Entrevista a Manoela Sawitzki – Cidade LivreEntrevista a Manoela Sawitzki – Cidade LivreEntrevista a Manoela Sawitzki – Cidade LivreEntrevista a Manoela Sawitzki – Cidade Livre

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ENTREVISTA A MANOELA SAWITZKI, 12/05/2010

Diplomata e escritor nascido em Mossoró, Rio Grande do Norte, João Almino, afirma não ser escritor enquanto diplomata nem diplomata quando escritor. Cidade Livre, quinto título de uma série que explora de diferentes formas o mesmo universo: a capital federal brasileira, trata das circunstâncias de sua construção. Aqui a história oficial é apresentada a partir do ponto de vista de um anotador não-oficial, cujo olhar é herdado e reinventado pelo filho jornalista. Candangos, negociantes e personalidades ligadas à empreitada dividem espaço no mesmo plano, enquanto um filho viaja através da memória em busca da verdade sobre o pai adotivo. O percurso ficcional de Almino teve início na década de 80, com o romance Idéias para onde passar o fim do mundo, e já lhe rendeu inúmeras indicações e prêmios literários.

1. Depois de quatro livros que exploram de diferentes formas o mesmo cenário, o que o levou a esse retorno a Brasília em Cidade Livre?
Um tema recorrente – e talvez uma obsessão – nessa série de romances é o do novo, da criação, da fundação e da construção, tema esse tratado de diferentes ângulos. Chegou a vez de encará-lo pelo foco da construção da cidade, onde estão condensados uma dimensão simbólica, mitológica, as vontades que mobilizaram a ação, o entusiasmo provocado pela utopia (que encontram seu contraponto nos problemas e dramas da atualidade) e, ao mesmo tempo, os obstáculos, as incertezas, os medos e as resistências. Brasília surgiu naturalmente para mim como cenário de meus romances por ter ali vivido quase tanto tempo quanto na minha cidade natal — Mossoró, no Rio Grande do Norte – e por considerá-la um microcosmo do Brasil, na sua realidade que mistura todos os brasis, e também na ideia de seu projeto, que acompanha a história do país e abraça o sonho de sua modernização e desenvolvimento.

2. Nesse novo romance, a história oficial é recontada a partir do ponto de vista de um anotador não oficial, espécie de biógrafo não autorizado e quase desprovido de leitores – assim como seu filho, que transpõe as anotações do pai num blog que quase ninguém acessa – ambos sujeitos que vêem a História por frestas. Qual a relação entre o personagem Moacyr e o escritor (qualquer um)?
Moacyr é um anotador não oficial com aspirações de escrever a história oficial. Ele abandona sua profissão de médico psiquiatra para relatar o que vê, convencido da grandeza do que presencia e decidido a deixar um testemunho para a história. Mas como sua ambição é maior do que a necessidade íntima de se exprimir, é tragado pelo vê e, finalmente, pela ganância. Ele enterra seus escritos, que serão desencavados pelo filho jornalista, que escreve, digamos, de dentro para fora, pondo tijolo sobre tijolo e que, no final, arcando com a dívida acumulada pelo pai, tem apenas palavras com que sobreviver — palavras para as quais não sabe se terá leitores, como poucos haviam sido os seguidores de seu blog.

3. A Cidade Livre foi feita para não permanecer. A memória dos candangos também estaria desde o início condenada ao esquecimento?
Seria uma cidade descartável, a ser destruída quando Brasília fosse inaugurada, mas a promessa não se cumpriu por causa da resistência dos candangos. Essa resistência existe também em relação ao plano, e é por isso que a Brasília desorganizada e espontânea das cidades satélites já é maior do que a cidade monumental. O que parece condenado ao esquecimento aflora sob a forma de dramas, problemas sociais de toda ordem e, em suma, dos processos de desmodernização que corroem a utopia modernista. O que pode parecer morto, coisa do passado, como aquele candango Valdivino do romance, aflora a todo instante e está quiçá mais vivo do que nunca.

4. Como você vê o papel dos candangos no enredo da construção de Brasília?
Foram o equivalente dos construtores de pirâmides, mas antes de serem admirados como heróis anônimos de uma história que lhes é alheia, creio que devem ser vistos como aqueles que compartiram do entusiasmo do projeto, participaram da euforia que envolveu a quase todos os pioneiros, tiveram as mesmas expectativas quanto ao futuro e sofreram com as frustrações que a realidade lhes veio a impor.

5. Qual a relação, no seu entender, entre a capital mítica que instigou intelectuais, artistas e a mística das comunidades religiosas sincréticas que coabitam a região?
Uns e outros se viam como fundadores e criadores: de um lado, de um mundo moderno e até mesmo de uma nova civilização, e, de outro, da humanidade nova que surgiria com o terceiro milênio. De um lado, inspirados pelos ideais racionais do modernismo; de outro, movidos por um espiritualismo pré-moderno e irracional. Uns e outros convergiam para um espaço a ser ainda ocupado, onde seus planos poderiam se concretizar e onde, no limite, tudo seria possível.

6. Há dois projetos românticos envoltos em mistérios e incertezas: a cidade a ser construída e o personagem do candango Valdivino. Como lhe surgiu Valdivino?
Valdivino é essencial à história, pois é um elo de ligação entre os mundos do romance: o material e o espiritual; o do construtor arrivista e o da profetisa visionária. Está por isso no centro do enredo. Fraco e ingênuo, comete seus erros e pecados com a mesma pureza com que acredita que o mundo será salvo pelas novas catedrais. Construindo sua própria moral e filosofia de vida, com sua genialidade peculiar, sua delicadeza e refinamento toscos, será mal compreendido. Explorado pelos outros, talvez até mesmo abusado e morto, é resistente e sobrevive na memória alheia como tendo ressuscitado ou sendo imortal. É um aventureiro como os outros, mas está à procura de um futuro ainda mais esplendoroso, que existiria, quem sabe, na Cidade de Z. É um personagem que tem algum parentesco com a Macabéa da Clarice ou com o Príncipe Mychkine de “O Idiota” de Dostoievski. Cheguei até mesmo a intitular provisoriamente um capítulo de “O Idiota do Planalto”.

7. A narrativa é o tempo todo atravessada por outras vozes, que ora vêm da memória do narrador João, da interferência de internautas-leitores de um suposto blog, ou das intervenções de João Almino, suposto revisor do livro. Que vozes interferem ou transpassam normalmente seu processo de escrita?
As distintas vozes introduzem camadas de leitura, deslocam a perspectiva ou criam diálogos sutis entre correntes narrativas. Quanto a meu processo de escrita, está alimentado em primeiro lugar pelo exercício da escrita mesma, o escrever escrevendo-se do dia-a-dia, e, depois, por conversas, lembranças, observação, imaginação, o diálogo com a música, as artes cênicas e plásticas, especialmente com o cinema e a fotografia, e leituras –– sobretudo de outras ficções, de poesia e de filosofia. No caso específico de “Cidade Livre”, leituras de mapas, relatos e descrições da época da construção de Brasília e também, para enriquecer o personagem da profetisa Íris Quelemém, de alguns textos místicos e religiosos. Um dos trabalhos artesanais na feitura dos romances é o de dissolver ou integrar com naturalidade esse material nas tramas e diálogos, para que o resultado não seja livresco e os personagens tenham vida, sejam convincentes, transmitam emoção e pareçam pessoas de carne e osso.

8. Como você concilia a atividade diplomática com a de escritor? De que forma um alimenta o outro?

Separo claramente essas atividades. Primeiro, na minha rotina diária: somente escrevo ficção muito cedo, nas primeiras horas da manhã, antes até de tomar café. Depois, no exercício mesmo dessas atividades, pois embora ambas lidem essencialmente com a palavra, com seu sentido e precisão, numa é fundamental a transigência, o compromisso e a negociação, na outra a autenticidade plena, sem qualquer acomodação. Numa é uma qualidade o uso do clichê, das fórmulas aceitas e das convenções; noutra, a surpresa, a invenção e a ruptura com as convenções. Por isso não tento ser diplomata enquanto escritor, e nem escritor enquanto diplomata.

9. Brasília é uma utopia a ser desconstruída?
Que está sendo desconstruída desde seu primeiro instante.

10. Entre os tantos temas que envolvem a capital federal, desde sua construção até hoje, há algo que ainda poderá lhe estimular a uma retomada?
Certamente, mesmo que não possa prever com que resultado. Em qualquer lugar podem-se encontrar histórias que valham a pena ser contadas, e em Brasília elas podem se misturar com uma identidade plural e em aberto, tema que sozinho pode estimular a ficção. Apesar disso, gosto de esclarecer que não escrevo uma literatura de Brasília, ainda que as histórias de meus romances se passem lá. Apenas na literatura regionalista o lugar tem alguma função definidora. Por acaso diríamos da literatura de Machado que é uma literatura do Rio de Janeiro?

INTERVIEW TO MANOELA SAWITZKI, May 12 2010

Diplomata e escritor nascido em Mossoró, Rio Grande do Norte, João Almino, afirma não ser escritor enquanto diplomata nem diplomata quando escritor. Cidade Livre, quinto título de uma série que explora de diferentes formas o mesmo universo: a capital federal brasileira, trata das circunstâncias de sua construção. Aqui a história oficial é apresentada a partir do ponto de vista de um anotador não-oficial, cujo olhar é herdado e reinventado pelo filho jornalista. Candangos, negociantes e personalidades ligadas à empreitada dividem espaço no mesmo plano, enquanto um filho viaja através da memória em busca da verdade sobre o pai adotivo. O percurso ficcional de Almino teve início na década de 80, com o romance Idéias para onde passar o fim do mundo, e já lhe rendeu inúmeras indicações e prêmios literários.

1. Depois de quatro livros que exploram de diferentes formas o mesmo cenário, o que o levou a esse retorno a Brasília em Cidade Livre?
Um tema recorrente – e talvez uma obsessão – nessa série de romances é o do novo, da criação, da fundação e da construção, tema esse tratado de diferentes ângulos. Chegou a vez de encará-lo pelo foco da construção da cidade, onde estão condensados uma dimensão simbólica, mitológica, as vontades que mobilizaram a ação, o entusiasmo provocado pela utopia (que encontram seu contraponto nos problemas e dramas da atualidade) e, ao mesmo tempo, os obstáculos, as incertezas, os medos e as resistências. Brasília surgiu naturalmente para mim como cenário de meus romances por ter ali vivido quase tanto tempo quanto na minha cidade natal — Mossoró, no Rio Grande do Norte – e por considerá-la um microcosmo do Brasil, na sua realidade que mistura todos os brasis, e também na ideia de seu projeto, que acompanha a história do país e abraça o sonho de sua modernização e desenvolvimento.

2. Nesse novo romance, a história oficial é recontada a partir do ponto de vista de um anotador não oficial, espécie de biógrafo não autorizado e quase desprovido de leitores – assim como seu filho, que transpõe as anotações do pai num blog que quase ninguém acessa – ambos sujeitos que vêem a História por frestas. Qual a relação entre o personagem Moacyr e o escritor (qualquer um)?
Moacyr é um anotador não oficial com aspirações de escrever a história oficial. Ele abandona sua profissão de médico psiquiatra para relatar o que vê, convencido da grandeza do que presencia e decidido a deixar um testemunho para a história. Mas como sua ambição é maior do que a necessidade íntima de se exprimir, é tragado pelo vê e, finalmente, pela ganância. Ele enterra seus escritos, que serão desencavados pelo filho jornalista, que escreve, digamos, de dentro para fora, pondo tijolo sobre tijolo e que, no final, arcando com a dívida acumulada pelo pai, tem apenas palavras com que sobreviver — palavras para as quais não sabe se terá leitores, como poucos haviam sido os seguidores de seu blog.

3. A Cidade Livre foi feita para não permanecer. A memória dos candangos também estaria desde o início condenada ao esquecimento?
Seria uma cidade descartável, a ser destruída quando Brasília fosse inaugurada, mas a promessa não se cumpriu por causa da resistência dos candangos. Essa resistência existe também em relação ao plano, e é por isso que a Brasília desorganizada e espontânea das cidades satélites já é maior do que a cidade monumental. O que parece condenado ao esquecimento aflora sob a forma de dramas, problemas sociais de toda ordem e, em suma, dos processos de desmodernização que corroem a utopia modernista. O que pode parecer morto, coisa do passado, como aquele candango Valdivino do romance, aflora a todo instante e está quiçá mais vivo do que nunca.

4. Como você vê o papel dos candangos no enredo da construção de Brasília?
Foram o equivalente dos construtores de pirâmides, mas antes de serem admirados como heróis anônimos de uma história que lhes é alheia, creio que devem ser vistos como aqueles que compartiram do entusiasmo do projeto, participaram da euforia que envolveu a quase todos os pioneiros, tiveram as mesmas expectativas quanto ao futuro e sofreram com as frustrações que a realidade lhes veio a impor.

5. Qual a relação, no seu entender, entre a capital mítica que instigou intelectuais, artistas e a mística das comunidades religiosas sincréticas que coabitam a região?
Uns e outros se viam como fundadores e criadores: de um lado, de um mundo moderno e até mesmo de uma nova civilização, e, de outro, da humanidade nova que surgiria com o terceiro milênio. De um lado, inspirados pelos ideais racionais do modernismo; de outro, movidos por um espiritualismo pré-moderno e irracional. Uns e outros convergiam para um espaço a ser ainda ocupado, onde seus planos poderiam se concretizar e onde, no limite, tudo seria possível.

6. Há dois projetos românticos envoltos em mistérios e incertezas: a cidade a ser construída e o personagem do candango Valdivino. Como lhe surgiu Valdivino?
Valdivino é essencial à história, pois é um elo de ligação entre os mundos do romance: o material e o espiritual; o do construtor arrivista e o da profetisa visionária. Está por isso no centro do enredo. Fraco e ingênuo, comete seus erros e pecados com a mesma pureza com que acredita que o mundo será salvo pelas novas catedrais. Construindo sua própria moral e filosofia de vida, com sua genialidade peculiar, sua delicadeza e refinamento toscos, será mal compreendido. Explorado pelos outros, talvez até mesmo abusado e morto, é resistente e sobrevive na memória alheia como tendo ressuscitado ou sendo imortal. É um aventureiro como os outros, mas está à procura de um futuro ainda mais esplendoroso, que existiria, quem sabe, na Cidade de Z. É um personagem que tem algum parentesco com a Macabéa da Clarice ou com o Príncipe Mychkine de “O Idiota” de Dostoievski. Cheguei até mesmo a intitular provisoriamente um capítulo de “O Idiota do Planalto”.

7. A narrativa é o tempo todo atravessada por outras vozes, que ora vêm da memória do narrador João, da interferência de internautas-leitores de um suposto blog, ou das intervenções de João Almino, suposto revisor do livro. Que vozes interferem ou transpassam normalmente seu processo de escrita?
As distintas vozes introduzem camadas de leitura, deslocam a perspectiva ou criam diálogos sutis entre correntes narrativas. Quanto a meu processo de escrita, está alimentado em primeiro lugar pelo exercício da escrita mesma, o escrever escrevendo-se do dia-a-dia, e, depois, por conversas, lembranças, observação, imaginação, o diálogo com a música, as artes cênicas e plásticas, especialmente com o cinema e a fotografia, e leituras –– sobretudo de outras ficções, de poesia e de filosofia. No caso específico de “Cidade Livre”, leituras de mapas, relatos e descrições da época da construção de Brasília e também, para enriquecer o personagem da profetisa Íris Quelemém, de alguns textos místicos e religiosos. Um dos trabalhos artesanais na feitura dos romances é o de dissolver ou integrar com naturalidade esse material nas tramas e diálogos, para que o resultado não seja livresco e os personagens tenham vida, sejam convincentes, transmitam emoção e pareçam pessoas de carne e osso.

8. Como você concilia a atividade diplomática com a de escritor? De que forma um alimenta o outro?

Separo claramente essas atividades. Primeiro, na minha rotina diária: somente escrevo ficção muito cedo, nas primeiras horas da manhã, antes até de tomar café. Depois, no exercício mesmo dessas atividades, pois embora ambas lidem essencialmente com a palavra, com seu sentido e precisão, numa é fundamental a transigência, o compromisso e a negociação, na outra a autenticidade plena, sem qualquer acomodação. Numa é uma qualidade o uso do clichê, das fórmulas aceitas e das convenções; noutra, a surpresa, a invenção e a ruptura com as convenções. Por isso não tento ser diplomata enquanto escritor, e nem escritor enquanto diplomata.

9. Brasília é uma utopia a ser desconstruída?
Que está sendo desconstruída desde seu primeiro instante.

10. Entre os tantos temas que envolvem a capital federal, desde sua construção até hoje, há algo que ainda poderá lhe estimular a uma retomada?
Certamente, mesmo que não possa prever com que resultado. Em qualquer lugar podem-se encontrar histórias que valham a pena ser contadas, e em Brasília elas podem se misturar com uma identidade plural e em aberto, tema que sozinho pode estimular a ficção. Apesar disso, gosto de esclarecer que não escrevo uma literatura de Brasília, ainda que as histórias de meus romances se passem lá. Apenas na literatura regionalista o lugar tem alguma função definidora. Por acaso diríamos da literatura de Machado que é uma literatura do Rio de Janeiro?

ENTREVISTA A MANOELA SAWITZKI, 12/05/2010

Diplomata e escritor nascido em Mossoró, Rio Grande do Norte, João Almino, afirma não ser escritor enquanto diplomata nem diplomata quando escritor. Cidade Livre, quinto título de uma série que explora de diferentes formas o mesmo universo: a capital federal brasileira, trata das circunstâncias de sua construção. Aqui a história oficial é apresentada a partir do ponto de vista de um anotador não-oficial, cujo olhar é herdado e reinventado pelo filho jornalista. Candangos, negociantes e personalidades ligadas à empreitada dividem espaço no mesmo plano, enquanto um filho viaja através da memória em busca da verdade sobre o pai adotivo. O percurso ficcional de Almino teve início na década de 80, com o romance Idéias para onde passar o fim do mundo, e já lhe rendeu inúmeras indicações e prêmios literários.

1. Depois de quatro livros que exploram de diferentes formas o mesmo cenário, o que o levou a esse retorno a Brasília em Cidade Livre?
Um tema recorrente – e talvez uma obsessão – nessa série de romances é o do novo, da criação, da fundação e da construção, tema esse tratado de diferentes ângulos. Chegou a vez de encará-lo pelo foco da construção da cidade, onde estão condensados uma dimensão simbólica, mitológica, as vontades que mobilizaram a ação, o entusiasmo provocado pela utopia (que encontram seu contraponto nos problemas e dramas da atualidade) e, ao mesmo tempo, os obstáculos, as incertezas, os medos e as resistências. Brasília surgiu naturalmente para mim como cenário de meus romances por ter ali vivido quase tanto tempo quanto na minha cidade natal — Mossoró, no Rio Grande do Norte – e por considerá-la um microcosmo do Brasil, na sua realidade que mistura todos os brasis, e também na ideia de seu projeto, que acompanha a história do país e abraça o sonho de sua modernização e desenvolvimento.

2. Nesse novo romance, a história oficial é recontada a partir do ponto de vista de um anotador não oficial, espécie de biógrafo não autorizado e quase desprovido de leitores – assim como seu filho, que transpõe as anotações do pai num blog que quase ninguém acessa – ambos sujeitos que vêem a História por frestas. Qual a relação entre o personagem Moacyr e o escritor (qualquer um)?
Moacyr é um anotador não oficial com aspirações de escrever a história oficial. Ele abandona sua profissão de médico psiquiatra para relatar o que vê, convencido da grandeza do que presencia e decidido a deixar um testemunho para a história. Mas como sua ambição é maior do que a necessidade íntima de se exprimir, é tragado pelo vê e, finalmente, pela ganância. Ele enterra seus escritos, que serão desencavados pelo filho jornalista, que escreve, digamos, de dentro para fora, pondo tijolo sobre tijolo e que, no final, arcando com a dívida acumulada pelo pai, tem apenas palavras com que sobreviver — palavras para as quais não sabe se terá leitores, como poucos haviam sido os seguidores de seu blog.

3. A Cidade Livre foi feita para não permanecer. A memória dos candangos também estaria desde o início condenada ao esquecimento?
Seria uma cidade descartável, a ser destruída quando Brasília fosse inaugurada, mas a promessa não se cumpriu por causa da resistência dos candangos. Essa resistência existe também em relação ao plano, e é por isso que a Brasília desorganizada e espontânea das cidades satélites já é maior do que a cidade monumental. O que parece condenado ao esquecimento aflora sob a forma de dramas, problemas sociais de toda ordem e, em suma, dos processos de desmodernização que corroem a utopia modernista. O que pode parecer morto, coisa do passado, como aquele candango Valdivino do romance, aflora a todo instante e está quiçá mais vivo do que nunca.

4. Como você vê o papel dos candangos no enredo da construção de Brasília?
Foram o equivalente dos construtores de pirâmides, mas antes de serem admirados como heróis anônimos de uma história que lhes é alheia, creio que devem ser vistos como aqueles que compartiram do entusiasmo do projeto, participaram da euforia que envolveu a quase todos os pioneiros, tiveram as mesmas expectativas quanto ao futuro e sofreram com as frustrações que a realidade lhes veio a impor.

5. Qual a relação, no seu entender, entre a capital mítica que instigou intelectuais, artistas e a mística das comunidades religiosas sincréticas que coabitam a região?
Uns e outros se viam como fundadores e criadores: de um lado, de um mundo moderno e até mesmo de uma nova civilização, e, de outro, da humanidade nova que surgiria com o terceiro milênio. De um lado, inspirados pelos ideais racionais do modernismo; de outro, movidos por um espiritualismo pré-moderno e irracional. Uns e outros convergiam para um espaço a ser ainda ocupado, onde seus planos poderiam se concretizar e onde, no limite, tudo seria possível.

6. Há dois projetos românticos envoltos em mistérios e incertezas: a cidade a ser construída e o personagem do candango Valdivino. Como lhe surgiu Valdivino?
Valdivino é essencial à história, pois é um elo de ligação entre os mundos do romance: o material e o espiritual; o do construtor arrivista e o da profetisa visionária. Está por isso no centro do enredo. Fraco e ingênuo, comete seus erros e pecados com a mesma pureza com que acredita que o mundo será salvo pelas novas catedrais. Construindo sua própria moral e filosofia de vida, com sua genialidade peculiar, sua delicadeza e refinamento toscos, será mal compreendido. Explorado pelos outros, talvez até mesmo abusado e morto, é resistente e sobrevive na memória alheia como tendo ressuscitado ou sendo imortal. É um aventureiro como os outros, mas está à procura de um futuro ainda mais esplendoroso, que existiria, quem sabe, na Cidade de Z. É um personagem que tem algum parentesco com a Macabéa da Clarice ou com o Príncipe Mychkine de “O Idiota” de Dostoievski. Cheguei até mesmo a intitular provisoriamente um capítulo de “O Idiota do Planalto”.

7. A narrativa é o tempo todo atravessada por outras vozes, que ora vêm da memória do narrador João, da interferência de internautas-leitores de um suposto blog, ou das intervenções de João Almino, suposto revisor do livro. Que vozes interferem ou transpassam normalmente seu processo de escrita?
As distintas vozes introduzem camadas de leitura, deslocam a perspectiva ou criam diálogos sutis entre correntes narrativas. Quanto a meu processo de escrita, está alimentado em primeiro lugar pelo exercício da escrita mesma, o escrever escrevendo-se do dia-a-dia, e, depois, por conversas, lembranças, observação, imaginação, o diálogo com a música, as artes cênicas e plásticas, especialmente com o cinema e a fotografia, e leituras –– sobretudo de outras ficções, de poesia e de filosofia. No caso específico de “Cidade Livre”, leituras de mapas, relatos e descrições da época da construção de Brasília e também, para enriquecer o personagem da profetisa Íris Quelemém, de alguns textos místicos e religiosos. Um dos trabalhos artesanais na feitura dos romances é o de dissolver ou integrar com naturalidade esse material nas tramas e diálogos, para que o resultado não seja livresco e os personagens tenham vida, sejam convincentes, transmitam emoção e pareçam pessoas de carne e osso.

8. Como você concilia a atividade diplomática com a de escritor? De que forma um alimenta o outro?

Separo claramente essas atividades. Primeiro, na minha rotina diária: somente escrevo ficção muito cedo, nas primeiras horas da manhã, antes até de tomar café. Depois, no exercício mesmo dessas atividades, pois embora ambas lidem essencialmente com a palavra, com seu sentido e precisão, numa é fundamental a transigência, o compromisso e a negociação, na outra a autenticidade plena, sem qualquer acomodação. Numa é uma qualidade o uso do clichê, das fórmulas aceitas e das convenções; noutra, a surpresa, a invenção e a ruptura com as convenções. Por isso não tento ser diplomata enquanto escritor, e nem escritor enquanto diplomata.

9. Brasília é uma utopia a ser desconstruída?
Que está sendo desconstruída desde seu primeiro instante.

10. Entre os tantos temas que envolvem a capital federal, desde sua construção até hoje, há algo que ainda poderá lhe estimular a uma retomada?
Certamente, mesmo que não possa prever com que resultado. Em qualquer lugar podem-se encontrar histórias que valham a pena ser contadas, e em Brasília elas podem se misturar com uma identidade plural e em aberto, tema que sozinho pode estimular a ficção. Apesar disso, gosto de esclarecer que não escrevo uma literatura de Brasília, ainda que as histórias de meus romances se passem lá. Apenas na literatura regionalista o lugar tem alguma função definidora. Por acaso diríamos da literatura de Machado que é uma literatura do Rio de Janeiro?

ENTREVUE À MANOELA SAWITZKI, 12/05/2010

Diplomata e escritor nascido em Mossoró, Rio Grande do Norte, João Almino, afirma não ser escritor enquanto diplomata nem diplomata quando escritor. Cidade Livre, quinto título de uma série que explora de diferentes formas o mesmo universo: a capital federal brasileira, trata das circunstâncias de sua construção. Aqui a história oficial é apresentada a partir do ponto de vista de um anotador não-oficial, cujo olhar é herdado e reinventado pelo filho jornalista. Candangos, negociantes e personalidades ligadas à empreitada dividem espaço no mesmo plano, enquanto um filho viaja através da memória em busca da verdade sobre o pai adotivo. O percurso ficcional de Almino teve início na década de 80, com o romance Idéias para onde passar o fim do mundo, e já lhe rendeu inúmeras indicações e prêmios literários.

1. Depois de quatro livros que exploram de diferentes formas o mesmo cenário, o que o levou a esse retorno a Brasília em Cidade Livre?
Um tema recorrente – e talvez uma obsessão – nessa série de romances é o do novo, da criação, da fundação e da construção, tema esse tratado de diferentes ângulos. Chegou a vez de encará-lo pelo foco da construção da cidade, onde estão condensados uma dimensão simbólica, mitológica, as vontades que mobilizaram a ação, o entusiasmo provocado pela utopia (que encontram seu contraponto nos problemas e dramas da atualidade) e, ao mesmo tempo, os obstáculos, as incertezas, os medos e as resistências. Brasília surgiu naturalmente para mim como cenário de meus romances por ter ali vivido quase tanto tempo quanto na minha cidade natal — Mossoró, no Rio Grande do Norte – e por considerá-la um microcosmo do Brasil, na sua realidade que mistura todos os brasis, e também na ideia de seu projeto, que acompanha a história do país e abraça o sonho de sua modernização e desenvolvimento.

2. Nesse novo romance, a história oficial é recontada a partir do ponto de vista de um anotador não oficial, espécie de biógrafo não autorizado e quase desprovido de leitores – assim como seu filho, que transpõe as anotações do pai num blog que quase ninguém acessa – ambos sujeitos que vêem a História por frestas. Qual a relação entre o personagem Moacyr e o escritor (qualquer um)?
Moacyr é um anotador não oficial com aspirações de escrever a história oficial. Ele abandona sua profissão de médico psiquiatra para relatar o que vê, convencido da grandeza do que presencia e decidido a deixar um testemunho para a história. Mas como sua ambição é maior do que a necessidade íntima de se exprimir, é tragado pelo vê e, finalmente, pela ganância. Ele enterra seus escritos, que serão desencavados pelo filho jornalista, que escreve, digamos, de dentro para fora, pondo tijolo sobre tijolo e que, no final, arcando com a dívida acumulada pelo pai, tem apenas palavras com que sobreviver — palavras para as quais não sabe se terá leitores, como poucos haviam sido os seguidores de seu blog.

3. A Cidade Livre foi feita para não permanecer. A memória dos candangos também estaria desde o início condenada ao esquecimento?
Seria uma cidade descartável, a ser destruída quando Brasília fosse inaugurada, mas a promessa não se cumpriu por causa da resistência dos candangos. Essa resistência existe também em relação ao plano, e é por isso que a Brasília desorganizada e espontânea das cidades satélites já é maior do que a cidade monumental. O que parece condenado ao esquecimento aflora sob a forma de dramas, problemas sociais de toda ordem e, em suma, dos processos de desmodernização que corroem a utopia modernista. O que pode parecer morto, coisa do passado, como aquele candango Valdivino do romance, aflora a todo instante e está quiçá mais vivo do que nunca.

4. Como você vê o papel dos candangos no enredo da construção de Brasília?
Foram o equivalente dos construtores de pirâmides, mas antes de serem admirados como heróis anônimos de uma história que lhes é alheia, creio que devem ser vistos como aqueles que compartiram do entusiasmo do projeto, participaram da euforia que envolveu a quase todos os pioneiros, tiveram as mesmas expectativas quanto ao futuro e sofreram com as frustrações que a realidade lhes veio a impor.

5. Qual a relação, no seu entender, entre a capital mítica que instigou intelectuais, artistas e a mística das comunidades religiosas sincréticas que coabitam a região?
Uns e outros se viam como fundadores e criadores: de um lado, de um mundo moderno e até mesmo de uma nova civilização, e, de outro, da humanidade nova que surgiria com o terceiro milênio. De um lado, inspirados pelos ideais racionais do modernismo; de outro, movidos por um espiritualismo pré-moderno e irracional. Uns e outros convergiam para um espaço a ser ainda ocupado, onde seus planos poderiam se concretizar e onde, no limite, tudo seria possível.

6. Há dois projetos românticos envoltos em mistérios e incertezas: a cidade a ser construída e o personagem do candango Valdivino. Como lhe surgiu Valdivino?
Valdivino é essencial à história, pois é um elo de ligação entre os mundos do romance: o material e o espiritual; o do construtor arrivista e o da profetisa visionária. Está por isso no centro do enredo. Fraco e ingênuo, comete seus erros e pecados com a mesma pureza com que acredita que o mundo será salvo pelas novas catedrais. Construindo sua própria moral e filosofia de vida, com sua genialidade peculiar, sua delicadeza e refinamento toscos, será mal compreendido. Explorado pelos outros, talvez até mesmo abusado e morto, é resistente e sobrevive na memória alheia como tendo ressuscitado ou sendo imortal. É um aventureiro como os outros, mas está à procura de um futuro ainda mais esplendoroso, que existiria, quem sabe, na Cidade de Z. É um personagem que tem algum parentesco com a Macabéa da Clarice ou com o Príncipe Mychkine de “O Idiota” de Dostoievski. Cheguei até mesmo a intitular provisoriamente um capítulo de “O Idiota do Planalto”.

7. A narrativa é o tempo todo atravessada por outras vozes, que ora vêm da memória do narrador João, da interferência de internautas-leitores de um suposto blog, ou das intervenções de João Almino, suposto revisor do livro. Que vozes interferem ou transpassam normalmente seu processo de escrita?
As distintas vozes introduzem camadas de leitura, deslocam a perspectiva ou criam diálogos sutis entre correntes narrativas. Quanto a meu processo de escrita, está alimentado em primeiro lugar pelo exercício da escrita mesma, o escrever escrevendo-se do dia-a-dia, e, depois, por conversas, lembranças, observação, imaginação, o diálogo com a música, as artes cênicas e plásticas, especialmente com o cinema e a fotografia, e leituras –– sobretudo de outras ficções, de poesia e de filosofia. No caso específico de “Cidade Livre”, leituras de mapas, relatos e descrições da época da construção de Brasília e também, para enriquecer o personagem da profetisa Íris Quelemém, de alguns textos místicos e religiosos. Um dos trabalhos artesanais na feitura dos romances é o de dissolver ou integrar com naturalidade esse material nas tramas e diálogos, para que o resultado não seja livresco e os personagens tenham vida, sejam convincentes, transmitam emoção e pareçam pessoas de carne e osso.

8. Como você concilia a atividade diplomática com a de escritor? De que forma um alimenta o outro?

Separo claramente essas atividades. Primeiro, na minha rotina diária: somente escrevo ficção muito cedo, nas primeiras horas da manhã, antes até de tomar café. Depois, no exercício mesmo dessas atividades, pois embora ambas lidem essencialmente com a palavra, com seu sentido e precisão, numa é fundamental a transigência, o compromisso e a negociação, na outra a autenticidade plena, sem qualquer acomodação. Numa é uma qualidade o uso do clichê, das fórmulas aceitas e das convenções; noutra, a surpresa, a invenção e a ruptura com as convenções. Por isso não tento ser diplomata enquanto escritor, e nem escritor enquanto diplomata.

9. Brasília é uma utopia a ser desconstruída?
Que está sendo desconstruída desde seu primeiro instante.

10. Entre os tantos temas que envolvem a capital federal, desde sua construção até hoje, há algo que ainda poderá lhe estimular a uma retomada?
Certamente, mesmo que não possa prever com que resultado. Em qualquer lugar podem-se encontrar histórias que valham a pena ser contadas, e em Brasília elas podem se misturar com uma identidade plural e em aberto, tema que sozinho pode estimular a ficção. Apesar disso, gosto de esclarecer que não escrevo uma literatura de Brasília, ainda que as histórias de meus romances se passem lá. Apenas na literatura regionalista o lugar tem alguma função definidora. Por acaso diríamos da literatura de Machado que é uma literatura do Rio de Janeiro?