ideário estético-literário. Uma cidade desenraizada, ainda um vazio com pouca tradição, povoada de migrantes, com uma identidade múltipla, cambiante e aberta, cria um espaço de possibilidades que legitima a liberdade de imaginação. Pode também ser propícia a uma literatura que procura evitar os estereótipos. Seu caráter universal favorece uma tomada de partido contra o pitoresco. Em Brasília, existe uma tensão exacerbada entre a geometria do plano e a criatividade espontânea da vida cotidiana, entre a ordem e o caos, entre o futurista e o arcaico, entre o projeto racional e moderno e expressões pré-modernas e irracionais, presentes, por exemplo, na experiência de suas várias seitas místicas. E tudo isso é um ótimo material para a literatura.

– Cidade Livre inscreve-se na dinâmica dos mitos de fundação. Por que estabelecer o mito de fundação a partir da categorias da orfandade? Compartilha a opinião do escritor e sociólogo canadense Gérard Bouchard que vê na bastardia uma chave interpretativa para se pensar a identidade dos países no Novo Mundo?
João Almino : Sim, somos povos bastardos, e esta é uma de nossas qualidades. Ao invés de pensar numa identidade referida a raízes ou tradições, prefiro trabalhar com a hipótese da ocupação de um espaço vazio, com a possibilidade de criação livre e de assimilação sem preconceitos das mais diferentes fontes. A orfandade implica maior liberdade e também maior responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.

– O romance Cidade livre apresenta uma nítida estrutura labiríntica. Seria esta a materialização de um espaço fechado que enclausura seus habitantes ou antes, como diria Octavio Paz, a sugestão de um território fechado com poucas saídas? Neste sentido, que saídas proporciona às suas personagens no final do romance?
João Almino : Você tem razão, há uma estrutura labiríntica, com arquitetura concêntrica. O personagem narra suas memórias a partir de suas próprias recordações, de uma conversa de sete noites com seu pai moribundo e da leitura de papéis que haviam sido enterrados pelo pai no dia da inauguração da cidade. Essas memórias, inicialmente escritas cerca de seis meses após a morte do pai, são postadas por partes num blog e comentadas por leitores. O que lemos, contudo, não é o processo da escrita, mas sim o texto na sua forma final, após incorporadas as opiniões ou comentários dos leitores e após feita uma revisão por João Almino, que, apesar da coincidência com o nome do autor, não deixa de ser também um personagem fictício. Os tempos se justapõem no relato: o da conversa com o pai, o do momento da escrita, aquele após a revisão final e o do passado a que estão referidas as conversas do pai e as recordações do menino. O tempo em si é um labirinto, já dizia Borges. Talvez tenha sido por causa desse outro labirinto, o do tempo, que Teseu um dia perdeu Ariadna, depois de matar o Minotauro e ter seguido o fio que ela havia tecido para que ele saísse do labirinto e voltasse a ela. A literatura é como esse fio de Ariadna, mas não dá garantias a ninguém. Gostaria de que, ao lidar com os becos sem saída do labirinto, que levam à prisão, à morte, ao desespero, à desilusão ou ao misticismo, o leitor pudesse abrir mais seus horizontes para lidar com as dificuldades da vida. Mas não posso estar certo disso. A única saída clara do labirinto, entre os personagens, é a da escrita. Com papéis desenterrados, a conversa com um moribundo, a dúvida em torno a um possível assassinato ou ainda o próprio fracasso, é possível ao filho construir o relato que o pai não conseguira.

– Seu último romance apóia-se, em grande parte, num jogo de dissimulações e de simulacros. De que maneira Cidade Livre questiona o valor e o papel do relato histórico? Por que se servir do indízivel histórico como transmissor da verdade ou de uma impossibilidade de se restaurar a verdade?
João Almino : Não questiono o valor e o papel do relato histórico. No entanto, por definição a ficção, para que seja ficção, não pode se confundir com a história. Era o que já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance: o historiador registra, enquanto o romancista deve criar, e uma parte do material com o qual este trabalha não está facilmente disponível para o historiador, pois pertence a um universo interior de difícil acesso, em que imperam as paixões, os sonhos, as alegrias, as tristezas e angústias. O trabalho do ficcionista deve incluir também o duvidoso, o fragmentário, o incompleto, o recôndito e obscuro. Esse é, aliás, o material por excelência do romance, pois a verdade transparente e a certeza demonstrável cabem numa tese ou num tratado científico. Um questionamento metódico pode ser feito num ensaio filosófico. Escrevemos ficção quando todas as outras formas de expressão são insuficientes para dizer o que queremos dizer ou o que nem sequer queremos dizer, por não conhecermos ainda o território em que pisamos. Pois a ficção é uma busca, uma interrogação, uma imersão nas emoções e uma aventura do pensamento.

– Como encara hoje a produção literária contemporânea no Brasil? De que autores nacionais sua escrita e preocupações estéticas tendem a se aproximar?
Jão Almino : Posso apenas dizer, sem com isso acreditar em afinidades ou influências, que os autores brasileiros de que mais gosto e que mais li e reli são Machado de Assis, Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Sei que esta lista tão pequena deixa de lado alguns dos gigantes de nossa literatura, mas estes são os três aos quais sempre volto. Quanto à produção contemporânea, creio que passa por um bom momento. É diversificada, rica e criativa.

Presente em grande parte de seus romances, o universo brasiliense surge, no último trabalho de João Almino, como um espaço mítico que o olhar descentrado do narrador-personagem vem revelar. J.A, um escritor sem editora, relata ao longo deste romance sua infância vivida no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite habitada por uma horda anônima de operários originários dos quatro cantos do Brasil. A história começa com um prológo, cuja ambiguidade em torno da voz autorial/atorial cria, à maneira machadiana, um jogo de falsos semblantes. Se, ao mimar o regime autobiográfico, (“eis o que eu vivi, eis o que eu escrevi”), o narrador-personagem responde ao protocolo da leitura memorialística, sua ficcionalização tende a atenuar e a diluir as tênues fronteiras existentes entre história e ficção, entre a verdade e a mentira.
Elaborada a partir de um suporte narrativo virtual em rede (o blog), a estrutura romanesca de Cidade Livre refuta as noções clássicas da autoria textual. Com efeito, ao acentuar os efeitos de dissimulação, o autor assegura ao texto uma configuração caleidoscópica capaz de neutralizar a articulação linear e unívoca das informações veiculadas. Em Cidade Livre, estas apresentam-se, antes, sob a forma de sequências associativas, convergentes e/ou divergentes, que reavaliam, constantemente, o conjunto dos dispositivos escriturais : instâncias narrativas, focalização, temporalidade e espacialidade. Ao olhar irônico e desabusado de J.A., justapõem-se, ao longo do texto, as lembranças fragmentadas de seu pai adotivo registradas num diário lacunar, o testemunho de personagens históricas ficcionalizadas, os comentários dos leitores virtuais do blog que destilam, completam ou alteram as informações diegéticas e, finalmente, o olhar admirativo da população anônima de candangos que, em Brasília, acreditava ver o raiar de uma nova era para o país. A intriga articula-se em torno do relato de sete noites de vigília durante as quais J.A acompanha a agonia do pai até a sua morte. O corte temporal aqui escolhido pelo autor confere ao texto uma dimensão mítico-simbólica inscrevendo-o na tradição dos mitos de restauração cíclica. Romance de fundação, ou de anti-fundação, Cidade Livre conduz o leitor pelos abismos labirínticos de uma memória individual e coletiva estilhaçada que, através das brechas, frestas, insterstícios e desvãos da história não-oficial do país, recompõe o momento inaugural do Brasil moderno. A euforia e o otimismo da construção de Brasília contrastam, ao longo do romance, com as desilusões familiares e o desencanto dos trabalhadores locais, dentre os quais, Valdivino, assassinado no dia da inauguração da capital brasileira. Sua morte misteriosa constitui o motor dramático e interpretativo desta narrativa que concentra no candango todas as contradições do devir da nação brasileira, dividida entre sua ancoragem rural e urbana, seu ímpeto modernista e tradicional, sua racionalidade e irracionalidade profundas. A localização do romance no universo brasiliense é neste sentido significativa. Espaço movediço e desprovido de história, Brasilia é em Cidade Livre um território sem raízes povoado de identidades precárias, órfãs e bastardas, em suma : o espaço das utopias e distopias de um Brasil que, em construção, ja é ruína.

– Muitos críticos têm sublinhado, neste seu último trabalho, sua preocupação com o resgaste de um material histórico brasiliense. Poderia nos falar um pouco da gênesis do romance, das fontes utilizadas e do processo de redação?
João Almino : Não é um romance histórico. Todos os personagens centrais bem como as tramas que dão corpo ao romance são puras criações literárias. As memórias do narrador, João, são inventadas. O J.A. do prefácio não passa de uma referência jocosa ao M. de A. do Memorial de Aires. No entanto, como a história se passa no momento da construção de Brasília e na “Cidade Livre”, a cidade que foi construída para ser destruída no dia da inauguração de Brasília, adicionei ao texto elementos e personagens históricos que, embora secundários, têm a função de criar uma atmosfera de verossimilhança para o conjunto das histórias. Havia perseguido o tema do novo, da criação e da fundação nos romances anteriores e, desta vez, resolvi revisitá-lo sob a ótica da própria construção da cidade. Uma parte substancial do material que eu havia acumulado sobre Brasília ao longo dos anos ainda não havia utilizado na minha ficção. A isso somei uma pesquisa em bibliotecas norte-americanas, onde encontrei várias dezenas de livros, revistas, folhetos e artigos de jornal sobre Brasília nos anos de sua construção.

– A crítica sublinha uma certa predominância do espaço brasiliense em sua obra. Por que a escolha de Brasília, sobretudo enquanto elaboração mítica? Em sua opinião, de que maneira o mito permite uma releitura da história oficial?
João Almino : O mito tem um sentido de permanência maior do que a realidade histórica. Não pode ser facilmente destruído. Pode também oferecer uma chave de interpretação de uma história profunda e nem sempre aparente. Brasília tem uma carga simbólica como poucas cidades do mundo. Seu projeto acompanhou toda a história do Brasil independente e veio a ser identificado com a aspiração de modernidade do País. Brasília é, assim, uma ideia de Brasil e uma metáfora do mundo moderno. Escrever sobre Brasília é escrever sobre o Brasil e sobre os dilemas, contradições e tensões desse mundo moderno. Brasília pode também servir de suporte a um ideário estético-literário. Uma cidade desenraizada, ainda um vazio com pouca tradição, povoada de migrantes, com uma identidade múltipla, cambiante e aberta, cria um espaço de possibilidades que legitima a liberdade de imaginação. Pode também ser propícia a uma literatura que procura evitar os estereótipos. Seu caráter universal favorece uma tomada de partido contra o pitoresco. Em Brasília, existe uma tensão exacerbada entre a geometria do plano e a criatividade espontânea da vida cotidiana, entre a ordem e o caos, entre o futurista e o arcaico, entre o projeto racional e moderno e expressões pré-modernas e irracionais, presentes, por exemplo, na experiência de suas várias seitas místicas. E tudo isso é um ótimo material para a literatura.

– Cidade Livre inscreve-se na dinâmica dos mitos de fundação. Por que estabelecer o mito de fundação a partir da categorias da orfandade? Compartilha a opinião do escritor e sociólogo canadense Gérard Bouchard que vê na bastardia uma chave interpretativa para se pensar a identidade dos países no Novo Mundo?
João Almino : Sim, somos povos bastardos, e esta é uma de nossas qualidades. Ao invés de pensar numa identidade referida a raízes ou tradições, prefiro trabalhar com a hipótese da ocupação de um espaço vazio, com a possibilidade de criação livre e de assimilação sem preconceitos das mais diferentes fontes. A orfandade implica maior liberdade e também maior responsabilidade na construção de uma ética e de um destino.

– O romance Cidade livre apresenta uma nítida estrutura labiríntica. Seria esta a materialização de um espaço fechado que enclausura seus habitantes ou antes, como diria Octavio Paz, a sugestão de um território fechado com poucas saídas? Neste sentido, que saídas proporciona às suas personagens no final do romance?
João Almino : Você tem razão, há uma estrutura labiríntica, com arquitetura concêntrica. O personagem narra suas memórias a partir de suas próprias recordações, de uma conversa de sete noites com seu pai moribundo e da leitura de papéis que haviam sido enterrados pelo pai no dia da inauguração da cidade. Essas memórias, inicialmente escritas cerca de seis meses após a morte do pai, são postadas por partes num blog e comentadas por leitores. O que lemos, contudo, não é o processo da escrita, mas sim o texto na sua forma final, após incorporadas as opiniões ou comentários dos leitores e após feita uma revisão por João Almino, que, apesar da coincidência com o nome do autor, não deixa de ser também um personagem fictício. Os tempos se justapõem no relato: o da conversa com o pai, o do momento da escrita, aquele após a revisão final e o do passado a que estão referidas as conversas do pai e as recordações do menino. O tempo em si é um labirinto, já dizia Borges. Talvez tenha sido por causa desse outro labirinto, o do tempo, que Teseu um dia perdeu Ariadna, depois de matar o Minotauro e ter seguido o fio que ela havia tecido para que ele saísse do labirinto e voltasse a ela. A literatura é como esse fio de Ariadna, mas não dá garantias a ninguém. Gostaria de que, ao lidar com os becos sem saída do labirinto, que levam à prisão, à morte, ao desespero, à desilusão ou ao misticismo, o leitor pudesse abrir mais seus horizontes para lidar com as dificuldades da vida. Mas não posso estar certo disso. A única saída clara do labirinto, entre os personagens, é a da escrita. Com papéis desenterrados, a conversa com um moribundo, a dúvida em torno a um possível assassinato ou ainda o próprio fracasso, é possível ao filho construir o relato que o pai não conseguira.

– Seu último romance apóia-se, em grande parte, num jogo de dissimulações e de simulacros. De que maneira Cidade Livre questiona o valor e o papel do relato histórico? Por que se servir do indízivel histórico como transmissor da verdade ou de uma impossibilidade de se restaurar a verdade?
João Almino : Não questiono o valor e o papel do relato histórico. No entanto, por definição a ficção, para que seja ficção, não pode se confundir com a história. Era o que já dizia E. M. Foster em Aspectos do Romance: o historiador registra, enquanto o romancista deve criar, e uma parte do material com o qual este trabalha não está facilmente disponível para o historiador, pois pertence a um universo interior de difícil acesso, em que imperam as paixões, os sonhos, as alegrias, as tristezas e angústias. O trabalho do ficcionista deve incluir também o duvidoso, o fragmentário, o incompleto, o recôndito e obscuro. Esse é, aliás, o material por excelência do romance, pois a verdade transparente e a certeza demonstrável cabem numa tese ou num tratado científico. Um questionamento metódico pode ser feito num ensaio filosófico. Escrevemos ficção quando todas as outras formas de expressão são insuficientes para dizer o que queremos dizer ou o que nem sequer queremos dizer, por não conhecermos ainda o território em que pisamos. Pois a ficção é uma busca, uma interrogação, uma imersão nas emoções e uma aventura do pensamento.

– Como encara hoje a produção literária contemporânea no Brasil? De que autores nacionais sua escrita e preocupações estéticas tendem a se aproximar?
Jão Almino : Posso apenas dizer, sem com isso acreditar em afinidades ou influências, que os autores brasileiros de que mais gosto e que mais li e reli são Machado de Assis, Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Sei que esta lista tão pequena deixa de lado alguns dos gigantes de nossa literatura, mas estes são os três aos quais sempre volto. Quanto à produção contemporânea, creio que passa por um bom momento. É diversificada, rica e criativa.