Entrevista a Saraiva ConteúdoEntrevista a Saraiva ConteúdoEntrevista a Saraiva ConteúdoEntrevista a Saraiva Conteúdo

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Por Ramon Mello

Foto de Tomás Rangel

Há algumas semanas, o diplomata e escritor João Almino, natural de Mossoró, desembarcou de Chicago diretamente para o Festival Mantiqueira, onde nos contou um pouco sobre o livro Cidade livre, lançado durante o festival. O encontro aconteceu na Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier.

João Almino falou a respeito dos personagens que passeiam por seus livros, costurando as histórias, e sobre a relação das cidades com a sua escrita. Estreou na literatura com o premiado romance Idéias para onde passar o fim do mundo, indicado para o Prêmio Jabuti, ganhador do Prêmio do Instituto Nacional do Livro e do Prêmio Candango de Literatura. Além de ficcionista, Almino é autor de escritos sobre história e filosofia política.

Como conciliar a carreira diplomática e o ofício de escritor?
João Almino – Eu separo as duas coisas, inclusive no tempo. Escrevo de manhã, muito cedo, sempre. É algo que faço de maneira disciplinada, há décadas eu trabalho dessa forma. Acordo em geral muito cedo, a menos que eu vá dormir tarde demais por alguma razão. Escrevo religiosamente duas horas por dia. Às vezes, no sábado um pouquinho mais. Assim como existem pessoas que precisam se exercitar fisicamente todos os dias senão se sentem mal, no meu caso preciso escrever um pouquinho todo o dia. É fundamental pra mim. Essa é a hora que me dedico à ficção, realmente. Uma atividade vital. Como as atividades são muito diferentes umas das outras, procuro não ser diplomata enquanto escritor e nem ser escritor enquanto diplomata. De fato, o trabalho da ficção exige, sobretudo, um rompimento com as convenções. Enquanto a escrita da diplomacia deve obedecer às convenções e até aos clichês. Nos dois casos a linguagem é muito importante, mas são de naturezas completamente diferentes uma da outra.

No Brasil há ilustres diplomatas escritores, eles exercem influências na sua literatura?
João Almino – Não. Acho que são muito diferentes os trabalhos dos diplomatas escritores. Não vejo realmente uma escola de escritores diplomatas, o trabalho de um influenciando muitíssimo o trabalho de outro. Cada um cria a sua literatura. É uma boa coincidência que haja escritores diplomatas, alguns deles muito destacados. A poesia de João Cabral de Melo Neto é muitíssimo diferente da poesia de Vinicius de Moraes, ambos diplomatas; ou a ficção do Aloísio Azevedo é muitíssimo diferente da ficção do Guimarães Rosa.

O que se acrescenta de positivo na relação com essas duas profissões?
João Almino – O que traz de bom para o escritor, o fato de ser diplomata, são as oportunidades de conhecer outras culturas. Eventualmente, ter tido a oportunidade de conhecer escritores e intelectuais que de outra forma eu não teria, talvez, conhecido. Em alguns casos, as grandes referências literárias, mesmo fora do Brasil, independem de se estar num lugar ou não. Mesmo que não tivesse morado na França, acho que eu teria lido Proust. Não precisaria ter morado lá. Nunca morei na Rússia, mas li os autores russos. Isso independe de se estar num lugar. Mas sem dúvida, algumas oportunidades se abriram. Alguns escritores, poetas e romancistas, que conheci lá fora, eu não teria conhecido se não exercesse essa atividade.

Você nasceu em Mossoró, interior do Nordeste brasileiro, e atualmente reside em Chicago. O que fica de sua cidade natal em sua escrita? Como as cidades interagem com sua produção literária?
João Almino – Meu maior dilema era se eu deveria situar as minhas histórias no Nordeste, de onde eu venho, especialmente Mossoró, ou em Brasília, onde eu morei durante dez anos. Em Mossoró morei os 12 primeiros anos da minha vida, depois oito anos em Fortaleza. O que me levou a não situar as histórias no Nordeste é porque fui leitor, muito cedo, da obra dos regionalistas nordestinos. Graciliano Ramos, por exemplo, um autor que admiro até hoje, li pela primeira vez quando eu tinha 14 anos, suas obras faziam parte da pequeníssima biblioteca que meu pai tinha em casa. Era muito pequena, mas na área de ficção era boa, basicamente voltada para esses escritores regionalistas nordestinos. Brasília me dava mais liberdade, seguir um curso ainda não trilhado, tentar fazer uma literatura que tivesse pouco a ver com o pitoresco, clichê, já conhecido… Na minha literatura situada em Brasília há sempre um ou outro personagem nordestino. Posso, portanto, trazer o Nordeste. Mas posso trazer também outros elementos porque se trata de um local com uma identidade em aberto, cambiante, múltipla, que pode assimilar o que vem de fora. Posso trazer diferentes conhecimentos, diferentes experiências, diferentes leituras do Nordeste, de outras partes do Brasil, e também de outras partes do mundo. Aliás, Brasília é um patrimônio não só do Brasil. Uma espécie de patrimônio da humanidade porque é a única cidade que foi construída inteirinha sob um princípio do Modernismo nos anos 1950, da Europa principalmente. Ao mesmo tempo, é uma cidade muito brasileira, sobretudo por sua dimensão mítica. Nessa dimensão, acompanhou toda a história do Brasil independente. Por outro lado é uma cidade para qual afluiu um pouco o Brasil inteiro. O Brasil real está lá também, não apenas esse Brasil do sonho modernista, mas o Brasil da miséria, dos dramas humanos. Tudo isso está muito presente lá, principalmente em seus arredores, nas cidades-satélite. Essa diversidade da cidade me atraiu, bem como o contraste do plano moderno, racional, com o que surgiu espontaneamente. Por exemplo, as seitas místicas, o irracionalismo dessas seitas que proliferaram nos seus arredores.

É matéria-prima para a literatura…
João Almino – Tudo isso é material para a ficção. No meu novo romance, Cidade livre, pude inclusive ter contato com a aquele momento original de fundação da cidade. Nesse lugarzinho que foi local para onde convergiram pessoas de lugares diferentes do Brasil, trabalhadores que vieram para a construção da cidade. E também estrangeiros. Por exemplo, uma condessa polonesa que fundou um hotel. Vários outros comerciantes, árabes, judeus, enfim, pessoas de diferentes etnias: pessoas que fundaram religiões, pessoas envolvidas na construção, empreiteiros; visitantes ilustres do exterior… Há um bom material, portanto, para a ficção desse momento fundador. Sempre me preocupei, na minha ficção, ao longo dos meus romances (esse é o quinto), com a ideia da fundação, da criação, do novo. Não apenas no seu aspecto conceitual, de inovação propriamente dita, mas também no seu aspecto ilusório. Isso está presente em todos os romances de maneiras distintas.

Fale um pouco sobre o premiado livro Idéias para onde passar o fim do mundo.
João Almino – Foi meu primeiro romance, publicado em 1987. Trata-se de um fantasma que volta à Terra para completar o roteiro de cinema inacabado. Ele, como fantasma, tem uma vantagem, entrar dentro de seus personagens. Essa dimensão que faltava a ele. O romance é a narração do tempo em que ele fica dentro de cada personagem, ele migra de uma personagem para outra. Cada capítulo é narrado a partir da perspectiva daquela personagem. Uma narração em terceira pessoa, feita pelo fantasma. Mas quando ele está dentro de uma personagem ele tem toda a narração interior. Alguns personagens desse romance passarão para os romances seguintes, de maneira diferente. O universo ficcional, portanto, foi definido já nesse primeiro romance. Mas cada romance pode ser lido de maneira independente, as perspectivas mudam muito, inclusive as próprias técnicas. No segundo romance, Samba enredo, o narrador vai ser uma máquina, que vai fazer de maneira fria e objetiva, como deve ser. Mas ela está narrando um material caótico, quente, emocional. Esse contraste me interessa muito, do ponto de vista do estilo.

E o terceiro romance, As cinco estações do amor?
João Almino – O terceiro romance é narrado em primeira pessoa, por uma mulher, a Ana. Um romance de uma busca amorosa dessa personagem, que se conclui na quinta estação do amor, que é uma espécie de utopia amorosa em que o mais próximo, o acessível, é descoberto.

Depois o Livro das emoções…
João Almino – Sim. Depois o Livro das emoções, em que a personagem fotógrafo do primeiro livro, Idéias para onde passar o fim do mundo, responsável por tirar uma fotografia num determinado instante a partir da qual o romance é narrado, se torna o narrador do quarto romance, Livro das emoções. Um livro que é narrado em dois planos. O plano do presente da personagem, em que ele, já muito velho e cego, procura recuperar um álbum fotográfico, que é seu álbum das emoções. Cada fotografia corresponde a uma emoção profunda. E o segundo plano que corresponde à descrição de cada uma daquelas fotografias. O que o leitor lê no romance é a leitura da descrição das fotografias, que compõe o próprio romance. Até chegar ao novo romance, Cidade livre. Em cada um deles há uma brincadeira, um diálogo com algumas mídias contemporâneas. No primeiro livro há o diálogo com o cinema, no segundo um diálogo com a máquina e computador, o terceiro livro é uma espécie de câmera vigilante sobre a personagem que narra a história sempre no presente, e nesse último livro o diálogo com os blogueiros.

Como você lida com a internet?
João Almino – Eu utilizo bastante, mas procuro me disciplinar no uso da internet. Ou seja, não estou com o computador permanentemente ligado. Não estou ligado permanentemente na internet. Acho que isso me tomaria tempo demais de outras coisas que são mais importantes. Então, durante algumas horas específicas do dia checo e-mail, por exemplo. Faço consultas na internet para diferentes razões, a qualquer hora do dia. Faço leituras de jornal, em algum momento do dia. E procuro não passar meu tempo inteiro nisso. Quero ler, ter tempo de leitura. Em geral faço minhas leituras à noite. De manhã cedo, como dizia, me dedico exclusivamente à escrita. Agora, acho fundamental na minha literatura, que esse diálogo com a contemporaneidade, com as novas formas de comunicação, não apague, não coloque em segundo plano, a personagem. O que é fundamental mesmo é a criação das personagens, a dimensão completa delas, seu contexto externo e social, seus conflitos internos, suas contradições…

Como você avalia a produção literária contemporânea brasileira?
João Almino – Uma literatura muito rica e muito diversificada. Ela precisa ser muito mais conhecida fora do Brasil, mas infelizmente isso não ocorre ainda. Os nossos grandes escritores levaram muito tempo para serem conhecidos, infelizmente. Mesmo Machado de Assis com tudo que se sabe dele – traduções, comentários, especialistas – a obra não é suficientemente conhecida fora do Brasil. João Cabral teve a primeira antologia dele em inglês só em meados da década de 1990. São poucos os contemporâneos conhecidos, traduzidos, mas é inegável a qualidade da literatura que se faz no Brasil. E a diversidade da nossa literatura. É bom que seja assim, que tenhamos muitas tendências. Uma literatura com grande vitalidade.

O que dizer para um jovem que deseja ser escritor?
João Almino – Escreva. Primeiro se pergunte profundamente se é isso mesmo que deseja fazer. Se alguém se lança à escrita com a ideia de que quer ser famoso, ganhar dinheiro, então ele não está se dedicando à literatura propriamente dita. Só se lance na literatura quando estiver certo de que é absolutamente necessário e apaixonante. Se essa paixão existe, é escrever, escrever… E estar disposto a rever e jogar fora, até o momento que sentir que conseguiu criar uma linguagem própria para sua literatura.

Por Ramon Mello

Foto de Tomás Rangel

Há algumas semanas, o diplomata e escritor João Almino, natural de Mossoró, desembarcou de Chicago diretamente para o Festival Mantiqueira, onde nos contou um pouco sobre o livro Cidade livre, lançado durante o festival. O encontro aconteceu na Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier.

João Almino falou a respeito dos personagens que passeiam por seus livros, costurando as histórias, e sobre a relação das cidades com a sua escrita. Estreou na literatura com o premiado romance Idéias para onde passar o fim do mundo, indicado para o Prêmio Jabuti, ganhador do Prêmio do Instituto Nacional do Livro e do Prêmio Candango de Literatura. Além de ficcionista, Almino é autor de escritos sobre história e filosofia política.

Como conciliar a carreira diplomática e o ofício de escritor?
João Almino – Eu separo as duas coisas, inclusive no tempo. Escrevo de manhã, muito cedo, sempre. É algo que faço de maneira disciplinada, há décadas eu trabalho dessa forma. Acordo em geral muito cedo, a menos que eu vá dormir tarde demais por alguma razão. Escrevo religiosamente duas horas por dia. Às vezes, no sábado um pouquinho mais. Assim como existem pessoas que precisam se exercitar fisicamente todos os dias senão se sentem mal, no meu caso preciso escrever um pouquinho todo o dia. É fundamental pra mim. Essa é a hora que me dedico à ficção, realmente. Uma atividade vital. Como as atividades são muito diferentes umas das outras, procuro não ser diplomata enquanto escritor e nem ser escritor enquanto diplomata. De fato, o trabalho da ficção exige, sobretudo, um rompimento com as convenções. Enquanto a escrita da diplomacia deve obedecer às convenções e até aos clichês. Nos dois casos a linguagem é muito importante, mas são de naturezas completamente diferentes uma da outra.

No Brasil há ilustres diplomatas escritores, eles exercem influências na sua literatura?
João Almino – Não. Acho que são muito diferentes os trabalhos dos diplomatas escritores. Não vejo realmente uma escola de escritores diplomatas, o trabalho de um influenciando muitíssimo o trabalho de outro. Cada um cria a sua literatura. É uma boa coincidência que haja escritores diplomatas, alguns deles muito destacados. A poesia de João Cabral de Melo Neto é muitíssimo diferente da poesia de Vinicius de Moraes, ambos diplomatas; ou a ficção do Aloísio Azevedo é muitíssimo diferente da ficção do Guimarães Rosa.

O que se acrescenta de positivo na relação com essas duas profissões?
João Almino – O que traz de bom para o escritor, o fato de ser diplomata, são as oportunidades de conhecer outras culturas. Eventualmente, ter tido a oportunidade de conhecer escritores e intelectuais que de outra forma eu não teria, talvez, conhecido. Em alguns casos, as grandes referências literárias, mesmo fora do Brasil, independem de se estar num lugar ou não. Mesmo que não tivesse morado na França, acho que eu teria lido Proust. Não precisaria ter morado lá. Nunca morei na Rússia, mas li os autores russos. Isso independe de se estar num lugar. Mas sem dúvida, algumas oportunidades se abriram. Alguns escritores, poetas e romancistas, que conheci lá fora, eu não teria conhecido se não exercesse essa atividade.

Você nasceu em Mossoró, interior do Nordeste brasileiro, e atualmente reside em Chicago. O que fica de sua cidade natal em sua escrita? Como as cidades interagem com sua produção literária?
João Almino – Meu maior dilema era se eu deveria situar as minhas histórias no Nordeste, de onde eu venho, especialmente Mossoró, ou em Brasília, onde eu morei durante dez anos. Em Mossoró morei os 12 primeiros anos da minha vida, depois oito anos em Fortaleza. O que me levou a não situar as histórias no Nordeste é porque fui leitor, muito cedo, da obra dos regionalistas nordestinos. Graciliano Ramos, por exemplo, um autor que admiro até hoje, li pela primeira vez quando eu tinha 14 anos, suas obras faziam parte da pequeníssima biblioteca que meu pai tinha em casa. Era muito pequena, mas na área de ficção era boa, basicamente voltada para esses escritores regionalistas nordestinos. Brasília me dava mais liberdade, seguir um curso ainda não trilhado, tentar fazer uma literatura que tivesse pouco a ver com o pitoresco, clichê, já conhecido… Na minha literatura situada em Brasília há sempre um ou outro personagem nordestino. Posso, portanto, trazer o Nordeste. Mas posso trazer também outros elementos porque se trata de um local com uma identidade em aberto, cambiante, múltipla, que pode assimilar o que vem de fora. Posso trazer diferentes conhecimentos, diferentes experiências, diferentes leituras do Nordeste, de outras partes do Brasil, e também de outras partes do mundo. Aliás, Brasília é um patrimônio não só do Brasil. Uma espécie de patrimônio da humanidade porque é a única cidade que foi construída inteirinha sob um princípio do Modernismo nos anos 1950, da Europa principalmente. Ao mesmo tempo, é uma cidade muito brasileira, sobretudo por sua dimensão mítica. Nessa dimensão, acompanhou toda a história do Brasil independente. Por outro lado é uma cidade para qual afluiu um pouco o Brasil inteiro. O Brasil real está lá também, não apenas esse Brasil do sonho modernista, mas o Brasil da miséria, dos dramas humanos. Tudo isso está muito presente lá, principalmente em seus arredores, nas cidades-satélite. Essa diversidade da cidade me atraiu, bem como o contraste do plano moderno, racional, com o que surgiu espontaneamente. Por exemplo, as seitas místicas, o irracionalismo dessas seitas que proliferaram nos seus arredores.

É matéria-prima para a literatura…
João Almino – Tudo isso é material para a ficção. No meu novo romance, Cidade livre, pude inclusive ter contato com a aquele momento original de fundação da cidade. Nesse lugarzinho que foi local para onde convergiram pessoas de lugares diferentes do Brasil, trabalhadores que vieram para a construção da cidade. E também estrangeiros. Por exemplo, uma condessa polonesa que fundou um hotel. Vários outros comerciantes, árabes, judeus, enfim, pessoas de diferentes etnias: pessoas que fundaram religiões, pessoas envolvidas na construção, empreiteiros; visitantes ilustres do exterior… Há um bom material, portanto, para a ficção desse momento fundador. Sempre me preocupei, na minha ficção, ao longo dos meus romances (esse é o quinto), com a ideia da fundação, da criação, do novo. Não apenas no seu aspecto conceitual, de inovação propriamente dita, mas também no seu aspecto ilusório. Isso está presente em todos os romances de maneiras distintas.

Fale um pouco sobre o premiado livro Idéias para onde passar o fim do mundo.
João Almino – Foi meu primeiro romance, publicado em 1987. Trata-se de um fantasma que volta à Terra para completar o roteiro de cinema inacabado. Ele, como fantasma, tem uma vantagem, entrar dentro de seus personagens. Essa dimensão que faltava a ele. O romance é a narração do tempo em que ele fica dentro de cada personagem, ele migra de uma personagem para outra. Cada capítulo é narrado a partir da perspectiva daquela personagem. Uma narração em terceira pessoa, feita pelo fantasma. Mas quando ele está dentro de uma personagem ele tem toda a narração interior. Alguns personagens desse romance passarão para os romances seguintes, de maneira diferente. O universo ficcional, portanto, foi definido já nesse primeiro romance. Mas cada romance pode ser lido de maneira independente, as perspectivas mudam muito, inclusive as próprias técnicas. No segundo romance, Samba enredo, o narrador vai ser uma máquina, que vai fazer de maneira fria e objetiva, como deve ser. Mas ela está narrando um material caótico, quente, emocional. Esse contraste me interessa muito, do ponto de vista do estilo.

E o terceiro romance, As cinco estações do amor?
João Almino – O terceiro romance é narrado em primeira pessoa, por uma mulher, a Ana. Um romance de uma busca amorosa dessa personagem, que se conclui na quinta estação do amor, que é uma espécie de utopia amorosa em que o mais próximo, o acessível, é descoberto.

Depois o Livro das emoções…
João Almino – Sim. Depois o Livro das emoções, em que a personagem fotógrafo do primeiro livro, Idéias para onde passar o fim do mundo, responsável por tirar uma fotografia num determinado instante a partir da qual o romance é narrado, se torna o narrador do quarto romance, Livro das emoções. Um livro que é narrado em dois planos. O plano do presente da personagem, em que ele, já muito velho e cego, procura recuperar um álbum fotográfico, que é seu álbum das emoções. Cada fotografia corresponde a uma emoção profunda. E o segundo plano que corresponde à descrição de cada uma daquelas fotografias. O que o leitor lê no romance é a leitura da descrição das fotografias, que compõe o próprio romance. Até chegar ao novo romance, Cidade livre. Em cada um deles há uma brincadeira, um diálogo com algumas mídias contemporâneas. No primeiro livro há o diálogo com o cinema, no segundo um diálogo com a máquina e computador, o terceiro livro é uma espécie de câmera vigilante sobre a personagem que narra a história sempre no presente, e nesse último livro o diálogo com os blogueiros.

Como você lida com a internet?
João Almino – Eu utilizo bastante, mas procuro me disciplinar no uso da internet. Ou seja, não estou com o computador permanentemente ligado. Não estou ligado permanentemente na internet. Acho que isso me tomaria tempo demais de outras coisas que são mais importantes. Então, durante algumas horas específicas do dia checo e-mail, por exemplo. Faço consultas na internet para diferentes razões, a qualquer hora do dia. Faço leituras de jornal, em algum momento do dia. E procuro não passar meu tempo inteiro nisso. Quero ler, ter tempo de leitura. Em geral faço minhas leituras à noite. De manhã cedo, como dizia, me dedico exclusivamente à escrita. Agora, acho fundamental na minha literatura, que esse diálogo com a contemporaneidade, com as novas formas de comunicação, não apague, não coloque em segundo plano, a personagem. O que é fundamental mesmo é a criação das personagens, a dimensão completa delas, seu contexto externo e social, seus conflitos internos, suas contradições…

Como você avalia a produção literária contemporânea brasileira?
João Almino – Uma literatura muito rica e muito diversificada. Ela precisa ser muito mais conhecida fora do Brasil, mas infelizmente isso não ocorre ainda. Os nossos grandes escritores levaram muito tempo para serem conhecidos, infelizmente. Mesmo Machado de Assis com tudo que se sabe dele – traduções, comentários, especialistas – a obra não é suficientemente conhecida fora do Brasil. João Cabral teve a primeira antologia dele em inglês só em meados da década de 1990. São poucos os contemporâneos conhecidos, traduzidos, mas é inegável a qualidade da literatura que se faz no Brasil. E a diversidade da nossa literatura. É bom que seja assim, que tenhamos muitas tendências. Uma literatura com grande vitalidade.

O que dizer para um jovem que deseja ser escritor?
João Almino – Escreva. Primeiro se pergunte profundamente se é isso mesmo que deseja fazer. Se alguém se lança à escrita com a ideia de que quer ser famoso, ganhar dinheiro, então ele não está se dedicando à literatura propriamente dita. Só se lance na literatura quando estiver certo de que é absolutamente necessário e apaixonante. Se essa paixão existe, é escrever, escrever… E estar disposto a rever e jogar fora, até o momento que sentir que conseguiu criar uma linguagem própria para sua literatura.

Por Ramon Mello

Foto de Tomás Rangel

Há algumas semanas, o diplomata e escritor João Almino, natural de Mossoró, desembarcou de Chicago diretamente para o Festival Mantiqueira, onde nos contou um pouco sobre o livro Cidade livre, lançado durante o festival. O encontro aconteceu na Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier.

João Almino falou a respeito dos personagens que passeiam por seus livros, costurando as histórias, e sobre a relação das cidades com a sua escrita. Estreou na literatura com o premiado romance Idéias para onde passar o fim do mundo, indicado para o Prêmio Jabuti, ganhador do Prêmio do Instituto Nacional do Livro e do Prêmio Candango de Literatura. Além de ficcionista, Almino é autor de escritos sobre história e filosofia política.

Como conciliar a carreira diplomática e o ofício de escritor?
João Almino – Eu separo as duas coisas, inclusive no tempo. Escrevo de manhã, muito cedo, sempre. É algo que faço de maneira disciplinada, há décadas eu trabalho dessa forma. Acordo em geral muito cedo, a menos que eu vá dormir tarde demais por alguma razão. Escrevo religiosamente duas horas por dia. Às vezes, no sábado um pouquinho mais. Assim como existem pessoas que precisam se exercitar fisicamente todos os dias senão se sentem mal, no meu caso preciso escrever um pouquinho todo o dia. É fundamental pra mim. Essa é a hora que me dedico à ficção, realmente. Uma atividade vital. Como as atividades são muito diferentes umas das outras, procuro não ser diplomata enquanto escritor e nem ser escritor enquanto diplomata. De fato, o trabalho da ficção exige, sobretudo, um rompimento com as convenções. Enquanto a escrita da diplomacia deve obedecer às convenções e até aos clichês. Nos dois casos a linguagem é muito importante, mas são de naturezas completamente diferentes uma da outra.

No Brasil há ilustres diplomatas escritores, eles exercem influências na sua literatura?
João Almino – Não. Acho que são muito diferentes os trabalhos dos diplomatas escritores. Não vejo realmente uma escola de escritores diplomatas, o trabalho de um influenciando muitíssimo o trabalho de outro. Cada um cria a sua literatura. É uma boa coincidência que haja escritores diplomatas, alguns deles muito destacados. A poesia de João Cabral de Melo Neto é muitíssimo diferente da poesia de Vinicius de Moraes, ambos diplomatas; ou a ficção do Aloísio Azevedo é muitíssimo diferente da ficção do Guimarães Rosa.

O que se acrescenta de positivo na relação com essas duas profissões?
João Almino – O que traz de bom para o escritor, o fato de ser diplomata, são as oportunidades de conhecer outras culturas. Eventualmente, ter tido a oportunidade de conhecer escritores e intelectuais que de outra forma eu não teria, talvez, conhecido. Em alguns casos, as grandes referências literárias, mesmo fora do Brasil, independem de se estar num lugar ou não. Mesmo que não tivesse morado na França, acho que eu teria lido Proust. Não precisaria ter morado lá. Nunca morei na Rússia, mas li os autores russos. Isso independe de se estar num lugar. Mas sem dúvida, algumas oportunidades se abriram. Alguns escritores, poetas e romancistas, que conheci lá fora, eu não teria conhecido se não exercesse essa atividade.

Você nasceu em Mossoró, interior do Nordeste brasileiro, e atualmente reside em Chicago. O que fica de sua cidade natal em sua escrita? Como as cidades interagem com sua produção literária?
João Almino – Meu maior dilema era se eu deveria situar as minhas histórias no Nordeste, de onde eu venho, especialmente Mossoró, ou em Brasília, onde eu morei durante dez anos. Em Mossoró morei os 12 primeiros anos da minha vida, depois oito anos em Fortaleza. O que me levou a não situar as histórias no Nordeste é porque fui leitor, muito cedo, da obra dos regionalistas nordestinos. Graciliano Ramos, por exemplo, um autor que admiro até hoje, li pela primeira vez quando eu tinha 14 anos, suas obras faziam parte da pequeníssima biblioteca que meu pai tinha em casa. Era muito pequena, mas na área de ficção era boa, basicamente voltada para esses escritores regionalistas nordestinos. Brasília me dava mais liberdade, seguir um curso ainda não trilhado, tentar fazer uma literatura que tivesse pouco a ver com o pitoresco, clichê, já conhecido… Na minha literatura situada em Brasília há sempre um ou outro personagem nordestino. Posso, portanto, trazer o Nordeste. Mas posso trazer também outros elementos porque se trata de um local com uma identidade em aberto, cambiante, múltipla, que pode assimilar o que vem de fora. Posso trazer diferentes conhecimentos, diferentes experiências, diferentes leituras do Nordeste, de outras partes do Brasil, e também de outras partes do mundo. Aliás, Brasília é um patrimônio não só do Brasil. Uma espécie de patrimônio da humanidade porque é a única cidade que foi construída inteirinha sob um princípio do Modernismo nos anos 1950, da Europa principalmente. Ao mesmo tempo, é uma cidade muito brasileira, sobretudo por sua dimensão mítica. Nessa dimensão, acompanhou toda a história do Brasil independente. Por outro lado é uma cidade para qual afluiu um pouco o Brasil inteiro. O Brasil real está lá também, não apenas esse Brasil do sonho modernista, mas o Brasil da miséria, dos dramas humanos. Tudo isso está muito presente lá, principalmente em seus arredores, nas cidades-satélite. Essa diversidade da cidade me atraiu, bem como o contraste do plano moderno, racional, com o que surgiu espontaneamente. Por exemplo, as seitas místicas, o irracionalismo dessas seitas que proliferaram nos seus arredores.

É matéria-prima para a literatura…
João Almino – Tudo isso é material para a ficção. No meu novo romance, Cidade livre, pude inclusive ter contato com a aquele momento original de fundação da cidade. Nesse lugarzinho que foi local para onde convergiram pessoas de lugares diferentes do Brasil, trabalhadores que vieram para a construção da cidade. E também estrangeiros. Por exemplo, uma condessa polonesa que fundou um hotel. Vários outros comerciantes, árabes, judeus, enfim, pessoas de diferentes etnias: pessoas que fundaram religiões, pessoas envolvidas na construção, empreiteiros; visitantes ilustres do exterior… Há um bom material, portanto, para a ficção desse momento fundador. Sempre me preocupei, na minha ficção, ao longo dos meus romances (esse é o quinto), com a ideia da fundação, da criação, do novo. Não apenas no seu aspecto conceitual, de inovação propriamente dita, mas também no seu aspecto ilusório. Isso está presente em todos os romances de maneiras distintas.

Fale um pouco sobre o premiado livro Idéias para onde passar o fim do mundo.
João Almino – Foi meu primeiro romance, publicado em 1987. Trata-se de um fantasma que volta à Terra para completar o roteiro de cinema inacabado. Ele, como fantasma, tem uma vantagem, entrar dentro de seus personagens. Essa dimensão que faltava a ele. O romance é a narração do tempo em que ele fica dentro de cada personagem, ele migra de uma personagem para outra. Cada capítulo é narrado a partir da perspectiva daquela personagem. Uma narração em terceira pessoa, feita pelo fantasma. Mas quando ele está dentro de uma personagem ele tem toda a narração interior. Alguns personagens desse romance passarão para os romances seguintes, de maneira diferente. O universo ficcional, portanto, foi definido já nesse primeiro romance. Mas cada romance pode ser lido de maneira independente, as perspectivas mudam muito, inclusive as próprias técnicas. No segundo romance, Samba enredo, o narrador vai ser uma máquina, que vai fazer de maneira fria e objetiva, como deve ser. Mas ela está narrando um material caótico, quente, emocional. Esse contraste me interessa muito, do ponto de vista do estilo.

E o terceiro romance, As cinco estações do amor?
João Almino – O terceiro romance é narrado em primeira pessoa, por uma mulher, a Ana. Um romance de uma busca amorosa dessa personagem, que se conclui na quinta estação do amor, que é uma espécie de utopia amorosa em que o mais próximo, o acessível, é descoberto.

Depois o Livro das emoções…
João Almino – Sim. Depois o Livro das emoções, em que a personagem fotógrafo do primeiro livro, Idéias para onde passar o fim do mundo, responsável por tirar uma fotografia num determinado instante a partir da qual o romance é narrado, se torna o narrador do quarto romance, Livro das emoções. Um livro que é narrado em dois planos. O plano do presente da personagem, em que ele, já muito velho e cego, procura recuperar um álbum fotográfico, que é seu álbum das emoções. Cada fotografia corresponde a uma emoção profunda. E o segundo plano que corresponde à descrição de cada uma daquelas fotografias. O que o leitor lê no romance é a leitura da descrição das fotografias, que compõe o próprio romance. Até chegar ao novo romance, Cidade livre. Em cada um deles há uma brincadeira, um diálogo com algumas mídias contemporâneas. No primeiro livro há o diálogo com o cinema, no segundo um diálogo com a máquina e computador, o terceiro livro é uma espécie de câmera vigilante sobre a personagem que narra a história sempre no presente, e nesse último livro o diálogo com os blogueiros.

Como você lida com a internet?
João Almino – Eu utilizo bastante, mas procuro me disciplinar no uso da internet. Ou seja, não estou com o computador permanentemente ligado. Não estou ligado permanentemente na internet. Acho que isso me tomaria tempo demais de outras coisas que são mais importantes. Então, durante algumas horas específicas do dia checo e-mail, por exemplo. Faço consultas na internet para diferentes razões, a qualquer hora do dia. Faço leituras de jornal, em algum momento do dia. E procuro não passar meu tempo inteiro nisso. Quero ler, ter tempo de leitura. Em geral faço minhas leituras à noite. De manhã cedo, como dizia, me dedico exclusivamente à escrita. Agora, acho fundamental na minha literatura, que esse diálogo com a contemporaneidade, com as novas formas de comunicação, não apague, não coloque em segundo plano, a personagem. O que é fundamental mesmo é a criação das personagens, a dimensão completa delas, seu contexto externo e social, seus conflitos internos, suas contradições…

Como você avalia a produção literária contemporânea brasileira?
João Almino – Uma literatura muito rica e muito diversificada. Ela precisa ser muito mais conhecida fora do Brasil, mas infelizmente isso não ocorre ainda. Os nossos grandes escritores levaram muito tempo para serem conhecidos, infelizmente. Mesmo Machado de Assis com tudo que se sabe dele – traduções, comentários, especialistas – a obra não é suficientemente conhecida fora do Brasil. João Cabral teve a primeira antologia dele em inglês só em meados da década de 1990. São poucos os contemporâneos conhecidos, traduzidos, mas é inegável a qualidade da literatura que se faz no Brasil. E a diversidade da nossa literatura. É bom que seja assim, que tenhamos muitas tendências. Uma literatura com grande vitalidade.

O que dizer para um jovem que deseja ser escritor?
João Almino – Escreva. Primeiro se pergunte profundamente se é isso mesmo que deseja fazer. Se alguém se lança à escrita com a ideia de que quer ser famoso, ganhar dinheiro, então ele não está se dedicando à literatura propriamente dita. Só se lance na literatura quando estiver certo de que é absolutamente necessário e apaixonante. Se essa paixão existe, é escrever, escrever… E estar disposto a rever e jogar fora, até o momento que sentir que conseguiu criar uma linguagem própria para sua literatura.

Por Ramon Mello

Foto de Tomás Rangel

Há algumas semanas, o diplomata e escritor João Almino, natural de Mossoró, desembarcou de Chicago diretamente para o Festival Mantiqueira, onde nos contou um pouco sobre o livro Cidade livre, lançado durante o festival. O encontro aconteceu na Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier.

João Almino falou a respeito dos personagens que passeiam por seus livros, costurando as histórias, e sobre a relação das cidades com a sua escrita. Estreou na literatura com o premiado romance Idéias para onde passar o fim do mundo, indicado para o Prêmio Jabuti, ganhador do Prêmio do Instituto Nacional do Livro e do Prêmio Candango de Literatura. Além de ficcionista, Almino é autor de escritos sobre história e filosofia política.

Como conciliar a carreira diplomática e o ofício de escritor?
João Almino – Eu separo as duas coisas, inclusive no tempo. Escrevo de manhã, muito cedo, sempre. É algo que faço de maneira disciplinada, há décadas eu trabalho dessa forma. Acordo em geral muito cedo, a menos que eu vá dormir tarde demais por alguma razão. Escrevo religiosamente duas horas por dia. Às vezes, no sábado um pouquinho mais. Assim como existem pessoas que precisam se exercitar fisicamente todos os dias senão se sentem mal, no meu caso preciso escrever um pouquinho todo o dia. É fundamental pra mim. Essa é a hora que me dedico à ficção, realmente. Uma atividade vital. Como as atividades são muito diferentes umas das outras, procuro não ser diplomata enquanto escritor e nem ser escritor enquanto diplomata. De fato, o trabalho da ficção exige, sobretudo, um rompimento com as convenções. Enquanto a escrita da diplomacia deve obedecer às convenções e até aos clichês. Nos dois casos a linguagem é muito importante, mas são de naturezas completamente diferentes uma da outra.

No Brasil há ilustres diplomatas escritores, eles exercem influências na sua literatura?
João Almino – Não. Acho que são muito diferentes os trabalhos dos diplomatas escritores. Não vejo realmente uma escola de escritores diplomatas, o trabalho de um influenciando muitíssimo o trabalho de outro. Cada um cria a sua literatura. É uma boa coincidência que haja escritores diplomatas, alguns deles muito destacados. A poesia de João Cabral de Melo Neto é muitíssimo diferente da poesia de Vinicius de Moraes, ambos diplomatas; ou a ficção do Aloísio Azevedo é muitíssimo diferente da ficção do Guimarães Rosa.

O que se acrescenta de positivo na relação com essas duas profissões?
João Almino – O que traz de bom para o escritor, o fato de ser diplomata, são as oportunidades de conhecer outras culturas. Eventualmente, ter tido a oportunidade de conhecer escritores e intelectuais que de outra forma eu não teria, talvez, conhecido. Em alguns casos, as grandes referências literárias, mesmo fora do Brasil, independem de se estar num lugar ou não. Mesmo que não tivesse morado na França, acho que eu teria lido Proust. Não precisaria ter morado lá. Nunca morei na Rússia, mas li os autores russos. Isso independe de se estar num lugar. Mas sem dúvida, algumas oportunidades se abriram. Alguns escritores, poetas e romancistas, que conheci lá fora, eu não teria conhecido se não exercesse essa atividade.

Você nasceu em Mossoró, interior do Nordeste brasileiro, e atualmente reside em Chicago. O que fica de sua cidade natal em sua escrita? Como as cidades interagem com sua produção literária?
João Almino – Meu maior dilema era se eu deveria situar as minhas histórias no Nordeste, de onde eu venho, especialmente Mossoró, ou em Brasília, onde eu morei durante dez anos. Em Mossoró morei os 12 primeiros anos da minha vida, depois oito anos em Fortaleza. O que me levou a não situar as histórias no Nordeste é porque fui leitor, muito cedo, da obra dos regionalistas nordestinos. Graciliano Ramos, por exemplo, um autor que admiro até hoje, li pela primeira vez quando eu tinha 14 anos, suas obras faziam parte da pequeníssima biblioteca que meu pai tinha em casa. Era muito pequena, mas na área de ficção era boa, basicamente voltada para esses escritores regionalistas nordestinos. Brasília me dava mais liberdade, seguir um curso ainda não trilhado, tentar fazer uma literatura que tivesse pouco a ver com o pitoresco, clichê, já conhecido… Na minha literatura situada em Brasília há sempre um ou outro personagem nordestino. Posso, portanto, trazer o Nordeste. Mas posso trazer também outros elementos porque se trata de um local com uma identidade em aberto, cambiante, múltipla, que pode assimilar o que vem de fora. Posso trazer diferentes conhecimentos, diferentes experiências, diferentes leituras do Nordeste, de outras partes do Brasil, e também de outras partes do mundo. Aliás, Brasília é um patrimônio não só do Brasil. Uma espécie de patrimônio da humanidade porque é a única cidade que foi construída inteirinha sob um princípio do Modernismo nos anos 1950, da Europa principalmente. Ao mesmo tempo, é uma cidade muito brasileira, sobretudo por sua dimensão mítica. Nessa dimensão, acompanhou toda a história do Brasil independente. Por outro lado é uma cidade para qual afluiu um pouco o Brasil inteiro. O Brasil real está lá também, não apenas esse Brasil do sonho modernista, mas o Brasil da miséria, dos dramas humanos. Tudo isso está muito presente lá, principalmente em seus arredores, nas cidades-satélite. Essa diversidade da cidade me atraiu, bem como o contraste do plano moderno, racional, com o que surgiu espontaneamente. Por exemplo, as seitas místicas, o irracionalismo dessas seitas que proliferaram nos seus arredores.

É matéria-prima para a literatura…
João Almino – Tudo isso é material para a ficção. No meu novo romance, Cidade livre, pude inclusive ter contato com a aquele momento original de fundação da cidade. Nesse lugarzinho que foi local para onde convergiram pessoas de lugares diferentes do Brasil, trabalhadores que vieram para a construção da cidade. E também estrangeiros. Por exemplo, uma condessa polonesa que fundou um hotel. Vários outros comerciantes, árabes, judeus, enfim, pessoas de diferentes etnias: pessoas que fundaram religiões, pessoas envolvidas na construção, empreiteiros; visitantes ilustres do exterior… Há um bom material, portanto, para a ficção desse momento fundador. Sempre me preocupei, na minha ficção, ao longo dos meus romances (esse é o quinto), com a ideia da fundação, da criação, do novo. Não apenas no seu aspecto conceitual, de inovação propriamente dita, mas também no seu aspecto ilusório. Isso está presente em todos os romances de maneiras distintas.

Fale um pouco sobre o premiado livro Idéias para onde passar o fim do mundo.
João Almino – Foi meu primeiro romance, publicado em 1987. Trata-se de um fantasma que volta à Terra para completar o roteiro de cinema inacabado. Ele, como fantasma, tem uma vantagem, entrar dentro de seus personagens. Essa dimensão que faltava a ele. O romance é a narração do tempo em que ele fica dentro de cada personagem, ele migra de uma personagem para outra. Cada capítulo é narrado a partir da perspectiva daquela personagem. Uma narração em terceira pessoa, feita pelo fantasma. Mas quando ele está dentro de uma personagem ele tem toda a narração interior. Alguns personagens desse romance passarão para os romances seguintes, de maneira diferente. O universo ficcional, portanto, foi definido já nesse primeiro romance. Mas cada romance pode ser lido de maneira independente, as perspectivas mudam muito, inclusive as próprias técnicas. No segundo romance, Samba enredo, o narrador vai ser uma máquina, que vai fazer de maneira fria e objetiva, como deve ser. Mas ela está narrando um material caótico, quente, emocional. Esse contraste me interessa muito, do ponto de vista do estilo.

E o terceiro romance, As cinco estações do amor?
João Almino – O terceiro romance é narrado em primeira pessoa, por uma mulher, a Ana. Um romance de uma busca amorosa dessa personagem, que se conclui na quinta estação do amor, que é uma espécie de utopia amorosa em que o mais próximo, o acessível, é descoberto.

Depois o Livro das emoções…
João Almino – Sim. Depois o Livro das emoções, em que a personagem fotógrafo do primeiro livro, Idéias para onde passar o fim do mundo, responsável por tirar uma fotografia num determinado instante a partir da qual o romance é narrado, se torna o narrador do quarto romance, Livro das emoções. Um livro que é narrado em dois planos. O plano do presente da personagem, em que ele, já muito velho e cego, procura recuperar um álbum fotográfico, que é seu álbum das emoções. Cada fotografia corresponde a uma emoção profunda. E o segundo plano que corresponde à descrição de cada uma daquelas fotografias. O que o leitor lê no romance é a leitura da descrição das fotografias, que compõe o próprio romance. Até chegar ao novo romance, Cidade livre. Em cada um deles há uma brincadeira, um diálogo com algumas mídias contemporâneas. No primeiro livro há o diálogo com o cinema, no segundo um diálogo com a máquina e computador, o terceiro livro é uma espécie de câmera vigilante sobre a personagem que narra a história sempre no presente, e nesse último livro o diálogo com os blogueiros.

Como você lida com a internet?
João Almino – Eu utilizo bastante, mas procuro me disciplinar no uso da internet. Ou seja, não estou com o computador permanentemente ligado. Não estou ligado permanentemente na internet. Acho que isso me tomaria tempo demais de outras coisas que são mais importantes. Então, durante algumas horas específicas do dia checo e-mail, por exemplo. Faço consultas na internet para diferentes razões, a qualquer hora do dia. Faço leituras de jornal, em algum momento do dia. E procuro não passar meu tempo inteiro nisso. Quero ler, ter tempo de leitura. Em geral faço minhas leituras à noite. De manhã cedo, como dizia, me dedico exclusivamente à escrita. Agora, acho fundamental na minha literatura, que esse diálogo com a contemporaneidade, com as novas formas de comunicação, não apague, não coloque em segundo plano, a personagem. O que é fundamental mesmo é a criação das personagens, a dimensão completa delas, seu contexto externo e social, seus conflitos internos, suas contradições…

Como você avalia a produção literária contemporânea brasileira?
João Almino – Uma literatura muito rica e muito diversificada. Ela precisa ser muito mais conhecida fora do Brasil, mas infelizmente isso não ocorre ainda. Os nossos grandes escritores levaram muito tempo para serem conhecidos, infelizmente. Mesmo Machado de Assis com tudo que se sabe dele – traduções, comentários, especialistas – a obra não é suficientemente conhecida fora do Brasil. João Cabral teve a primeira antologia dele em inglês só em meados da década de 1990. São poucos os contemporâneos conhecidos, traduzidos, mas é inegável a qualidade da literatura que se faz no Brasil. E a diversidade da nossa literatura. É bom que seja assim, que tenhamos muitas tendências. Uma literatura com grande vitalidade.

O que dizer para um jovem que deseja ser escritor?
João Almino – Escreva. Primeiro se pergunte profundamente se é isso mesmo que deseja fazer. Se alguém se lança à escrita com a ideia de que quer ser famoso, ganhar dinheiro, então ele não está se dedicando à literatura propriamente dita. Só se lance na literatura quando estiver certo de que é absolutamente necessário e apaixonante. Se essa paixão existe, é escrever, escrever… E estar disposto a rever e jogar fora, até o momento que sentir que conseguiu criar uma linguagem própria para sua literatura.