José Luís Jobim (*)
A partir do século XIX, no Brasil, tivemos muitos escritores de primeira linha que exerceram a crítica literária. No oitocentos, podemos ressaltar a figura de Machado de Assis, ainda hoje considerado nosso maior autor por muitos, e no século XX, entre outros, também as figuras de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Nenhum deles passou inconseqüentemente pela função de crítico, que marcou suas respectivas carreiras em pelo menos dois aspectos.
O primeiro diz respeito ao caráter social da atividade literária. Machado de Assis, por exemplo, que foi crítico literário antes de ser romancista, acabou deixando de lado esta atividade, segundo Mário de Alencar, porque não queria mais correr o risco de magoar os criticados (Alencar, 1942, 9). Mário de Andrade e Manuel Bandeira também relataram problemas em suas relações sociais, advindas das opiniões que emitiram sobre terceiros, e que também repercutiram na recepção de suas obras e nas formas de sociabilidade literária em que se inseriam em seus momentos históricos. No entanto, este é apenas o aspecto mais aparente.
O segundo aspecto, visível somente a um olhar mais atento, é a produtividade que a atividade crítica teve na criação literária destes autores. É preciso, para tanto, resgatar as interseções entre a crítica e a criação, em suas várias faces – por exemplo, observando em que medida a avaliação de obras alheias configura opiniões e estratégias que serão usadas na criação própria do crítico-autor. Não vou me estender aqui sobre este assunto, mas apenas apontar que a dupla face de João Almino – crítico e romancista – insere-se também em uma certa tradição em que julgamentos de autores-críticos sobre textos e contextos relacionam-se com produções literárias próprias.
Contudo, antes de mais nada, é relevante assinalar que nem todos os ficcionistas são também críticos e ensaístas. Dentre os que são, muito poucos são bons em ambos os campos de atuação. João Almino é um destes, conseguindo transitar entre a ficção criativa, o ensaio e a crítica literária, sem perder qualidade. Devemos descartar, entretanto, a opinião de que a sua escrita não é marcada pela passagem em campos distintos, embora relacionados entre si. De fato, o próprio Almino desenvolve uma reflexão sobre esta passagem em Escrita em contraponto – ensaios literários:
Se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra, uma distância tão grande quanto a que separa um artigo sobre música da execução de uma peça, ou um comentário de cinema da projeção de um filme. Quem fala aqui, portanto, não é o autor dos romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta. (Almino, 2008A, 9)
Tentando explorar de modo sintético a relação entre o romancista e o crítico João Almino, nas breves linhas que se seguem, vou explorar três caminhos: 1) a questão da instância narrativa; 2) a crítica ao “realismo”; 3) a intertextualidade. Talvez eu devesse colocar o primeiro e o segundo itens subsumidos no terceiro, porque minha perspectiva vai enfocar predominante e brevemente João Almino como um leitor atento e crítico de Machado, interagindo com este autor e incorporando-o criativamente em O livro das emoções, inclusive em exercícios intertextuais mais explícitos. Minha argumentação vai abranger o romance O livro das emoções (2008) e os volumes de ensaios literários Escrita em contraponto (2008) e O diabrete angélico e o pavão – enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009).
QUEM FALA NO TEXTO?
Como vimos, o crítico João Almino diz que, se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra. Para ele, quem fala em seu ensaio não é o autor dos seus romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que coloca provisoriamente o chapéu do ensaísta.
Sabemos que esta questão de qual é a instância que “fala” no texto é complexa. Helen Caldwell, em seu conhecido livro sobre Dom Casmurro, defendeu que quem escreveu o romance foi Bento Santiago, e não Machado de Assis.[1] Claro, esta posição gerou problemas. Por exemplo, ela afirmou que é Santiago que escreve a estória, embora os nomes fossem dados por Machado[2], porém é possível alegar que ou bem se credita a criação total do mundo ficcional ao autor, ou será preciso um argumento mais elaborado para estabelecer créditos de autoria neste mundo. Talvez seja mais interessante, ao delimitar a “diferença entre o narrador e o autor”, de que fala Almino, considerar hierarquicamente que o autor (Machado de Assis, neste caso) é o criador de todas as instâncias narrativas que aparecem no romance, inclusive o narrador Bento Santiago, o qual, por sua vez, sendo criatura do autor, poderia ser considerado a instância enunciadora da narrativa.
No caso de Machado de Assis, se podemos também aceitar a afirmação de Almino de que há uma “distância” entre o ficcionista e o crítico, precisamos todavia qualificar melhor esta “distância”, pois Machado, em sua crítica literária, antecipa linhas de encaminhamento que realizará em sua produção romanesca, ainda que seja pelo negativo: o que vai condenar na crítica servirá como modelo negativo para o que ele vai empreender como escritor. Em outras palavras, ele evitará o que condena no modelo negativo.[3]
Como sabemos, o bruxo do Cosme Velho foi crítico antes de ser romancista. “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” é de 1858, mas seu primeiro romance, Ressurreição, só surge em 1872. Assim, torna-se importante acompanhar a evolução do pensamento crítico de Machado, talvez menos para chegar a conclusões sobre a justeza ou não de suas opiniões do que para entender como se foram estruturando as opções do escritor em sua própria obra, no diálogo com seu pensamento crítico.
De fato, em sua maturidade Machado aproveitará mais seu tempo em criações literárias, e não na crítica, embora no início de sua carreira ele ainda a praticasse de um modo e com um objetivo especiais. Seria problemático, entretanto, dizer do Machado jovem que ele era um ficcionista “que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta”, porque no início de sua longa carreira Machado não escrevia ainda romances. No entanto, podemos relacionar o momento inicial aos posteriores, os antecedentes aos conseqüentes, e postular que, é claro, foi somente depois de Machado haver-se tornado romancista que ficou nítida a relação entre o que escrevia como crítico e o que fez como romancista. Em outras palavras, foi só depois da existência do romancista que se pôde descrever o crítico como precursor de idéias que seriam elaboradas nos romances. O antecedente passa a ter um novo sentido, a partir da análise do conseqüente. Um sentido que não poderia existir antes de o crítico tornar-se também romancista.
Como crítico, Almino expressa a seguinte opinião sobre os narradores de Machado de Assis:
…os narradores de Machado, freqüentemente em primeira pessoa, como é o caso das Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro, vêem necessariamente através do prisma subjetivo e, portanto, limitado. A Machado interessa a problemática da identidade – quem sou, o que faço no mundo, que sentido têm minhas ações, qual é a fronteira para mim entre a razão e a loucura. Seus romances geralmente relatam as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado. (Almino, 2008 A, 42)
Do narrador de O livro das emoções também poderíamos dizer que relata as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado, ou que narra “as desventuras do desejo” (Almino, 2008 A, 46), como diz Almino sobre Machado.
De fato, Machado de Assis, em sua crítica literária, desenvolveu algumas das principais idéias estéticas que fundamentarão a arquitetura de seus romances. E Machado é uma referência declarada por João Almino:
Ainda leio Machado como se fosse um escritor contemporâneo. Não existe a necessidade de desculpá-lo por ter escrito noutro século. Ele é o mestre por excelência de minha geração literária no Brasil e me influenciou e a outros escritores, como fez com gerações passadas. (Almino, 2008 A, 44)
Como eu já disse antes, João Almino não é apenas romancista, mas também crítico e ensaísta de talento, capaz de produzir tanto ensaios de abrangência ampla, como alguns dos que foram incluídos em Escrita em contraponto – ensaios literários (2008), quanto interpretações sofisticadas de obras singulares, como a de Memórias póstumas de Brás Cubas (Almino, 2009).
Já adianto que não vou aqui, em relação a João Almino, ficar fazendo o papel que Agripino Grieco fez em relação a Machado de Assis, de apontar as referências a outros escritores, e considerar isto um demérito. Claro, Grieco poderia ter como desculpa para ter feito o que fez o fato de, em sua época, ainda ser comum cobrar a “originalidade” como valor basicamente derivado do Romantismo, imaginando-se o autor como a instância responsável pela gênese absoluta da obra, e valorizando-se, pois, a irredutibilidade da obra a qualquer instância precedente. Em outras palavras: considerava-se um demérito a presença da intertextualidade com outras obras e autores, o que hoje preferimos considerar como condição incontornável de qualquer obra literária.
Também sabemos que a pretensão a uma originalidade absoluta é, no mínimo, equivocada. Toda obra encontra a priori um certo quadro de referência já presente, a partir do qual, contra o qual ou com o qual se constitui e pode ser entendida. Não há como admitir o autor como fundamento absoluto da criação textual, se este fundamento não é incondicionado, nem há como conciliar a idéia de liberdade absoluta de criação com o fato de a atividade de produção textual se exercer com/ a partir de/ contra práticas e tradições preexistentes, que funcionam como um certo substrato pré-constituído, no próprio momento da gênese do texto.
João Almino faz parte de uma linhagem de autores modernos que, em vez de insistir na imagem de um sujeito autoral, com uma identidade absoluta, reclusa em si própria, prefere outro caminho. E reflete sobre isto em seu ensaísmo.
Cadu, o narrador de O livro das emoções, declara que aquele livro, com base no seu velho diário fotográfico, “poderá ser considerado um álbum das [suas] memórias sentimentais e incompletas, de uma época em que [ele] via, e via demais.” (Almino, 2008 B, 15) Como memórias, então, o livro tem um narrador que, velho e cego, transforma eventos pessoais e sociais ocorridos no seu passado em texto escrito posteriormente, mas há marcas do gênero “diário”, como a datação de segmentos de texto e a respectiva narração do que ocorreu na data assinalada, seja em termos de ações, seja em termos de reflexões produzidas naquela data.[4] Não se espere, contudo, uma narrativa em que predomine um descritivismo cronológico do passado, porque o narrador (como os de Machado) é propenso a digressões e não segue uma linha temporal estrita: “A vida não se mede por minutos, nem memórias são escritas com a enumeração de tudo que se passa diante dos ponteiros do relógio.” (Almino, 2008 B, 15)
De todo modo, o sentido geral do empreendimento – a chamada “versão final”, com a seleção e arranjo verbais do que vai ser incluído (e a decisão sobre o que vai ser excluído) – é posterior aos eventos narrados, e é atribuído ao narrador, que declara, no último parágrafo: “Imprimi O livro das emoções para entregar a Joana. Não fiz mudanças, a não ser a substituição da última fotografia e o acréscimo do último parágrafo.” (Almino, 2008 B, 254)
A CRÍTICA DO “REALISMO”
Sabemos que, tanto na crítica quanto na obra literária de Machado, há restrições ao Realismo/Naturalismo que então vigorava no ambiente luso-brasileiro. É muito conhecida a sua crítica a O Primo Basílio, de Eça, porém de fato podemos enumerar uma série de outras objeções fundamentadas que Machado fez àquele estilo (Jobim, 2009). Mas a questão do realismo não acabou no oitocentos; continuou em aberto no século XX. No período em que transcorre o enredo de O livro das emoções, há uma série de produtos artísticos (romances, autobiografias, filmes) cujos autores alegam estar de algum modo refletindo uma certa “realidade”, anterior e exterior ao texto. Isto serve como pano de fundo para a tematização da relação entre a arte e a realidade pelos personagens de Almino.
Entre outras coisas, há uma discussão sobre o “realismo”, através da própria atividade de Cadu como fotógrafo. Se, por um lado, desde o daguerreótipo, a fotografia tem forçado os pintores a repensarem sua arte – pois uma pintura “realista” perdeu terreno diante da nova técnica de reprodução do real –, por outro lado o próprio desenvolvimento de uma arte da fotografia fez a pintura ser muito mais do que apenas “reprodutiva”. E depois, como uma problematização da própria função da fotografia, estabelece-se para ela também a possibilidade de ser algo mais do que somente o espelho do real, podendo aspirar à artisticidade, inclusive com a produção de imagens que se relacionam diretamente com as artes visuais “abstratas”, com pretensões menos miméticas em relação ao real.
Assim, em O livro das emoções, o narrador-personagem fotógrafo faz geralmente descrições verbais de suas fotos que não remetem somente ao referente delas, mas aos aspectos de composição da imagem e às intenções e sentimentos do “criador” delas. Por exemplo, sobre a “foto abstrata em preto-e-branco” de número 4, ele declara:
Cada grão de areia aparece em perfeita nitidez, realçado numa impressão em prata. Inicialmente intitulei aquela fotografia As formas da solução, mudando anos depois para seu título atual. Muitas vezes dava títulos que revelassem o que eu sentia e que não fossem meramente descritivos. Aquelas formas enigmáticas em textura tão nítida não se desenhavam apenas na areia. Também na minha mente. (Almino, 2008 B, p. 26)
Mesmo quando não pode mais enxergar, Cadu continua a bater fotos, e elas continuam a ter um sentido mais ligado ao fotógrafo do que ao referente.[5] É interessante observar que, em relação às suas fotos feitas no período em que enxergava, com freqüência Cadu produz descrições que poderíamos considerar mais como “realistas”, porém depois atribui ao quadro apreendido uma emoção:
Naquelas horas sempre me apaixonava pela paisagem. Tudo ficava bonito: o porteiro passando com a vassoura na mão, um casalzinho desfilando pelo centro da quadra, as crianças jogando bola no calçamento, os bebedores de cerveja, ao longe, no bar da entrequadra… Tudo aquilo devia acontecer ao mesmo tempo, junto com folhas voando… Por isso usei a grande-angular. Para que a emoção que me invadia se mostrasse na foto de número 8 acima, todo o espaço encolheu para caber no campo de visão da câmara. Aquela é a foto de uma emoção de fim de tarde, indefinível, sem sentido algum, composta pelo olhar de um ébrio que se esquece na janela. (Almino, 2008 B, p.48, grifos meus)
Sobre a foto número 12, por exemplo, que ele tira de Aída, no primeiro reencontro do futuro casal, diz: “Eis a prova de que a fotografia é capaz de armazenar diálogos inteiros e momentos únicos que nos são caros.” (Almino, 2008 B, 61) E é também com Aída que Cadu tem um diálogo que tematiza mais explicitamente a questão do realismo e da realidade.
Ela desejava ver um filme sobre narcotráfico nos morros do Rio de Janeiro, e Cadu protesta, usando as palavras de seu irmão, que considerava o filme “uma exaltação demagógica da violência e do crime” (Almino, 2008 B, 66), ao que retruca Aída: “-É a realidade […] As coisas são assim e alguém precisa mostrar.”
A seqüência do diálogo, com a resposta de Cadu, é elucidativa:
E não é realista o sonho? O conforto dos ricos? E não será real a minha vida, de passar o dia sem fazer nada, sem viver uma única catástrofe, sem ser assaltado, sem encontrar um bandido pela frente, sem conhecer a criminalidade?
Mas nisso não há narrativa. Não daria um filme.
Para mim, ainda mais real do que a violência é viver com medo da violência, sem me enfrentar jamais com o perigo. O cinema não precisa me convencer de que as notícias de jornal estão certas. Não preciso nem ler jornal. (Almino, 2008 B, 67)
Aída acha que Cadu, por ser fotógrafo, deveria ser comprometido com a ideologia realista: “- A essência da fotografia é representar a realidade, você sabe disso.” (Almino, 2008 B, 67) No entanto, Cadu argumenta que a “realidade” fotografada é “instantânea, passageira e muitas vezes mentirosa”. (Almino, 2008 B, 67)
Exemplo de que a realidade fotografada podia ser mentirosa é a foto da “conversa fingida” que Cadu e Escadinha tiveram na vernissage da exposição de fotografias sobre Eduardo Kaufman. Também é irônico que as fotografias desta exposição, feitas para ridicularizar e expor os defeitos de Kaufman (a quem Cadu odiava), tenham sido interpretadas de modo completamente diferente das intenções do fotógrafo, como uma demonstração das qualidades de Cadu “de humorista criativo, que, como um mágico, conseguia transformar um personagem sério em grotesco; de fotógrafo caricaturista que não recorria a montagens nem a manipulações.” (Almino, 2008 B, 244) Assim, embora Cadu tivesse a intenção de produzir um sentido, o público produziu outro diferente. E o sucesso veio não mediante o sentido atribuído às fotos pelo autor, mas através do atribuído pelo público: “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Gostaram do que não tive intenção de fazer.” (Almino, 2008 B, 244) E se, por um lado, o ressentimento de Cadu – por não ser reconhecido em função do que considerava ser o mais relevante em sua obra[6] – pode ser entendido no quadro de uma certa compreensão de autoria que considera que o autor não é apenas o proprietário da obra, mas também de seu sentido, por outro lado, o tratamento irônico da situação pode remeter a uma crítica da posição autoral. Em outras palavras, pode colocar em cena uma certa linha de avaliação de obras artísticas que as considera como objetos que têm autonomia em relação a seus criadores (e suas respectivas intenções, ao criá-las), e que assim poderão gerar vários e diferentes sentidos, em função dos diferentes e sucessivos públicos que produzirão suas interpretações conforme os contextos históricos e sociais em que se inserem.
Em O livro das emoções, quem encarna o projeto realista como fotógrafo que “representa a realidade” é o personagem Escadinha, fotógrafo que teria inclusive feito fotos de criminosos na Papuda – e que, muito sintomaticamente, era quem fazia sucesso, embora Cadu considerasse seu trabalho “produto comercial de baixa qualidade, com embalagem de Mercado, como um sabonete” (Almino, 2008 B, 68). Não poderíamos aqui, mutatis mutandis, também perceber uma crítica extensiva às narrativas literárias que, à moda Escadinha, vendem produtos comerciais de baixa qualidade, atendendo a uma suposta demanda de mercado, consubstanciada explicitamente na declaração de gosto de Aída? Não estaria O livro das emoções também oferecendo ao público um produto refinado e fora do padrão presumido para best sellers, o que lhe poderia gerar uma situação assemelhada à de Cadu como fotógrafo marginalizado, em oposição ao Escadinha consagrado?
A opinião de Aída parece constituir a versão para fotografia da opinião de Guga, o irmão do narrador, sobre literatura – que veremos adiante. Seu gosto por filmes “realistas”, baseados em narrativas de cunho autobiográfico, é assim descrito pelo narrador:
Aída se maravilhava que fossem histórias verdadeiras, que as personagens existissem na vida real, que a ficção não fosse ficção, que as notícias de jornal pudessem se estender detalhadamente por duzentas, trezentas ou seiscentas páginas, com riqueza de gírias, e depois fossem levadas ao cinema. (Almino, 2008 b, 128)
INTERTEXTUALIDADES
Ao longo da narrativa, há um certo volume de referências literárias, algumas mais explícitas para o leitor comum, outras menos. O capítulo “Quincas Borba e sua dona”, por exemplo, faz referência ao romance homônimo de Machado de Assis. Se o Quincas machadiano também deu ao cachorro de sua propriedade o seu próprio nome, e obrigou Rubião a cuidar dele para não perder a herança, na narrativa de João Almino o irmão do personagem principal, Guga, foi quem deu nome ao cão que intitula esta seção. Guga tinha, na visão do narrador, teorias que “se resumiam quase sempre à constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”. Claro, isto difere das teses do filósofo Quincas Borba, dono do cão do mesmo nome, que aparece em dois romances da chamada fase madura de Machado (Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba).
Quincas Borba, o personagem machadiano, pensava ter desenvolvido “um novo sistema de filosofia”: “Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta.”[7] O caráter individualista e narcísico desta filosofia é apresentado pelo mesmo personagem, no romance Quincas Borba, em que diz, no capítulo VI: “…o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo.”
O “filósofo”, então, cujas idéias foram reunidas em “quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas”[8], expõe seu pensamento, uma mistura das idéias cientificistas da época, articuladas de forma a gerar efeitos humorísticos no leitor.[9]
Guga não tem o perfil do personagem machadiano, mas sabemos que há toda uma linha de abordagem da obra de Machado que considera que o sentido profundo dela é uma certa atitude do autor, que alguns chamam de nihilismo e outros de ceticismo, e que pode levar à “constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”.
E Guga também é responsável pela verbalização de um argumento sobre a criação literária, quando Cadu lhe pergunta sua opinião sobre escrever um livro. Para o irmão, se o autor não for favelado, transexual ou não estiver no meio de nenhum “conflito étnico, cultural ou racial”, sua história não interessa: “A menos que substituas a narrativa por uma catástrofe ou uma cena hiperviolenta.” (Almino, 2008 B, 39) Quando Cadu diz que não tem pretensão literária, que deseja modestamente ser exato sobre o que viu e viveu, produzindo uma espécie de diário, usando suas fotos, Guga acrescenta:
– Ainda assim, precisa haver uma trama na tua vida, que possa criar o enredo ou o suspense. Ou pelo menos tua história deve ser exemplar em algum sentido: deve mostrar que tu conseguiste construir alguma coisa, ainda que seja uma família ou uma empresa, entendes? (Almino, 2008 B, 39)
E Cadu responde: “- Entendi. Por culpa de meu caráter dispersivo, eu de fato nada construíra.” (Almino, 2008 B, 39) De fato, embora a referência de Cadu seja a sua vida, o “caráter dispersivo” serve também para a narrativa que ele constrói sobre ela. Afinal, Cadu vive ao sabor das circunstâncias, exercendo uma ocupação (fotógrafo) que não está atrelada a nenhuma rotina mais definida de trabalho, e lhe permite deslocamentos espaciais e existenciais, transformando-o numa espécie de flaneur, flanando pelos lugares e situações, com o olho e a máquina fotográfica prontos para tentar captar o sentido de momento ou de uma emoção configurada numa imagem. À falta de foco de sua existência correspondem os focos de suas lentes fotográficas e de sua narrativa. As suas reflexões estão, por conseqüência, associadas a isso.
As digressões do narrador de Almino, como as do narrador machadiano, com freqüência dirigem-se também à própria estruturação do enredo, como aquela digressão que antecipa a busca e o encontro de Cadu com o seu suposto filho:
Pensei naqueles romances em que o personagem central, em geral o próprio narrador, de uma hora para outra e em decorrência de uma iluminação, de um acidente trágico ou por uma razão qualquer decide procurar o pai, a mãe, o assassino do pai ou da mãe, o filho ou a filha, o marido ou a mulher desaparecidos, ou alguém que represente a promessa de amor… (Almino, 2008 B, 52)
De fato, ao final da narrativa, a própria crença de que tinha um filho desfaz-se, com a confissão de Berenice de que Pezão é filho de outro homem. Assim, a própria busca do suposto filho perde o sentido original que tinha e transforma-se em outra coisa, que o aproxima da esterilidade do personagem Brás Cubas.
Em relação à obra de Machado, sintomático também é o nome da cadela de Cadu: Marcela.
Afinal, a personagem Marcela de Memórias póstumas de Brás Cubas pode sem maiores problemas ser classificada como uma “cadela”, já que o narrador diz sobre ela: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.” (Assis, 2006, 44). A personagem feminina Marcela de O livro das emoções, por outro lado, declara não desejar fazer parte da coleção de mulheres do narrador: “- Não quero fazer parte da sua coleção de mulheres – me disse, irritada.” (Almino, 2008 B, 65). Mas acaba fazendo, e o narrador promete: “– Se um dia eu tiver uma filha, vou dar o teu nome: Marcela.” (Almino, 2008 B, 217). Depois, em vez de dar o nome à filha que não teve, Marcela acaba sendo o nome da cadela: “Sem filhas nem gatas, daria a minha cadela o nome de Marcela.” (Almino, 2008 B, 224).
Homem de muitas mulheres, Cadu só guardou afeto mais denso para pouquíssimas, e terminou, como o narrador de Memórias Póstumas, sem deixar descendentes. Da estória de O livro das emoções pode-se dizer o mesmo que João Almino diz sobre as Memórias Póstumas:
Não há crime nem castigo, não há punição que vá além dos pequenos dramas, o drama de não se poder ter tudo, o drama das ausências e separações, o drama do medo e o drama da perda. (Almino, 2009, 94)
Usando as palavras do crítico João Almino sobre o romance de Machado (Almino, 2009, 94-95), podemos considerar que o amor de Cadu por Joana depende das circunstâncias objetivas, é um amor pouco linear e imperfeito, ardente e depois esfriado pelo tempo, que sobrevive sob outra forma, a ponto de a declaração final de Cadu ser a de que vai entregar o livro a Joana. Esta ligação profunda com Joana, no entanto, não impediu que ele desfizesse a relação amorosa no passado, tal como aponta Almino sobre Brás Cubas, e nem que tivesse uma série de outros relacionamentos superficiais e passageiros, basicamente de natureza sexual, no que se aproxima de Bentinho:
Se pudermos chamar de amor o que [Brás Cubas] sentiu por Virgília uma boa parte de sua vida, Brás amou Virgília e nenhuma outra mulher e […] a ela se dirige do além, no presente da narrativa, como “minha amada”. Nem sequer o narrador dará a entender que procurará outras mulheres para preencher o vazio que Virgília lhe deixou e isso contrasta com outro importante personagem de Machado de Assis, o Bento de Dom Casmurro, que afirma no penúltimo capítulo daquele livro: “Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou décor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira.” (Almino, 2009, 95)
Cadu, no entanto, se teve muitas mulheres que o consolassem, não teve apenas uma referência de relacionamento afetivo mais denso. De fato, ele chega a casar-se com Aída, que, como a princesa etíope da ópera de Verdi, morre junto do narrador, e cujo filho ele vai de alguma maneira “adotar” – se podemos entender esta palavra não somente em seu sentido estritamente legal, mas como a designação de uma relação de longa duração.
Enquanto Brás Cubas, na frase final de suas Memórias, declara que não teve filhos, e não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”[10], Cadu acreditou durante boa parte de sua vida que tinha tido um filho, fruto de uma relação clandestina com uma empregada, Berenice. Chega mesmo a encontrá-lo, mas acaba descobrindo que ele não era seu filho. No entanto, embora Cadu não tenha deixado descendentes, são os filhos (Maurício e Carolina) de mulheres de sua vida que o acompanham na velhice. Eles são uma espécie de compensação para os filhos que desejou, mas não teve.[11]
E, embora seu irmão Guga ache fundamental a presença textual de uma “lição de vida”, de uma tese ou algo do mesmo âmbito semântico, para que a narrativa desperte interesse no público leitor, Cadu explicita sua posição contrária à tentativa de elaborar uma transcendentalidade em relação à vida narrada: “As histórias de nossas vidas não precisavam provar nada, ter final feliz nem um sentido acima delas mesmas.” (Almino, 2008 B, 135)
Também o crítico João Almino, ao analisar o romance de Machado, sublinha em Memórias póstumas a ausência de um sentido transcendental. O que poderia ser mais adequado para um narrador da linhagem machadiana?
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Mário de. Advertência. In: ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: W. Jackson Editores, 1942. p. 7-10.
ALMINO, João. Escrita em contraponto – ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008. A
—–. O livro das emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008. B
—–. O diabrete angélico e o pavão; enredo e amor possíveis em Brás Cubas. Belo Horizonte, Editora da UFGM, 2009.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2006.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. São Paulo, Ateliê, 2002 [1960]. Trad. Fábio Fonseca de Melo.
JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
—–. Machado de Assis: o romancista como crítico. In: Machado de Assis em linha, vol. 5, 2010. http://machadodeassis.net/index.htm
(*) JOBIM, José Luís. João Almino, o crítico como romancista. In: FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de et alii (org.) Crítica e literatura. Rio de Janeiro/Belém do Pará: De Letras/ Universidade Federal do Pará, 2011. p. 11-26.
[1] (…) Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes. (Caldwell, 2002, 31)
[2] “É Santiago quem escreve sua estória, mas os nomes dos personagens – com exceção de Ezequiel – foram conferidos pelo autor real. Eles representam o elemento do romance que pode, com absoluta certeza, ser posto na conta de Machado.” (Caldwell, 2002, 55)
[3] Desenvolvi mais analiticamente este argumento em: JOBIM, José Luís. Machado de Assis: o crítico como romancista.
[4] “Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for surgindo.” (Almino, 2008, 13)
[5] Veja-se o que diz das fotos que, já cego, tirou de Laura em [14 de julho]: “Claro, não pude ver o resultado, mas cada foto está associada ao sorriso que imaginei em seu rosto, a palavras que ouvi de sua boca, a seu cheiro e à delicadeza de suas mãos.” (Almino, 2008 B, 46)
[6] “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Que prazer eu podia sentir em conquistar a glória por engano?” (Almino, 2008 B, 244)
[7] Idem, Capítulo XCI.
[8] Idem, Capítulo CXVII.
[9] Escrevi mais longamente sobre Quicas Borba em: JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
[10] “— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (Assis, 2006, p. 176)
[11] “Sempre me sentira incompleto sem um filho a meu lado. Se não fosse a tolice de ter acreditado que a vida de solteiro e a ausência de filhos ajudariam a manter acesa a chama do desejo entre mim e Joana, a teria convencido a fazer tratamento contra infertilidade e teria tido com ela não apenas um, mas vários filhos. (Almino, 2008 B, 41)
José Luís Jobim (*)
A partir do século XIX, no Brasil, tivemos muitos escritores de primeira linha que exerceram a crítica literária. No oitocentos, podemos ressaltar a figura de Machado de Assis, ainda hoje considerado nosso maior autor por muitos, e no século XX, entre outros, também as figuras de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Nenhum deles passou inconseqüentemente pela função de crítico, que marcou suas respectivas carreiras em pelo menos dois aspectos.
O primeiro diz respeito ao caráter social da atividade literária. Machado de Assis, por exemplo, que foi crítico literário antes de ser romancista, acabou deixando de lado esta atividade, segundo Mário de Alencar, porque não queria mais correr o risco de magoar os criticados (Alencar, 1942, 9). Mário de Andrade e Manuel Bandeira também relataram problemas em suas relações sociais, advindas das opiniões que emitiram sobre terceiros, e que também repercutiram na recepção de suas obras e nas formas de sociabilidade literária em que se inseriam em seus momentos históricos. No entanto, este é apenas o aspecto mais aparente.
O segundo aspecto, visível somente a um olhar mais atento, é a produtividade que a atividade crítica teve na criação literária destes autores. É preciso, para tanto, resgatar as interseções entre a crítica e a criação, em suas várias faces – por exemplo, observando em que medida a avaliação de obras alheias configura opiniões e estratégias que serão usadas na criação própria do crítico-autor. Não vou me estender aqui sobre este assunto, mas apenas apontar que a dupla face de João Almino – crítico e romancista – insere-se também em uma certa tradição em que julgamentos de autores-críticos sobre textos e contextos relacionam-se com produções literárias próprias.
Contudo, antes de mais nada, é relevante assinalar que nem todos os ficcionistas são também críticos e ensaístas. Dentre os que são, muito poucos são bons em ambos os campos de atuação. João Almino é um destes, conseguindo transitar entre a ficção criativa, o ensaio e a crítica literária, sem perder qualidade. Devemos descartar, entretanto, a opinião de que a sua escrita não é marcada pela passagem em campos distintos, embora relacionados entre si. De fato, o próprio Almino desenvolve uma reflexão sobre esta passagem em Escrita em contraponto – ensaios literários:
Se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra, uma distância tão grande quanto a que separa um artigo sobre música da execução de uma peça, ou um comentário de cinema da projeção de um filme. Quem fala aqui, portanto, não é o autor dos romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta. (Almino, 2008A, 9)
Tentando explorar de modo sintético a relação entre o romancista e o crítico João Almino, nas breves linhas que se seguem, vou explorar três caminhos: 1) a questão da instância narrativa; 2) a crítica ao “realismo”; 3) a intertextualidade. Talvez eu devesse colocar o primeiro e o segundo itens subsumidos no terceiro, porque minha perspectiva vai enfocar predominante e brevemente João Almino como um leitor atento e crítico de Machado, interagindo com este autor e incorporando-o criativamente em O livro das emoções, inclusive em exercícios intertextuais mais explícitos. Minha argumentação vai abranger o romance O livro das emoções (2008) e os volumes de ensaios literários Escrita em contraponto (2008) e O diabrete angélico e o pavão – enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009).
QUEM FALA NO TEXTO?
Como vimos, o crítico João Almino diz que, se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra. Para ele, quem fala em seu ensaio não é o autor dos seus romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que coloca provisoriamente o chapéu do ensaísta.
Sabemos que esta questão de qual é a instância que “fala” no texto é complexa. Helen Caldwell, em seu conhecido livro sobre Dom Casmurro, defendeu que quem escreveu o romance foi Bento Santiago, e não Machado de Assis.[1] Claro, esta posição gerou problemas. Por exemplo, ela afirmou que é Santiago que escreve a estória, embora os nomes fossem dados por Machado[2], porém é possível alegar que ou bem se credita a criação total do mundo ficcional ao autor, ou será preciso um argumento mais elaborado para estabelecer créditos de autoria neste mundo. Talvez seja mais interessante, ao delimitar a “diferença entre o narrador e o autor”, de que fala Almino, considerar hierarquicamente que o autor (Machado de Assis, neste caso) é o criador de todas as instâncias narrativas que aparecem no romance, inclusive o narrador Bento Santiago, o qual, por sua vez, sendo criatura do autor, poderia ser considerado a instância enunciadora da narrativa.
No caso de Machado de Assis, se podemos também aceitar a afirmação de Almino de que há uma “distância” entre o ficcionista e o crítico, precisamos todavia qualificar melhor esta “distância”, pois Machado, em sua crítica literária, antecipa linhas de encaminhamento que realizará em sua produção romanesca, ainda que seja pelo negativo: o que vai condenar na crítica servirá como modelo negativo para o que ele vai empreender como escritor. Em outras palavras, ele evitará o que condena no modelo negativo.[3]
Como sabemos, o bruxo do Cosme Velho foi crítico antes de ser romancista. “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” é de 1858, mas seu primeiro romance, Ressurreição, só surge em 1872. Assim, torna-se importante acompanhar a evolução do pensamento crítico de Machado, talvez menos para chegar a conclusões sobre a justeza ou não de suas opiniões do que para entender como se foram estruturando as opções do escritor em sua própria obra, no diálogo com seu pensamento crítico.
De fato, em sua maturidade Machado aproveitará mais seu tempo em criações literárias, e não na crítica, embora no início de sua carreira ele ainda a praticasse de um modo e com um objetivo especiais. Seria problemático, entretanto, dizer do Machado jovem que ele era um ficcionista “que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta”, porque no início de sua longa carreira Machado não escrevia ainda romances. No entanto, podemos relacionar o momento inicial aos posteriores, os antecedentes aos conseqüentes, e postular que, é claro, foi somente depois de Machado haver-se tornado romancista que ficou nítida a relação entre o que escrevia como crítico e o que fez como romancista. Em outras palavras, foi só depois da existência do romancista que se pôde descrever o crítico como precursor de idéias que seriam elaboradas nos romances. O antecedente passa a ter um novo sentido, a partir da análise do conseqüente. Um sentido que não poderia existir antes de o crítico tornar-se também romancista.
Como crítico, Almino expressa a seguinte opinião sobre os narradores de Machado de Assis:
…os narradores de Machado, freqüentemente em primeira pessoa, como é o caso das Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro, vêem necessariamente através do prisma subjetivo e, portanto, limitado. A Machado interessa a problemática da identidade – quem sou, o que faço no mundo, que sentido têm minhas ações, qual é a fronteira para mim entre a razão e a loucura. Seus romances geralmente relatam as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado. (Almino, 2008 A, 42)
Do narrador de O livro das emoções também poderíamos dizer que relata as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado, ou que narra “as desventuras do desejo” (Almino, 2008 A, 46), como diz Almino sobre Machado.
De fato, Machado de Assis, em sua crítica literária, desenvolveu algumas das principais idéias estéticas que fundamentarão a arquitetura de seus romances. E Machado é uma referência declarada por João Almino:
Ainda leio Machado como se fosse um escritor contemporâneo. Não existe a necessidade de desculpá-lo por ter escrito noutro século. Ele é o mestre por excelência de minha geração literária no Brasil e me influenciou e a outros escritores, como fez com gerações passadas. (Almino, 2008 A, 44)
Como eu já disse antes, João Almino não é apenas romancista, mas também crítico e ensaísta de talento, capaz de produzir tanto ensaios de abrangência ampla, como alguns dos que foram incluídos em Escrita em contraponto – ensaios literários (2008), quanto interpretações sofisticadas de obras singulares, como a de Memórias póstumas de Brás Cubas (Almino, 2009).
Já adianto que não vou aqui, em relação a João Almino, ficar fazendo o papel que Agripino Grieco fez em relação a Machado de Assis, de apontar as referências a outros escritores, e considerar isto um demérito. Claro, Grieco poderia ter como desculpa para ter feito o que fez o fato de, em sua época, ainda ser comum cobrar a “originalidade” como valor basicamente derivado do Romantismo, imaginando-se o autor como a instância responsável pela gênese absoluta da obra, e valorizando-se, pois, a irredutibilidade da obra a qualquer instância precedente. Em outras palavras: considerava-se um demérito a presença da intertextualidade com outras obras e autores, o que hoje preferimos considerar como condição incontornável de qualquer obra literária.
Também sabemos que a pretensão a uma originalidade absoluta é, no mínimo, equivocada. Toda obra encontra a priori um certo quadro de referência já presente, a partir do qual, contra o qual ou com o qual se constitui e pode ser entendida. Não há como admitir o autor como fundamento absoluto da criação textual, se este fundamento não é incondicionado, nem há como conciliar a idéia de liberdade absoluta de criação com o fato de a atividade de produção textual se exercer com/ a partir de/ contra práticas e tradições preexistentes, que funcionam como um certo substrato pré-constituído, no próprio momento da gênese do texto.
João Almino faz parte de uma linhagem de autores modernos que, em vez de insistir na imagem de um sujeito autoral, com uma identidade absoluta, reclusa em si própria, prefere outro caminho. E reflete sobre isto em seu ensaísmo.
Cadu, o narrador de O livro das emoções, declara que aquele livro, com base no seu velho diário fotográfico, “poderá ser considerado um álbum das [suas] memórias sentimentais e incompletas, de uma época em que [ele] via, e via demais.” (Almino, 2008 B, 15) Como memórias, então, o livro tem um narrador que, velho e cego, transforma eventos pessoais e sociais ocorridos no seu passado em texto escrito posteriormente, mas há marcas do gênero “diário”, como a datação de segmentos de texto e a respectiva narração do que ocorreu na data assinalada, seja em termos de ações, seja em termos de reflexões produzidas naquela data.[4] Não se espere, contudo, uma narrativa em que predomine um descritivismo cronológico do passado, porque o narrador (como os de Machado) é propenso a digressões e não segue uma linha temporal estrita: “A vida não se mede por minutos, nem memórias são escritas com a enumeração de tudo que se passa diante dos ponteiros do relógio.” (Almino, 2008 B, 15)
De todo modo, o sentido geral do empreendimento – a chamada “versão final”, com a seleção e arranjo verbais do que vai ser incluído (e a decisão sobre o que vai ser excluído) – é posterior aos eventos narrados, e é atribuído ao narrador, que declara, no último parágrafo: “Imprimi O livro das emoções para entregar a Joana. Não fiz mudanças, a não ser a substituição da última fotografia e o acréscimo do último parágrafo.” (Almino, 2008 B, 254)
A CRÍTICA DO “REALISMO”
Sabemos que, tanto na crítica quanto na obra literária de Machado, há restrições ao Realismo/Naturalismo que então vigorava no ambiente luso-brasileiro. É muito conhecida a sua crítica a O Primo Basílio, de Eça, porém de fato podemos enumerar uma série de outras objeções fundamentadas que Machado fez àquele estilo (Jobim, 2009). Mas a questão do realismo não acabou no oitocentos; continuou em aberto no século XX. No período em que transcorre o enredo de O livro das emoções, há uma série de produtos artísticos (romances, autobiografias, filmes) cujos autores alegam estar de algum modo refletindo uma certa “realidade”, anterior e exterior ao texto. Isto serve como pano de fundo para a tematização da relação entre a arte e a realidade pelos personagens de Almino.
Entre outras coisas, há uma discussão sobre o “realismo”, através da própria atividade de Cadu como fotógrafo. Se, por um lado, desde o daguerreótipo, a fotografia tem forçado os pintores a repensarem sua arte – pois uma pintura “realista” perdeu terreno diante da nova técnica de reprodução do real –, por outro lado o próprio desenvolvimento de uma arte da fotografia fez a pintura ser muito mais do que apenas “reprodutiva”. E depois, como uma problematização da própria função da fotografia, estabelece-se para ela também a possibilidade de ser algo mais do que somente o espelho do real, podendo aspirar à artisticidade, inclusive com a produção de imagens que se relacionam diretamente com as artes visuais “abstratas”, com pretensões menos miméticas em relação ao real.
Assim, em O livro das emoções, o narrador-personagem fotógrafo faz geralmente descrições verbais de suas fotos que não remetem somente ao referente delas, mas aos aspectos de composição da imagem e às intenções e sentimentos do “criador” delas. Por exemplo, sobre a “foto abstrata em preto-e-branco” de número 4, ele declara:
Cada grão de areia aparece em perfeita nitidez, realçado numa impressão em prata. Inicialmente intitulei aquela fotografia As formas da solução, mudando anos depois para seu título atual. Muitas vezes dava títulos que revelassem o que eu sentia e que não fossem meramente descritivos. Aquelas formas enigmáticas em textura tão nítida não se desenhavam apenas na areia. Também na minha mente. (Almino, 2008 B, p. 26)
Mesmo quando não pode mais enxergar, Cadu continua a bater fotos, e elas continuam a ter um sentido mais ligado ao fotógrafo do que ao referente.[5] É interessante observar que, em relação às suas fotos feitas no período em que enxergava, com freqüência Cadu produz descrições que poderíamos considerar mais como “realistas”, porém depois atribui ao quadro apreendido uma emoção:
Naquelas horas sempre me apaixonava pela paisagem. Tudo ficava bonito: o porteiro passando com a vassoura na mão, um casalzinho desfilando pelo centro da quadra, as crianças jogando bola no calçamento, os bebedores de cerveja, ao longe, no bar da entrequadra… Tudo aquilo devia acontecer ao mesmo tempo, junto com folhas voando… Por isso usei a grande-angular. Para que a emoção que me invadia se mostrasse na foto de número 8 acima, todo o espaço encolheu para caber no campo de visão da câmara. Aquela é a foto de uma emoção de fim de tarde, indefinível, sem sentido algum, composta pelo olhar de um ébrio que se esquece na janela. (Almino, 2008 B, p.48, grifos meus)
Sobre a foto número 12, por exemplo, que ele tira de Aída, no primeiro reencontro do futuro casal, diz: “Eis a prova de que a fotografia é capaz de armazenar diálogos inteiros e momentos únicos que nos são caros.” (Almino, 2008 B, 61) E é também com Aída que Cadu tem um diálogo que tematiza mais explicitamente a questão do realismo e da realidade.
Ela desejava ver um filme sobre narcotráfico nos morros do Rio de Janeiro, e Cadu protesta, usando as palavras de seu irmão, que considerava o filme “uma exaltação demagógica da violência e do crime” (Almino, 2008 B, 66), ao que retruca Aída: “-É a realidade […] As coisas são assim e alguém precisa mostrar.”
A seqüência do diálogo, com a resposta de Cadu, é elucidativa:
E não é realista o sonho? O conforto dos ricos? E não será real a minha vida, de passar o dia sem fazer nada, sem viver uma única catástrofe, sem ser assaltado, sem encontrar um bandido pela frente, sem conhecer a criminalidade?
Mas nisso não há narrativa. Não daria um filme.
Para mim, ainda mais real do que a violência é viver com medo da violência, sem me enfrentar jamais com o perigo. O cinema não precisa me convencer de que as notícias de jornal estão certas. Não preciso nem ler jornal. (Almino, 2008 B, 67)
Aída acha que Cadu, por ser fotógrafo, deveria ser comprometido com a ideologia realista: “- A essência da fotografia é representar a realidade, você sabe disso.” (Almino, 2008 B, 67) No entanto, Cadu argumenta que a “realidade” fotografada é “instantânea, passageira e muitas vezes mentirosa”. (Almino, 2008 B, 67)
Exemplo de que a realidade fotografada podia ser mentirosa é a foto da “conversa fingida” que Cadu e Escadinha tiveram na vernissage da exposição de fotografias sobre Eduardo Kaufman. Também é irônico que as fotografias desta exposição, feitas para ridicularizar e expor os defeitos de Kaufman (a quem Cadu odiava), tenham sido interpretadas de modo completamente diferente das intenções do fotógrafo, como uma demonstração das qualidades de Cadu “de humorista criativo, que, como um mágico, conseguia transformar um personagem sério em grotesco; de fotógrafo caricaturista que não recorria a montagens nem a manipulações.” (Almino, 2008 B, 244) Assim, embora Cadu tivesse a intenção de produzir um sentido, o público produziu outro diferente. E o sucesso veio não mediante o sentido atribuído às fotos pelo autor, mas através do atribuído pelo público: “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Gostaram do que não tive intenção de fazer.” (Almino, 2008 B, 244) E se, por um lado, o ressentimento de Cadu – por não ser reconhecido em função do que considerava ser o mais relevante em sua obra[6] – pode ser entendido no quadro de uma certa compreensão de autoria que considera que o autor não é apenas o proprietário da obra, mas também de seu sentido, por outro lado, o tratamento irônico da situação pode remeter a uma crítica da posição autoral. Em outras palavras, pode colocar em cena uma certa linha de avaliação de obras artísticas que as considera como objetos que têm autonomia em relação a seus criadores (e suas respectivas intenções, ao criá-las), e que assim poderão gerar vários e diferentes sentidos, em função dos diferentes e sucessivos públicos que produzirão suas interpretações conforme os contextos históricos e sociais em que se inserem.
Em O livro das emoções, quem encarna o projeto realista como fotógrafo que “representa a realidade” é o personagem Escadinha, fotógrafo que teria inclusive feito fotos de criminosos na Papuda – e que, muito sintomaticamente, era quem fazia sucesso, embora Cadu considerasse seu trabalho “produto comercial de baixa qualidade, com embalagem de Mercado, como um sabonete” (Almino, 2008 B, 68). Não poderíamos aqui, mutatis mutandis, também perceber uma crítica extensiva às narrativas literárias que, à moda Escadinha, vendem produtos comerciais de baixa qualidade, atendendo a uma suposta demanda de mercado, consubstanciada explicitamente na declaração de gosto de Aída? Não estaria O livro das emoções também oferecendo ao público um produto refinado e fora do padrão presumido para best sellers, o que lhe poderia gerar uma situação assemelhada à de Cadu como fotógrafo marginalizado, em oposição ao Escadinha consagrado?
A opinião de Aída parece constituir a versão para fotografia da opinião de Guga, o irmão do narrador, sobre literatura – que veremos adiante. Seu gosto por filmes “realistas”, baseados em narrativas de cunho autobiográfico, é assim descrito pelo narrador:
Aída se maravilhava que fossem histórias verdadeiras, que as personagens existissem na vida real, que a ficção não fosse ficção, que as notícias de jornal pudessem se estender detalhadamente por duzentas, trezentas ou seiscentas páginas, com riqueza de gírias, e depois fossem levadas ao cinema. (Almino, 2008 b, 128)
INTERTEXTUALIDADES
Ao longo da narrativa, há um certo volume de referências literárias, algumas mais explícitas para o leitor comum, outras menos. O capítulo “Quincas Borba e sua dona”, por exemplo, faz referência ao romance homônimo de Machado de Assis. Se o Quincas machadiano também deu ao cachorro de sua propriedade o seu próprio nome, e obrigou Rubião a cuidar dele para não perder a herança, na narrativa de João Almino o irmão do personagem principal, Guga, foi quem deu nome ao cão que intitula esta seção. Guga tinha, na visão do narrador, teorias que “se resumiam quase sempre à constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”. Claro, isto difere das teses do filósofo Quincas Borba, dono do cão do mesmo nome, que aparece em dois romances da chamada fase madura de Machado (Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba).
Quincas Borba, o personagem machadiano, pensava ter desenvolvido “um novo sistema de filosofia”: “Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta.”[7] O caráter individualista e narcísico desta filosofia é apresentado pelo mesmo personagem, no romance Quincas Borba, em que diz, no capítulo VI: “…o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo.”
O “filósofo”, então, cujas idéias foram reunidas em “quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas”[8], expõe seu pensamento, uma mistura das idéias cientificistas da época, articuladas de forma a gerar efeitos humorísticos no leitor.[9]
Guga não tem o perfil do personagem machadiano, mas sabemos que há toda uma linha de abordagem da obra de Machado que considera que o sentido profundo dela é uma certa atitude do autor, que alguns chamam de nihilismo e outros de ceticismo, e que pode levar à “constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”.
E Guga também é responsável pela verbalização de um argumento sobre a criação literária, quando Cadu lhe pergunta sua opinião sobre escrever um livro. Para o irmão, se o autor não for favelado, transexual ou não estiver no meio de nenhum “conflito étnico, cultural ou racial”, sua história não interessa: “A menos que substituas a narrativa por uma catástrofe ou uma cena hiperviolenta.” (Almino, 2008 B, 39) Quando Cadu diz que não tem pretensão literária, que deseja modestamente ser exato sobre o que viu e viveu, produzindo uma espécie de diário, usando suas fotos, Guga acrescenta:
– Ainda assim, precisa haver uma trama na tua vida, que possa criar o enredo ou o suspense. Ou pelo menos tua história deve ser exemplar em algum sentido: deve mostrar que tu conseguiste construir alguma coisa, ainda que seja uma família ou uma empresa, entendes? (Almino, 2008 B, 39)
E Cadu responde: “- Entendi. Por culpa de meu caráter dispersivo, eu de fato nada construíra.” (Almino, 2008 B, 39) De fato, embora a referência de Cadu seja a sua vida, o “caráter dispersivo” serve também para a narrativa que ele constrói sobre ela. Afinal, Cadu vive ao sabor das circunstâncias, exercendo uma ocupação (fotógrafo) que não está atrelada a nenhuma rotina mais definida de trabalho, e lhe permite deslocamentos espaciais e existenciais, transformando-o numa espécie de flaneur, flanando pelos lugares e situações, com o olho e a máquina fotográfica prontos para tentar captar o sentido de momento ou de uma emoção configurada numa imagem. À falta de foco de sua existência correspondem os focos de suas lentes fotográficas e de sua narrativa. As suas reflexões estão, por conseqüência, associadas a isso.
As digressões do narrador de Almino, como as do narrador machadiano, com freqüência dirigem-se também à própria estruturação do enredo, como aquela digressão que antecipa a busca e o encontro de Cadu com o seu suposto filho:
Pensei naqueles romances em que o personagem central, em geral o próprio narrador, de uma hora para outra e em decorrência de uma iluminação, de um acidente trágico ou por uma razão qualquer decide procurar o pai, a mãe, o assassino do pai ou da mãe, o filho ou a filha, o marido ou a mulher desaparecidos, ou alguém que represente a promessa de amor… (Almino, 2008 B, 52)
De fato, ao final da narrativa, a própria crença de que tinha um filho desfaz-se, com a confissão de Berenice de que Pezão é filho de outro homem. Assim, a própria busca do suposto filho perde o sentido original que tinha e transforma-se em outra coisa, que o aproxima da esterilidade do personagem Brás Cubas.
Em relação à obra de Machado, sintomático também é o nome da cadela de Cadu: Marcela.
Afinal, a personagem Marcela de Memórias póstumas de Brás Cubas pode sem maiores problemas ser classificada como uma “cadela”, já que o narrador diz sobre ela: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.” (Assis, 2006, 44). A personagem feminina Marcela de O livro das emoções, por outro lado, declara não desejar fazer parte da coleção de mulheres do narrador: “- Não quero fazer parte da sua coleção de mulheres – me disse, irritada.” (Almino, 2008 B, 65). Mas acaba fazendo, e o narrador promete: “– Se um dia eu tiver uma filha, vou dar o teu nome: Marcela.” (Almino, 2008 B, 217). Depois, em vez de dar o nome à filha que não teve, Marcela acaba sendo o nome da cadela: “Sem filhas nem gatas, daria a minha cadela o nome de Marcela.” (Almino, 2008 B, 224).
Homem de muitas mulheres, Cadu só guardou afeto mais denso para pouquíssimas, e terminou, como o narrador de Memórias Póstumas, sem deixar descendentes. Da estória de O livro das emoções pode-se dizer o mesmo que João Almino diz sobre as Memórias Póstumas:
Não há crime nem castigo, não há punição que vá além dos pequenos dramas, o drama de não se poder ter tudo, o drama das ausências e separações, o drama do medo e o drama da perda. (Almino, 2009, 94)
Usando as palavras do crítico João Almino sobre o romance de Machado (Almino, 2009, 94-95), podemos considerar que o amor de Cadu por Joana depende das circunstâncias objetivas, é um amor pouco linear e imperfeito, ardente e depois esfriado pelo tempo, que sobrevive sob outra forma, a ponto de a declaração final de Cadu ser a de que vai entregar o livro a Joana. Esta ligação profunda com Joana, no entanto, não impediu que ele desfizesse a relação amorosa no passado, tal como aponta Almino sobre Brás Cubas, e nem que tivesse uma série de outros relacionamentos superficiais e passageiros, basicamente de natureza sexual, no que se aproxima de Bentinho:
Se pudermos chamar de amor o que [Brás Cubas] sentiu por Virgília uma boa parte de sua vida, Brás amou Virgília e nenhuma outra mulher e […] a ela se dirige do além, no presente da narrativa, como “minha amada”. Nem sequer o narrador dará a entender que procurará outras mulheres para preencher o vazio que Virgília lhe deixou e isso contrasta com outro importante personagem de Machado de Assis, o Bento de Dom Casmurro, que afirma no penúltimo capítulo daquele livro: “Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou décor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira.” (Almino, 2009, 95)
Cadu, no entanto, se teve muitas mulheres que o consolassem, não teve apenas uma referência de relacionamento afetivo mais denso. De fato, ele chega a casar-se com Aída, que, como a princesa etíope da ópera de Verdi, morre junto do narrador, e cujo filho ele vai de alguma maneira “adotar” – se podemos entender esta palavra não somente em seu sentido estritamente legal, mas como a designação de uma relação de longa duração.
Enquanto Brás Cubas, na frase final de suas Memórias, declara que não teve filhos, e não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”[10], Cadu acreditou durante boa parte de sua vida que tinha tido um filho, fruto de uma relação clandestina com uma empregada, Berenice. Chega mesmo a encontrá-lo, mas acaba descobrindo que ele não era seu filho. No entanto, embora Cadu não tenha deixado descendentes, são os filhos (Maurício e Carolina) de mulheres de sua vida que o acompanham na velhice. Eles são uma espécie de compensação para os filhos que desejou, mas não teve.[11]
E, embora seu irmão Guga ache fundamental a presença textual de uma “lição de vida”, de uma tese ou algo do mesmo âmbito semântico, para que a narrativa desperte interesse no público leitor, Cadu explicita sua posição contrária à tentativa de elaborar uma transcendentalidade em relação à vida narrada: “As histórias de nossas vidas não precisavam provar nada, ter final feliz nem um sentido acima delas mesmas.” (Almino, 2008 B, 135)
Também o crítico João Almino, ao analisar o romance de Machado, sublinha em Memórias póstumas a ausência de um sentido transcendental. O que poderia ser mais adequado para um narrador da linhagem machadiana?
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Mário de. Advertência. In: ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: W. Jackson Editores, 1942. p. 7-10.
ALMINO, João. Escrita em contraponto – ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008. A
—–. O livro das emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008. B
—–. O diabrete angélico e o pavão; enredo e amor possíveis em Brás Cubas. Belo Horizonte, Editora da UFGM, 2009.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2006.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. São Paulo, Ateliê, 2002 [1960]. Trad. Fábio Fonseca de Melo.
JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
—–. Machado de Assis: o romancista como crítico. In: Machado de Assis em linha, vol. 5, 2010. http://machadodeassis.net/index.htm
(*) JOBIM, José Luís. João Almino, o crítico como romancista. In: FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de et alii (org.) Crítica e literatura. Rio de Janeiro/Belém do Pará: De Letras/ Universidade Federal do Pará, 2011. p. 11-26.
[1] (…) Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes. (Caldwell, 2002, 31)
[2] “É Santiago quem escreve sua estória, mas os nomes dos personagens – com exceção de Ezequiel – foram conferidos pelo autor real. Eles representam o elemento do romance que pode, com absoluta certeza, ser posto na conta de Machado.” (Caldwell, 2002, 55)
[3] Desenvolvi mais analiticamente este argumento em: JOBIM, José Luís. Machado de Assis: o crítico como romancista.
[4] “Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for surgindo.” (Almino, 2008, 13)
[5] Veja-se o que diz das fotos que, já cego, tirou de Laura em [14 de julho]: “Claro, não pude ver o resultado, mas cada foto está associada ao sorriso que imaginei em seu rosto, a palavras que ouvi de sua boca, a seu cheiro e à delicadeza de suas mãos.” (Almino, 2008 B, 46)
[6] “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Que prazer eu podia sentir em conquistar a glória por engano?” (Almino, 2008 B, 244)
[7] Idem, Capítulo XCI.
[8] Idem, Capítulo CXVII.
[9] Escrevi mais longamente sobre Quicas Borba em: JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
[10] “— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (Assis, 2006, p. 176)
[11] “Sempre me sentira incompleto sem um filho a meu lado. Se não fosse a tolice de ter acreditado que a vida de solteiro e a ausência de filhos ajudariam a manter acesa a chama do desejo entre mim e Joana, a teria convencido a fazer tratamento contra infertilidade e teria tido com ela não apenas um, mas vários filhos. (Almino, 2008 B, 41)
José Luis Jobim (*)
A partir do século XIX, no Brasil, tivemos muitos escritores de primeira linha que exerceram a crítica literária. No oitocentos, podemos ressaltar a figura de Machado de Assis, ainda hoje considerado nosso maior autor por muitos, e no século XX, entre outros, também as figuras de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Nenhum deles passou inconseqüentemente pela função de crítico, que marcou suas respectivas carreiras em pelo menos dois aspectos.
O primeiro diz respeito ao caráter social da atividade literária. Machado de Assis, por exemplo, que foi crítico literário antes de ser romancista, acabou deixando de lado esta atividade, segundo Mário de Alencar, porque não queria mais correr o risco de magoar os criticados (Alencar, 1942, 9). Mário de Andrade e Manuel Bandeira também relataram problemas em suas relações sociais, advindas das opiniões que emitiram sobre terceiros, e que também repercutiram na recepção de suas obras e nas formas de sociabilidade literária em que se inseriam em seus momentos históricos. No entanto, este é apenas o aspecto mais aparente.
O segundo aspecto, visível somente a um olhar mais atento, é a produtividade que a atividade crítica teve na criação literária destes autores. É preciso, para tanto, resgatar as interseções entre a crítica e a criação, em suas várias faces – por exemplo, observando em que medida a avaliação de obras alheias configura opiniões e estratégias que serão usadas na criação própria do crítico-autor. Não vou me estender aqui sobre este assunto, mas apenas apontar que a dupla face de João Almino – crítico e romancista – insere-se também em uma certa tradição em que julgamentos de autores-críticos sobre textos e contextos relacionam-se com produções literárias próprias.
Contudo, antes de mais nada, é relevante assinalar que nem todos os ficcionistas são também críticos e ensaístas. Dentre os que são, muito poucos são bons em ambos os campos de atuação. João Almino é um destes, conseguindo transitar entre a ficção criativa, o ensaio e a crítica literária, sem perder qualidade. Devemos descartar, entretanto, a opinião de que a sua escrita não é marcada pela passagem em campos distintos, embora relacionados entre si. De fato, o próprio Almino desenvolve uma reflexão sobre esta passagem em Escrita em contraponto – ensaios literários:
Se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra, uma distância tão grande quanto a que separa um artigo sobre música da execução de uma peça, ou um comentário de cinema da projeção de um filme. Quem fala aqui, portanto, não é o autor dos romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta. (Almino, 2008A, 9)
Tentando explorar de modo sintético a relação entre o romancista e o crítico João Almino, nas breves linhas que se seguem, vou explorar três caminhos: 1) a questão da instância narrativa; 2) a crítica ao “realismo”; 3) a intertextualidade. Talvez eu devesse colocar o primeiro e o segundo itens subsumidos no terceiro, porque minha perspectiva vai enfocar predominante e brevemente João Almino como um leitor atento e crítico de Machado, interagindo com este autor e incorporando-o criativamente em O livro das emoções, inclusive em exercícios intertextuais mais explícitos. Minha argumentação vai abranger o romance O livro das emoções (2008) e os volumes de ensaios literários Escrita em contraponto (2008) e O diabrete angélico e o pavão – enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009).
QUEM FALA NO TEXTO?
Como vimos, o crítico João Almino diz que, se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra. Para ele, quem fala em seu ensaio não é o autor dos seus romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que coloca provisoriamente o chapéu do ensaísta.
Sabemos que esta questão de qual é a instância que “fala” no texto é complexa. Helen Caldwell, em seu conhecido livro sobre Dom Casmurro, defendeu que quem escreveu o romance foi Bento Santiago, e não Machado de Assis.[1] Claro, esta posição gerou problemas. Por exemplo, ela afirmou que é Santiago que escreve a estória, embora os nomes fossem dados por Machado[2], porém é possível alegar que ou bem se credita a criação total do mundo ficcional ao autor, ou será preciso um argumento mais elaborado para estabelecer créditos de autoria neste mundo. Talvez seja mais interessante, ao delimitar a “diferença entre o narrador e o autor”, de que fala Almino, considerar hierarquicamente que o autor (Machado de Assis, neste caso) é o criador de todas as instâncias narrativas que aparecem no romance, inclusive o narrador Bento Santiago, o qual, por sua vez, sendo criatura do autor, poderia ser considerado a instância enunciadora da narrativa.
No caso de Machado de Assis, se podemos também aceitar a afirmação de Almino de que há uma “distância” entre o ficcionista e o crítico, precisamos todavia qualificar melhor esta “distância”, pois Machado, em sua crítica literária, antecipa linhas de encaminhamento que realizará em sua produção romanesca, ainda que seja pelo negativo: o que vai condenar na crítica servirá como modelo negativo para o que ele vai empreender como escritor. Em outras palavras, ele evitará o que condena no modelo negativo.[3]
Como sabemos, o bruxo do Cosme Velho foi crítico antes de ser romancista. “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” é de 1858, mas seu primeiro romance, Ressurreição, só surge em 1872. Assim, torna-se importante acompanhar a evolução do pensamento crítico de Machado, talvez menos para chegar a conclusões sobre a justeza ou não de suas opiniões do que para entender como se foram estruturando as opções do escritor em sua própria obra, no diálogo com seu pensamento crítico.
De fato, em sua maturidade Machado aproveitará mais seu tempo em criações literárias, e não na crítica, embora no início de sua carreira ele ainda a praticasse de um modo e com um objetivo especiais. Seria problemático, entretanto, dizer do Machado jovem que ele era um ficcionista “que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta”, porque no início de sua longa carreira Machado não escrevia ainda romances. No entanto, podemos relacionar o momento inicial aos posteriores, os antecedentes aos conseqüentes, e postular que, é claro, foi somente depois de Machado haver-se tornado romancista que ficou nítida a relação entre o que escrevia como crítico e o que fez como romancista. Em outras palavras, foi só depois da existência do romancista que se pôde descrever o crítico como precursor de idéias que seriam elaboradas nos romances. O antecedente passa a ter um novo sentido, a partir da análise do conseqüente. Um sentido que não poderia existir antes de o crítico tornar-se também romancista.
Como crítico, Almino expressa a seguinte opinião sobre os narradores de Machado de Assis:
…os narradores de Machado, freqüentemente em primeira pessoa, como é o caso das Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro, vêem necessariamente através do prisma subjetivo e, portanto, limitado. A Machado interessa a problemática da identidade – quem sou, o que faço no mundo, que sentido têm minhas ações, qual é a fronteira para mim entre a razão e a loucura. Seus romances geralmente relatam as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado. (Almino, 2008 A, 42)
Do narrador de O livro das emoções também poderíamos dizer que relata as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado, ou que narra “as desventuras do desejo” (Almino, 2008 A, 46), como diz Almino sobre Machado.
De fato, Machado de Assis, em sua crítica literária, desenvolveu algumas das principais idéias estéticas que fundamentarão a arquitetura de seus romances. E Machado é uma referência declarada por João Almino:
Ainda leio Machado como se fosse um escritor contemporâneo. Não existe a necessidade de desculpá-lo por ter escrito noutro século. Ele é o mestre por excelência de minha geração literária no Brasil e me influenciou e a outros escritores, como fez com gerações passadas. (Almino, 2008 A, 44)
Como eu já disse antes, João Almino não é apenas romancista, mas também crítico e ensaísta de talento, capaz de produzir tanto ensaios de abrangência ampla, como alguns dos que foram incluídos em Escrita em contraponto – ensaios literários (2008), quanto interpretações sofisticadas de obras singulares, como a de Memórias póstumas de Brás Cubas (Almino, 2009).
Já adianto que não vou aqui, em relação a João Almino, ficar fazendo o papel que Agripino Grieco fez em relação a Machado de Assis, de apontar as referências a outros escritores, e considerar isto um demérito. Claro, Grieco poderia ter como desculpa para ter feito o que fez o fato de, em sua época, ainda ser comum cobrar a “originalidade” como valor basicamente derivado do Romantismo, imaginando-se o autor como a instância responsável pela gênese absoluta da obra, e valorizando-se, pois, a irredutibilidade da obra a qualquer instância precedente. Em outras palavras: considerava-se um demérito a presença da intertextualidade com outras obras e autores, o que hoje preferimos considerar como condição incontornável de qualquer obra literária.
Também sabemos que a pretensão a uma originalidade absoluta é, no mínimo, equivocada. Toda obra encontra a priori um certo quadro de referência já presente, a partir do qual, contra o qual ou com o qual se constitui e pode ser entendida. Não há como admitir o autor como fundamento absoluto da criação textual, se este fundamento não é incondicionado, nem há como conciliar a idéia de liberdade absoluta de criação com o fato de a atividade de produção textual se exercer com/ a partir de/ contra práticas e tradições preexistentes, que funcionam como um certo substrato pré-constituído, no próprio momento da gênese do texto.
João Almino faz parte de uma linhagem de autores modernos que, em vez de insistir na imagem de um sujeito autoral, com uma identidade absoluta, reclusa em si própria, prefere outro caminho. E reflete sobre isto em seu ensaísmo.
Cadu, o narrador de O livro das emoções, declara que aquele livro, com base no seu velho diário fotográfico, “poderá ser considerado um álbum das [suas] memórias sentimentais e incompletas, de uma época em que [ele] via, e via demais.” (Almino, 2008 B, 15) Como memórias, então, o livro tem um narrador que, velho e cego, transforma eventos pessoais e sociais ocorridos no seu passado em texto escrito posteriormente, mas há marcas do gênero “diário”, como a datação de segmentos de texto e a respectiva narração do que ocorreu na data assinalada, seja em termos de ações, seja em termos de reflexões produzidas naquela data.[4] Não se espere, contudo, uma narrativa em que predomine um descritivismo cronológico do passado, porque o narrador (como os de Machado) é propenso a digressões e não segue uma linha temporal estrita: “A vida não se mede por minutos, nem memórias são escritas com a enumeração de tudo que se passa diante dos ponteiros do relógio.” (Almino, 2008 B, 15)
De todo modo, o sentido geral do empreendimento – a chamada “versão final”, com a seleção e arranjo verbais do que vai ser incluído (e a decisão sobre o que vai ser excluído) – é posterior aos eventos narrados, e é atribuído ao narrador, que declara, no último parágrafo: “Imprimi O livro das emoções para entregar a Joana. Não fiz mudanças, a não ser a substituição da última fotografia e o acréscimo do último parágrafo.” (Almino, 2008 B, 254)
A CRÍTICA DO “REALISMO”
Sabemos que, tanto na crítica quanto na obra literária de Machado, há restrições ao Realismo/Naturalismo que então vigorava no ambiente luso-brasileiro. É muito conhecida a sua crítica a O Primo Basílio, de Eça, porém de fato podemos enumerar uma série de outras objeções fundamentadas que Machado fez àquele estilo (Jobim, 2009). Mas a questão do realismo não acabou no oitocentos; continuou em aberto no século XX. No período em que transcorre o enredo de O livro das emoções, há uma série de produtos artísticos (romances, autobiografias, filmes) cujos autores alegam estar de algum modo refletindo uma certa “realidade”, anterior e exterior ao texto. Isto serve como pano de fundo para a tematização da relação entre a arte e a realidade pelos personagens de Almino.
Entre outras coisas, há uma discussão sobre o “realismo”, através da própria atividade de Cadu como fotógrafo. Se, por um lado, desde o daguerreótipo, a fotografia tem forçado os pintores a repensarem sua arte – pois uma pintura “realista” perdeu terreno diante da nova técnica de reprodução do real –, por outro lado o próprio desenvolvimento de uma arte da fotografia fez a pintura ser muito mais do que apenas “reprodutiva”. E depois, como uma problematização da própria função da fotografia, estabelece-se para ela também a possibilidade de ser algo mais do que somente o espelho do real, podendo aspirar à artisticidade, inclusive com a produção de imagens que se relacionam diretamente com as artes visuais “abstratas”, com pretensões menos miméticas em relação ao real.
Assim, em O livro das emoções, o narrador-personagem fotógrafo faz geralmente descrições verbais de suas fotos que não remetem somente ao referente delas, mas aos aspectos de composição da imagem e às intenções e sentimentos do “criador” delas. Por exemplo, sobre a “foto abstrata em preto-e-branco” de número 4, ele declara:
Cada grão de areia aparece em perfeita nitidez, realçado numa impressão em prata. Inicialmente intitulei aquela fotografia As formas da solução, mudando anos depois para seu título atual. Muitas vezes dava títulos que revelassem o que eu sentia e que não fossem meramente descritivos. Aquelas formas enigmáticas em textura tão nítida não se desenhavam apenas na areia. Também na minha mente. (Almino, 2008 B, p. 26)
Mesmo quando não pode mais enxergar, Cadu continua a bater fotos, e elas continuam a ter um sentido mais ligado ao fotógrafo do que ao referente.[5] É interessante observar que, em relação às suas fotos feitas no período em que enxergava, com freqüência Cadu produz descrições que poderíamos considerar mais como “realistas”, porém depois atribui ao quadro apreendido uma emoção:
Naquelas horas sempre me apaixonava pela paisagem. Tudo ficava bonito: o porteiro passando com a vassoura na mão, um casalzinho desfilando pelo centro da quadra, as crianças jogando bola no calçamento, os bebedores de cerveja, ao longe, no bar da entrequadra… Tudo aquilo devia acontecer ao mesmo tempo, junto com folhas voando… Por isso usei a grande-angular. Para que a emoção que me invadia se mostrasse na foto de número 8 acima, todo o espaço encolheu para caber no campo de visão da câmara. Aquela é a foto de uma emoção de fim de tarde, indefinível, sem sentido algum, composta pelo olhar de um ébrio que se esquece na janela. (Almino, 2008 B, p.48, grifos meus)
Sobre a foto número 12, por exemplo, que ele tira de Aída, no primeiro reencontro do futuro casal, diz: “Eis a prova de que a fotografia é capaz de armazenar diálogos inteiros e momentos únicos que nos são caros.” (Almino, 2008 B, 61) E é também com Aída que Cadu tem um diálogo que tematiza mais explicitamente a questão do realismo e da realidade.
Ela desejava ver um filme sobre narcotráfico nos morros do Rio de Janeiro, e Cadu protesta, usando as palavras de seu irmão, que considerava o filme “uma exaltação demagógica da violência e do crime” (Almino, 2008 B, 66), ao que retruca Aída: “-É a realidade […] As coisas são assim e alguém precisa mostrar.”
A seqüência do diálogo, com a resposta de Cadu, é elucidativa:
E não é realista o sonho? O conforto dos ricos? E não será real a minha vida, de passar o dia sem fazer nada, sem viver uma única catástrofe, sem ser assaltado, sem encontrar um bandido pela frente, sem conhecer a criminalidade?
Mas nisso não há narrativa. Não daria um filme.
Para mim, ainda mais real do que a violência é viver com medo da violência, sem me enfrentar jamais com o perigo. O cinema não precisa me convencer de que as notícias de jornal estão certas. Não preciso nem ler jornal. (Almino, 2008 B, 67)
Aída acha que Cadu, por ser fotógrafo, deveria ser comprometido com a ideologia realista: “- A essência da fotografia é representar a realidade, você sabe disso.” (Almino, 2008 B, 67) No entanto, Cadu argumenta que a “realidade” fotografada é “instantânea, passageira e muitas vezes mentirosa”. (Almino, 2008 B, 67)
Exemplo de que a realidade fotografada podia ser mentirosa é a foto da “conversa fingida” que Cadu e Escadinha tiveram na vernissage da exposição de fotografias sobre Eduardo Kaufman. Também é irônico que as fotografias desta exposição, feitas para ridicularizar e expor os defeitos de Kaufman (a quem Cadu odiava), tenham sido interpretadas de modo completamente diferente das intenções do fotógrafo, como uma demonstração das qualidades de Cadu “de humorista criativo, que, como um mágico, conseguia transformar um personagem sério em grotesco; de fotógrafo caricaturista que não recorria a montagens nem a manipulações.” (Almino, 2008 B, 244) Assim, embora Cadu tivesse a intenção de produzir um sentido, o público produziu outro diferente. E o sucesso veio não mediante o sentido atribuído às fotos pelo autor, mas através do atribuído pelo público: “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Gostaram do que não tive intenção de fazer.” (Almino, 2008 B, 244) E se, por um lado, o ressentimento de Cadu – por não ser reconhecido em função do que considerava ser o mais relevante em sua obra[6] – pode ser entendido no quadro de uma certa compreensão de autoria que considera que o autor não é apenas o proprietário da obra, mas também de seu sentido, por outro lado, o tratamento irônico da situação pode remeter a uma crítica da posição autoral. Em outras palavras, pode colocar em cena uma certa linha de avaliação de obras artísticas que as considera como objetos que têm autonomia em relação a seus criadores (e suas respectivas intenções, ao criá-las), e que assim poderão gerar vários e diferentes sentidos, em função dos diferentes e sucessivos públicos que produzirão suas interpretações conforme os contextos históricos e sociais em que se inserem.
Em O livro das emoções, quem encarna o projeto realista como fotógrafo que “representa a realidade” é o personagem Escadinha, fotógrafo que teria inclusive feito fotos de criminosos na Papuda – e que, muito sintomaticamente, era quem fazia sucesso, embora Cadu considerasse seu trabalho “produto comercial de baixa qualidade, com embalagem de Mercado, como um sabonete” (Almino, 2008 B, 68). Não poderíamos aqui, mutatis mutandis, também perceber uma crítica extensiva às narrativas literárias que, à moda Escadinha, vendem produtos comerciais de baixa qualidade, atendendo a uma suposta demanda de mercado, consubstanciada explicitamente na declaração de gosto de Aída? Não estaria O livro das emoções também oferecendo ao público um produto refinado e fora do padrão presumido para best sellers, o que lhe poderia gerar uma situação assemelhada à de Cadu como fotógrafo marginalizado, em oposição ao Escadinha consagrado?
A opinião de Aída parece constituir a versão para fotografia da opinião de Guga, o irmão do narrador, sobre literatura – que veremos adiante. Seu gosto por filmes “realistas”, baseados em narrativas de cunho autobiográfico, é assim descrito pelo narrador:
Aída se maravilhava que fossem histórias verdadeiras, que as personagens existissem na vida real, que a ficção não fosse ficção, que as notícias de jornal pudessem se estender detalhadamente por duzentas, trezentas ou seiscentas páginas, com riqueza de gírias, e depois fossem levadas ao cinema. (Almino, 2008 b, 128)
INTERTEXTUALIDADES
Ao longo da narrativa, há um certo volume de referências literárias, algumas mais explícitas para o leitor comum, outras menos. O capítulo “Quincas Borba e sua dona”, por exemplo, faz referência ao romance homônimo de Machado de Assis. Se o Quincas machadiano também deu ao cachorro de sua propriedade o seu próprio nome, e obrigou Rubião a cuidar dele para não perder a herança, na narrativa de João Almino o irmão do personagem principal, Guga, foi quem deu nome ao cão que intitula esta seção. Guga tinha, na visão do narrador, teorias que “se resumiam quase sempre à constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”. Claro, isto difere das teses do filósofo Quincas Borba, dono do cão do mesmo nome, que aparece em dois romances da chamada fase madura de Machado (Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba).
Quincas Borba, o personagem machadiano, pensava ter desenvolvido “um novo sistema de filosofia”: “Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta.”[7] O caráter individualista e narcísico desta filosofia é apresentado pelo mesmo personagem, no romance Quincas Borba, em que diz, no capítulo VI: “…o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo.”
O “filósofo”, então, cujas idéias foram reunidas em “quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas”[8], expõe seu pensamento, uma mistura das idéias cientificistas da época, articuladas de forma a gerar efeitos humorísticos no leitor.[9]
Guga não tem o perfil do personagem machadiano, mas sabemos que há toda uma linha de abordagem da obra de Machado que considera que o sentido profundo dela é uma certa atitude do autor, que alguns chamam de nihilismo e outros de ceticismo, e que pode levar à “constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”.
E Guga também é responsável pela verbalização de um argumento sobre a criação literária, quando Cadu lhe pergunta sua opinião sobre escrever um livro. Para o irmão, se o autor não for favelado, transexual ou não estiver no meio de nenhum “conflito étnico, cultural ou racial”, sua história não interessa: “A menos que substituas a narrativa por uma catástrofe ou uma cena hiperviolenta.” (Almino, 2008 B, 39) Quando Cadu diz que não tem pretensão literária, que deseja modestamente ser exato sobre o que viu e viveu, produzindo uma espécie de diário, usando suas fotos, Guga acrescenta:
– Ainda assim, precisa haver uma trama na tua vida, que possa criar o enredo ou o suspense. Ou pelo menos tua história deve ser exemplar em algum sentido: deve mostrar que tu conseguiste construir alguma coisa, ainda que seja uma família ou uma empresa, entendes? (Almino, 2008 B, 39)
E Cadu responde: “- Entendi. Por culpa de meu caráter dispersivo, eu de fato nada construíra.” (Almino, 2008 B, 39) De fato, embora a referência de Cadu seja a sua vida, o “caráter dispersivo” serve também para a narrativa que ele constrói sobre ela. Afinal, Cadu vive ao sabor das circunstâncias, exercendo uma ocupação (fotógrafo) que não está atrelada a nenhuma rotina mais definida de trabalho, e lhe permite deslocamentos espaciais e existenciais, transformando-o numa espécie de flaneur, flanando pelos lugares e situações, com o olho e a máquina fotográfica prontos para tentar captar o sentido de momento ou de uma emoção configurada numa imagem. À falta de foco de sua existência correspondem os focos de suas lentes fotográficas e de sua narrativa. As suas reflexões estão, por conseqüência, associadas a isso.
As digressões do narrador de Almino, como as do narrador machadiano, com freqüência dirigem-se também à própria estruturação do enredo, como aquela digressão que antecipa a busca e o encontro de Cadu com o seu suposto filho:
Pensei naqueles romances em que o personagem central, em geral o próprio narrador, de uma hora para outra e em decorrência de uma iluminação, de um acidente trágico ou por uma razão qualquer decide procurar o pai, a mãe, o assassino do pai ou da mãe, o filho ou a filha, o marido ou a mulher desaparecidos, ou alguém que represente a promessa de amor… (Almino, 2008 B, 52)
De fato, ao final da narrativa, a própria crença de que tinha um filho desfaz-se, com a confissão de Berenice de que Pezão é filho de outro homem. Assim, a própria busca do suposto filho perde o sentido original que tinha e transforma-se em outra coisa, que o aproxima da esterilidade do personagem Brás Cubas.
Em relação à obra de Machado, sintomático também é o nome da cadela de Cadu: Marcela.
Afinal, a personagem Marcela de Memórias póstumas de Brás Cubas pode sem maiores problemas ser classificada como uma “cadela”, já que o narrador diz sobre ela: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.” (Assis, 2006, 44). A personagem feminina Marcela de O livro das emoções, por outro lado, declara não desejar fazer parte da coleção de mulheres do narrador: “- Não quero fazer parte da sua coleção de mulheres – me disse, irritada.” (Almino, 2008 B, 65). Mas acaba fazendo, e o narrador promete: “– Se um dia eu tiver uma filha, vou dar o teu nome: Marcela.” (Almino, 2008 B, 217). Depois, em vez de dar o nome à filha que não teve, Marcela acaba sendo o nome da cadela: “Sem filhas nem gatas, daria a minha cadela o nome de Marcela.” (Almino, 2008 B, 224).
Homem de muitas mulheres, Cadu só guardou afeto mais denso para pouquíssimas, e terminou, como o narrador de Memórias Póstumas, sem deixar descendentes. Da estória de O livro das emoções pode-se dizer o mesmo que João Almino diz sobre as Memórias Póstumas:
Não há crime nem castigo, não há punição que vá além dos pequenos dramas, o drama de não se poder ter tudo, o drama das ausências e separações, o drama do medo e o drama da perda. (Almino, 2009, 94)
Usando as palavras do crítico João Almino sobre o romance de Machado (Almino, 2009, 94-95), podemos considerar que o amor de Cadu por Joana depende das circunstâncias objetivas, é um amor pouco linear e imperfeito, ardente e depois esfriado pelo tempo, que sobrevive sob outra forma, a ponto de a declaração final de Cadu ser a de que vai entregar o livro a Joana. Esta ligação profunda com Joana, no entanto, não impediu que ele desfizesse a relação amorosa no passado, tal como aponta Almino sobre Brás Cubas, e nem que tivesse uma série de outros relacionamentos superficiais e passageiros, basicamente de natureza sexual, no que se aproxima de Bentinho:
Se pudermos chamar de amor o que [Brás Cubas] sentiu por Virgília uma boa parte de sua vida, Brás amou Virgília e nenhuma outra mulher e […] a ela se dirige do além, no presente da narrativa, como “minha amada”. Nem sequer o narrador dará a entender que procurará outras mulheres para preencher o vazio que Virgília lhe deixou e isso contrasta com outro importante personagem de Machado de Assis, o Bento de Dom Casmurro, que afirma no penúltimo capítulo daquele livro: “Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou décor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira.” (Almino, 2009, 95)
Cadu, no entanto, se teve muitas mulheres que o consolassem, não teve apenas uma referência de relacionamento afetivo mais denso. De fato, ele chega a casar-se com Aída, que, como a princesa etíope da ópera de Verdi, morre junto do narrador, e cujo filho ele vai de alguma maneira “adotar” – se podemos entender esta palavra não somente em seu sentido estritamente legal, mas como a designação de uma relação de longa duração.
Enquanto Brás Cubas, na frase final de suas Memórias, declara que não teve filhos, e não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”[10], Cadu acreditou durante boa parte de sua vida que tinha tido um filho, fruto de uma relação clandestina com uma empregada, Berenice. Chega mesmo a encontrá-lo, mas acaba descobrindo que ele não era seu filho. No entanto, embora Cadu não tenha deixado descendentes, são os filhos (Maurício e Carolina) de mulheres de sua vida que o acompanham na velhice. Eles são uma espécie de compensação para os filhos que desejou, mas não teve.[11]
E, embora seu irmão Guga ache fundamental a presença textual de uma “lição de vida”, de uma tese ou algo do mesmo âmbito semântico, para que a narrativa desperte interesse no público leitor, Cadu explicita sua posição contrária à tentativa de elaborar uma transcendentalidade em relação à vida narrada: “As histórias de nossas vidas não precisavam provar nada, ter final feliz nem um sentido acima delas mesmas.” (Almino, 2008 B, 135)
Também o crítico João Almino, ao analisar o romance de Machado, sublinha em Memórias póstumas a ausência de um sentido transcendental. O que poderia ser mais adequado para um narrador da linhagem machadiana?
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Mário de. Advertência. In: ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: W. Jackson Editores, 1942. p. 7-10.
ALMINO, João. Escrita em contraponto – ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008. A
—–. O livro das emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008. B
—–. O diabrete angélico e o pavão; enredo e amor possíveis em Brás Cubas. Belo Horizonte, Editora da UFGM, 2009.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2006.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. São Paulo, Ateliê, 2002 [1960]. Trad. Fábio Fonseca de Melo.
JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
—–. Machado de Assis: o romancista como crítico. In: Machado de Assis em linha, vol. 5, 2010. http://machadodeassis.net/index.htm
(*) JOBIM, José Luís. João Almino, o crítico como romancista. In: FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de et alii (org.) Crítica e literatura. Rio de Janeiro/Belém do Pará: De Letras/ Universidade Federal do Pará, 2011. p. 11-26.
[1] (…) Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes. (Caldwell, 2002, 31)
[2] “É Santiago quem escreve sua estória, mas os nomes dos personagens – com exceção de Ezequiel – foram conferidos pelo autor real. Eles representam o elemento do romance que pode, com absoluta certeza, ser posto na conta de Machado.” (Caldwell, 2002, 55)
[3] Desenvolvi mais analiticamente este argumento em: JOBIM, José Luís. Machado de Assis: o crítico como romancista.
[4] “Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for surgindo.” (Almino, 2008, 13)
[5] Veja-se o que diz das fotos que, já cego, tirou de Laura em [14 de julho]: “Claro, não pude ver o resultado, mas cada foto está associada ao sorriso que imaginei em seu rosto, a palavras que ouvi de sua boca, a seu cheiro e à delicadeza de suas mãos.” (Almino, 2008 B, 46)
[6] “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Que prazer eu podia sentir em conquistar a glória por engano?” (Almino, 2008 B, 244)
[7] Idem, Capítulo XCI.
[8] Idem, Capítulo CXVII.
[9] Escrevi mais longamente sobre Quicas Borba em: JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
[10] “— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (Assis, 2006, p. 176)
[11] “Sempre me sentira incompleto sem um filho a meu lado. Se não fosse a tolice de ter acreditado que a vida de solteiro e a ausência de filhos ajudariam a manter acesa a chama do desejo entre mim e Joana, a teria convencido a fazer tratamento contra infertilidade e teria tido com ela não apenas um, mas vários filhos. (Almino, 2008 B, 41)
José Luís Jobim (*)
A partir do século XIX, no Brasil, tivemos muitos escritores de primeira linha que exerceram a crítica literária. No oitocentos, podemos ressaltar a figura de Machado de Assis, ainda hoje considerado nosso maior autor por muitos, e no século XX, entre outros, também as figuras de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Nenhum deles passou inconseqüentemente pela função de crítico, que marcou suas respectivas carreiras em pelo menos dois aspectos.
O primeiro diz respeito ao caráter social da atividade literária. Machado de Assis, por exemplo, que foi crítico literário antes de ser romancista, acabou deixando de lado esta atividade, segundo Mário de Alencar, porque não queria mais correr o risco de magoar os criticados (Alencar, 1942, 9). Mário de Andrade e Manuel Bandeira também relataram problemas em suas relações sociais, advindas das opiniões que emitiram sobre terceiros, e que também repercutiram na recepção de suas obras e nas formas de sociabilidade literária em que se inseriam em seus momentos históricos. No entanto, este é apenas o aspecto mais aparente.
O segundo aspecto, visível somente a um olhar mais atento, é a produtividade que a atividade crítica teve na criação literária destes autores. É preciso, para tanto, resgatar as interseções entre a crítica e a criação, em suas várias faces – por exemplo, observando em que medida a avaliação de obras alheias configura opiniões e estratégias que serão usadas na criação própria do crítico-autor. Não vou me estender aqui sobre este assunto, mas apenas apontar que a dupla face de João Almino – crítico e romancista – insere-se também em uma certa tradição em que julgamentos de autores-críticos sobre textos e contextos relacionam-se com produções literárias próprias.
Contudo, antes de mais nada, é relevante assinalar que nem todos os ficcionistas são também críticos e ensaístas. Dentre os que são, muito poucos são bons em ambos os campos de atuação. João Almino é um destes, conseguindo transitar entre a ficção criativa, o ensaio e a crítica literária, sem perder qualidade. Devemos descartar, entretanto, a opinião de que a sua escrita não é marcada pela passagem em campos distintos, embora relacionados entre si. De fato, o próprio Almino desenvolve uma reflexão sobre esta passagem em Escrita em contraponto – ensaios literários:
Se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra, uma distância tão grande quanto a que separa um artigo sobre música da execução de uma peça, ou um comentário de cinema da projeção de um filme. Quem fala aqui, portanto, não é o autor dos romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta. (Almino, 2008A, 9)
Tentando explorar de modo sintético a relação entre o romancista e o crítico João Almino, nas breves linhas que se seguem, vou explorar três caminhos: 1) a questão da instância narrativa; 2) a crítica ao “realismo”; 3) a intertextualidade. Talvez eu devesse colocar o primeiro e o segundo itens subsumidos no terceiro, porque minha perspectiva vai enfocar predominante e brevemente João Almino como um leitor atento e crítico de Machado, interagindo com este autor e incorporando-o criativamente em O livro das emoções, inclusive em exercícios intertextuais mais explícitos. Minha argumentação vai abranger o romance O livro das emoções (2008) e os volumes de ensaios literários Escrita em contraponto (2008) e O diabrete angélico e o pavão – enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009).
QUEM FALA NO TEXTO?
Como vimos, o crítico João Almino diz que, se há uma diferença entre o narrador e o autor, não é menor a distância entre ambos e o ensaísta que se refere a sua obra. Para ele, quem fala em seu ensaio não é o autor dos seus romances nem seu narrador, mas uma terceira persona, que coloca provisoriamente o chapéu do ensaísta.
Sabemos que esta questão de qual é a instância que “fala” no texto é complexa. Helen Caldwell, em seu conhecido livro sobre Dom Casmurro, defendeu que quem escreveu o romance foi Bento Santiago, e não Machado de Assis.[1] Claro, esta posição gerou problemas. Por exemplo, ela afirmou que é Santiago que escreve a estória, embora os nomes fossem dados por Machado[2], porém é possível alegar que ou bem se credita a criação total do mundo ficcional ao autor, ou será preciso um argumento mais elaborado para estabelecer créditos de autoria neste mundo. Talvez seja mais interessante, ao delimitar a “diferença entre o narrador e o autor”, de que fala Almino, considerar hierarquicamente que o autor (Machado de Assis, neste caso) é o criador de todas as instâncias narrativas que aparecem no romance, inclusive o narrador Bento Santiago, o qual, por sua vez, sendo criatura do autor, poderia ser considerado a instância enunciadora da narrativa.
No caso de Machado de Assis, se podemos também aceitar a afirmação de Almino de que há uma “distância” entre o ficcionista e o crítico, precisamos todavia qualificar melhor esta “distância”, pois Machado, em sua crítica literária, antecipa linhas de encaminhamento que realizará em sua produção romanesca, ainda que seja pelo negativo: o que vai condenar na crítica servirá como modelo negativo para o que ele vai empreender como escritor. Em outras palavras, ele evitará o que condena no modelo negativo.[3]
Como sabemos, o bruxo do Cosme Velho foi crítico antes de ser romancista. “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira” é de 1858, mas seu primeiro romance, Ressurreição, só surge em 1872. Assim, torna-se importante acompanhar a evolução do pensamento crítico de Machado, talvez menos para chegar a conclusões sobre a justeza ou não de suas opiniões do que para entender como se foram estruturando as opções do escritor em sua própria obra, no diálogo com seu pensamento crítico.
De fato, em sua maturidade Machado aproveitará mais seu tempo em criações literárias, e não na crítica, embora no início de sua carreira ele ainda a praticasse de um modo e com um objetivo especiais. Seria problemático, entretanto, dizer do Machado jovem que ele era um ficcionista “que veste provisoriamente o chapéu do ensaísta”, porque no início de sua longa carreira Machado não escrevia ainda romances. No entanto, podemos relacionar o momento inicial aos posteriores, os antecedentes aos conseqüentes, e postular que, é claro, foi somente depois de Machado haver-se tornado romancista que ficou nítida a relação entre o que escrevia como crítico e o que fez como romancista. Em outras palavras, foi só depois da existência do romancista que se pôde descrever o crítico como precursor de idéias que seriam elaboradas nos romances. O antecedente passa a ter um novo sentido, a partir da análise do conseqüente. Um sentido que não poderia existir antes de o crítico tornar-se também romancista.
Como crítico, Almino expressa a seguinte opinião sobre os narradores de Machado de Assis:
…os narradores de Machado, freqüentemente em primeira pessoa, como é o caso das Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro, vêem necessariamente através do prisma subjetivo e, portanto, limitado. A Machado interessa a problemática da identidade – quem sou, o que faço no mundo, que sentido têm minhas ações, qual é a fronteira para mim entre a razão e a loucura. Seus romances geralmente relatam as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado. (Almino, 2008 A, 42)
Do narrador de O livro das emoções também poderíamos dizer que relata as aventuras de um “eu” inconseqüente e frustrado, ou que narra “as desventuras do desejo” (Almino, 2008 A, 46), como diz Almino sobre Machado.
De fato, Machado de Assis, em sua crítica literária, desenvolveu algumas das principais idéias estéticas que fundamentarão a arquitetura de seus romances. E Machado é uma referência declarada por João Almino:
Ainda leio Machado como se fosse um escritor contemporâneo. Não existe a necessidade de desculpá-lo por ter escrito noutro século. Ele é o mestre por excelência de minha geração literária no Brasil e me influenciou e a outros escritores, como fez com gerações passadas. (Almino, 2008 A, 44)
Como eu já disse antes, João Almino não é apenas romancista, mas também crítico e ensaísta de talento, capaz de produzir tanto ensaios de abrangência ampla, como alguns dos que foram incluídos em Escrita em contraponto – ensaios literários (2008), quanto interpretações sofisticadas de obras singulares, como a de Memórias póstumas de Brás Cubas (Almino, 2009).
Já adianto que não vou aqui, em relação a João Almino, ficar fazendo o papel que Agripino Grieco fez em relação a Machado de Assis, de apontar as referências a outros escritores, e considerar isto um demérito. Claro, Grieco poderia ter como desculpa para ter feito o que fez o fato de, em sua época, ainda ser comum cobrar a “originalidade” como valor basicamente derivado do Romantismo, imaginando-se o autor como a instância responsável pela gênese absoluta da obra, e valorizando-se, pois, a irredutibilidade da obra a qualquer instância precedente. Em outras palavras: considerava-se um demérito a presença da intertextualidade com outras obras e autores, o que hoje preferimos considerar como condição incontornável de qualquer obra literária.
Também sabemos que a pretensão a uma originalidade absoluta é, no mínimo, equivocada. Toda obra encontra a priori um certo quadro de referência já presente, a partir do qual, contra o qual ou com o qual se constitui e pode ser entendida. Não há como admitir o autor como fundamento absoluto da criação textual, se este fundamento não é incondicionado, nem há como conciliar a idéia de liberdade absoluta de criação com o fato de a atividade de produção textual se exercer com/ a partir de/ contra práticas e tradições preexistentes, que funcionam como um certo substrato pré-constituído, no próprio momento da gênese do texto.
João Almino faz parte de uma linhagem de autores modernos que, em vez de insistir na imagem de um sujeito autoral, com uma identidade absoluta, reclusa em si própria, prefere outro caminho. E reflete sobre isto em seu ensaísmo.
Cadu, o narrador de O livro das emoções, declara que aquele livro, com base no seu velho diário fotográfico, “poderá ser considerado um álbum das [suas] memórias sentimentais e incompletas, de uma época em que [ele] via, e via demais.” (Almino, 2008 B, 15) Como memórias, então, o livro tem um narrador que, velho e cego, transforma eventos pessoais e sociais ocorridos no seu passado em texto escrito posteriormente, mas há marcas do gênero “diário”, como a datação de segmentos de texto e a respectiva narração do que ocorreu na data assinalada, seja em termos de ações, seja em termos de reflexões produzidas naquela data.[4] Não se espere, contudo, uma narrativa em que predomine um descritivismo cronológico do passado, porque o narrador (como os de Machado) é propenso a digressões e não segue uma linha temporal estrita: “A vida não se mede por minutos, nem memórias são escritas com a enumeração de tudo que se passa diante dos ponteiros do relógio.” (Almino, 2008 B, 15)
De todo modo, o sentido geral do empreendimento – a chamada “versão final”, com a seleção e arranjo verbais do que vai ser incluído (e a decisão sobre o que vai ser excluído) – é posterior aos eventos narrados, e é atribuído ao narrador, que declara, no último parágrafo: “Imprimi O livro das emoções para entregar a Joana. Não fiz mudanças, a não ser a substituição da última fotografia e o acréscimo do último parágrafo.” (Almino, 2008 B, 254)
A CRÍTICA DO “REALISMO”
Sabemos que, tanto na crítica quanto na obra literária de Machado, há restrições ao Realismo/Naturalismo que então vigorava no ambiente luso-brasileiro. É muito conhecida a sua crítica a O Primo Basílio, de Eça, porém de fato podemos enumerar uma série de outras objeções fundamentadas que Machado fez àquele estilo (Jobim, 2009). Mas a questão do realismo não acabou no oitocentos; continuou em aberto no século XX. No período em que transcorre o enredo de O livro das emoções, há uma série de produtos artísticos (romances, autobiografias, filmes) cujos autores alegam estar de algum modo refletindo uma certa “realidade”, anterior e exterior ao texto. Isto serve como pano de fundo para a tematização da relação entre a arte e a realidade pelos personagens de Almino.
Entre outras coisas, há uma discussão sobre o “realismo”, através da própria atividade de Cadu como fotógrafo. Se, por um lado, desde o daguerreótipo, a fotografia tem forçado os pintores a repensarem sua arte – pois uma pintura “realista” perdeu terreno diante da nova técnica de reprodução do real –, por outro lado o próprio desenvolvimento de uma arte da fotografia fez a pintura ser muito mais do que apenas “reprodutiva”. E depois, como uma problematização da própria função da fotografia, estabelece-se para ela também a possibilidade de ser algo mais do que somente o espelho do real, podendo aspirar à artisticidade, inclusive com a produção de imagens que se relacionam diretamente com as artes visuais “abstratas”, com pretensões menos miméticas em relação ao real.
Assim, em O livro das emoções, o narrador-personagem fotógrafo faz geralmente descrições verbais de suas fotos que não remetem somente ao referente delas, mas aos aspectos de composição da imagem e às intenções e sentimentos do “criador” delas. Por exemplo, sobre a “foto abstrata em preto-e-branco” de número 4, ele declara:
Cada grão de areia aparece em perfeita nitidez, realçado numa impressão em prata. Inicialmente intitulei aquela fotografia As formas da solução, mudando anos depois para seu título atual. Muitas vezes dava títulos que revelassem o que eu sentia e que não fossem meramente descritivos. Aquelas formas enigmáticas em textura tão nítida não se desenhavam apenas na areia. Também na minha mente. (Almino, 2008 B, p. 26)
Mesmo quando não pode mais enxergar, Cadu continua a bater fotos, e elas continuam a ter um sentido mais ligado ao fotógrafo do que ao referente.[5] É interessante observar que, em relação às suas fotos feitas no período em que enxergava, com freqüência Cadu produz descrições que poderíamos considerar mais como “realistas”, porém depois atribui ao quadro apreendido uma emoção:
Naquelas horas sempre me apaixonava pela paisagem. Tudo ficava bonito: o porteiro passando com a vassoura na mão, um casalzinho desfilando pelo centro da quadra, as crianças jogando bola no calçamento, os bebedores de cerveja, ao longe, no bar da entrequadra… Tudo aquilo devia acontecer ao mesmo tempo, junto com folhas voando… Por isso usei a grande-angular. Para que a emoção que me invadia se mostrasse na foto de número 8 acima, todo o espaço encolheu para caber no campo de visão da câmara. Aquela é a foto de uma emoção de fim de tarde, indefinível, sem sentido algum, composta pelo olhar de um ébrio que se esquece na janela. (Almino, 2008 B, p.48, grifos meus)
Sobre a foto número 12, por exemplo, que ele tira de Aída, no primeiro reencontro do futuro casal, diz: “Eis a prova de que a fotografia é capaz de armazenar diálogos inteiros e momentos únicos que nos são caros.” (Almino, 2008 B, 61) E é também com Aída que Cadu tem um diálogo que tematiza mais explicitamente a questão do realismo e da realidade.
Ela desejava ver um filme sobre narcotráfico nos morros do Rio de Janeiro, e Cadu protesta, usando as palavras de seu irmão, que considerava o filme “uma exaltação demagógica da violência e do crime” (Almino, 2008 B, 66), ao que retruca Aída: “-É a realidade […] As coisas são assim e alguém precisa mostrar.”
A seqüência do diálogo, com a resposta de Cadu, é elucidativa:
E não é realista o sonho? O conforto dos ricos? E não será real a minha vida, de passar o dia sem fazer nada, sem viver uma única catástrofe, sem ser assaltado, sem encontrar um bandido pela frente, sem conhecer a criminalidade?
Mas nisso não há narrativa. Não daria um filme.
Para mim, ainda mais real do que a violência é viver com medo da violência, sem me enfrentar jamais com o perigo. O cinema não precisa me convencer de que as notícias de jornal estão certas. Não preciso nem ler jornal. (Almino, 2008 B, 67)
Aída acha que Cadu, por ser fotógrafo, deveria ser comprometido com a ideologia realista: “- A essência da fotografia é representar a realidade, você sabe disso.” (Almino, 2008 B, 67) No entanto, Cadu argumenta que a “realidade” fotografada é “instantânea, passageira e muitas vezes mentirosa”. (Almino, 2008 B, 67)
Exemplo de que a realidade fotografada podia ser mentirosa é a foto da “conversa fingida” que Cadu e Escadinha tiveram na vernissage da exposição de fotografias sobre Eduardo Kaufman. Também é irônico que as fotografias desta exposição, feitas para ridicularizar e expor os defeitos de Kaufman (a quem Cadu odiava), tenham sido interpretadas de modo completamente diferente das intenções do fotógrafo, como uma demonstração das qualidades de Cadu “de humorista criativo, que, como um mágico, conseguia transformar um personagem sério em grotesco; de fotógrafo caricaturista que não recorria a montagens nem a manipulações.” (Almino, 2008 B, 244) Assim, embora Cadu tivesse a intenção de produzir um sentido, o público produziu outro diferente. E o sucesso veio não mediante o sentido atribuído às fotos pelo autor, mas através do atribuído pelo público: “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Gostaram do que não tive intenção de fazer.” (Almino, 2008 B, 244) E se, por um lado, o ressentimento de Cadu – por não ser reconhecido em função do que considerava ser o mais relevante em sua obra[6] – pode ser entendido no quadro de uma certa compreensão de autoria que considera que o autor não é apenas o proprietário da obra, mas também de seu sentido, por outro lado, o tratamento irônico da situação pode remeter a uma crítica da posição autoral. Em outras palavras, pode colocar em cena uma certa linha de avaliação de obras artísticas que as considera como objetos que têm autonomia em relação a seus criadores (e suas respectivas intenções, ao criá-las), e que assim poderão gerar vários e diferentes sentidos, em função dos diferentes e sucessivos públicos que produzirão suas interpretações conforme os contextos históricos e sociais em que se inserem.
Em O livro das emoções, quem encarna o projeto realista como fotógrafo que “representa a realidade” é o personagem Escadinha, fotógrafo que teria inclusive feito fotos de criminosos na Papuda – e que, muito sintomaticamente, era quem fazia sucesso, embora Cadu considerasse seu trabalho “produto comercial de baixa qualidade, com embalagem de Mercado, como um sabonete” (Almino, 2008 B, 68). Não poderíamos aqui, mutatis mutandis, também perceber uma crítica extensiva às narrativas literárias que, à moda Escadinha, vendem produtos comerciais de baixa qualidade, atendendo a uma suposta demanda de mercado, consubstanciada explicitamente na declaração de gosto de Aída? Não estaria O livro das emoções também oferecendo ao público um produto refinado e fora do padrão presumido para best sellers, o que lhe poderia gerar uma situação assemelhada à de Cadu como fotógrafo marginalizado, em oposição ao Escadinha consagrado?
A opinião de Aída parece constituir a versão para fotografia da opinião de Guga, o irmão do narrador, sobre literatura – que veremos adiante. Seu gosto por filmes “realistas”, baseados em narrativas de cunho autobiográfico, é assim descrito pelo narrador:
Aída se maravilhava que fossem histórias verdadeiras, que as personagens existissem na vida real, que a ficção não fosse ficção, que as notícias de jornal pudessem se estender detalhadamente por duzentas, trezentas ou seiscentas páginas, com riqueza de gírias, e depois fossem levadas ao cinema. (Almino, 2008 b, 128)
INTERTEXTUALIDADES
Ao longo da narrativa, há um certo volume de referências literárias, algumas mais explícitas para o leitor comum, outras menos. O capítulo “Quincas Borba e sua dona”, por exemplo, faz referência ao romance homônimo de Machado de Assis. Se o Quincas machadiano também deu ao cachorro de sua propriedade o seu próprio nome, e obrigou Rubião a cuidar dele para não perder a herança, na narrativa de João Almino o irmão do personagem principal, Guga, foi quem deu nome ao cão que intitula esta seção. Guga tinha, na visão do narrador, teorias que “se resumiam quase sempre à constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”. Claro, isto difere das teses do filósofo Quincas Borba, dono do cão do mesmo nome, que aparece em dois romances da chamada fase madura de Machado (Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba).
Quincas Borba, o personagem machadiano, pensava ter desenvolvido “um novo sistema de filosofia”: “Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta.”[7] O caráter individualista e narcísico desta filosofia é apresentado pelo mesmo personagem, no romance Quincas Borba, em que diz, no capítulo VI: “…o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo.”
O “filósofo”, então, cujas idéias foram reunidas em “quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas”[8], expõe seu pensamento, uma mistura das idéias cientificistas da época, articuladas de forma a gerar efeitos humorísticos no leitor.[9]
Guga não tem o perfil do personagem machadiano, mas sabemos que há toda uma linha de abordagem da obra de Machado que considera que o sentido profundo dela é uma certa atitude do autor, que alguns chamam de nihilismo e outros de ceticismo, e que pode levar à “constatação de que a vida era um longo lamento e nada valia a pena”.
E Guga também é responsável pela verbalização de um argumento sobre a criação literária, quando Cadu lhe pergunta sua opinião sobre escrever um livro. Para o irmão, se o autor não for favelado, transexual ou não estiver no meio de nenhum “conflito étnico, cultural ou racial”, sua história não interessa: “A menos que substituas a narrativa por uma catástrofe ou uma cena hiperviolenta.” (Almino, 2008 B, 39) Quando Cadu diz que não tem pretensão literária, que deseja modestamente ser exato sobre o que viu e viveu, produzindo uma espécie de diário, usando suas fotos, Guga acrescenta:
– Ainda assim, precisa haver uma trama na tua vida, que possa criar o enredo ou o suspense. Ou pelo menos tua história deve ser exemplar em algum sentido: deve mostrar que tu conseguiste construir alguma coisa, ainda que seja uma família ou uma empresa, entendes? (Almino, 2008 B, 39)
E Cadu responde: “- Entendi. Por culpa de meu caráter dispersivo, eu de fato nada construíra.” (Almino, 2008 B, 39) De fato, embora a referência de Cadu seja a sua vida, o “caráter dispersivo” serve também para a narrativa que ele constrói sobre ela. Afinal, Cadu vive ao sabor das circunstâncias, exercendo uma ocupação (fotógrafo) que não está atrelada a nenhuma rotina mais definida de trabalho, e lhe permite deslocamentos espaciais e existenciais, transformando-o numa espécie de flaneur, flanando pelos lugares e situações, com o olho e a máquina fotográfica prontos para tentar captar o sentido de momento ou de uma emoção configurada numa imagem. À falta de foco de sua existência correspondem os focos de suas lentes fotográficas e de sua narrativa. As suas reflexões estão, por conseqüência, associadas a isso.
As digressões do narrador de Almino, como as do narrador machadiano, com freqüência dirigem-se também à própria estruturação do enredo, como aquela digressão que antecipa a busca e o encontro de Cadu com o seu suposto filho:
Pensei naqueles romances em que o personagem central, em geral o próprio narrador, de uma hora para outra e em decorrência de uma iluminação, de um acidente trágico ou por uma razão qualquer decide procurar o pai, a mãe, o assassino do pai ou da mãe, o filho ou a filha, o marido ou a mulher desaparecidos, ou alguém que represente a promessa de amor… (Almino, 2008 B, 52)
De fato, ao final da narrativa, a própria crença de que tinha um filho desfaz-se, com a confissão de Berenice de que Pezão é filho de outro homem. Assim, a própria busca do suposto filho perde o sentido original que tinha e transforma-se em outra coisa, que o aproxima da esterilidade do personagem Brás Cubas.
Em relação à obra de Machado, sintomático também é o nome da cadela de Cadu: Marcela.
Afinal, a personagem Marcela de Memórias póstumas de Brás Cubas pode sem maiores problemas ser classificada como uma “cadela”, já que o narrador diz sobre ela: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.” (Assis, 2006, 44). A personagem feminina Marcela de O livro das emoções, por outro lado, declara não desejar fazer parte da coleção de mulheres do narrador: “- Não quero fazer parte da sua coleção de mulheres – me disse, irritada.” (Almino, 2008 B, 65). Mas acaba fazendo, e o narrador promete: “– Se um dia eu tiver uma filha, vou dar o teu nome: Marcela.” (Almino, 2008 B, 217). Depois, em vez de dar o nome à filha que não teve, Marcela acaba sendo o nome da cadela: “Sem filhas nem gatas, daria a minha cadela o nome de Marcela.” (Almino, 2008 B, 224).
Homem de muitas mulheres, Cadu só guardou afeto mais denso para pouquíssimas, e terminou, como o narrador de Memórias Póstumas, sem deixar descendentes. Da estória de O livro das emoções pode-se dizer o mesmo que João Almino diz sobre as Memórias Póstumas:
Não há crime nem castigo, não há punição que vá além dos pequenos dramas, o drama de não se poder ter tudo, o drama das ausências e separações, o drama do medo e o drama da perda. (Almino, 2009, 94)
Usando as palavras do crítico João Almino sobre o romance de Machado (Almino, 2009, 94-95), podemos considerar que o amor de Cadu por Joana depende das circunstâncias objetivas, é um amor pouco linear e imperfeito, ardente e depois esfriado pelo tempo, que sobrevive sob outra forma, a ponto de a declaração final de Cadu ser a de que vai entregar o livro a Joana. Esta ligação profunda com Joana, no entanto, não impediu que ele desfizesse a relação amorosa no passado, tal como aponta Almino sobre Brás Cubas, e nem que tivesse uma série de outros relacionamentos superficiais e passageiros, basicamente de natureza sexual, no que se aproxima de Bentinho:
Se pudermos chamar de amor o que [Brás Cubas] sentiu por Virgília uma boa parte de sua vida, Brás amou Virgília e nenhuma outra mulher e […] a ela se dirige do além, no presente da narrativa, como “minha amada”. Nem sequer o narrador dará a entender que procurará outras mulheres para preencher o vazio que Virgília lhe deixou e isso contrasta com outro importante personagem de Machado de Assis, o Bento de Dom Casmurro, que afirma no penúltimo capítulo daquele livro: “Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou décor. Vivi o melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira.” (Almino, 2009, 95)
Cadu, no entanto, se teve muitas mulheres que o consolassem, não teve apenas uma referência de relacionamento afetivo mais denso. De fato, ele chega a casar-se com Aída, que, como a princesa etíope da ópera de Verdi, morre junto do narrador, e cujo filho ele vai de alguma maneira “adotar” – se podemos entender esta palavra não somente em seu sentido estritamente legal, mas como a designação de uma relação de longa duração.
Enquanto Brás Cubas, na frase final de suas Memórias, declara que não teve filhos, e não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”[10], Cadu acreditou durante boa parte de sua vida que tinha tido um filho, fruto de uma relação clandestina com uma empregada, Berenice. Chega mesmo a encontrá-lo, mas acaba descobrindo que ele não era seu filho. No entanto, embora Cadu não tenha deixado descendentes, são os filhos (Maurício e Carolina) de mulheres de sua vida que o acompanham na velhice. Eles são uma espécie de compensação para os filhos que desejou, mas não teve.[11]
E, embora seu irmão Guga ache fundamental a presença textual de uma “lição de vida”, de uma tese ou algo do mesmo âmbito semântico, para que a narrativa desperte interesse no público leitor, Cadu explicita sua posição contrária à tentativa de elaborar uma transcendentalidade em relação à vida narrada: “As histórias de nossas vidas não precisavam provar nada, ter final feliz nem um sentido acima delas mesmas.” (Almino, 2008 B, 135)
Também o crítico João Almino, ao analisar o romance de Machado, sublinha em Memórias póstumas a ausência de um sentido transcendental. O que poderia ser mais adequado para um narrador da linhagem machadiana?
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Mário de. Advertência. In: ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: W. Jackson Editores, 1942. p. 7-10.
ALMINO, João. Escrita em contraponto – ensaios literários. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008. A
—–. O livro das emoções. Rio de Janeiro: Record, 2008. B
—–. O diabrete angélico e o pavão; enredo e amor possíveis em Brás Cubas. Belo Horizonte, Editora da UFGM, 2009.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 2006.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. São Paulo, Ateliê, 2002 [1960]. Trad. Fábio Fonseca de Melo.
JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
—–. Machado de Assis: o romancista como crítico. In: Machado de Assis em linha, vol. 5, 2010. http://machadodeassis.net/index.htm
(*) JOBIM, José Luís. João Almino, o crítico como romancista. In: FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de et alii (org.) Crítica e literatura. Rio de Janeiro/Belém do Pará: De Letras/ Universidade Federal do Pará, 2011. p. 11-26.
[1] (…) Machado de Assis (em contraste com sua criatura Santiago) não tinha o hábito de escrever romances de intriga. A base de seus romances, como ele mesmo afirma em mais de uma ocasião, é mostrar o drama resultante da inter-relação de naturezas contrastantes. (Caldwell, 2002, 31)
[2] “É Santiago quem escreve sua estória, mas os nomes dos personagens – com exceção de Ezequiel – foram conferidos pelo autor real. Eles representam o elemento do romance que pode, com absoluta certeza, ser posto na conta de Machado.” (Caldwell, 2002, 55)
[3] Desenvolvi mais analiticamente este argumento em: JOBIM, José Luís. Machado de Assis: o crítico como romancista.
[4] “Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for surgindo.” (Almino, 2008, 13)
[5] Veja-se o que diz das fotos que, já cego, tirou de Laura em [14 de julho]: “Claro, não pude ver o resultado, mas cada foto está associada ao sorriso que imaginei em seu rosto, a palavras que ouvi de sua boca, a seu cheiro e à delicadeza de suas mãos.” (Almino, 2008 B, 46)
[6] “Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões erradas. Que prazer eu podia sentir em conquistar a glória por engano?” (Almino, 2008 B, 244)
[7] Idem, Capítulo XCI.
[8] Idem, Capítulo CXVII.
[9] Escrevi mais longamente sobre Quicas Borba em: JOBIM, J. L. Revendo Quincas Borba e Rubião. Revista da ANPOLL, vol. 24, p.45 – 56, 2008.
[10] “— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (Assis, 2006, p. 176)
[11] “Sempre me sentira incompleto sem um filho a meu lado. Se não fosse a tolice de ter acreditado que a vida de solteiro e a ausência de filhos ajudariam a manter acesa a chama do desejo entre mim e Joana, a teria convencido a fazer tratamento contra infertilidade e teria tido com ela não apenas um, mas vários filhos. (Almino, 2008 B, 41)